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“INSTINTO DE NACIONALIDADE” E OS CONTOS “AURORA SEM DIA” E “A PARASITA AZUL”: UMA PROPOSTA DE LEITURA SINCRÔNICA PARA MACHADO DE ASSIS

"INSTINCT OF NATIONALITY" AND SHORT STORIES "MUCH HEAT, LITTLE LIGHT" AND "THE BLUE FLOWER": A PROPOSAL FOR A SYNCHRONIC READING OF MACHADO DE ASSIS

Resumo

Este ensaio propõe lermos o conhecido artigo de Machado “Instinto de nacionalidade” lado a lado com dois dos contos publicados pelo autor no mesmo ano em Histórias da meia-noite: “A parasita azul” e “Aurora sem dia”. É comum a crítica machadiana olhar para “Instinto de nacionalidade” como um texto que aponta para a ficção mais ambiciosa do autor, escrita quase uma década depois. Eu proponho, entretanto, que o ensaio pode ser visto como um programa do autor para os contos que escrevia no mesmo período, quando tentava articular a sua relação com o Romantismo sem abrir mão da sua independência criativa.

Palavras-chave:
“Instinto de nacionalidade”; “A parasita azul”; “Aurora sem dia”; Romantismo

Abstract

This paper proposes that we read Machado de Assis' essay "Instinto de nacionalidade" side by side with two short stories published by the author the same year in Midnight Tales: "The Blue Flower" and "Much Heat, Little Light". Literary critics concerned with Machado usually read his famous essay as pointing to his more ambitious novels, published almost a decade later. I propose, however, that we read this essay as a blueprint for the short stories he was writing at the time, when he was still in the process of understanding his relationship with Brazil's romantic movement and how to balance its influence with his own creative independence.

Keywords:
"Instinct of Nationality"; "The Blue Flower"; "Much Heat, Little Light"; Romanticism

1 - Introdução

Em seu livro A formação do nome: duas interrogações sobre Machado de Assis, Abel Barros Baptista assinala diferentes possibilidades de leitura para o conhecido ensaio do escritor brasileiro, “Notícia da atual Literatura Brasileira - Instinto de nacionalidade”2 2 A partir daqui, farei referência ao ensaio somente por “Instinto de nacionalidade”. , para, então, defender uma delas. Para Baptista, “o artigo apresenta [...] duas linhas de evolução, a exigirem destrinça minuciosa, já que são incompatíveis: uma clara confiança na edificação nacional da literatura brasileira aliada à impiedosa desarticulação do programa disponível para a levar a cabo” (2003BAPTISTA, Abel Barros. A formação do nome: duas interrogações sobre Machado de Assis. Campinas: Editora da Unicamp, 2003., p. 17). O ensaio de Machado, segundo Baptista, pareceria em um primeiro momento um alinhamento de Machado à busca romântica pela brasilidade, mas quando lido com maior cuidado ele se revelaria exatamente o oposto: um argumento pelo cosmopolitismo da literatura, pelo direito do escritor de escrever sobre qualquer assunto e beber em qualquer tradição, independente de fronteiras nacionais. Para Baptista, o ensaio seria a desconstrução do projeto romântico que guiara as letras brasileiras até então e apontaria para a progressiva autonomização do campo literário em relação ao político e histórico. O ensaio adiantaria, ainda, o Machado dos grandes romances. Isto é, o ensaio tematizaria a virada de Machado a partir de Memórias póstumas de Brás Cubas, quando, segundo Baptista, o escritor se voltaria para o seu próprio rigor e formalismo, fazendo uma literatura sobre o próprio fazer literário, que não dependeria mais do conhecimento do Brasil ou da literatura brasileira para ser lida e compreendida.

O mesmo ensaio de Machado, entretanto, lido por Marta Senna em “Machado de Assis: certo instinto de nacionalidade”, encontra um sentido oposto. Assim como Baptista, Senna entende que há no ensaio algo mais complexo do que a adesão ao projeto romântico. Para ela, Machado elabora a “defesa de que o bom escritor é, sobretudo, o escritor de talento, e não o escritor que faz do nacionalismo uma bandeira” (2009SENNA, Marta de. Machado de Assis: certo instinto de nacionalidade. Escritos 3 - Revista da Fundação Casa de Rui Barbosa, Rio de Janeiro, ano 3, n. 3, p. 77-90, 2009., p. 77). Senna entende que Machado, ao defender a liberdade do escritor em buscar seus próprios assuntos e temas, faz uma reprimenda aos excessos dogmáticos do Romantismo, mas também reafirma o horizonte desse projeto, mostrando que sua preocupação continua a ser a própria literatura nacional e o desenvolvimento de uma tradição brasileira. Para ela, o autor defenderia o fortalecimento da tradição nacional imaginada e construída pelos românticos, e não a sua superação, como acredita Baptista.

A aparente negação do nacionalismo não apontaria para além do nacional, mas sim para o desejo de abertura deste para novas influências que poderiam renová-lo, para o desejo do autor de fomentar a complexidade e a diversidade da própria tradição local. O projeto de enriquecer a literatura brasileira seria o objetivo final de Machado, e não a autonomização da literatura. A partir de suas próprias pesquisas, assim, Machado produziria uma obra original que não se contentaria com a repetição dos preceitos românticos, mas os contornaria para responder às preocupações e aos desafios que a literatura brasileira encontrava no final do Império e início da República. O salto que Machado daria com os seus grandes romances era uma necessidade que ele previra no seu ensaio de 1870, era uma resposta inovadora aos impasses da tradição nacional que ele descrevera em “Instinto de nacionalidade”

Ainda que Baptista e Senna cheguem a conclusões opostas quanto ao sentido do ensaio de Machado, ambas as leituras se aproximam da tentativa de explicar as propostas de Machado a partir daquilo que ele viria a escrever; ou, ainda, ambos procuram ler o ensaio para melhor entender a obra machadiana produzida a partir de Memórias póstumas de Brás Cubas. O fato das conclusões de ambos serem opostas não precisa nos preocupar. Como aponta Hélio Guimarães, em Machado de Assis, o escritor que nos lê (2017GUIMARÃES, Hélio de Seixas. Machado de Assis: o escritor que nos lê. São Paulo: Editora Unesp/FAPESP, 2017.), Machado foge às interpretações totalizantes, deixando sempre espaço para outras leituras de seus textos - leituras que muitas vezes se contradizem. Merece atenção, entretanto, o fato de ambos os críticos abordarem o ensaio de Machado com uma mesma intenção: entender, a partir do ensaio de um jovem Machado, o salto dos trabalhos mais conhecidos do autor, publicados quase uma década depois.

Senna continua seu ensaio analisando a presença de certo “instinto de nacionalidade” na “ficção madura de Machado de Assis”, mostrando que a relação particular e algo ambígua do autor com o Romantismo estaria por trás de suas reservas aos movimentos realista e naturalista e, consequentemente, do caminho peculiar que escolheria para a sua ficção. Baptista, por sua vez, entende ser a autonomia do campo literário, esboçada por Machado no ensaio ao falar da liberdade do escritor, o que explicaria a sua genialidade e permitiria lermos seus livros contra o próprio autor e seu contexto nacional que, para o crítico, empobreceriam as possibilidades interpretativas da sua obra.

Há, entretanto, outra maneira de nos aproximarmos do conhecido ensaio de Machado, olhando não para os textos que ele viria a escrever, mas para aqueles em que trabalhava nesta mesma época. Olhar para trabalhos contemporâneos ao ensaio permite entendermos não o salto que o ensaio de Machado preveria e seria dado com Memórias póstumas de Brás Cubas, mas, sim, como as questões e os impasses levantados por ele em “Instinto de nacionalidade” eram questões e impasses reais e contemporâneos, que integravam também os textos ficcionais escritos por ele no período - eram problemas literários que o próprio Machado tentava responder.

Como já demonstrou Marlene Correia, é comum na obra ficcional de Machado encontrarmos questões levantadas em sua crítica literária e isso é bastante claro nos textos que analisaremos, com a peculiaridade de buscarmos o corte sincrônico; isto é, como questões aparecem em um particular momento do desenvolvimento do autor. Tanto Silviano Santiago (2000SANTIAGO, Silviano. Retórica da verossimilhança. In: ______. Uma literatura nos trópicos: ensaios sobre dependência cultural. Rio de Janeiro: Rocco, 2000.) como John Gledson (2008GLEDSON, John. 1872: “A parasita azul”, ficção, nacionalismo e paródia. In: ______. Cadernos de Literatura Brasileira: Machado de Assis. São Paulo: IMS, 2008, n. 23-24.), a partir de posições teóricas bastante diversas, já apontaram para o fato de a obra machadiana ser uma obra que se desenvolve no tempo. Estruturas e temas que surgem em um momento podem tanto ser deixadas de lado, como ressurgir em outros momentos com novas formulações.

Segundo Santiago, acompanhando a trajetória de Machado, percebe-se “a busca, lenta e medida do esforço criador em favor de uma profundidade que não é criada pelo talento inato, mas pelo exercício consciente e duplo, da imaginação e dos meios de expressão de que dispõe todo e qualquer romancista” (2000SANTIAGO, Silviano. Retórica da verossimilhança. In: ______. Uma literatura nos trópicos: ensaios sobre dependência cultural. Rio de Janeiro: Rocco, 2000., p. 28).3 3 John Gledson (2008, p. 166), em sua leitura de “A parasita azul”, retoma o mesmo ponto levantado por Santiago: “[...] a experimentação que seguiremos foi conduzida em diversas frentes, e veremos casos que parecem experiências deliberadas, tentativas de exercitar certos modelos ou ideias para ver em que medida funcionam, e que alcançam diferentes estágios de acabamento e de sucesso (ou fracasso) artístico”. Há um dinamismo interno da obra de Machado, uma busca e uma inquietação constantes, uma disposição a tentar caminhos, assim como uma preocupação com a tradição nacional e o seu presente, que se perde quando a obra de Machado é vista e relida somente de maneira teleológica, a partir de seus textos mais conhecidos. A constatação da genialidade do autor, a partir de seus romances mais conhecidos, não deveria apagar o trabalho e pesquisa por trás de seu próprio desenvolvimento. Esse dinamismo da obra de Machado nos convida a lê-lo a partir de cortes sincrônicos, isto é, buscando entender como em um momento específico ele lidava - nos diferentes gêneros em que produzia - com certos impasses e perguntas; como soluções que ele encontrava em um momento, reaparecem em outros retrabalhadas; mas como também por vezes são abandonadas em prol de outros caminhos.

Neste sentido, proponho voltarmos às perguntas e aos impasses do ensaio “Instinto de nacionalidade”, buscando entender como essas questões - a tensão entre o elogio da tradição nacional e o desejo de liberdade formal, tensão percebida tanto por Abel Barros Baptista como por Marta Senna - aparecem em dois contos de Histórias da meia-noite, “Aurora sem dia” e “A parasita azul”, publicados em livro no mesmo ano em que o autor também publicaria o seu conhecido ensaio. Isto é, proponho lermos “Instinto de nacionalidade” dentro do corpo de textos produzidos por Machado naquele momento do seu desenvolvimento e não como uma prévia do que faria nos seus grandes romances, o que não quer dizer que ideias desenvolvidas no ensaio não reapareçam em trabalhos posteriores.

Antes de analisarmos os contos, entretanto, é preciso situar as principais questões levantadas pelo ensaio de Machado. Escrevendo quando o Romantismo ainda era a escola literária hegemônica no Brasil, Machado se propõe a investigar “o geral desejo de criar uma literatura mais independente” (ASSIS, 2015ASSIS, Machado de. Instinto de nacionalidade. In: ______. Obra completa. São Paulo: Nova Aguilar, 2015. v. 3., v. 3, p. 1178). A existência de um desejo de independência literária em relação, principalmente, à portuguesa, movera a literatura brasileira desde a revista Nitheroy e com a geração de Gonçalves Dias e José de Alencar encontrara não só o apoio do Estado, mas também um público que a repercutia, fortalecendo a ideia de que a literatura brasileira finalmente formalizava-se; ou, para recuperar o termo usado por Antonio Candido, que o sistema literário brasileiro finalmente se consolidava. Machado mostra-se simpático a este processo de formalização: “[...] todas as formas literárias do pensamento buscam vestir-se com as cores do país, e não há como negar que semelhante preocupação é sintoma de vitalidade e abono de futuro” (ASSIS, 2015ASSIS, Machado de. Instinto de nacionalidade. In: ______. Obra completa. São Paulo: Nova Aguilar, 2015. v. 3., v. 3, p. 1177). No ensaio, Machado também se mostra ciente da importância do público para a saúde da literatura brasileira e, podemos estender, para a profissionalização do escritor. Se este procura seus próprios caminhos, depende dos leitores e da imprensa para ver sua tarefa concretizada, para ver suas ideias repercutirem.

Situada a importância do Romantismo e da busca do nacional para a consolidação da literatura brasileira, entretanto, Machado passa a apontar certos exageros e falhas de seus predecessores e contemporâneos. Assim, Machado afirma que, independentemente da positividade dessa busca romântica pelo nacional, seria um equívoco tê-la como único parâmetro para ler o passado e pensar o presente. Um autor não seria um grande autor simplesmente por respeitar os preceitos de um movimento, ou por falar de um tema consolidado. Repetindo Santiago Nunes Ribeiro, Machado aponta para o perigo de se estender um critério contemporâneo para se ler toda a tradição nacional, mostrando o engodo que era esperar que escritores coloniais - que escreveram antes da consolidação da própria ideia de Brasil - respondessem em seus textos aos mesmos anseios políticos e estéticos que os escritores românticos. Erro semelhante, continua Machado, seria tomar um dos desenvolvimentos literários românticos mais importantes, o Indianismo, e torná-lo o único caminho possível a ser seguido na literatura nacional. Este caminho era tão artificial como qualquer outro e se consolidara como parte da tradição pelo interesse e desenvolvimento de autores como Gonçalves Dias e Alencar, mas também de Santa Rita Durão e Basílio da Gama, e não por ser um tema mais verdadeiro do que outros temas.

Os pontos centrais do ensaio de Machado não dizem respeito somente a poetas e ficcionistas, mas principalmente à crítica literária que procurava guiá-los, apontando quais caminhos seriam válidos para a literatura nacional. O problema para Machado não era escrever de uma maneira ou de outra, mas, sim, a relação superficial e paternalista da crítica com a literatura que se transformara em uma relação superficial dos próprios escritores com a tradição. O texto que fala da natureza, ou que busca no índio um símbolo para pensar o Brasil, pode ser bom ou ruim; mas a imposição deste caminho pela crítica como o único a ser seguido para se participar da literatura nacional era uma escolha empobrecedora. Tais desenvolvimentos, estabelecidos pela crítica como receituário, reduziriam o horizonte da produção nacional. “Este e outros pontos cumpriria à crítica estabelecê-los, se tivéssemos uma crítica doutrinária, ampla, elevada, correspondente ao que ela é em outros países” (ASSIS, 2015ASSIS, Machado de. Instinto de nacionalidade. In: ______. Obra completa. São Paulo: Nova Aguilar, 2015. v. 3., v. 3, p. 1179). Sem uma crítica que incentivasse a pesquisa e a busca por novos caminhos, os escritores se acomodavam, repetindo aquilo que fizeram seus antecessores, em busca de um elogio fácil; não precisariam ler o passado com cuidado e profundidade, mas simplesmente encontrar aspectos chaves que interessavam ao presente; que apontavam para a própria literatura romântica. Sem uma crítica que questionasse os parâmetros estabelecidos, ou que se abrisse para outros caminhos e escolhas, a repetição de temas já versados tornava-se a chave única para a literatura nacional, algo que Machado se propunha a combater em seu trabalho de crítico e escritor.

É nesse contexto que Machado aponta que o nacional pode, também, habitar um espaço íntimo, além dos temas e formas já consolidados como nacionais - espaços ainda não explorados pela literatura brasileira. Isto, entretanto, não significa deixar o nacional de lado, mas, sim, encontrar outras formas de discuti-lo. O “sentimento íntimo” dos autores, a vontade de participar da tradição nacional, mesmo quando se fala de temas que não pertencem ao cânone romântico estabelecido, ou quando se questionam esses temas e escolhas, também os fariam escritores brasileiros. Seus trabalhos, em outras palavras, ainda contribuiriam para a tradição nacional, para a expansão e renovação da literatura brasileira, mas seguindo caminhos próprios que precisariam de novos critérios para serem avaliados.

Valorizar e fomentar a tradição nacional já consolidada, sem repetir o que já foi feito por outros, sem comprometer a busca por novos temas e formas de expressão, é o desafio principal que Machado coloca para a literatura brasileira. Diante de um Romantismo desgastado, flertando com a repetição e o ufanismo fácil, como participar da literatura nacional? Como valorizar suas conquistas e história sem abrir mão da própria inovação e independência? Encontrar esse balanço é o desafio central que Machado se coloca em “Instinto de nacionalidade”, mas também, como mostrarei a seguir, em Histórias da meia-noite.

2 - “Aurora sem dia”

O primeiro dos dois contos que analisaremos, “Aurora sem dia”, aborda exatamente os perigos de um mundo literário desgastado e marcado pela repetição. O conto, originalmente publicado no Jornal das Famílias, em 1870, sob o pseudônimo de Victor de Paula, foi recolhido como parte do segundo livro de Machado, Histórias da meia-noite, em 1873. Ele relata a história de Luís Tinoco, um jovem ambicioso que “possuía a convicção de que estava fadado para grandes destinos”, mas que “exercia um modesto emprego no foro” (ASSIS, 2015______. A parasita azul. In: ______. Obra completa. São Paulo: Nova Aguilar, 2015. v. 2., v. 2, p. 198). Afilhado do aposentado Anastásio, Tinoco faz parte da classe branca não proprietária, que ocupava a baixa burocracia do Império. Em uma economia escravocrata avessa ao trabalho e inclinada ao favor e à indicação, é na literatura e, posteriormente, na política que Tinoco projeta suas grandiosas ambições. Em ambos os casos, como veremos, Tinoco é relativamente bem-sucedido adentrando esses círculos, mas seja por falta de talento ou por falta de influência e relações, nunca atinge o sucesso que acreditava merecer. Ademais, Tinoco não parece disposto a colocar o trabalho necessário para alcançar seus objetivos e esbarra sempre no seu próprio bacharelismo afetado e superficial, além da posição de homem livre, porém pobre, que limita as indicações e os favores que poderia receber. Na história, dr. Lemos, um advogado amigo do padrinho do protagonista, faz as vezes de conselheiro do jovem, sugerindo que ele se satisfaça com sua posição no fórum.

Parte da graça do conto está na maneira como Machado descreve seu protagonista, fazendo-o um clichê romântico: “um rapaz de estatura meã, olhos vivos, cabelos em desordem, língua inesgotável e paixões impetuosas” (ASSIS, 2015______. A parasita azul. In: ______. Obra completa. São Paulo: Nova Aguilar, 2015. v. 2., v. 2, p. 198). Machado usa a pequenez de espírito de Tinoco para mostrar a estreiteza do mundo letrado brasileiro. Suas escolhas levianas e paixões passageiras se encaixam com sucesso, ao menos por um tempo, no horizonte dos mundos políticos e literários que ele integra, regidos pelas trocas de favores e pela ausência de crítica honesta e diálogos produtivos. A partir de um arroubo de inspiração, mas também da ajuda de alguns amigos da imprensa, Tinoco publica, na seção “A Pedidos” do Correio Mercantil, seus primeiros versos, escritos em momento de impulso poético, e já começa a imaginar para si mesmo, no melhor modelo ultrarromântico, um futuro de grande poeta sofredor e injustiçado. Seu padrinho a princípio desgosta do seu novo passatempo, que de fato o fará perder o necessário emprego, e só se acalma quando dr. Lemos promete conversar com o rapaz, além de afirmar serem as letras um bom caminho para quem deseja tornar-se “deputado, ministro, ou diplomata” (ASSIS, 2015______. Aurora sem dia. In: ______. Obra completa. São Paulo: Nova Aguilar, 2015. v. 2., v. 2, p. 199). A ironia de Machado em relação aos seus contemporâneos românticos, muitos deles ocupantes de cargos públicos como os mencionados, certamente não passava despercebida entre seus leitores.

Com franqueza, dr. Lemos, que também arriscara escrever versos em sua juventude, diz ver potencial na empreitada do jovem, mas pontua “que a poesia era uma arte difícil e que pedia longo estudo.” (ASSIS, 2015______. Aurora sem dia. In: ______. Obra completa. São Paulo: Nova Aguilar, 2015. v. 2., v. 2, p. 199). Nem só de inspiração podiam viver os poetas. O estudo sério da tradição, ou melhor, a falta dele, uma das preocupações de Machado em “Instinto de nacionalidade”, definirá a trajetória de Tinoco. Diante do alerta de dr. Lemos, Tinoco responde que inspiração não se aprende, mas se traz do berço, ecoando o clichê do gênio romântico. E ele completa: “Se os versos não fossem bons, o Mercantil não os publicava” (ASSIS, 2015______. Aurora sem dia. In: ______. Obra completa. São Paulo: Nova Aguilar, 2015. v. 2., v. 2, p. 200). Tinoco prossegue em sua carreira de poeta, buscando frases de efeito e citações que pudessem abrilhantar seus escritos, além de se contentar em repetir os mais batidos chavões românticos. O máximo que ele se aproxima de estudar é ler “casualmente alguns dos salmos do padre Caldas” que lhes parecem “soporíferos”; e também a “‘Morte da Lindoia’, nome que ele dava ao poema de J. Basílio da Gama, de que só conhecia quatro versos” (ASSIS, 2015______. Aurora sem dia. In: ______. Obra completa. São Paulo: Nova Aguilar, 2015. v. 2., v. 2, p. 200). Tinoco é o tipo do poeta que, como aponta Machado em “Instinto de nacionalidade”, em vez de estudar, busca os temas fáceis e consagrados pela crítica para receber elogios. É um poeta que, segundo Machado, não “terá meditado os poemas de Uraguai e Caramuru com aquela atenção que tais obras estão pedindo; mas [por quem] os nomes de Basílio da Gama e Durão são citados e amados, como precursores da poesia brasileira” (2015ASSIS, Machado de. Instinto de nacionalidade. In: ______. Obra completa. São Paulo: Nova Aguilar, 2015. v. 3., v. 3, p. 1177).

O breve e artificial sucesso literário de Tinoco se dá no vazio de debate crítico, dentro da sua própria roda de amigos e conhecidos, através de indicações e da repetição de fórmulas gastas. Despedido do fórum por se considerar, como poeta, superior às preocupações mundanas, Tinoco torna-se cada vez mais uma caricatura do poeta romântico, achando-se marginalizado e mal compreendido, uma imagem que não parece ornar com sua tendência para escrever versos de ocasião: “não havia ocasião, enterro ou espetáculo solene, que escapasse à inspiração do fecundo escritor” (2015, v. 2, p. 202). Com dificuldade de encontrar espaço para a sua prolífica produção, Tinoco funda o seu próprio periódico, o Caramanchão Literário, e nele publica os seus poemas de amor para uma certa Laura que, como nos conta o narrador, se chamava na realidade Inocência. Tinoco, como a elite brasileira e o próprio Romantismo, precisa equacionar experiência nacional e influências europeias, tomadas como sinônimo de erudição e modernidade. O resultado, entretanto, não poderia ser mais superficial: a simples mudança do nome de sua amada para o nome italiano e ressonante da musa de Petrarca. Nos escritos de Tinoco abundam clichês, elogiados por seus amigos e colaboradores. No pequeno mundo do Caramanchão Literário, Tinoco encontra o seu apogeu, longe, entretanto, do Olimpo com o qual sonhara. Sem estudo sério, como aponta o dr. Lemos, e também Machado em “Instinto de nacionalidade”, o seu voo já nasce curto.

Assim como acordara poeta, Tinoco, que passa a trabalhar para um deputado por indicação do dr. Lemos, após perder seu emprego no fórum, passa a ver na política um caminho mais viável do que nas letras para finalmente encontrar a glória para a qual se acreditava predestinado. Abandonada a literatura, entretanto, Tinoco carrega os mesmos vícios para sua carreira política; a mesma retórica grandiloquente e vazia que Machado criticava nos jovens escritores românticos. “A erudição política de Luís Tinoco era nenhuma [...] o autor dos Goivos e camélias não era homem que meditasse uma página de leitura; ele ia atrás das grandes frases - sobretudo frases sonoras -, demorava-se nelas, repetia-as, ruminava-as com verdadeira delícia” (ASSIS, 2015______. Aurora sem dia. In: ______. Obra completa. São Paulo: Nova Aguilar, 2015. v. 2., v. 2, p. 207). Pelos mesmos caminhos de trocas de favores pelos quais se fizera poeta, Tinoco encontra uma maneira de avançar também na carreira política. Depois de escrever alguns artigos inflamados, publicados no jornal de seu partido por recomendação do seu novo protetor, assume uma cadeira em uma assembleia provincial já com olhos em um ministério e, por que não, em um possível futuro como primeiro-ministro. Na província, entretanto, ele sofrerá chacota por seu passado de poeta, assim como por seus discursos absurdos e longos, sempre eruditos na forma e vazios de conteúdo; chacota, esta, feita pela oposição, mas não pelos seus amigos e correligionários que continuam o apoiando e validando a sua estreiteza intelectual.

Sem riqueza própria para ir além de uma assembleia de província, reconhecendo ter se enganado quanto ao seu futuro grandioso, fosse ele nas letras ou na política, Tinoco abandona a assembleia e assume, também de forma impulsiva, a profissão mais terrena de lavrador, onde finalmente encontra, segundo ele próprio, um futuro promissor. Não é claro se ele aprendeu ou não alguma lição com sua trajetória, mas o dr. Lemos o encontra casado e constituindo família no final da história, um sinal de que deixava a juventude e a inconstância para trás. Como já era típico em Machado neste início de carreira, a conclusão, ou a formulação de alguma moral, mantem-se ambígua ao final do conto, e fica a cargo do próprio leitor decidir qual aprendizado tirar da história.4 4 É curioso reparar que a versão desse conto publicada no Jornal das Famílias por Machado tem um final menos ambíguo e mais moralizante do que a versão reescrita e publicada em Histórias da meia-noite, o que aponta para o desejo de Machado em deixar seus textos mais abertos e ambíguos, algo que será central no seu desenvolvimento posterior, e que já vimos aqui. Sobre essas diferenças entre as duas versões, ver o ensaio de Carlos Minchillo, indicado nas Referências. A trajetória de Tinoco, porém, ilustra de forma exemplar a superficialidade do mundo intelectual do Segundo Império e a ausência de uma crítica literária séria na imprensa nacional, problemas levantados por Machado também em seu ensaio. A recomendação final de “Instinto de nacionalidade”, permeada de humor e ironia, serve de possível moral ao conto em questão:

Outra coisa de que eu quisera persuadir a mocidade é que a precipitação não lhe afiança muita vida aos seus escritos. Há um prurido de escrever muito e depressa; tira-se disso glória, e não posso negar que é caminho de aplausos. Há intenção de igualar as criações do espírito com as da matéria, como se elas não fossem neste caso inconciliáveis. Faça muito embora um homem a volta ao mundo em oitenta dias; para uma obra-prima do espírito são precisos alguns mais. (ASSIS, 2015ASSIS, Machado de. Instinto de nacionalidade. In: ______. Obra completa. São Paulo: Nova Aguilar, 2015. v. 3., v. 3, p. 1184)

Lido em paralelo com “Instinto de nacionalidade”, a crítica feita por Machado, em “Aurora sem dia”, ganha corpo; assim como o ensaio, quando lido à luz da “parábola” de Tinoco, torna-se mais concreto e direto - um comentário mordaz ao mundo literário do período. Um parece ter sido escrito com o outro em mente. A repetição das formas desgastadas, o desejo de projeção, a pressa do sucesso e a aversão ao estudo, assim como uma economia de favor e um mundo literário estreito, preocupavam Machado em 1873 e, assim, são centrais tanto para o conto como para o ensaio.

3 - “A parasita azul”

Assim como “Aurora sem dia”, o conto “A parasita azul” também foi publicado no Jornal das Famílias, mas em 1872 e sob o pseudônimo de Job. Posteriormente, o conto foi escolhido por Machado para abrir Histórias da meia-noite, mostrando sua importância para o autor no período. Mais longo do que os demais contos do livro, “A parasita azul” tem certa semelhança com o tom jovial e o estilo jocoso de “Aurora sem dia” e também faz um comentário crítico aos excessos do Romantismo, com uma atenção particular ao nacionalismo superficial dos epígonos do movimento notado por Machado em “Instinto de nacionalidade”.

“A parasita azul” também propõe fazer um comentário através da própria forma do conto, que mimetiza no enredo o romance A moreninha, publicado por Joaquim Manuel de Macedo em 1844, o que serve tanto para apontar alguns limites e excessos do Romantismo em 1870, como para fazer uma homenagem, atestando o fato de o movimento ter trabalhado para o estabelecimento de uma tradição nacional no país. Isto é, o comentário de Machado ao Romantismo só é efetivo dada a popularidade do romance de Macedo com os leitores, que deixaria clara a existência de um diálogo entre Machado e seu predecessor; um diálogo que não se limita à mera copia, como abordarei a seguir, mas amplia os limites da literatura nacional por meio da paródia.5 5 Focaremos nossa leitura na presença do romance de Joaquim Manuel de Macedo no conto de Machado, ainda que, como já mostrou Gledson, o conto também tenha ecos de José de Alencar e de Manuel Antônio de Almeida, o que reforça a complexidade do diálogo que Machado estabelece com seus predecessores.

“A parasita azul” trata do retorno ao Brasil do jovem Camilo Seabra, que passara oito anos estudando medicina em Paris. Filho de um fazendeiro de Goiás, o jovem sente-se mais francês do que brasileiro e vê pouca vantagem em retornar ao país, após anos sendo sustentado na Europa por seu pai. Tornado pela conjuntura e inclinação um bon vivant parisiense, Camilo se apaixona por uma princesa russa, que não é russa nem princesa, mas uma “filha da rua do Bac” (ASSIS, 2015______. A parasita azul. In: ______. Obra completa. São Paulo: Nova Aguilar, 2015. v. 2., v. 2, p. 145) e faz de tudo para permanecer na França. Somente depois de muita insistência por parte de seu pai, e da ameaça de ter os fundos que este lhe enviava cortados, Camilo volta ao Brasil, afirmando à sua amada e aos seus amigos que retornará à França assim que possível.

Ao chegar no Rio de Janeiro, Camilo encontra um antigo colega de infância, Leandro, que começa a inteirá-lo da vida na sua província natal. Leandro também fala de seu amor por Isabel, uma jovem que Camilo conhecera criança, mas de quem não parece ter muitas lembranças. Isabel não demonstra interesse por Leandro que, entretanto, promete impedir a qualquer custo que outros pretendentes a conquistem. O drama está desenhado. Camilo, assim que reencontra Isabel, a acha misteriosa e acaba se apaixonando. Num enredo rocambolesco digno de um folhetim romântico, com rejeições, personagens misteriosas, festas populares e um falso suicídio, Camilo finalmente conquista o amor da jovem e os dois acabam se casando. Leandro, um pouco contrariado, é convencido a abandonar sua promessa de lutar por Isabel, aceitando em troca a ajuda de seu concorrente, mais rico e bem relacionado do que ele, para iniciar uma carreira política.

“A parasita azul”, assim como “Aurora sem dia”, tangencia diversos temas tratados por Machado em “Instinto de nacionalidade”, com ênfase para a crítica à superficialidade da elite brasileira e ao seu nacionalismo de ocasião. Centrado em grande parte no retorno de Camilo ao Brasil, o conto permite que Machado elabore em detalhe a atração da elite nacional pela Europa e, principalmente, pela França, um tema do qual também trata em “Instinto de nacionalidade”. No ensaio, Machado aponta que a crítica nacional não cansa de buscar, em nossas letras, aquilo que encontra na literatura francesa: “[...] os escritores que se vão buscar para fazer comparações com os nossos - porque há aqui muito amor a essas comparações - são ainda aqueles com que o nosso espírito se educou, os Victor Hugos, os Gautiers, os Mussets, os Gozlans, os Nervais.” (2015ASSIS, Machado de. Instinto de nacionalidade. In: ______. Obra completa. São Paulo: Nova Aguilar, 2015. v. 3., v. 3, p. 1181) O balanço cuidadoso entre “cor local”, entre aquilo que seria nosso e que deveríamos valorizar, e a cultura europeia que formava a nossa elite e que continuava nos atraindo, é o germe do drama de Camilo, preso entre as memórias do Brasil e sua certeza de ser tão francês como qualquer outro colega parisiense, ainda que seja visto por estes como o dispendioso “jovem brasileiro”.

O que atrai Camilo à França, entretanto, não é a tradição literária deste país, ou o desejo de se modernizar, mas a sua inclinação à boemia e aos luxos da cidade luz. As comparações que ele traça entre o Brasil e a França, sempre levianas e repletas de lugares-comuns, carregam o peso dessa paixão pela vida fácil e aversão ao estudo e trabalho. Ao aportar no Rio, Camilo não vê graça na capital do Império, onde acha “os homens deselegantes, as senhoras desgraciosas” e a rua do Ouvidor “um beco muito comprido e muito iluminado” (2015______. A parasita azul. In: ______. Obra completa. São Paulo: Nova Aguilar, 2015. v. 2., v. 2, p. 145). E, para piorar, lembra-se de que “Santa Luzia, sua cidade natal, era ainda menos parisiense que o Rio de Janeiro” (2015______. A parasita azul. In: ______. Obra completa. São Paulo: Nova Aguilar, 2015. v. 2., v. 2, p. 145). A vida simples que encontra a caminho de Goiás e, depois, em sua terra natal, parecem-lhe um atraso sem fim: “Que diferença entre os seus jantares dos restaurants dos boulevards e aquela refeição ligeira e tosca, num miserável pouso de estrada, sem os acepipes da cozinha francesa, sem a leitura do Figaro ou da Gazette des Tribunaux!” (2015______. A parasita azul. In: ______. Obra completa. São Paulo: Nova Aguilar, 2015. v. 2., v. 2, p. 148). Saudoso da França, Camilo esquece o orgulho que deveria ter, na perspectiva romântica em que se formara, da sua terra natal; e não cansa de reclamar do atraso do Brasil. O amor à pátria é, para o jovem e também para Machado, relativo.

A percepção de Camilo acerca do país começa a se alterar conforme ele se aproxima das terras de sua família. A caminho de Goiás, “as cores locais”, a majestosa natureza do Brasil, que tanto interessava aos românticos, é notada pelo jovem. “Camilo ficou sozinho diante da noite, que estava realmente formosa e solene. Não faltava ao jovem goiano a inteligência do belo; e a quase novidade daquele espetáculo, que uma longa ausência lhe fizera esquecer, não deixava de o impressionar imensamente.” (2015______. A parasita azul. In: ______. Obra completa. São Paulo: Nova Aguilar, 2015. v. 2., v. 2, p. 148). Ao chegar em sua cidade natal de Santa Luzia, as memórias da infância tocam o jovem bon vivant e, como afirma o narrador, “por algum tempo, ao menos, Paris com os seus esplendores cedia o lugar à pequena e honesta pátria dos Seabras” no seu coração (2015______. A parasita azul. In: ______. Obra completa. São Paulo: Nova Aguilar, 2015. v. 2., v. 2, p. 150). O acaso do nascimento, sua infância goiana, liga o jovem ao Brasil, mesmo que sua formação intelectual seja parisiense - ele aos poucos se reconecta com sua pátria natal. No íntimo, ele não pode deixar de ser brasileiro, ainda que os prazeres cosmopolitas de Paris o atraiam tanto. A virada definitiva, a mudança da relação do jovem com o Brasil, como não poderia deixar de ser em um texto que parodia os folhetins românticos, se daria pelo amor:

Camilo estava apaixonado; no dia seguinte amanheceu pior; cada dia que passava aumentava a chama que o consumia. Paris e a princesa, tudo havia desaparecido do coração e da memória do rapaz. Um só ente, um lugar único mereciam agora as suas atenções: Isabel e Goiás. (ASSIS, 2015______. A parasita azul. In: ______. Obra completa. São Paulo: Nova Aguilar, 2015. v. 2., v. 2, p. 161)

É importante notar que o interesse machadiano pela “cor local” em “Instinto de nacionalidade”, como também no conto em questão, vai além do elogio à natureza do país, das pautas fáceis herdadas do Romantismo, e aponta para a necessidade de pesquisar e mapear os costumes e as tradições locais; para a necessidade de enriquecer, além dos temas já consagrados, a literatura brasileira. Não bastava ficar na capital fluminense, imaginando-se um poeta francês em terras tropicais, como fizera Tinoco; era preciso conhecer o próprio país. Como aponta Machado no seu conhecido ensaio:

A substância, não menos que os acessórios, reproduzem geralmente a vida brasileira em seus diferentes aspectos e situações. Naturalmente os costumes do interior são os que conservam melhor a tradição nacional; os da capital do país, e em parte, os de algumas cidades, muito mais chegados à influência europeia, trazem já uma feição mista e ademanes diferente. (ASSIS, 2015ASSIS, Machado de. Instinto de nacionalidade. In: ______. Obra completa. São Paulo: Nova Aguilar, 2015. v. 3., v. 3, p. 1180)

Situar a história de Camilo em Goiás aponta para esse desejo do escritor de explorar outras partes do seu país. E, se não bastasse situar a história em uma província do interior, Machado também coloca o desfecho do reencontro entre Camilo e Isabel em uma das mais tradicionais festas populares do período. Seguindo o que ele próprio sugere aos escritores, Machado usa a história de amor entre Camilo e Isabel para retratar a festa do Divino Espírito Santo, muito popular no Brasil Colônia e nos primeiros anos do Império, mas que começava a perder popularidade no final do século XIX.6 6 Sobre a festa do Divino, e o tableaux de costume que Machado cria no conto, ver Gledson, p. 206-207. Machado traça um breve quadro da celebração, descrevendo-a; algo de pouca importância para o desenvolvimento do enredo, mas que mostra o interesse do autor pela expansão do que significava a “cor local” na literatura brasileira:

Camilo chegou à janela para ver o cortejo. Não tardou que este aparecesse composto de uma banda de música da irmandade do Espírito Santo e dos pastores da véspera. Os irmãos vestiam as suas opas encarnadas, e vinham a passo grave, cercados do povo, que enchia a rua e se aglomerava à porta do tenente-coronel para vê-lo sair. (ASSIS, 2015______. A parasita azul. In: ______. Obra completa. São Paulo: Nova Aguilar, 2015. v. 2., v. 2, p. 157)

Em “A parasita azul”, como já apontado, o comentário mais surpreendente de Machado não está no que é dito, mas naquilo que se passa nas entrelinhas da história, ou melhor, em sua estrutura. O balanço entre o diálogo com a tradição e a liberdade do próprio escritor, tema central de “Instinto de nacionalidade”, está tematizado no conto no próprio jogo que Machado faz ao recriar de forma paródica o enredo de um dos mais populares romances românticos, A moreninha. Machado vai além do comentário à superficialidade de certos escritores epígonos ou à falta de profundidade do debate crítico feito no Brasil, críticas que fizera também em “Aurora sem dia”, mostrando agora pelo exemplo que era possível entrar em diálogo com a tradição de uma forma original, sem abrir mão de inovar tanto tematicamente como formalmente. Isto é, ele mostra que seu interesse pela cor local e pela literatura nacional não era um impedimento para o seu experimentalismo; não era um impedimento para que desenvolvesse um diálogo irônico e crítico com A moreninha. Como aponta Jefferson Cano em um artigo publicado sobre o conto, a originalidade de “A parasita azul” está exatamente na escolha dessa chave irônica para tratar dos temas românticos, situando “a história entre o plágio e a paródia” (2008CANO, Jefferson. Machado além do Romantismo. Jornal da Unicamp, Campinas, p. 3, 25 ago. 2008., p. 3).

A literatura moderna, ainda segundo Machado em “Instinto de nacionalidade”, não se constrói negando o passado e a tradição, mas encontrando novas maneiras de mobilizá-las, buscando novas formas de dialogar com elas:

Cada tempo tem o seu estilo. Mas estudar-lhes as formas mais apuradas da linguagem, desentranhar deles mil riquezas, que, à força de velhas se fazem novas, não me parece que se deva desprezar. Nem tudo tinham os antigos, nem tudo têm os modernos; com os haveres de uns e outros é que se enriquece o pecúlio comum. (ASSIS, 2015ASSIS, Machado de. Instinto de nacionalidade. In: ______. Obra completa. São Paulo: Nova Aguilar, 2015. v. 3., v. 3, p. 1184)

Nesse sentido, o diálogo que Machado estabelece com Macedo é esclarecedor. A paródia e a ironia permitem que o autor retome pontos desenvolvidos por seu antecessor, alterando, entretanto, os seus significados; permite que ele situe as questões centrais do Romantismo sem oferecer as mesmas respostas a elas. Isto é, Machado recupera as voltas narrativas e os temas centrais de Macedo, mas não oferece as mesmas conclusões moralistas, já desgastadas. Se o encontro que sela o futuro dos jovens Eduardo e Carolina, os heróis de A moreninha, se dá de modo solene, a partir da ajuda que os dois oferecem a um moribundo, o amor de Camilo e Isabel nasce de forma cômica, quando o jovem tenta alcançar uma flor - a parasita azul do título - para a menina, mas acaba espatifando-se no chão. O amor, um tema romântico por excelência, é rebaixado por Machado, trazido para a realidade cômica e casual da vida quotidiana; colocando em dúvida a validade dos gestos exagerados e radicais das personagens e a própria excepcionalidade do amor enquanto tema.

E, se a conclusão de A moreninha serve para Macedo mostrar como, por trás da aparente inconstância e jocosidade das suas personagens, estava na verdade a seríssima e honrada constância do primeiro e verdadeiro amor, a solução de Machado em “A parasita azul” é muito mais ambígua e não redime a trajetória de Camilo, pelo contrário, a confirma. Camilo continua leviano, longe de se tornar um jovem exemplar. Para conquistar o amor de Isabel, ele engana os seus amigos e parentes, assim como a sua pretendente, fingindo tentar o suicídio. Só com este falso gesto grandioso que Isabel aceita perdoar o fato de ele tê-la esquecido, quando esteve em Paris. Na versão de Machado, a própria verdade acaba relativizada, pois é a mentira que proporciona o final feliz da história; que concretiza a conclusão folhetinesca que os leitores e leitoras, desde as primeiras páginas da história, esperavam.

Nem o amor e nem o Brasil são idealizados pelo autor, o que não significa que eles não sejam importantes para ele, pelo contrário - ambos saem vencedores na história. Camilo e Isabel terminam juntos, e o jovem, mesmo saudoso de Paris, aceita ficar em Goiás. Machado, em vez de idealizar o país de forma ufanista, ou elevar o amor a um tema sacro, relativiza ambos. Em um último gesto de ironia, Camilo recebe um exemplar antigo do Le Figaro, onde lê a confirmação de que a princesa russa por quem se apaixonara era, de fato, uma vigarista. Isto é, Paris também não era a terra perfeita que ele pintava, algo que já estava claro para o leitor, mas que Camilo ainda não descobrira. A relativização do aqui e do lá, do Brasil e da Europa, da superioridade de um sobre o outro, central também para “Instinto de nacionalidade”, ressurge na conclusão do conto.

Com criatividade, Machado consegue ao mesmo tempo recuperar os temas românticos que formavam a tradição nacional e criticar a superficialidade com que eram tratados, reforçando a necessidade de os escritores pesquisarem e conhecerem essa tradição e o próprio Brasil, assim como de encontrarem os seus próprios caminhos. Machado fala da “cor local”, da natureza e dos costumes brasileiros, dialogando com seus predecessores, mas sem tomar a posição destes como suas e insere na tradição suas próprias preocupações. Nas palavras de John Gledson, em “A parasita azul”, Machado “encontrou uma maneira de superar as limitações da tradição nativa - por intermédio de sua paródia e, ao mesmo tempo, de sua utilização na elaboração de seus enredos, ele pôde escrever uma ficção que era indubitavelmente brasileira, sem no entanto ser ingênua e ufanista” (2008GLEDSON, John. 1872: “A parasita azul”, ficção, nacionalismo e paródia. In: ______. Cadernos de Literatura Brasileira: Machado de Assis. São Paulo: IMS, 2008, n. 23-24., p. 195). Machado articula no conto tanto a necessidade de participar da tradição nacional como a necessidade de investir na própria liberdade criativa, os dois desafios centrais que apresenta em “Instinto de nacionalidade”, mas que foram percebidos tanto por Abel Barros Baptista como por Marta de Senna como impulsos contraditórios.

Conclusão

Ler os contos “Aurora sem dia” e “A parasita azul” aproximando-os dos temas discutidos por Machado em “Instinto de nacionalidade” permite perceber com clareza como Machado procurava responder na sua ficção aos desafios que levantava em seus textos críticos. Como, mais do que apontar para desenvolvimentos futuros, “Instinto de nacionalidade” expressa as preocupações do crítico naquele momento e dialoga com os contos escritos no período pelo autor, pedindo uma leitura sincrônica. Alguns elementos, como o interesse em investigar o interior do Brasil e retratar suas tradições, seriam deixados de lado por Machado na sua obra posterior; ao mesmo tempo que outros, como a relativização das pautas tradicionais do Romantismo, ou certos temas tidos como solenes, seriam trabalhados pelo autor em toda a sua obra.

As tensões, percebidas por Abel Barros Baptista, Marta de Senna e outros críticos em “Instinto de nacionalidade” entre a vontade de elevar a tradição nacional que se formava e a defesa da liberdade do escritor na escolha de temas e formas, não aparecem nos contos como antagônicas, mas trabalham de forma produtiva uma ao lado da outra. Participar da tradição nacional não era, para Machado, abrir mão do tom crítico e do experimentalismo. Mais do que impulsos contrários, o Machado dos contos parece ver na fricção desses impulsos um possível caminho para renovar a tradição nacional sem cair na cópia fácil e na repetição, seja de modelos nacionais ou internacionais. Ao recuperar formas e temas românticos de forma paródica e irônica, Machado mostra um possível caminho para solucionar a questão levantada por ele mesmo - o impasse entre o desgaste do Romantismo e a necessidade de continuar fortalecendo a literatura nacional -, e promove o diálogo interno da tradição nacional, ao mesmo tempo em que tensiona os seus limites; algo que fica mais claro quando lemos Machado de uma forma sincrônica, comparando os escritos críticos e literários que ele publicara no início de sua carreira.

Referências

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  • BAPTISTA, Abel Barros. A formação do nome: duas interrogações sobre Machado de Assis. Campinas: Editora da Unicamp, 2003.
  • CANO, Jefferson. Machado além do Romantismo. Jornal da Unicamp, Campinas, p. 3, 25 ago. 2008.
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    » http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1983-68212015000200003&lng=en&nrm=iso
  • GLEDSON, John. 1872: “A parasita azul”, ficção, nacionalismo e paródia. In: ______. Cadernos de Literatura Brasileira: Machado de Assis. São Paulo: IMS, 2008, n. 23-24.
  • GUIMARÃES, Hélio de Seixas. Machado de Assis: o escritor que nos lê. São Paulo: Editora Unesp/FAPESP, 2017.
  • MINCHILLO, Carlos. Salto triplo para queda em falso: uma leitura de “Aurora sem dia”, de Machado de Assis. Machado de Assis em Linha - Revista Eletrônica de Estudos Machadianos, São Paulo, v. 3, n. 5, p. 95-110, jun. 2010. Disponível em: <Disponível em: http://machadodeassis.net/download/numero05/num05artigo08.pdf >. Acesso em: 10 dez. 2019.
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  • SANTIAGO, Silviano. Retórica da verossimilhança. In: ______. Uma literatura nos trópicos: ensaios sobre dependência cultural. Rio de Janeiro: Rocco, 2000.
  • SENNA, Marta de. Machado de Assis: certo instinto de nacionalidade. Escritos 3 - Revista da Fundação Casa de Rui Barbosa, Rio de Janeiro, ano 3, n. 3, p. 77-90, 2009.
  • 2
    A partir daqui, farei referência ao ensaio somente por “Instinto de nacionalidade”.
  • 3
    John Gledson (2008GLEDSON, John. 1872: “A parasita azul”, ficção, nacionalismo e paródia. In: ______. Cadernos de Literatura Brasileira: Machado de Assis. São Paulo: IMS, 2008, n. 23-24., p. 166), em sua leitura de “A parasita azul”, retoma o mesmo ponto levantado por Santiago: “[...] a experimentação que seguiremos foi conduzida em diversas frentes, e veremos casos que parecem experiências deliberadas, tentativas de exercitar certos modelos ou ideias para ver em que medida funcionam, e que alcançam diferentes estágios de acabamento e de sucesso (ou fracasso) artístico”.
  • 4
    É curioso reparar que a versão desse conto publicada no Jornal das Famílias por Machado tem um final menos ambíguo e mais moralizante do que a versão reescrita e publicada em Histórias da meia-noite, o que aponta para o desejo de Machado em deixar seus textos mais abertos e ambíguos, algo que será central no seu desenvolvimento posterior, e que já vimos aqui. Sobre essas diferenças entre as duas versões, ver o ensaio de Carlos MinchilloMINCHILLO, Carlos. Salto triplo para queda em falso: uma leitura de “Aurora sem dia”, de Machado de Assis. Machado de Assis em Linha - Revista Eletrônica de Estudos Machadianos, São Paulo, v. 3, n. 5, p. 95-110, jun. 2010. Disponível em: <Disponível em: http://machadodeassis.net/download/numero05/num05artigo08.pdf >. Acesso em: 10 dez. 2019.
    http://machadodeassis.net/download/numer...
    , indicado nas Referências.
  • 5
    Focaremos nossa leitura na presença do romance de Joaquim Manuel de Macedo no conto de Machado, ainda que, como já mostrou Gledson, o conto também tenha ecos de José de Alencar e de Manuel Antônio de Almeida, o que reforça a complexidade do diálogo que Machado estabelece com seus predecessores.
  • 6
    Sobre a festa do Divino, e o tableaux de costume que Machado cria no conto, ver Gledson, p. 206-207.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    18 Dez 2020
  • Data do Fascículo
    Dez 2020

Histórico

  • Recebido
    11 Abr 2020
  • Aceito
    27 Maio 2020
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