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“DEUS TE LIVRE, LEITOR, DE UMA IDEIA FIXA”: METALEPSE EM MACHADO DE ASSIS1 1 Este texto é o resultado de uma comunicação apresentada no segundo congresso da Associação de Brasilianistas na Europa, na École des Hautes Études en Sciences Sociales - Paris, em setembro de 2019.

“GOD FORBID YOU, MY READER, FROM A FIXED IDEA”: METALEPSIS IN MACHADO DE ASSIS

Resumo

Este trabalho propõe uma reflexão sobre o uso de um conceito recente para um recurso metaficcional já antigo: de Cervantes a Machado de Assis, inúmeros escritores recorreram à metalepse, que ora faz uma personagem reclamar da narrativa, no caso de Sancho Pança, ora interpela o leitor, como faz Brás Cubas. Interessa-me analisar como essa transgressão narrativa foi explorada por Machado de Assis, que em Memórias póstumas chega a admitir sua filiação a um certo estilo europeu, buscando marcar, porém, sua especificidade. Trata-se de mostrar que o recurso à metalepse desestabiliza o jogo literário e chama à cena um leitor que, em Machado, já não é mais o mesmo daquele convocado pela forma romanesca europeia que lhe serviu de modelo.

Palavras-chave:
Machado de Assis; Brás Cubas; metalepse; narratologia

Abstract

This paper proposes some considerations on the use of a recent concept for an old metafictional device: from Cervantes to Machado de Assis, many writers have made use of metalepsis, which at times leads a character to complain about the narrative, in the case of Sancho Panza, or at others address the reader, as does Brás Cubas. I propose to analyze how this narrative transgression was exploited by Machado de Assis, who even admits his affiliation to a certain European style in The Posthumous Memoirs of Brás Cubas, whilst seeking to establish his own specificity. My aim is to show that metalepsis destabilizes the literary game and activates a reader who, in Machado, is no longer the same as the one summoned by the European form of the novel that had served as his model.

Keywords:
Machado de Assis; Brás Cubas; metalepsis; narratology

O narrador de Machado é bem conhecido pelas suas interpelações e orientações ao leitor. Um dos primeiros capítulos de Memórias póstumas de Brás Cubas (1881) já traz um alerta direto a essa figura, prevenindo-a a não se portar como aquele que lhe dirige a palavra: “Deus te livre, leitor, de uma ideia fixa” (ASSIS, 2008ASSIS, Machado de. Memórias póstumas de Brás Cubas. In: ______. Obra completa em quatro volumes. Org. Aluizio Leite et al. 2. ed. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2008a. v. I, p. 623-758.a, p. 627). Ocorre que, como é próprio desse tipo de conselho, a tendência do leitor será desobedecer ao seu interlocutor, e este trabalho buscará mostrar, entre outras coisas, o quanto esse também é o efeito desejado por Machado.

Não faltam, afinal, ideias fixas nos leitores de Machado: toda uma tradição crítica que já soma mais de um século de leituras da obra machadiana vai como que emular a obsessão de certas personagens do bruxo, em uma busca constante por respostas e soluções para narrativas cujo desfecho permanece aberto. Se essa obsessão é natural no que se refere à crítica, empenhada em elucidar, em tornar compreensível e, por que não, em se divertir com enigmas deixados por decifrar, há que lembrar que, nesse caso específico, o próprio Machado tem a sua parte: de certa forma, um pouco como as suas personagens, somos, leitores de Machado, também uma criação sua. E caímos todos, muitas vezes com gosto, nas suas armadilhas: por exemplo, se o seu narrador nos diz para não pensar em algo, é exatamente nisso que acabamos pensando; se ele nos diz para deixar algo de lado, para não reparar em determinado detalhe, é precisamente nessa direção que ficamos tentados a olhar. A estratégia não é nova, já recebeu diferentes alcunhas e é responsável pela fixação inevitável de uns quantos que se sentiram interpelados por ela. Neste trabalho, a estratégia - e a ideia fixa - passa pelo nome de metalepse.

A negação por si só é uma estratégia composicional em Machado, mas, quando ela se dirige ao leitor, ocorre uma suspensão narrativa, funcionando como uma espécie de placa de sinalização que aponta para algum elemento do caminho que, do contrário, poderia passar despercebido - incluindo-se aqui aquelas chamativas placas vermelhas de interdição. Veja-se o início do conto “Pai contra mãe”, publicado na coletânea Relíquias de casa velha (1906), passados apenas dezoito anos da abolição da escravatura (1888). Antes de tratar da história sombria do capitão do mato Cândido Neves e da escrava fugida Arminda, o conto começa falando dos “ofícios e aparelhos” que se tornaram obsoletos com o fim da escravidão, “como terá sucedido a outras instituições sociais” (ASSIS, 2008______. Pai contra mãe. In: ______. Obra completa em quatro volumes. Org. Aluizio Leite et al. 2. ed. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2008b. v. II, p. 631-638.b, p. 631). Essa descrição cria um distanciamento que faz parecer como se o tempo da narração estivesse distante daquele da narrativa, e o fato de esse não ser o caso potencializa a ironia do narrador. Essa ironia, sempre tão destacada em Machado, é por si só sinalizadora dos sentidos buscados pelo texto, mas chama particularmente a atenção o modo como, após introduzir o tema dos aparelhos e suas funções escravistas, a descrição é interrompida, e o primeiro parágrafo termina com “Mas não cuidemos de máscaras” (ASSIS, 2008b______. Pai contra mãe. In: ______. Obra completa em quatro volumes. Org. Aluizio Leite et al. 2. ed. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2008b. v. II, p. 631-638., p. 631). O leitor é incluído aqui neste “nós”, e nesse contexto dizer-lhe que não cabe pensar nisso é o mesmo que apontar para o “xis” da questão: pois é, sim, daquela sociedade de escravocratas e máscaras de que o conto trata, trazendo a violência à memória daqueles seus leitores já esquecidos dela.

A inclusão e interpelação do leitor é constante nas narrativas de Machado e vai, portanto, muito além de um artifício estético. Esse gesto em que o narrador vai como que estender a mão e puxar o leitor para dentro do livro, às vezes em cenários que supõem uma transposição de fronteiras em princípio impossível, retoma na verdade toda uma tradição literária a qual o próprio Machado remete em seus textos e que ele assinala com particular proeminência no início de Memórias póstumas. Considerado um ponto de virada na obra do escritor brasileiro, Memórias póstumas já começa chamando o seu leitor à cena e indicando nomes de outros autores que também faziam isso:

AO LEITOR

Que Stendhal confessasse haver escrito um de seus livros para cem leitores, cousa é que admira e consterna. O que não admira, nem provavelmente consternará é se este outro livro não tiver os cem leitores de Stendhal, nem cinquenta, nem vinte e, quando muito, dez. Dez? Talvez cinco. Trata-se, na verdade, de uma obra difusa, na qual eu, Brás Cubas, se adotei a forma livre de um Sterne, ou de um Xavier de Maistre, não sei se lhe meti algumas rabugens de pessimismo. Pode ser. Obra de finado. Escrevi-a com a pena da galhofa e a tinta da melancolia, e não é difícil antever o que poderá sair desse conúbio. Acresce que a gente grave achará no livro umas aparências de puro romance, ao passo que a gente frívola não achará nele o seu romance usual; ei-lo aí fica privado da estima dos graves e do amor dos frívolos, que são as duas colunas máximas da opinião.

Mas eu ainda espero angariar as simpatias da opinião, e o primeiro remédio é fugir a um prólogo explícito e longo. O melhor prólogo é o que contém menos cousas, ou o que as diz de um jeito obscuro e truncado. Conseguintemente, evito contar o processo extraordinário que empreguei na composição destas Memórias, trabalhadas cá no outro mundo. Seria curioso, mas nimiamente extenso, e aliás desnecessário ao entendimento da obra. A obra em si mesma é tudo: se te agradar, fino leitor, pago-me da tarefa; se te não agradar, pago-te com um piparote, e adeus.

Brás Cubas (ASSIS, 2008______. Pai contra mãe. In: ______. Obra completa em quatro volumes. Org. Aluizio Leite et al. 2. ed. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2008b. v. II, p. 631-638.a, p. 625-626)

Muita tinta já correu sobre a biblioteca de Machado, com destaque para o papel dos chamados humoristas ingleses. O próprio escritor marca aqui a sua adoção da “forma livre de um Sterne”, o autor de The Life and Opinions of Tristram Shandy, Gentleman (1759) e de A Sentimental Journey Through France and Italy (1768), e apesar da ressalva do narrador quanto à sua própria rabugice, é pela via do humor que Machado inicialmente será analisado na comparação com os ingleses. No seu polêmico estudo de 1897, Sílvio Romero insiste nessa relação, buscando marcar, como lhe era característico, seus aspectos negativos: para Romero, o estilo cômico de Machado era uma imitação grosseira desses autores, “um capricho, uma affectação, uma cousa feita segundo certas receitas e manipulações” (ROMERO, 1897ROMERO, Sílvio. Machado de Assis: estudo comparativo de literatura brasileira. Rio de Janeiro: Laemmert, 1897., p. 131). Não será esse o juízo de críticos posteriores, como Eugênio Gomes, que já em 1939 faz um estudo mais aprofundado das influências inglesas em Machado e que chega a sugerir que o próprio Romero não tinha entendido bem nem Machado nem Sterne - pese embora o fato de Gomes também enxergar certo exagero estilístico da parte do bruxo: “no esforço de adaptação, Machado forçava por vezes a nota, a ponto de enfadar” (GOMES, 1976GOMES, Eugênio. Machado de Assis: influências inglesas. Rio de Janeiro: Pallas, 1976., p. 10).

Como bem assinala Marta de Senna, a ideia de fonte ou influência a que recorre Gomes em seu estudo pode soar hoje um pouco datada, preferindo-se atualmente o conceito de intertextualidade, que supõe a presença efetiva de um texto dentro de outro, mas que engloba ainda diálogos virtuais, igualmente importantes e, acrescento, não necessariamente angustiantes. E, em Senna, a vinculação com Sterne é destacada para além da questão do humor: a aproximação estaria na “maneira enviesada com que [um e outro] exerce[m] a sua consciência crítica em relação ao tempo e às ideias do tempo” (SENNA, 1998______. Machado de Assis, alguns ingleses e um alemão. In: ______. O olhar oblíquo do bruxo: ensaios em torno de Machado de Assis. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1998b. p. 13-21.b, p. 18). Ou seja, mais do que o humor ou mesmo a ironia, é a técnica narrativa que aproxima os dois autores no modo de exercer a sua crítica, e Senna vai falar, portanto, em “narrativa autoconsciente”, na esteira de Robert Alter, tratando de um tipo de narração que, desde Cervantes, preocupa-se em destacar tanto a sua ficcionalidade quanto a sua materialidade (SENNA, 1998aSENNA, Marta de. Fielding, Sterne e Machado: uma linhagem. In: ______. O olhar oblíquo do bruxo: ensaios em torno de Machado de Assis. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1998a. p. 23-34., p. 24-25).

Os tais piparotes que Machado dá em seus leitores não lhe são, portanto, exclusivos, associando-se a uma técnica narrativa que já na época do escritor brasileiro gozava de uma tradição respeitável, da qual fazem parte não apenas os escritores ingleses e franceses, mas também Almeida Garrett, por quem o bruxo tinha uma admiração declarada. Depois de Camões, Garrett é o escritor português mais citado por Machado (SANDMANN, 2004SANDMANN, Marcelo. Aquém-além-mar: presenças portuguesas em Machado de Assis. Tese de doutorado. Campinas: Unicamp, 2004., p. 385), que não apenas escreveu sobre a recepção da sua obra no Brasil e sobre o seu próprio entusiasmo com ela - naquela bela crônica na Gazeta de Notícias que começa com “Quem disse de Garrett que elle só por si valia uma literatura disse bem e breve o que delle se poderá escrever sem encarecimento nem falha” (ASSIS, 1899______. Quem disse de Garrett... Gazeta de Notícias, Rio de Janeiro, ano XXV, n. 35, 4 fev. 1899, p. 1., p. 1) -, como vai de alguma forma reconhecer certa afinidade com sua obra na composição de Memórias póstumas. Na terceira edição da obra, Machado inclui um prólogo em que responde a observações que tinham sido feitas quando o romance veio a público:

Capistrano de Abreu, noticiando a publicação do livro, perguntava: “As Memórias póstumas de Brás Cubas são um romance?” Macedo Soares, em carta que me escreveu por esse tempo, recordava amigamente as Viagens na minha terra. Ao primeiro respondia já o defunto Brás Cubas (como o leitor viu e verá no prólogo dele que vai adiante) que sim e que não, que era romance para uns e não o era para outros. Quanto ao segundo, assim se explicou o finado: “Trata-se de uma obra difusa, na qual eu, Brás Cubas, se adotei a forma livre de um Sterne, ou de um Xavier de Maistre, não sei se lhe meti algumas rabugens de pessimismo.” Toda essa gente viajou: Xavier de Maistre à roda do quarto, Garrett na terra dele, Sterne na terra dos outros. De Brás Cubas se pode dizer que viajou à roda da vida.

[...]

Machado de Assis (ASSIS, 2008______. Pai contra mãe. In: ______. Obra completa em quatro volumes. Org. Aluizio Leite et al. 2. ed. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2008b. v. II, p. 631-638.a, p. 625)

Laurence Sterne (1713-1768), Xavier de Maistre (1763-1852) e Almeida Garrett (1799-1854), sendo representantes de três literaturas e culturas com diferenças significativas, formam ao mesmo tempo uma linhagem de autores que foram lendo e construindo a sua obra também a partir da obra dos seus predecessores: de Maistre leu e parodiou Sterne, Garrett leu e citou tanto Sterne quanto de Maistre, recorrendo ao segundo já na epígrafe de Viagens na minha terra, e Machado, evidentemente, leu os três. Sem jamais ter tirado os pés dos trópicos, Machado viajou pela Europa desses escritores e, das muitas coisas que trouxe de lá, veio na bagagem uma figura digna de nota: o leitor a que todos eles se dirigem em seus livros, e mesmo a leitora que Garrett gostava de invocar naqueles episódios mais sentimentais, vai marcar presença na obra de Machado. Com as suas particularidades, todos esses autores brincam com o gênero romance, com a sua tradição, suas escolas, suas convenções e seus tiques, e nesse tipo de narrativa metaficcional - ou metarreferencial, já que mais de um tipo de discurso entra em questão -, um espaço significativo é dado a esse elemento em princípio externo à obra que constitui o leitor. A conhecida receita para romances (românticos) de Garrett ilustra bem esse tipo de elaboração que provocativamente quer falar da oficina por trás da criação, incluindo aqueles materiais emprestados a escritores alheios:

Sim, leitor benévolo, e por esta ocasião te vou explicar como nós hoje em dia fazemos a nossa literatura. [...]

Trata-se de um romance, de um drama - cuidas que vamos estudar a história, a natureza, os monumentos, as pinturas, os sepulcros, os edifícios, as memórias da época? Não seja pateta, senhor leitor, nem cuide que nós o somos. [...]

Não senhor: a coisa faz-se muito mais facilmente. Eu lhe explico.

Todo o drama e todo o romance precisa de:

Uma ou duas damas, mais ou menos ingénuas,

Um pai, - nobre ou ignóbil,

Dois ou três filhos, de dezenove a trinta anos,

Um criado velho,

Um monstro, encarregado de fazer as maldades,

Vários tratantes, e algumas pessoas capazes para intermédios, e centros.

Ora bem; vai-se aos figurinos franceses de Dumas, de Eug. Sue, de Victor Hugo, e recorta a gente, de cada um deles, as figuras que precisa, gruda-as sobre uma folha de papel da cor da moda, verde, pardo, azul [...]. Depois vai-se às crônicas, tiram-se um pouco de nomes e de palavrões velhos; com os nomes crismam-se os figurões, com os palavrões iluminam-se... (estilo de pintor pinta-monos). E aqui está como nós fazemos a nossa literatura original. (GARRETT, 2010GARRETT, Almeida. Viagens na minha terra. Org. Ofélia Paiva Monteiro. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2010., p. 120-121)

Repare-se como o leitor não é citado como um ingrediente dessa receita, embora ele também seja referido, com maior ou menor frequência, naqueles escritores franceses citados por Garrett. Mas o leitor vai entrar quase como um ingrediente obrigatório em romances que, como o de Garrett, interpelam o gênero, e que em um olhar já retrospectivo vão constituir uma espécie de ponto de ruptura, um marco literário, ainda que essa criação ao mesmo tempo se inscreva em toda uma linhagem de rupturas: em outras palavras, a interpelação ao leitor, que é também uma interpelação ao gênero, surge aqui de mãos dadas com uma releitura de outros que, no seu próprio tempo e à sua própria maneira, buscaram também reinventar o romance, sem se afastar de todo da tradição que o concebeu. Bem ciente dos seus predecessores, e herdando o leitor que eles já tanto tinham provocado, Machado vai convocá-lo em trechos como o que segue:

CAPÍTULO IX / TRANSIÇÃO

E vejam agora com que destreza, com que arte faço eu a maior transição deste livro. [...] Viram? Nenhuma juntura aparente, nada que divirta a atenção pausada do leitor: nada. De modo que o livro fica assim com todas as vantagens do método, sem a rigidez do método. Na verdade, era tempo. Que isto de método, sendo, como é, uma cousa indispensável, todavia é melhor tê-lo sem gravata nem suspensórios, mas um pouco à fresca e à solta, como quem não se lhe dá da vizinha fronteira, nem do inspetor de quarteirão. É como a eloquência, que há uma genuína e vibrante, de uma arte natural e feiticeira, e outra tesa, engomada e chocha [...]. (ASSIS, 2008______. Pai contra mãe. In: ______. Obra completa em quatro volumes. Org. Aluizio Leite et al. 2. ed. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2008b. v. II, p. 631-638.a, p. 637)

Esse exercício de, sem deixar de recorrer ao método, parar para falar do método no meio da narrativa é semelhante ao gesto de um pianista que, subitamente, interrompe a sua música para mirar o seu auditório e dizer: vejam, isto é música. John Cage (“4’33’’”, de 1952) e o século XX já deram mostras suficientes do quanto esse tipo de intervenção também pode ser musical, artística, e a literatura há tempos faz experimentos dessa natureza: as páginas pretas de Tristram Shandy para marcar o luto pela morte de Yorick (STERNE, 2003STERNE, Laurence. The Life and Opinions of Tristram Shandy, Gentleman. Londres: Penguin Books, 2003., p. 31-32) ou a página em branco em que o narrador convida o leitor a pintar a viúva Wadman com os contornos que gostaria que ela tivesse (STERNE, 2003STERNE, Laurence. The Life and Opinions of Tristram Shandy, Gentleman. Londres: Penguin Books, 2003., p. 423); o capítulo “De como não fui ministro de Estado” de Memórias póstumas que é todo feito de reticências (ASSIS, 2008______. Pai contra mãe. In: ______. Obra completa em quatro volumes. Org. Aluizio Leite et al. 2. ed. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2008b. v. II, p. 631-638.a, p. 745, cap. CXXXIX), a omissão ou o nada representando a si mesmos. Estes recursos são extremamente chamativos, mas o gesto do narrador de interromper a narrativa seja para dizer que está intervindo em uma ação que pertence ao nível da diegese, seja para se dirigir ao leitor e dizer “veja o que eu estou fazendo” ou “não veja o que eu estou fazendo”, é igualmente perturbador: níveis narrativos diferentes são transpostos, e é esse fenômeno que a narratologia tem estudado sob o nome de metalepse.

Termo originário da retórica, a metalepse designa essa passagem, sempre transgressiva, de um nível narrativo a outro (GENETTE, 1972GENETTE, Gérard. Figures III. Seuil: Paris, 1972., p. 243-244), mas também a “manipulação [...] dessa relação causal particular que une, num sentido ou noutro, o autor à sua obra, ou, de maneira mais geral, o produtor de uma representação à essa mesma representação” (GENETTE, 2004______. Métalepse: de la figure à la fiction. Seuil: Paris, 2004., p. 14).2 2 No original: “Une manipulation […] de cette relation causale particulière qui unit, dans un sens ou dans l’autre, l’auteur à son œuvre, ou plus largement le producteur d’une représentation à cette représentation elle-même”. As traduções de citações são minhas. Segundo Genette, esse tipo de intervenção:

Rompe de fato com a ficção (no sentido de convenção) inerente à narração romanesca [...]. Essa maneira de “desnudar o processo” [...], ou seja, de revelar, mesmo que de passagem, o caráter de todo imaginário e modificável ad libitum da história contada, abala, nesse movimento, o contrato ficcional, que consiste precisamente em negar o caráter ficcional da ficção. (GENETTE, 2004______. Métalepse: de la figure à la fiction. Seuil: Paris, 2004., p. 23)3 3 No original: “Cette dernière intervention rompt bel et bien avec la fiction (au sens de convention) inhérente à la narration romanesque […]. Cette manière de ‘dénuder le procédé’ […], c’est-à-dire de dévoiler, fût-ce en passant, le caractère tout imaginaire et modifiable ad libitum de l’histoire racontée, égratigne donc au passage le contrat fictionnel, qui consiste précisément à nier le caractère fictionnel de la fiction”.

Machado herda dos seus precursores a chamada metalepse retórica, que inclui a associação do leitor ao ato da narração (GENETTE, 2004______. Métalepse: de la figure à la fiction. Seuil: Paris, 2004., p. 24)4 4 Segundo Genette: “Si l’auteur peut ainsi feindre d’intervenir dans une action qu’il feignait jusque-là de seulement rapporter, il peut aussi bien feindre d’y entraîner son lecteur”, e ao fazê-lo ele “associe simplement le lecteur ou l’auditeur à l’acte de narration”. e que, conforme a tipologia de Ryan, abre uma janela para um outro mundo, o da construção narrativa, fechando-a logo em seguida (RYAN, 2005RYAN, Marie-Laure. Logique culturelle de la métalepse ou la métalepse dans tous ses états. In: PIER, John e SCHAEFFER, Jean-Marie (orgs.). Métalepses: Entorses au pacte de la représentation. Paris: Éd. de l’EHESS, 2005. p. 201-223., p. 207); ou seja, temos um vislumbre do maquinário ficcional em ação. A metalepse vai desestabilizar o jogo literário e chamar a atenção para o artifício da ficção: ao dizer que não há nenhuma juntura aparente na transição narrativa do seu livro, o narrador Brás Cubas faz questão de mostrar o que, do contrário, deveria passar despercebido - como se dissesse, nesse caso, “veja o que eu não estou fazendo” -, enfatizando-se com isso o caráter oficinal e ficcional daquela narrativa post-mortem. Todo o romance de Machado é composto dessas quebras no fluxo da narrativa, a exceção se tornando a regra, e talvez esse elemento tenha parte no incômodo que a escrita de Machado - como a de seus precursores - gerou nos seus primeiros críticos: o leitor não tem sossego, o que significa que o gênero romance, que as convenções do gênero, não têm sossego.

A questão é que, se o incômodo foi gerado, significa que o romance foi bem-sucedido: assim como estamos na verdade obedecendo Machado ao contrariar as instruções do seu narrador - isto é, quando pensamos naquilo que ele nos diz para não pensar -, as interrupções, as transposições de níveis, as reflexões constantes, as chamadas de atenção do leitor se pretendem incômodas, são uma performance à sua maneira, uma forma de deter a ação e provocar a pergunta que os primeiros leitores de Machado fizeram: isto é um romance? Ou: o que é um romance? As “rabugens de pessimismo” de Brás Cubas, aquele tempero que diferenciaria a receita de Memórias póstumas quando Machado associou “a tinta da melancolia” à “pena da galhofa”, têm o potencial de colocar ainda outras perguntas aos leitores, cuja presença, ainda que herdada, não é afinal a mesma daquela dos seus congêneres europeus:

CAPÍTULO LXXI / O SENÃO DO LIVRO

Começo a arrepender-me deste livro. Não que ele me canse; eu não tenho que fazer; e, realmente, expedir alguns magros capítulos para este mundo sempre é tarefa que distrai um pouco da eternidade. Mas o livro é enfadonho, cheira a sepulcro, traz certa contração cadavérica; vício grave, e aliás ínfimo, porque o maior defeito deste livro és tu, leitor. Tu tens pressa de envelhecer, e o livro anda devagar; tu amas a narração direta e nutrida, o estilo regular e fluente, e este livro e o meu estilo são como os ébrios, guinam à direita e à esquerda, andam e param, resmungam, urram, gargalham, ameaçam o céu, escorregam e caem... (ASSIS, 2008______. Pai contra mãe. In: ______. Obra completa em quatro volumes. Org. Aluizio Leite et al. 2. ed. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2008b. v. II, p. 631-638.a, p. 698)

O leitor por si só é motivo de incômodo e torna-se uma personagem em potencial. Já no capítulo seguinte Brás Cubas desenha o perfil de um bibliômano do futuro: “um sujeito magro, amarelo, grisalho, que não ama nenhuma outra coisa além dos livros”, e que, dali a setenta anos, encontrando um volume único das Memórias póstumas, se poria a tentar descobrir o despropósito das frases sobre aquele “senão do livro” (ASSIS, 2008______. Pai contra mãe. In: ______. Obra completa em quatro volumes. Org. Aluizio Leite et al. 2. ed. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2008b. v. II, p. 631-638.a, p. 698). De novo, quantos não foram os leitores - ou as leitoras - que mais ou menos se encaixaram no perfil previsto por Machado, um autor que, inscrevendo-se em uma tradição de autores que jogaram com o gênero romance, está constantemente buscando exceder os limites do texto. A figura do leitor é este elemento crucial para a transposição de fronteiras: o leitor, qualquer que seja o seu tempo, encarna o lado de fora do livro, sua posteridade, mas também a tradição de leitura e o presente imediato para o qual o livro foi escrito.

Arriscando entrar na personagem de Machado ao tentar elucidar seus despropósitos, pergunto ainda: será que toda essa provocação ao leitor, levada ao extremo em Memórias póstumas, não é também uma releitura algo paródica daquele método a que Machado recorreu, com o tanto de homenagem que essa revisitação ao mesmo tempo comporta? O absurdo para o qual a metalepse do leitor aponta e o absurdo em geral com que Machado está o tempo todo brincando - em uma narração póstuma, na dedicatória “ao verme que primeiro roeu as frias carnes do meu cadáver” (ASSIS, 2008______. Pai contra mãe. In: ______. Obra completa em quatro volumes. Org. Aluizio Leite et al. 2. ed. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2008b. v. II, p. 631-638.a, p. 624) -, esse absurdo vai muito além da imitação de um modelo europeu, pode ser visto mesmo como uma revisão desse modelo, colocando perguntas sobre as possibilidades da literatura e sobre aquilo que se espera dela, sobre sua relação tanto com a história literária quanto com a história do seu tempo. Uma revisão, aliás, também levada a cabo pelos precursores de Machado, a seu modo e em diálogo simultâneo com sua própria tradição e com o seu presente, um duplo movimento que parece distintivo da metalepse do leitor.

No caso das perguntas metalépticas de Machado, se elas não deixam de nos incomodar hoje, elas têm que ver igualmente com o leitor do presente da narração: um leitor vivendo em um século de construção programática da identidade nacional e, por extensão, de uma literatura nacional, um leitor de um país que está tentando passar de personagem secundária a protagonista, que quer se afirmar se distanciando dos modelos e das referências até então vigentes e que nesse processo vai desenvolver as suas próprias convenções. Um leitor, enfim, que é incluído na “nossa miséria” de cujo legado o livro fala e com o qual se encerra.

José Veríssimo já havia chamado a atenção para o quanto Machado, mesmo quando não parecia fazê-lo, falava do seu tempo e para o seu tempo: “Depois da leitura do Braz Cubas comecei a entender que se podia ser um grande escriptor brasileiro, um romancista verdadeiramente nacional, sem fallar de índios, de caipiras ou da roça” (VERÍSSIMO, 1908VERÍSSIMO, José. Machado de Assis: impressões e reminiscências. Jornal do Commercio, Rio de Janeiro, n. 302, 29 out. 1908. p. 2., p. 2). E Roberto Schwarz aprofundou a análise da relação entre o estilo de Machado e o contexto político-social do Brasil do século XIX (SCHWARZ, 1990SCHWARZ, Roberto. Um mestre na periferia do capitalismo: Machado de Assis. São Paulo: Duas Cidades, 1990.). A conclusão, ou a ideia fixa a que eu quero chegar aqui é que a figura metaléptica do leitor em Memórias póstumas é um elemento-chave que marca esse diálogo que Machado estabelece com a sociedade e a cultura do seu tempo, mas também com a tradição que ele admira e reinventa e ainda com uma posteridade que ele só pode prever e que já deseja provocar. E Machado acertou nas suas previsões e nos seus piparotes. A metalepse hoje é um recurso muito explorado, que chegou mesmo a ser associado ao pós-modernismo (MCHALE, 1987MCHALE, Brian. Postmodernist Fiction. London: Methuen, 1987., p. 119), e não há dúvidas sobre a influência de Machado nas gerações de leitores que se sentiram provocados e incitados por um narrador impossível dialogando absurdamente inclusive com um fã do futuro.

Referências

  • ASSIS, Machado de. Memórias póstumas de Brás Cubas. In: ______. Obra completa em quatro volumes. Org. Aluizio Leite et al. 2. ed. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2008a. v. I, p. 623-758.
  • ______. Pai contra mãe. In: ______. Obra completa em quatro volumes. Org. Aluizio Leite et al. 2. ed. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2008b. v. II, p. 631-638.
  • ______. Quem disse de Garrett... Gazeta de Notícias, Rio de Janeiro, ano XXV, n. 35, 4 fev. 1899, p. 1.
  • GARRETT, Almeida. Viagens na minha terra. Org. Ofélia Paiva Monteiro. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2010.
  • GENETTE, Gérard. Figures III. Seuil: Paris, 1972.
  • ______. Métalepse: de la figure à la fiction. Seuil: Paris, 2004.
  • GOMES, Eugênio. Machado de Assis: influências inglesas. Rio de Janeiro: Pallas, 1976.
  • MCHALE, Brian. Postmodernist Fiction. London: Methuen, 1987.
  • ROMERO, Sílvio. Machado de Assis: estudo comparativo de literatura brasileira. Rio de Janeiro: Laemmert, 1897.
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  • VERÍSSIMO, José. Machado de Assis: impressões e reminiscências. Jornal do Commercio, Rio de Janeiro, n. 302, 29 out. 1908. p. 2.
  • 1
    Este texto é o resultado de uma comunicação apresentada no segundo congresso da Associação de Brasilianistas na Europa, na École des Hautes Études en Sciences Sociales - Paris, em setembro de 2019.
  • 2
    No original: “Une manipulation […] de cette relation causale particulière qui unit, dans un sens ou dans l’autre, l’auteur à son œuvre, ou plus largement le producteur d’une représentation à cette représentation elle-même”. As traduções de citações são minhas.
  • 3
    No original: “Cette dernière intervention rompt bel et bien avec la fiction (au sens de convention) inhérente à la narration romanesque […]. Cette manière de ‘dénuder le procédé’ […], c’est-à-dire de dévoiler, fût-ce en passant, le caractère tout imaginaire et modifiable ad libitum de l’histoire racontée, égratigne donc au passage le contrat fictionnel, qui consiste précisément à nier le caractère fictionnel de la fiction”.
  • 4
    Segundo Genette: “Si l’auteur peut ainsi feindre d’intervenir dans une action qu’il feignait jusque-là de seulement rapporter, il peut aussi bien feindre d’y entraîner son lecteur”, e ao fazê-lo ele “associe simplement le lecteur ou l’auditeur à l’acte de narration”.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    23 Mar 2020
  • Data do Fascículo
    Jan-Apr 2020

Histórico

  • Recebido
    21 Out 2019
  • Aceito
    10 Jan 2020
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