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ENTREVISTA COM VALENTIM FACIOLI

INTERVIEW WITH VALENTIM FACIOLI

Resumo

Esta entrevista focaliza aspectos da vida, da carreira e do trabalho editorial do professor aposentado da USP, crítico literário e editor Valentim Facioli, no que se refere à sua dedicação à obra de Machado de Assis. Atualmente à frente da Editora Nankin, a experiência de docência e pesquisa deu lugar à publicação tanto de estudos machadianos, quanto de reedições e inéditos em livro do autor; respectivamente: A poesia completa (2014) e as Badaladas do Sr. Semana (2019).

Palavras-chave:
Machado de Assis; Valentim Facioli; Nankin Editorial; inéditos em livro; Badaladas do Dr. Semana

Abstract

This interview addresses aspects of the life, career and publishing practices of the retired USP professor, literary critic and editor Valentim Facioli, in regard to his dedication to the work of Machado de Assis. He currently heads Editora Nankin, and instead of teaching Machado de Assis, he edits studies on the writer and unpublished works by the writer, such as A poesia completa (2014) and the Badaladas do Sr. Semana (2019).

Keywords:
Machado de Assis; Valentim Facioli; Nankin Editorial; inéditos em livro; Badaladas do Sr. Semana

(...)

estás sempre aí, bruxo alusivo e zombeteiro,

que revolves em mim tantos enigmas

“A um bruxo, com amor”, Carlos Drummond de Andrade

A certa altura do belo poema que Drummond dedicou a Machado, "A um bruxo, com amor", lê-se: "estás sempre aí, bruxo alusivo e zombeteiro, / que revolves em mim tantos enigmas". A pincelada drummondiana é certeira: a literatura de Machado revolve: retorce, remexe, revira e deixa tudo significativamente fora do lugar. O vaivém do bruxo - cujo desdobramento engendrará a volubilidade de classe detectada por Roberto Schwarz no seu famoso estudo sobre as Memórias póstumas de Brás Cubas -, em certa medida parece também rememorar a torção da poética drummondiana, enunciada por Antonio Candido (2004CANDIDO, Antonio. "Inquietudes na poesia de Drummond" in Vários Escritos, 4ª ed, Rio de Janeiro, Ouro sobre Azul, 2004.). Como se à melhor literatura coubesse sempre revolver e torcer a escritura do drama humano. A respeito do poema, porém, retenha-se a curiosa nota: algumas edições trataram de corrigir, a um só tempo, a sensível leitura do poeta e o incômodo causado pelo mestre, pois o "revolver" transformou-se em "resolver", gerando o verso estropiado: "que resolves em mim tantos enigmas"!1 1 Devemos a Hélio de Seixas Guimarães a lembrança desse sugestivo erro de edição no verso de Drummond.

O fato é que o tecido da prosa machadiana é avesso às fáceis decifrações: revolve e não resolve. Com efeito, é a refinada construção dos enigmas e o remoer contínuo da reflexão que continuam conquistando leitores, professores e pesquisadores. Razão pela qual as nuances da composição machadiana continuamente fomentam novos desafios interpretativos.

O erro editorial do verso de Drummond suscita duas importantes questões: de um lado, aponta o caráter provocador e aberto da obra machadiana, responsável pela multiplicação de estudos; por outro, alerta sobre a necessidade do tratamento criterioso das edições, reedições e, eventualmente, dos inéditos dos grandes autores.

Nesse caminho, faz-se urgente lembrar que a tarefa de trazer à baila estudos e inéditos fica a cargo da mediação representada pelas editoras, em grande parte universitárias, que sobrevivem com dificuldade em meio ao mercado editorial comercial. Assumir a edição de estudos de qualidade, bem como alcançar o trato profissional com reedições de autores consagrados, não é tarefa das mais simples. Se, em um país de história recente, cuja experiência democrática, intelectual e pública encontra-se continuamente sob ataque, nunca é demais lembrar a tarefa civilizadora da universidade, caberia também recuperar o papel fundamental representado pelas casas editoriais de pequeno e médio porte, cujo compromisso recai sobre a divulgação da produção de conhecimento, a exemplo da Editora José Olympio nos idos de 1930.

As dificuldades multiplicam-se quando se trata de assumir a responsabilidade pela edição de inéditos em livro do maior escritor brasileiro. A empreitada foi assumida por Valentim Facioli, professor aposentado de literatura brasileira da Universidade de São Paulo, que uniu à docência e à pesquisa mais um ramo de atividades cujas consequências se fazem sentir ao longo de cerca de duas décadas à frente da Editora Nankin: tornou-se editor de livros sobre e de Machado de Assis. Autor de Um defunto estrambótico (2002) e coautor, com Alfredo Bosi, José Carlos Garbuglio e Mario Curvello de uma seleção de textos e artigos sobre o escritor voltada para professores e alunos do ensino médio, Machado de Assis (Coleção Escritores Brasileiros: antologia e estudos. São Paulo, Ática, 1982), é também o editor de uma coleção de estudos sobre o grande escritor. Trata-se de uma circunstância singular, que merece reflexão, essa feliz confluência da experiência editorial e do trabalho acadêmico altamente especializado - o qual pressupõe, como se sabe, a docência e a orientação de teses.

Desse modo, a Editora Nankin publicou, em grande parte em parceria com a Edusp, alentada coleção de estudos acadêmicos sobre Machado - entre eles: As sugestões do conselheiro (2008), de Gilberto Pinheiro Passos, O chocalho de Brás Cubas, Paul Dixon (2009DIXON, Paul. O chocálho de Brás Cubas, uma leitura das Memórias póstumas, São Paulo: Nankin: Edusp , 2009.), Os leitores de Machado de Assis (1ª ed., 2004; 2ª ed., 2012), de Hélio de Seixas Guimarães, e Narradores de Machado de Assis (2007), de Gabriela Kvacek Betella.

Contudo, para além da relevância da edição de trabalhos acadêmicos, merecem destaque duas publicações de Machado de Assis; uma situada no campo da recuperação e estabelecimento de texto - A poesia completa (2009ASSIS, Machado de. A poesia completa, edição anotada, recepção crítica, Rutzkaya Queiroz dos Reis (Org.), São Paulo: Nankin: Edusp, 2009.), organizada por Rutzkaya Queiroz dos Reis -; e a outra, de 2019, a edição corajosa de dois volumes de textos nunca publicados nas obras completas, com organização, apresentação, notas e índice onomástico da pesquisadora e professora da Unesp-Assis Sílvia Maria Azevedo. Trata-se das Badaladas do Dr. Semana (ASSIS, 2019___________. Badaladas do Dr. Semana, por Machado de Assis, Pesquisa, organização, apresentação e notas de Sílvia Maria Azevedo, São Paulo: Nankin, 2019.): cerca de 1500 páginas de inéditos em livro. Na edição de A poesia completa, para além dos textos já reunidos em livro por Machado e daqueles reunidos pelos organizadores das edições anteriores de sua obra, na edição de Rutzkaya Queiroz dos Reis houve a inclusão de alguns poemas menos conhecidos e dispersos em periódicos. No caso das Badaladas, o trabalho com os textos, a maior parte em prosa, alguns em forma de poema, foi maior, uma vez que apenas uma pequena parcela tinha sua autoria reconhecida e fazia parte das "obras completas".

A decisão e a edição foram corajosas em dois sentidos: primeiro, porque a publicação das "Badaladas" compiladas e minuciosamente estudadas pela professora Sílvia Maria Azevedo encerra uma longa polêmica no debate sobre Machado de Assis - se Machado de Assis seria o autor da quase totalidade desses textos ou se o pseudônimo esconderia um ou mais colegas na redação da Semana Ilustrada. A recuperação de informações biográficas e a leitura cruzada de romances, contos e crônicas de Machado por Azevedo permitiu não apenas encontrar uma motivação econômica para o engajamento de Machado de Assis nessa tarefa semanal de produzir crônicas entre 1869 e 1876, como localizou diversas marcas de autoria que conectam a prosa já conhecida do bruxo do Cosme Velho com esses textos. Mais relevante ainda, para os estudos machadianos, é a identificação de aspectos humorísticos e estilísticos do escritor que definiriam a produção do autor, especialmente após a publicação de Memórias póstumas de Brás Cubas. O segundo motivo é também econômico: a Nankin é uma editora independente, com poucos recursos, em que o papel "autoral" do editor é presente no cotidiano não só na seleção do que publicar, mas também em todo o trabalho quase artesanal da edição, que antecede a fase industrial da impressão de qualquer livro.

Se editar nessas condições exige um alto grau de responsabilidade, imprimir textos não assinados por Machado torna a questão ainda mais ousada: há todo o processo de atualização do texto, padronização e revisão, que deve respeitar os traços de autoria e estilo de Machado, além de outros detalhes referentes à edição. Facioli conta que insistiu, por exemplo, que as crônicas trouxessem na abertura o clichê que, originalmente, na Revista Ilustrada, abria todas as semanas a seção. Entre cada trecho do livro, também, foram colocados badalos que batem, à esquerda e à direita, simulando as ditas badaladas, também uma marcação original da publicação.

Procuramos, em alguma medida, tanto quanto se permitiu Facioli, retomar a trajetória profissional do entrevistado, de seu primeiro emprego em São Paulo, na Livraria Martins Editora, em meados dos anos de 1960, até seu trabalho de editor das Badaladas, passando pela vida de professor do ensino médio e da Universidade de São Paulo, onde defendeu seu mestrado (1985) e doutorado (1991). Como professor do programa de pós-graduação em Literatura Brasileira da USP, Facioli orientou 15 dissertações de mestrado e 16 teses de doutorado.

Leia-se a entrevista com o crítico-editor Valentim Facioli:

1. Sua trajetória intelectual começa, em boa medida, como revisor da Livraria Martins Editora. Ou seja, você conta com mais de cinquenta anos de trabalho editorial, além da passagem pela docência e pela pesquisa na Universidade de São Paulo. Como começou essa sua relação com a edição? Você chegou a revisar obras de Machado de Assis nessa época?

O início do trabalho em editora possui interesse apenas para mim. Foi um trabalho precarizado de um moço pobre e sem perspectivas. Diria que é uma arqueologia irrelevante. Só trabalhei um semestre como revisor de provas, o que não sabia fazer direito e aprendi fazendo... Outro semestre fui cooptado pela velha Editora Martins como assessor editorial e pouco assessorei... Valeu porque conheci, rapidamente, Jorge Amado, Josué Montello e Marques Rebelo, entre outros escritores. Também porque tive contato com os livros de Graciliano Ramos e Mário de Andrade. Passado um ano, havia prestado concurso no magistério estadual (eu era normalista, pelo Ensino Médio) e fui chamado para assumir cargo como professor primário (era então o nome que se dava ao professor de primeiras letras). O salário na época era muito melhor do que na Martins e deixei editora por muitos anos. O retorno foi na Nankin Editorial, que fundei em 2001 com outros amigos (que, aliás, não duraram nesse misto de aventura e desventura...). Machado de Assis não havia na Editora Martins e não o revisei nessa época.

2. Em 1982, você publicou, junto com Alfredo Bosi, José Carlos Garbuglio e Mário Curvello, uma antologia de Machado de Assis - e também participou de outra, de Graciliano Ramos, ambas publicadas pela editora Ática. Esse é seu primeiro grande trabalho com a obra de Machado?

Esse trabalho coletivo (eu fazia o mestrado na USP e era ali professor substituto contratado) foi muitíssimo importante para mim. E participei daquele pequeno grupo por convite de meu orientador e amigo, o prof. José Carlos Garbuglio. No caso de Machado e também de Graciliano, ficou-me a tarefa e a obrigação de escrever a "biografia intelectual" dos dois. A orientação da coleção era paradidática e esse trabalho biográfico (desajeitado, que escrevi, diga-se) me obrigou a leituras intensas e em grande escala dos dois grandes escritores. Então, fiz o que pude de melhor e nada saiu lá grande coisa. Ademais, naquele tempo eu estava muito esquerdista, o que cabia no caso do Graciliano, mas, evidentemente, não no de Machado. Vale lembrar dois episódios sobre esses livros. O crítico em alta na época, Wilson Martins, escreveu uma resenha, que talvez se pretendesse demolidora, dizendo entre muitas coisas que o livro sobre Machado era um "livro inútil", porque reproduzia fragmentos de Machado, que todo mundo conhecia o inteiro. Ele parece não ter se dado conta de que era mesmo uma amostragem para alunato de segundo grau. Sobre minha biografia de Graciliano, um crítico ou professor, não me lembro e nem quero, fez chegar a mim que eu havia escrito uma biografia "trotskista" do Graciliano. Creio, já na época também acreditava, que ele supunha que eu queria demolir o bom mocismo, do fim da vida, de Graciliano alinhado ao PCB. O que era em parte verdade, mas nunca foi uma crítica pela direita. O fato é que Graciliano até morrer esteve amarrado ao Stalinismo da URSS, o que não desmerece uma vírgula de sua grande obra. Mas parece-me que o grande investimento que havia à época para a preservação e propagação de uma imagem de Graciliano como espécie de herói inteiriço e sem contradições das letras, dos pobres e dos militantes de esquerda levava a tentar diminuir ou desmerecer qualquer crítica ao seu alinhamento político stalinista, inclusive esse meio ridículo de atirar o crítico aos braços do trotskismo... Penso que agora isso é assunto ultrapassado... Talvez nem arqueológico...

3. Você trabalhou com o Ensino Médio e com cursinhos pré-vestibulares nos anos 1970 e 1980. A partir de 1983, passa a lecionar literatura brasileira na USP. Nesse sentido, poderia comentar como o professor pesquisador lida com as diversas camadas da obra de Machado, modulando a crítica, a fim de abarcar diferentes públicos? Isto é: como trabalhar com as sutilezas do maior escritor da literatura brasileira - o que consequentemente pressupõe uma extensa e sofisticada fortuna crítica - para públicos diversos? Como Machado de Assis tornou-se tema da sua dissertação de mestrado e como essa relação foi se aprofundando?

Nas primeiras letras não havia Machado algum, pois eu tentava alfabetizar crianças absolutamente miseráveis da periferia da zona sul e depois da zona norte, o que era mais ou menos a mesma coisa. Minha experiência em cursinhos pré-vestibulares era ensinar principalmente aspectos biográficos dos autores e resumir os enredos dos romances e fazer breves amostragens de poesia. Quer dizer, de literatura mesmo não havia quase nada. Para a conclusão do mestrado, adaptei bastante a biografia intelectual do Machado e defendi como dissertação. Nessa altura, por causa dessa circunstância, eu já dominava razoavelmente a tradição da crítica machadiana e fazia, é claro, minhas leituras mais independentes. De modo que, quando passei a ministrar cursos sobre Machado na USP (mas não só sobre ele, porque o curso, conforme o semestre, impunha trabalho com diferentes autores da literatura brasileira), penso que estava em processo longo de aprendizado. Como eu preparava cuidadosamente as aulas, isso me obrigava a leituras e mais leituras, o que era exaustivo, mas altamente compensador. Assim percorri as principais obras do "bruxo do Cosme Velho", o mais atentamente que pude. E na USP era muito diferente, pois líamos e discutíamos as obras e não apenas curiosidades biográficas. Minha relação com Machado, portanto, não foi se aprofundando; na verdade, de repente, eu caí num abismo, mais ou menos sem fundo, para escrever a tal "biografia intelectual", e daí em diante não pude sair mais.

4. A Editora Nankin tem em seu catálogo (em parte em coedição com a Edusp) uma coleção de estudos sobre Machado de Assis. Quando vocês abrem a Nankin já havia esse plano de editar uma coleção assim?

A Nankin era, em sua fundação, destinada a publicar apenas livros de poesia da nova geração. Isso, é claro, não resultava em retorno financeiro algum e era uma pretensão ingênua. Então meus sócios trataram de ir embora e eu tratei de variar o catálogo. Obras sobre Machado foram aparecendo anos mais tarde, eu gostei muito disso e editei o que consegui. Erigi uma coleção de cerca de vinte títulos, que creio nenhuma outra editora do país e nem fora daqui possui. É uma coleção creio que original, pois os autores dos estudos utilizaram diferentes métodos de análise e interpretação, desde certos modelos da tradição, passando pelo pós-estruturalismo, a semiótica, o melhor pensamento materialista; enfim, o leitor, querendo, poderá ainda hoje confrontar o mais avançado do pensamento contemporâneo para enfrentar a obra de Machado.

5. Como essa coleção machadiana vai se formando? Você vê uma especificidade na coleção da Nankin em relação a outros trabalhos editoriais com Machado de Assis? Como suas pesquisas com Machado, que resultaram, entre outras intervenções, no livro Um defunto estrambótico, as pesquisas de orientandos e as bancas de que participou sobre Machado acabaram por contribuir nesse processo?

Como referi há pouco, essa é uma coleção original e demorou vários anos e alguns bons acasos para se construir. Primeiramente merece destaque o fato de que a Edusp (Editora da Universidade de São Paulo) coeditou com a Nankin quase quatro quintos dos títulos. O ex-presidente da Edusp, professor Plínio Martins Filho, descortinou a relevância do projeto e não mediu esforços para que o fizéssemos juntos e da melhor maneira possível. E assim foi feito. Os livros foram sendo propostos, eu os lia todos e aprovava (exceto um ou outro, que não aprovei e não publicamos). Alguns vieram depois de participação minha como examinador em banca de doutoramento (em geral na USP), outros eram obras publicadas anteriormente e esgotadas, e assim, ano após ano, fomos, a Nankin e a Edusp, dando a público essa coleção, agora enorme. Sobre Um defunto estrambótico (eu acho o título melhor que o livro, afora um ou outro achado de novidade...), publicado em 2002, ele é produto de experiências de leitor e de cursos que ministrei na FFLCH da USP durante muitos anos, o que resultou na minha tentativa de enfrentamento com Machado também por esse lado. Já meu trabalho como examinador de teses e orientador de diversas delas certamente contribuíram para o andamento do projeto, mas eu não sei avaliar essa contribuição, embora creia que haja e bastante.

6. Você editou a poesia completa de Machado de Assis, que trouxe muitos trabalhos até então inéditos em livro. Que cuidados uma edição dessa exige? Colocando as coisas de maneira muito simples, editar Machado e sobre Machado exige, dada a centralidade dele no cânone brasileiro, algum tipo de cuidado especial?

Essa edição de A poesia completa foi preparada pela professora Rutzkaya Queiroz dos Reis, que reconstituiu os livros de poesia que Machado publicou em vida, com uma pesquisa financiada pela FAPESP. Isso foi em 2008, durante a pequena febre comemorativa do centenário da morte de Machado. Então diversas editoras haviam feito edições das poesias, mais ou menos completas. Eu tratei junto com a Rutzkaya de incorporar tudo o que pudemos encontrar de dispersos e um ou outro inédito. Aproveitamos a oportunidade para publicar quase cem páginas de textos em prosa, que foi a recepção crítica da poesia machadiana, desde 1862 até 1908. Isso também valorizou ainda mais a edição. Mas, para minha "cruel decepção", eu ainda não conhecia as crônicas publicadas na Semana Ilustrada pelo Dr. Semana, pseudônimo, hoje fora de qualquer dúvida, de Machado. Pois ali, nessas cerca de 1.500 páginas (publicadas semanalmente entre 1869 e 1876), há inúmeros poemas, dos mais interessantes e humorísticos, inclusive escritos em francês correto e às vezes em português ou francês macarrônico. Esses poemas espero incorporar em A poesia completa numa próxima edição.

7. Você acaba de publicar pela Nankin os dois volumes das Badaladas do Dr. Semana. Cremos não ter sido uma decisão simples, uma vez que os biógrafos e críticos de Machado, até esse trabalho da professora Sílvia Maria Azevedo (Unesp-Assis), não estavam certos da autoria. Poderia relatar como conheceu este trabalho e como foi convencido de que os textos eram realmente de Machado?

A professora Sílvia Azevedo é minha colega e amiga há muitos anos. Ela fez essa pesquisa de largo fôlego, durante uns três ou quatro anos, depois atualizou a ortografia, preparou um enorme conjunto de provas de que as crônicas são realmente de Machado, à exceção de umas dez, mais ou menos, cuja feição não é machadiana, de sorte que apesar das opiniões de dúvida (que vinham desde os anos 1930), acho que agora não restou nenhuma sobre a autoria. A leitura dessas crônicas, o que demanda, é claro, muito esforço e dedicação - tanto que os jornalistas atuais que deram notícia da publicação das Badaladas, nenhum deixou qualquer rastro de que tenha lido alguma das crônicas -, essa leitura é muitíssimo compensatória quanto à vida intelectual do sujeito e pela satisfação de ler um cronista incrivelmente inteligente, grande parodiador de quase tudo disponível, bem humorado e observador do Brasil, do Rio de Janeiro e das províncias todas, e da nossa miserável humanidade em geral.

8. É possível que, para o público menos afeito às minúcias do trabalho de investigação, cotejo e estabelecimento de texto, ainda sobrem dúvidas a respeito da autoria das crônicas publicadas na Semana Ilustrada. A professora Sílvia aponta diversas marcas de autoria na obra. Quais você considera mais significativas e incontestes? Ainda nesse campo, do ponto de vista do histórico das edições de obras de Machado de Assis, é possível observar que o caso das Badaladas do Dr. Semana conjuga a notável peculiaridade que consiste no fato de que o editor dos inéditos é também um estudioso da obra de Machado de Assis. Você poderia discorrer a respeito da relação entre editor e especialista em literatura?

A professora Sílvia, com o trabalho pronto, procurou outras editoras, talvez supondo, com razão, que a pequenina Nankin não publicaria aquilo tudo. Ela procurou particularmente as editoras universitárias, sem esperança. Aí entra um dos acasos felizes, a que me referi anteriormente, e ainda bem. Um dia ela me falou sobre isso meio desanimada. Logo vi que a coisa podia ser - e era - excelente para engordar a coleção machadiana da Nankin. Ela me enviou um e-mail com as crônicas completas e eu, depois de uns dois meses, comecei a ler a belíssima introdução explicativa que ela escrevera (e que acompanha a edição) e logo mergulhei nas crônicas. Demorei bem uns oito ou dez meses nisso, atrapalhado por outros trabalhos na editora. Para um leitor antigo de Machado, como eu, não restava dúvida alguma de que só mesmo ele poderia ter escrito aquilo, inda mais na força de seus trinta anos e já capaz, como diz Antonio Candido, de dizer as coisas mais tremendas com ares de inocência. Pareceu-me que o espírito e as feições de Brás Cubas estavam ensaiados naqueles textos, já o humor, a sátira, a ironia despejada sobre tudo, a palavra sardônica, a paródia, toda a vasta tradição da literatura satírica ocidental, tudo estava ali. Talvez o fato de eu ter lido tudo o que pude de Machado tenha ajudado a identificar a cabeça e a mão dele compondo um mundo que não existia e nem existe no Brasil e alhures, afora Machado de Assis. Dúvidas antigas, suscitadas por diversos historiadores da literatura brasileira, hoje me parecem dever-se a pesquisas malfeitas, superficiais, mesmo porque é difícil acreditar que esse fenômeno Machado de Assis, ademais de tudo o mais que escreveu e aparece, pudesse ter escrito tal número de crônicas, com tal qualidade. E é mais incrível que o próprio Machado, ao que se saiba, nunca se referiu a essa trabalheira monumental da Semana Ilustrada. Ele nunca fez nenhuma referência àquilo e mesmo os poemas jamais apareceram em obras que ele organizou na maturidade e na velhice. Por que seria? Esquecimento? Ou alguma razão que não podemos nem entender, nem desvendar? Às vezes, para "modernizar" escandalosamente Machado e brincar também com seu espírito e seu humor, parece que ele não era um escritor brasileiro do século XIX, mas um extraterrestre caído na "formosa Guanabara", e o pior é que nem a Carolina sabia que havia casado com um ser de outro planeta e não com um moreno carioca...

9. Muitas das marcas de autoria indicadas pela professora Sílvia referem-se a textos da chamada "segunda fase" machadiana, ou seja, aparecem em Memórias póstumas de Brás Cubas ou posteriormente. Mas esses textos foram todos escritos muito antes, uma vez que a publicação começa em 1869 e termina em 1876. Como você vê esse distanciamento temporal entre essas crônicas e a "viravolta machadiana", para usarmos a expressão do professor Roberto Schwarz? Nesse sentido, na produção do autor, a seu ver, essas crônicas assinadas com pseudônimo atenderiam a uma especificidade estética aliada a uma necessidade histórica? Ou seriam apenas um procedimento editorial de época?

Tenho cá, atualmente, minhas explicações sobre a tal viravolta machadiana. Até pelos anos 1990, a explicação era um pouco tributária da opinião de Lúcia Miguel Pereira e mesmo de Augusto Meyer e, em parte, chegou até Roberto Schwarz, consistindo em fundamento biográfico, como a crise dos quarenta anos, a doença da vista, o aumento de frequência dos ataques epiléticos e a ascensão social. Tudo isso tem sua pequena parcela de verdade. No caso de Roberto Schwarz, para não ficar aí uma leitura xucra do magnífico trabalho dele sobre as Memórias póstumas de Brás Cubas (1990) (e outros, afirme-se), é imprescindível esclarecer que a análise e interpretação, materialista e dialética, que ele faz de Machado, é uma complexa compreensão de forma literária e romanesca, na qual o fundamento biográfico é apenas uma referência para sugerir que a grande liberdade formal e ideológica de Machado, após 1879/1880, escorava-se em sua ascensão social. O resto, que é muito, é muito mais. Também estudos mais recentes demonstram que a viravolta machadiana foi, de fato, uma viravolta de concepção de texto das mais radicais, mas não foi súbita e nem se deu em 1879/1880. Tudo o que Machado escreveu após as Badaladas (portanto desde fins da década de 1860) traz marca distinta. Vou destacar um jovem pesquisador e professor, o Jaison Luís Crestani, que publicou pela coleção machadiana da Nankin/Edusp o livro Machado de Assis e o processo de criação literária (2014). Neste momento tenho comigo outro trabalho dele, também excepcional, que vou publicar no próximo semestre sobre a colaboração de Machado para o jornal O Cruzeiro, em 1878, com o pseudônimo bíblico de Eleazar. Os textos que saem nesse jornal hoje estão inclassificáveis (nas Obras completas da Aguilar aparecem num conjunto que os organizadores chamam "Miscelânea") e são inteiramente tributários da chamada tradição da sátira menipeia, característica já identificada há muito (José Guilherme Merquior, Enylton Sá Rego, Ivan Teixeira e eu próprio, entre outros). Pois bem, o trabalho de Jaison Crestani estuda os textos e não os filia apenas a Luciano de Samósata, mas a toda a tradição da literatura satírica e humorística do Ocidente. Nas Badaladas, que eu creio que o Jaison ainda não leu, toda essa tradição satírica, paródica e humorística está presente, embora sem a carga e a concentração que aparecem depois. Vê-se por aí que Machado não se reinventou de repente no Brás Cubas, mas foi uma reinvenção meio demorada e progressiva. Os escritos machadianos para jornais e revistas eram quase todos com pseudônimo, como era uma espécie de mania da época, não sei se só brasileira, mas nossa com toda a certeza. Mesmo na Gazeta de Notícias, já na maturidade e mesmo velhice, a maior parte das crônicas machadianas era publicada com pseudônimo e todo escritor fazia isso. Creio que era segredo de Polichinelo e ficou como convenção jornalística, pois não seria difícil a identificação dos respectivos autores, numa cidadezinha provinciana como o Rio de Janeiro, com pouca gente chegada às letras.

10. Na contracapa da edição das Badaladas, um breve texto afirma que a edição cumpre uma "missão civilizatória". Imaginamos que esse texto é do senhor. Por que você assim o considera? Em 2002, você publicou, na Luso-Brazilian Review, uma resenha sobre a edição em inglês de Um mestre na periferia do capitalismo em que duvidava da possibilidade de que Machado viesse a integrar um "cânone universal", uma aposta forte da intelectualidade brasileira da época. Como vê a inserção internacional da obra machadiana, hoje, passados quase dezoito anos desse texto?

Julgo, talvez, de algum interesse retomar os "problemas" textuais que tive de vencer nas edições de A poesia completa e das Badaladas. Fui o revisor textual de ambos e me vi diante de uma situação em que não tinha originais propriamente para confrontar. Em A poesia havia pelo menos a edição preparada pelo próprio Machado, aí por 1900, creio eu. E há uma edição crítica, preparada por gente mui competente do extinto Instituto Nacional do Livro. Entretanto, mesmo ali, há inúmeras variantes e parece que nem todas inteiramente confiáveis. Como eu não tinha que meter variantes na edição que preparei, tive de remediar tudo segundo me pareceu mais correto. E assim se deu com todo o livro, apesar, ressalve-se, dos cuidados da professora Rutzkaya. Como nenhum bendito estudioso competente no assunto escreveu nada a respeito da edição e do que fiz, estou já há vários anos sem saber se fiz o melhor ou não. Creio que isso é um bocado esclarecedor do clima intelectual do país de uns bons anos para cá. Tocante às Badaladas foi um pouco mais dificultoso. Só havia os originais que a professora Sílvia me enviara. O trabalho quase insano dela, de atualizar a ortografia de cerca de 1.500 páginas, restou, sem críticas de minha parte, diga-se, com muitos problemas textuais. Ela parece que já estava exausta dessa trabalheira e tinha quase nenhum interesse em retomar nada das crônicas, durante o processo editorial. Assim parece-me que minha leitura mui grande anterior do Machado deve ter ajudado na solução das dificuldades, o que, de fato, demandou um ano de trabalho duro, mas para mim - e espero para os leitores de Machado - resulta em enorme prazer intelectual. Como essas crônicas já carregam todo o espírito cético, humorístico, sardônico, irônico etc. do grande escritor e demonstrando que a humanidade brasileira, carioca e de todas as regiões do país e alhures - pois isso está tudo nesses escritos - não carecem de deuses, nem religiões, nem dogmas, para o bem ou para o mal, o ser humano faz tudo por si mesmo, aí está um avanço civilizatório, pouco comum e capaz de oferecer luzes humanas nestes tempos de muitas sombras. Ainda acrescento que Machado era leitor atento de Baudelaire, para quem o riso e a sátira eram práticas demoníacas, por isso mesmo muito humanas... Meu ceticismo - machadiano, afirme-se - sobre a repercussão internacional (universal seria grande demais...) da obra de Machado vem se confirmando, pois isso não é um problema só de valores intrínsecos das obras literárias, são problemas que transcendem a literatura, como o peso da língua em que foram escritas e do peso cultural, político e econômico do país de onde elas procedem. E como sabemos - pelo menos os que não são basbaques - da permanência da nossa situação periférica e meio neocolonizada, além das desigualdades sociais inimagináveis, esperar projeção internacional (a não ser num ou outro gueto, ou na fala de algum sabichão de fora) é ilusão ingênua, senão coisa pior... Por fim, sobre esse assunto espinhoso, estou desconfiado, pela muita leitura da obra de Machado, que há em tudo o que ele escreveu, mais ou menos a partir das Badaladas e até o Memorial de Aires, que há um tema subjacente - e talvez angustiante - a tudo, que é a questão da irrelevância do Brasil (em cultura, em literatura, em política, em economia etc.). Isso não aparece nunca em primeiro plano, pois devia figurar ao próprio Machado uma ridicularia a simples pretensão à relevância, no mundo capitalista das hegemonias dos poderes, como estavam postas, e continuam, com algumas variações...

Ah! que em vossa vida inteira Não tenhais nunca editores! São amáveis e corteses, Têm conversas asseadas, Mas... mereciam às vezes Badaladas. (Badaladas do Dr. Semana, v. 1,p. 278, Semana Ilustrada, 488, 17 de abril de 1870) E assim concluo a página, Que, de ordem do editor, Fazer me cabe, - ou métrico Ou simples prosador. E nada mais, reclino-me No meu sofá, obstino-me, Em pôr-lhe o ponto, e assino-me Doutor (Badaladas do Dr. Semana, v. 2,p. 479, Semana Ilustrada, 741, 20 de fevereiro de 1875)

Referências:

  • ASSIS, Machado de. A poesia completa, edição anotada, recepção crítica, Rutzkaya Queiroz dos Reis (Org.), São Paulo: Nankin: Edusp, 2009.
  • ___________. Badaladas do Dr. Semana, por Machado de Assis, Pesquisa, organização, apresentação e notas de Sílvia Maria Azevedo, São Paulo: Nankin, 2019.
  • BETELLA, Gabriela Kvacek. Narradores de Machado de Assis, A seriedade enganosa dos cadernos do conselheiro (Esaú e Jacó e Memorial de Aires) e a simulada displicência das crônicas (Bons Dias! e A Semana), São Paulo: Nankin: Edusp , 2007.
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  • CANDIDO, Antonio. "Inquietudes na poesia de Drummond" in Vários Escritos, 4ª ed, Rio de Janeiro, Ouro sobre Azul, 2004.
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  • 1
    Devemos a Hélio de Seixas Guimarães a lembrança desse sugestivo erro de edição no verso de Drummond.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    23 Mar 2020
  • Data do Fascículo
    Jan-Apr 2020

Histórico

  • Recebido
    23 Jan 2020
  • Aceito
    04 Fev 2020
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