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ENTREVISTA COM JOHN GLEDSON

INTERVIEW WITH JOHN GLEDSON

Resumo

O professor, crítico e tradutor John Gledson trata nesta entrevista do trabalho de edição das crônicas de Machado de Assis, que já se estende por mais de três décadas, indicando especificidades do tratamento dos textos desse gênero praticado pelo escritor desde a juventude até os anos finais de sua vida.

Palavras-chave:
Machado de Assis; crônica; edição

Abstract

In this interview professor, literary critic and translator John Gledson addresses his work editing Machado de Assis's chronicles, an activity that he has carried out for over three decades now. Gledson discusses the current state of the editing of the chronicles and points out unique aspects in treating the texts of this genre in which Machado engaged from his youth until the final years of his life.

Keywords:
Machado de Assis; chronicles; editing

John Angus Gledson, professor aposentado na Universidade de Liverpool, é um dos principais críticos machadianos em atividade, com uma longa convivência com a obra de Machado de Assis. Em 1983, publicou em Roma “Machado de Assis and the Abolition of Slavery: an Almost Unknown Cronica”, sua primeira contribuição aos estudos machadianos; no mesmo ano, publicou na Inglaterra um famoso ensaio sobre Casa Velha, que praticamente mudou o entendimento que até então se tinha a respeito dessa novela.

Desde então, o crítico vem apresentando novos aspectos do escritor e da sua obra, especialmente ao especificar as relações entre a ficção machadiana e a história e a sociedade brasileiras, em três livros inteiramente dedicados a Machado publicados no Brasil: Ficção e história, de 1986; Impostura e realismo, com a primeira edição brasileira em 1991; e Por um novo Machado de Assis, de 2006. Além disso, publicou vários ensaios e coletâneas, tanto no Brasil como na Inglaterra, onde saiu em 2008 o volume A chapter of hats and other stories, com 20 contos selecionados, traduzidos, anotados e apresentados por ele.

Desde meados da década de 1980, John Gledson tem se dedicado à edição de textos de Machado de Assis, com a publicação de crônicas em texto fidedigno e anotado. Por meio de conhecimento amplo e detalhado da história brasileira e da pesquisa em periódicos do século XIX, essas edições buscam esclarecer as múltiplas referências de Machado para a composição de suas crônicas. Conforme mostra o crítico e editor, muitas dessas referências foram retiradas do noticiário veiculado nos muitos periódicos de que Machado foi leitor assíduo.

Assim, o trabalho de edição e anotação converge com o projeto crítico de John Gledson, que busca indicar na prosa de ficção machadiana a presença ostensiva da história e da vida política nacionais.

Na entrevista que segue, feita por correspondência eletrônica trocada entre dezembro de 2019 e janeiro de 2020, John Gledson relembra sua trajetória como editor de textos de Machado de Assis, trata de mudanças importantes nas condições materiais de pesquisa observadas entre a década de 1980 e hoje, discorre sobre alguns dilemas apresentados no embate com os textos de Machado de Assis e explica os critérios que adotou ao editá-los.

1. Como e quando você editou um texto de Machado de Assis pela primeira vez? O que o levou a realizar esse trabalho?

Foi na segunda metade da década de 1980. Não me lembro do ano exato. Machado de Assis: ficção e história, publicado em 1986, tem um capítulo sobre "Bons Dias!", para o qual me servi da edição de Raimundo Magalhães Júnior, em Diálogos e reflexões de um relojoeiro. Vi que essa edição, embora sendo uma iniciativa muito importante, distava muito de ser ideal - as notas eram insuficientes, e o texto tinha erros sérios (confundiu Irlanda com Itália, coisas assim). Veio um convite da Hucitec, através de Davi Arrigucci e Alfredo Bosi, para fazer uma edição mais útil e fidedigna, e cedi à tentação. Logo me dei conta que pedia muito trabalho, mas em compensação iluminava muito as opiniões do autor, o próprio processo histórico da Abolição e a chegada da República, a relação do cronista com o jornal etc. Essa edição teve bastante sucesso, um pouco pelo próprio contexto histórico em que as crônicas foram escritas e publicadas, entre 1888 e 1889.

2. Entre os primeiros textos que você editou e os trabalhos que está realizando agora, quais as principais mudanças nas condições materiais do trabalho de edição?

Nos anos 1980, ia ao Rio de Janeiro para pesquisar, ficava meses e ia praticamente todo dia à Biblioteca Nacional, cedo, para reservar uma máquina de ler microfilmes que funcionasse bem. Lia as notícias relevantes, copiava na minha péssima letra de mão o que interessava. Voltava ao apartamento das Laranjeiras onde me hospedava, copiava e armazenava tudo, para elaborar depois, juntar e mandar para a editora, por correio ou pessoalmente - e-mail, só nos anos 1990. No processo, consultava uma multidão de enciclopédias, concordâncias, dicionários, para identificar as referências e as múltiplas citações dos textos, tentando identificar fontes.

Hoje, estou sentado numa casinha de campo, meio afastada da civilização, nas brenhas do norte da Inglaterra, diante do meu computador, que, óbvio, tem acesso à Internet, o que me permite consultar a Gazeta de Notícias e outros jornais numa questão de segundos, sem atravessar o Atlântico. O processo de identificar referências ficou mil vezes mais fácil, basta consultar o Google... (embora as enciclopédias etc. continuem sendo úteis). Ou seja, as condições materiais mudaram 100%.

Só queria sublinhar uma coisa que não mudou - é o trabalho de microfilmagem e digitalização dos jornais da Biblioteca Nacional (e de outras bibliotecas). Sem esse trabalho fantástico, fundamental, não teríamos a base para nosso trabalho, nem ontem nem hoje.

3. Na sua postura como editor, ou seja, no embate direto com o texto de Machado, o que mudou ao longo dessas quase quatro décadas? Há aspectos que você considerava importantes e hoje não considera mais; ou o contrário, há aspectos que via como desimportantes, aos quais atualmente dá mais atenção?

O principal não creio que tenho mudado tanto. O objetivo continua igual - publicar textos fiéis, informativos e, sobretudo, acessíveis em todos os sentidos. As edições de (por exemplo) Aurélio Buarque de Holanda (que só tinha notas sobre detalhes de língua) ou Magalhães Júnior (com anotações úteis mas às vezes supérfluas, noutras vezes insuficientes, ou ausentes) não bastam para um estudante ou um estudioso atual. Percebi nos últimos 4 ou 5 anos que, agora que os jornais são acessíveis a todos pela admirável iniciativa da Biblioteca Nacional, às vezes basta dar jornal, data, página e coluna de tal citação, para que o leitor interessado possa ler no site; com isso, o critério de quanto citar mudou um pouco, embora nem tanto. Devo confessar também que, colaborando com José Américo Miranda (entrevistado neste número), da Machadiana Eletrônica, onde estamos dando continuação à edição de "A Semana", cuja primeiro volume foi publicado há mais de vinte anos (!), me tenho dado conta dos detalhes do português das crônicas, do texto em si, da posição flexível embora conservadora de Machado perante a língua, e de alguns errinhos sintomáticos da edição dos anos 1950 do Aurélio (que "corrige" Machado por "erros" que bem possivelmente são intencionais, e sem anotar essas ocorrências). Por mais que conheça e domine o português, sou estrangeiro, não passei por uma educação gramatical sistemática em português; mas em geral, como digo, o trabalho continua igual, com a imensa ajuda da Internet, e de certas publicações mais recentes (a edição da correspondência da Academia, o Dicionário de Machado de Assis, de Ubiratan Machado, e muitos outros).

Pensando bem, há uma diferença importante, uma coisa que evoluiu ao longo dos anos. Em 2011, aproximadamente, fui convidado pela Penguin/Companhia das Letras a fazer uma antologia das crônicas de Machado. Isso me pôs diante de uma escolha -repetir ou até reproduzir as edições já feitas para um leitorado mais acadêmico, ou de alguma maneira facilitar o acesso para uma audiência maior? O que não cabia fazer era "facilitar", tirando as notas (simplifiquei e encurtei em alguns casos), justamente porque não facilita - dificulta. Cheguei à solução de escrever um pequeno texto introdutório para cada crônica, que se pretendia apenas explicativo, e só minimamente interpretativo. Creio que a experiência deu certo (pelo menos, eu gostei de fazer) e decidi adotar para as crônicas que estou editando, com a preciosa ajuda de José Américo Miranda, para a Machadiana Eletrônica, e que posso recomendar a todos (fizemos todo 1894 e chegamos até agosto de 1895)

4. Quais os principais dilemas e desafios que você, como editor de textos de Machado de Assis, continua a enfrentar?

Os desafios maiores continuam sendo as notas - a identificação das notícias dos jornais que Machado leu (não achamos, por exemplo, n’A Ordem, jornal do Recôncavo baiano, a notícia que deu origem à crônica que passou a se chamar "O punhal de Martinha", o que é uma pena, pois iluminaria muito a "versão" machadiana dessa crônica extraordinária, que mereceu uma interpretação detalhada e abrangente de Roberto Schwarz). Machado tinha o hábito frustrante, se bem que profundamente característico, de muitas vezes não identificar - esconder? - as fontes que cita. Uma regra que elaborei para uso próprio é que quanto mais obscura a citação, mais interessante ela é. "Acabemos com este costume do escritor dizer tudo, à laia de alvissareiro", como diz o próprio (ASSIS, 1996:108).

5. A seu ver, quais seriam os limites para a atualização do texto de Machado? Como você lida, por exemplo, com as diferenças entre os usos de Machado e as regras atuais?

O meu princípio foi sempre modernizar a ortografia, um princípio simples, necessário e lógico. Na pontuação, procuro manter o texto original, exceto onde há erro óbvio (o único texto-base que temos é o jornal, que em geral é fidedigno, mas pode errar), e nesses casos - detalhe importante -, sempre anoto, para dar as evidências ao leitor. Quando os estrangeirismos vêm italicizados, mantenho essa italicização. Acho importante, em parte porque (sobretudo tratando-se de Machado) a italicização bem pode envolver ironia, e o leitor deve poder julgar qual a intenção, em cada caso.

6. No interior da obra de Machado, e às vezes no interior de um mesmo texto machadiano, há variações, tanto no uso da pontuação como na ortografia (cousa/coisa; devagar/de vagar; etc.) e na acentuação (no uso da crase, por exemplo). Como você lida com isso? Tende a uniformizar ou mantém essas variações?

Do meu ponto de vista, e como estamos lidando com textos jornalísticos, acho menos importantes essas variações, que dificilmente representam decisões do próprio autor, que é o que principalmente nos interessa. As edições críticas da Comissão Machado de Assis, por exemplo, tinham outros critérios, mas vale lembrar que no caso dessa edição se trata de edições de livros, em que o cuidado com o texto foi presumivelmente maior. Mesmo assim, não sei se estou exagerando, mas creio que esse cuidado com questões "linguísticas" pode ser excessivo. Para mim, o que interessa mais é estabelecer um texto que represente as intenções de Machado, literárias e outras. Imprimir "de vagar" ou "devagar", "cousa" ou (raramente) "coisa" não tem esse interesse, se não me engano. De fato (pode ser mania minha), acho que usar "cousa", "dous" etc. pode dar uma pátina meio falsa de "antiguidade" para textos que, por razões legítimas, estamos apresentando "limpos" e simples, em roupagem moderna, para leitores modernos.

7. Machado escreveu e publicou textos durante mais de cinquenta anos, período em que ajudou a definir, como escritor e como presidente da Academia, um novo padrão de escrita em língua portuguesa. Você identifica mudanças significativas, por exemplo, entre o padrão da escrita das crônicas de "Notas semanais", publicadas nos anos 1870, e o das crônicas de "Bons dias!" e "A Semana", publicadas nas décadas de 1880 e 1890?

Confesso que acharia muito difícil definir tais mudanças, que obviamente devem existir. Boa parte dessa dificuldade talvez resida, novamente, na minha condição de estrangeiro. É evidente que as diferenças entre as primeiras crônicas, dos anos 1860, e as mais tardias, saltam aos olhos. Sobretudo em "A Semana", que saiu na Gazeta de Notícias nos anos 1890, a última e a mais ambiciosa série de crônicas que publicou (apesar de anônima, todo mundo sabia que era dele, nem ele escondia o fato), nessas crônicas, a sutileza e a concisão da expressão são extraordinárias. Ele emprega todo o arsenal da ironia, dos negaceios com o leitor, das mudanças de assunto, reais e artificiais etc. À medida que avançamos, a sofisticação também cresce. Devemos dar-nos conta também de que cada série tinha pressupostos diferentes, pseudônimo diferente, relação com o leitor também diferente. Mas também (espero que não esteja apenas justificando a minha relutância em me pronunciar a respeito), crônica não é como romance ou como conto, em termos estilísticos. É mais curta, varia muito segundo o assunto, o nível de ironia varia, a relação com o leitor é mais "próxima", dia-a-dia, no "rés-do-chão", como diz Antonio Candido -, mas, no caso de Machado especialmente, não dispensa a sofisticação, as referências a uma multidão de autores célebres e menos célebres. É um assunto complicado, porque a sutileza, a própria concisão tão típica do autor muitas vezes nem se notam, não saltam aos olhos. O assunto é muito curioso, confesso; oxalá as nossas edições levem algum interessado a estudá-lo seriamente. O que sei é que sem essas edições, em todos os seus aspectos, linguísticos, literários, históricos, esse trabalho seria impossível.

8. Você já editou crônicas e contos de Machado de Assis. Há diferenças significativas no processo de edição de textos de diferentes gêneros? Quais seriam?

Embora os objetivos com relação aos dois gêneros sejam os mesmíssimos - fidedignidade, acessibilidade -, na prática são dois mundos inteiramente diferentes. Uma crônica "normal" d'"A Semana", por exemplo, pede 10 notas ou até mais, entre anotações ao texto, citações (às vezes meio compridas) dos jornais que expliquem tal ou qual fait divers, algum escândalo ou tragédia inteiramente esquecido, mas cujos detalhes o leitor do jornal bem possivelmente soubesse, e ao qual, portanto, temos que dar acesso ao leitor atual, para situá-lo, na medida do possível, em pé de igualdade com esse leitor contemporâneo à publicação da crônica; explicações de assuntos menos "triviais", como as crises econômicas e políticas do momento, que são um pano de fundo de que todo o mundo estaria consciente, mas de que os leitores modernos terão uma consciência mais genérica, se têm alguma - o Encilhamento, a Revolta da Armada, o imperialismo britânico (no Egito ou na Ilha da Trindade), a Guerra Federalista, o Positivismo, a Guerra Sino-Japonesa, o fim do florianismo e a subida dos paulistas ao poder na presidência de Prudente de Morais (falo apenas das crônicas que estamos editando agora, de 1895), etc. Somemos a isso as citações e referências literárias - às vezes mais abstrusas e misteriosas que nos contos, por estranho que pareça -, e vê-se que precisamos de notas extensas, e pode parecer que há risco de sufocar o texto. Risco que, até certo ponto, devemos assumir, dada a natureza desses textos e a sua relação imediata e complexa com o seu contexto.

Nos contos, que editei sobretudo para a antologia em dois volumes, que mais tarde saíram em edição reduzida, 50 contos, a situação é diferente. Há inclusive contos que não precisam de uma única nota. É que, sendo obras assumidamente literárias, não são escritas para o "leitor contemporâneo", mas para os do presente (de então) e do futuro. As próprias referências literárias, embora algumas sejam meio abstrusas (por razões interessantes, elas são abundantes em Papéis avulsos, de 1882), não representariam problema (creio - confesso que em alguns casos duvido) para o leitor de então - para o de hoje, um pouco mais. O resultado vê-se na própria página do conto, 90% ou mais ocupada pelo texto. Pode-se preparar perfeitamente uma edição popular, e útil para o leitor mais exigente. A prova são as vendas dessa antologia, que sem me vangloriar posso chamar de séria e limpa, e que continua vendendo, vinte anos depois de ser publicada pela primeira vez, a um ritmo bom e regular, como convém a um clássico.

9. Um dos diferenciais das suas edições e traduções de Machado de Assis está nas anotações. O que você considera um bom ponto de equilíbrio para o uso das notas explicativas?

A resposta a esta pergunta vem implícita em parte do que já disse. Sublinho apenas algumas coisas. Parece óbvio, mas temos que levar em conta o leitor para quem fazemos esse trabalho. Não faz sentido, por exemplo, explicar o enredo de Otelo numa tradução de Dom Casmurro para o inglês. Num texto para brasileiros, será necessário? Há muitos casos de dúvida como esse. Quando publiquei minha primeira edição de "Bons Dias!", em 1991, me lembro que uma resenha curta na Folha de S.Paulo disse que era ridículo explicar quem era Darwin. Fiquei chateado na hora, não sem razão, porque tinha explicado muita coisa, do Brasil inclusive, que os leitores brasileiros verossimilmente não saberiam. Como disse Machado numa crônica: "nós temos andado desde 1840 com as cartas de Inglaterra, da Bélgica e dos Estados Unidos da América, e mal sabemos onde fica Marapicu" (por "cartas" ele se refere a constituições que os brasileiros imitaram - Marapicu, para quem não sabe, é uma montanha da Serra do Mar, não longe do Rio). Claro que meu crítico não deixa de ter razão, e se o comentário fosse absurdo, eu teria esquecido. Isso ilustra as escolhas que a gente tem que fazer. Como disse, depende do leitor a que se destinam, no caso, um leitor imaginado. Por isso, sempre tenho consultado amigos, na grande maioria brasileiros, que conhecem ou constroem esse leitor bem mais facilmente - e veem coisas que eu não vejo, claro.

O principal das minhas edições são mesmo as notas. Existem outras edições das crônicas mais ou menos boas (as de Aurélio Buarque de Holanda Ferreira d'"A Semana" (1957), ou da recente edição da Nova Aguilar (2015), por exemplo). As minhas são, creio, mais fidedignas; são principalmente legíveis, entendem-se. Procurem ler uma crônica nessas edições sem notas explicativas, e o prazer é praticamente nulo, se não me engano. Sempre se tem a sensação de perder alguma coisa, às vezes de estar mesmo perdido. Exagerando, diria que é um trabalho de arqueologia, que traz esses textos à superfície pela primeira vez em muitos anos, e assim restaura-se uma parte importante da obra do autor.

Sem dúvida, é possível exagerar. A gente pesquisa tanto nos jornais e enciclopédias que a tentação de levar tudo para as notas é grande. Notei um fenômeno nas edições alheias, o de "mostrar serviço". Sem dúvida tenho caído nisso algumas vezes. Creio que esse exemplo é fictício, mas não juraria: com o pretexto de uma referência ao dia de Tiradentes, dar uma biografia completa do mártir da Inconfidência. O critério básico deve ser: serve para explicar e iluminar a crônica? Mas nem esse critério é suficiente. Quando cita algum escritor moderno ou antigo, por exemplo, é bom às vezes ilustrar um pouco o contexto do poema, romance ou peça que cita, porque pode iluminar a própria crônica, levar ao pensamento do autor, aos seus hábitos de leitura etc.

10. De que maneira as ferramentas de busca (Google e outras) modificaram a necessidade e a própria natureza das notas explicativas?

Talvez eu seja um pouco uma raridade, por ser sobrevivente de um mundo sem Google. Tenho em casa a Enciclopédia Delta Larousse, versão brasileira (generosamente mandada pela Editora Hucitec), em vinte ou mais volumes, que usava sempre nos anos 1990, e que praticamente não uso mais, porque tudo vem no Google, na Wikipédia e outros múltiplos sites, embora tenhamos que usá-los com cuidado... A facilidade de achar coisas às vezes muito escondidas é extraordinária, poupa tempo e esforço, e nos libera o cérebro para outras tarefas, até para ler as obras citadas. Sinto saudades do velho mundo a.G. (antes do Google)? Diria que um pouquinho, sim. A excitação de localizar uma citação por pura (?) intuição dá muito prazer, sem dúvida, e o próprio processo de buscar, às vezes em vão, ensina coisas. Eu me lembro de ler três volumes da Histoire des origines du christianisme de Ernest Renan até localizar uma citação que achava (e continuo achando - está na crônica de 16 de abril de 1893) muito interessante. O próprio Renan é um autor cujo efeito em Machado está subestimado, e não posso dizer que a experiência de ler os três volumes fosse penosa - é uma delícia de leitura, de fato. Mas talvez isso tenha sido uma exceção. Nem me atrevo a olhar muito de perto a edição de "A Semana" de 1892-93MACHADO DE ASSIS. “A Semana”, Gazeta de Notícias, Rio de Janeiro, 21 ago. 1892. In: MACHADO DE ASSIS. A Semana - crônicas (1892-1893). Edição, introdução e notas de John Gledson. São Paulo: Hucitec, 1996., de medo de encontrar problemas que com o Google eu talvez tivesse solucionado. Sempre ficam coisas a descobrir.

Outra coisa que talvez valha a pena mencionar é a ferramenta de busca de palavras-chave nos textos digitalizados dos jornais. É um pouco o mesmo caso do Google. "Antigamente", e às vezes ainda hoje, levava horas atrás de alguma referência, algum item do noticiário, uma agulha num palheiro. Mas mesmo esse processo frustrante tem suas vantagens, pois aprende-se a ler o jornal, que é um pouco ler essa sociedade. Agora, com o Google, juntam-se as duas coisas.

11. Para alguém que queira compor uma machadiana a mais completa possível, com textos os mais fidedignos possíveis, que edição (ou que edições) da obra de Machado de Assis você recomendaria?

Se fosse responder a esta pergunta exaustivamente, teria que investigar a fundo edições, como as duas ou mais da poesia completa, que não conheço suficientemente bem.

Primeiro, diria que depende um pouco do que você quer da edição. Edições "completas" existem, as duas da Aguilar para começo de conversa, mas a primeira, de 1959, dista muito de ser completa, omitindo muitas crônicas; e até a mais recente, baseada nessa primeira, mas completando-a, omite coisas, e os textos de algumas crônicas baseiam-se em edições que elas mesmas deixam a desejar. Confesso meu apego à primeira, em três volumes, feita por José Galante de Sousa, que tem um índice de autores, personagens e obras mencionados nas crônicas e outras obras, que a nova, mais completa, não atualizou (porque aumentou muito o número de crônicas incluídas) e, portanto, omitiu. Tenho uma queda por edição com índice, porque facilita a pesquisa, claro.

Se quiser uma edição crítica, sem dúvida há os volumes da Comissão Machado de Assis (mas falta Papéis avulsos, justamente a coletânea em que as variantes entre as versões publicadas em vida do autor, em 1882, têm mais interesse), mas elas não iluminam as referências, e até, em algumas poucas ocasiões, incorrem nessa tentação de todo editor, a de corrigir os "erros gramaticais" do autor, que no caso de Machado são ou podem ser perfeitamente intencionais, coisa de estilo, não de língua - muitas vezes para aproximar-se à língua falada.

Por estranho que pareça, posso recomendar, para muita gente, colegiais e universitários inclusive (até os acadêmicos aprenderão alguma coisa), as edições "didáticas" dos grandes romances da Editora Scipione, dos anos 90. É que as notas - novamente as notas - feitas por Cristina Carletti e companheira/os, são excelentes, um modelo de seriedade sem excesso, que iluminam muito detalhe. Claro, há as excelentes edições de Marta de Senna e sua equipe, da Casa de Rui Barbosa, com suas notas, completíssimas, em hipertexto. A Internet vai mudando muita coisa também neste campo, e novamente, muda a acessibilidade, fazendo com que edições sérias não sejam coisa de poucos leitores. Nos últimos trinta anos, desde a minha primeira aventura no campo, tem havido uma revolução, com seus altos e baixos sem dúvida, mas quase sempre no bom sentido.

12. Que balanço você faria desses trinta anos como editor, leitor e crítico dos textos de Machado de Assis?

No fundo, responder às suas perguntas me tem feito pensar um pouco no processo, nas vicissitudes, e sobretudo nos objetivos, nos ideais (não creio que a palavra seja excessiva) que devem orientar-nos nas edições das crônicas - o que fiz, o que fizemos e não fizemos ao longo desses anos, mais ou menos de 1990 em diante, em ritmo crescente.

Quando primeiro comecei a editar as crônicas de Machado, não tinha experiência de edição de texto. Os motivos eram sobretudo literários e históricos - queria "simplesmente" complementar o trabalho do capítulo sobre "Bons Dias!" em Ficção e história. À medida que trabalhava, fiquei cada vez mais interessado nos textos e nos seus contextos. Também via que as crônicas eram uma pista essencial para entender o autor.

Ficou crescendo a ambição de editar outras crônicas, e, no horizonte, de editá-las todas. Vale a pena sublinhar por quê. As crônicas, só em tamanho, formam uma boa porcentagem (25%?) da obra de Machado. Têm uma história própria, que corre paralela à das outras obras, e da vida profissional, intelectual e literária do autor, que pode ser muito reveladora em muitos sentidos, e sobretudo liga-o à história social e política do país e da cidade do Rio de Janeiro. Temos agora, para nossa grande alegria, uma edição da correspondência, ativa e passiva, com notas perfeitas, mais do que adequadas. As crônicas apresentam outros problemas, e oferecem outras informações, outras dicas, que, como disse, correm paralelas aos outros gêneros. Toda série tem sua posição nessa história - para dar um exemplo que conheço bem, as "Notas semanais", de 1878, iluminam - e muito - o momento crucial da chamada "crise dos quarenta anos", a crise de Memórias póstumas de Brás Cubas e Papéis avulsos, outra obra que, como já disse, precisa - grita por - uma edição realmente crítica.

Na hora, em 1990 digamos, vislumbrei que essas edições precisavam ter certas características. Textos cuidados, fidedignos e informativos (que dissessem e explicassem onde diferenciavam-se das fontes jornalísticas, por exemplo), notas, como já foi dito, fartas sem ser excessivas e redundantes, que explicassem os contextos todos, e que, na medida do possível, situassem o leitor atual na posição do leitor contemporâneo do Cruzeiro, da Gazeta de Notícias etc. Obviamente é um ideal inatingível, mas nem por isso absurdo.

Isso, por sua vez, pensei (e continuo pensando), permitiria escrever uma história das crônicas de Machado, dos seus vários contextos; uma história que inclusive teria validade própria, mais consistência inclusive que a correspondência, por ser menos sujeita ao momento imediato, e a uma pessoa só, e mais ao "grande público" e ao que provisoriamente podemos chamar um projeto, coisa que transparece nas três séries que editei, "Notas semanais", "Bons dias!" e "A Semana". Finalmente, devia ter índice das referências - autores, obras literárias, eventos históricos etc. Insisto neste último ponto, porque remete a um assunto crucial. Este projeto deve ter um aspecto coletivo, de trabalho feito, não necessariamente em conjunto, mas para que outros possam servir-se do nosso trabalho, como nós nos servimos do deles. Pensem na utilidade do índice de autores, obras, figuras históricas, logradouros etc. no site machadodeassis.net, com as suas "Citações e alusões na obra de Machado de Assis", de tão fácil consulta - ainda não inclui as crônicas, mas um dia...

Nos trinta anos que vão de 1990 para cá, publicaram-se muitas edições de séries das crônicas de Machado (e de outros autores: não posso deixar de mencionar a edição das crônicas de Bilac, de Antonio Dimas, muitas contemporâneas às de Machado). Fiz um comentário a todas as que se tinham feito até então na antologia de 2012. Confesso que fiquei chocado com a qualidade de muitas delas. Não acreditava que critérios simples e necessários (embora sem dúvida exigentes em certo sentido), pudessem ser passados de lado, e se publicassem textos que não recorriam aos jornais, por exemplo; sem índice ou com índice insuficiente; com erros textuais elementares.

Minha impressão, porém, é que lentamente estamos progredindo. Sem dúvida alguma o que contribuiu mais a esse processo é a imensa "democratização" levada a cabo pela Internet.

Vou terminar com um exemplo que resume muito do que já disse. Recentemente, Sílvia Maria Azevedo publicou uma edição completa das "Badaladas", publicadas na Semana Ilustrada entre 1869 e 1876, com o pseudônimo de Dr. Semana. Sempre sabíamos que algumas - muitas? - dessas crônicas eram de Machado. São dois gordos volumes, publicados pela iniciativa do machadiano Valentim Facioli (entrevistado neste número), da Editora Nankin. São mais de 300 crônicas, metade do número de que já dispomos, que são pouco mais de 600. A professora Azevedo não diz, com toda a razão, que essas crônicas são todas de Machado, mas apresenta argumentos que apoiam essa ou aquela atribuição - uma citação repetida, um assunto obsessivo etc. É um trabalho ingente, e, claro, está longe de ser definitivo. Pode ser até que nunca saibamos se tal ou tal crônica "pertence" a Machado. Mas dispomos das evidências, não só nesses textos, a grande maioria publicada em livro pela primeira vez (e "consultáveis" na revista, no site da Biblioteca Nacional), mas também em outras edições. A primeira surpresa é que o anticlericalismo de Machado, que eu achava limitado aos anos 1860 antes do choque da queda do governo Liberal de Zacarias, em 1868, bem possivelmente continuou em 1869, quando podíamos pensar que Machado fosse mais discreto.

Enfim, não ouso afirmar muito acerca dessas crônicas, pelas incertezas que circundam sua autoria, e pela própria quantia do material. Precisamos de mais pesquisa. O que podemos afirmar sem sombra de dúvida é que a publicação é muito bem-vinda, um grande passo no estudo das crônicas. Vai suscitar discussão? Ótimo. Assim, iremos discutindo e estabelecendo critérios para edição e atribuição, lançaremos mão de outras edições das crônicas e outras obras, e assim entenderemos cada vez melhor esse mundo tão complexo e fascinante.

Referência:

  • MACHADO DE ASSIS. “A Semana”, Gazeta de Notícias, Rio de Janeiro, 21 ago. 1892. In: MACHADO DE ASSIS. A Semana - crônicas (1892-1893) Edição, introdução e notas de John Gledson. São Paulo: Hucitec, 1996.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    23 Mar 2020
  • Data do Fascículo
    Jan-Apr 2020

Histórico

  • Recebido
    22 Jan 2020
  • Aceito
    04 Fev 2020
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