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AFINIDADES ELETIVAS E FEIÇÕES EM MACHADO DE ASSIS, GOETHE E HOFFMANN

ELECTIVE AFFINITIES AND PHYSIOGNOMY BETWEEN MACHADO, GOETHE AND HOFFMANN

Resumo

O artigo propõe uma hermenêutica da fisionomia em Machado de Assis, As Afinidades Eletivas de Goethe e “Die Doppeltgänger” de E.T.A Hoffmann. Em que medida a trágica fisionomia de Ezequiel em Dom Casmurro pode refletir uma similaridade com a criança do casal Eduard e Charlotte nas Afinidades Eletivas? Podemos estabelecer um elo entre Flora em Esaú e Jacó e Natalie em “Die Doppeltgänger” baseada na hesitação entre dois amantes que partilham da mesma fisionomia? A introdução de um terceiro e um quarto elemento num relacionamento nunca é, como observa Charlotte nas Afinidades Eletivas, sem consequências. Como Machado de Assis, Goethe e Hoffmann bem sabiam, o fantástico sempre tem algo a ensinar à prosa realista.

Palavras-chave:
hermenêutica; fisionomia; daimon; fantástico; foco narrative; natureza

Abstract

This article proposes an hermeneutics of physiognomy bringing together Machado de Assis, Goethe's Elective Affinities and E.T.A. Hoffmann's "Die Doppeltgänger". To what extent Dom Casmurro's Ezequiel's tragic physiognomy can be taken to bear a resemblance to Eduard's and Charlotte's child in Elective Affinities? Can we draw a line between Flora in Esaú e Jacó and Natalie in "Die Doppeltgänger" based on their hesitancy between two lovers who share the same physiognomy? The introduction of a third and a fourth element in a relationship is never, as Charlotte observes in Elective Affinities, without consequences. As Machado de Assis, Goethe and Hoffmann knew, the fantastic has always something to teach, or spice, realist prose.

Keywords:
Hermeneutics; physiognomy; daimon; fantastic; point of view; nature

Um Terceiro e um Quarto. Uma hermenêutica das feições.

A introdução de uma terceira pessoa na relação de um casal é algo que, como lembra Charlotte a Eduard em As afinidades eletivas de Goethe, necessita "ser considerado, e isto sob mais do que apenas um ponto de vista único" (GOETHE, 1968GOETHE, Johann Wolfgang von. Die Wahlverwandtschaften/Les Affinités électives. Tradução e introdução de Joseph-François Angelloz. Ed. bilíngue alemão-francês. Paris: Aubier Flammarion, 1968. 2 v., I, p. 62).1 1 Machado de Assis possuía as obras de Goethe em alemão e a versão em francês, por Jacques Porchat, das Obras completas. Cito neste artigo tanto o volume bilíngue Die Wahlverwandtschaften/Les Affinités électives, cuja tradução foi feita por Joseph-François Angelloz (GOETHE, 1968), quanto a edição francesa anteriormente mencionada (GOETHE, 1870). Ao citar da obra bilíngue, acrescento o número do tomo e traduzo do alemão. A proposta de Eduard é a de trazer um amigo comum, o Capitão, para que venha morar com eles no castelo.

No desequilíbrio causado pelo terceiro elemento representado pelo Capitão, vem a eles juntar-se um quarto, Ottilie: esquiva, recolhida, lenta. Eduard se apaixona por Ottilie, e vice-versa, enquanto o Capitão ama Charlotte, em amor igualmente correspondido, mas marcado pela prudência e abnegação.

A introdução do terceiro elemento dinamiza uma narrativa tanto por avançar o enredo quanto por expor a psicologia dos personagens na trama que vivem diante do leitor. Machado de Assis se afeiçoou ao esquema com muitas variações, mas é a conjunção entre a introdução de um terceiro e um quarto elemento especificamente no que diz respeito a feições que busco neste artigo entender. Enfatizo o termo "feição".2 2 V. TYTLER, 1982; RIVERS, 1994; PERCIVAL, TYTLER, 2005.

No capítulo XI d'As afinidades eletivas,3 3 Goethe tomou o título da obra do químico sueco Bergmann, De attractionibus electivis, que havia sido traduzido ao alemão em 1785 com o título Die Wahlverwandtschaften. dá-se um acontecimento que o próprio Goethe (1968GOETHE, Johann Wolfgang von. Die Wahlverwandtschaften/Les Affinités électives. Tradução e introdução de Joseph-François Angelloz. Ed. bilíngue alemão-francês. Paris: Aubier Flammarion, 1968. 2 v., I, p. 310) classificou de um "evento inaudito mas que, entretanto, ocorreu". O casal de esposos, Charlotte e Eduard, emocionalmente apartados, concebe ao acaso um filho numa noite em que cada um pensa estar com o outro ser amado. Charlotte ama o Capitão e Eduard, Ottilie. Dessa noite e dessa relação falseada, nascerá um filho cujos olhos serão os de Ottilie e o resto se assemelhará ao Capitão: corpo, cabeça, expressões.

Esse capítulo enfeixa um dos picos climáticos do romance. Não é de estranhar que a recepção da crítica e do público tenha se dividido entre achar a obra ao mesmo tempo moral e imoral.4 4 V. a introdução de Joseph-François Angelloz (GOETHE, 1968, p. 20-49). Imoral por legitimar a atração eletiva entre os seres humanos como na química, a despeito das leis humanas; e moral, pelos mesmos motivos.

A legitimidade da relação entre o casal, sancionada pela sociedade, não é, entretanto, sancionada pelo impedimento moral goetheano agora vigente entre o casal, que é a quebra do laço emocional; impedimento que impõe distância, pois o casal já não se pertence. A noite fatal e a posterior gravidez inesperada de Charlotte representam não o curso normal de uma relação matrimonial, mas aparecem como forças opostas e de entrave à atratividade química, inevitável e natural, no sentido aqui da filosofia da natureza goetheana. O cerne do argumento no livro é que Goethe monta um paradoxo, onde é o próprio leito conjugal o lugar do adultério. Como escreve Paul Stöcklein (1949STÖCKLEIN, Paul. Stil und Sinn der Wahlverwandtschaften. In: ______. Wege zum späten Goethe. Hamburg: Marion von Schröder, 1949., p. 13, tradução minha), "Infiéis na fidelidade, rompendo o laço conjugal no leito conjugal".

A livre manifestação de fortes afinidades, essa força motriz, porém, pode ser encontrada em várias obras de Goethe. Ela representa uma força vital inapelável que impele o sujeito a agir acima do mundo moral da sociedade. Ele a denominava o Daimon, numa acepção particular do sentido usual da palavra. No romance em questão, ela é justificada através da atração exercida pelas afinidades eletivas, denominação da química da época para a atração entre os elementos, sobre a qual Goethe explicitamente faz seus personagens discutir, realizando experimentos químicos.5 5 "Em todos os seres da Natureza observamos primeiramente que eles estão em relação consigo próprios. Pode parecer estranho expressarmos dessa maneira, não obstante somente entendemos completamente o conhecido podemos progredir ao desconhecido" (GOETHE, 1968, I, p. 118, tradução minha), diz o Capitão ao iniciar a discussão sobre as afinidades eletivas na natureza. A água se junta à água mas não ao óleo, e o mercúrio se divide. V. cap. IV. Tal interpretação da atratividade é condizente com a visão científica de Goethe, que buscava leis gerais na diversidade aparentemente caótica dos fenômenos naturais como forma de entender como operava ocultamente a Natureza.6 6 "Natureza" (com maiúscula) para distinguir o caráter filosófico e literário do termo. Idem: "Daimon" e "Destino".

É importante enfatizar uma aproximação entre Goethe e Machado sob o ponto de vista do poder que tem a Natureza de restringir e revelar o comportamento humano. Da natureza tanto como elemento filosófico primordial, como Pandora em Memórias póstumas de Brás Cubas, ou em metonímia, como o mar, elemento provocador de tragédia em Dom Casmurro. A natureza em seu poder de moldar o destino da história humana e individual tem realmente um peso daimônico, fatal, que é constantemente afirmado. Para Goethe, essa conjunção poderosa destrói e elimina o pequeno enclave das limitadas leis humanas.

Igualmente, para Machado, em Dom Casmurro, o poder da natureza de moldar o destino de seus personagens merece ser enfatizado; a ressaca que une Capitu a Escobar, vista sob o mesmo ângulo do daimon e do destino, desencadeia-se enquanto essa força natural, com seu poder de atrair e destruir, e que se sobrepõe às leis societais. A inconspícua lua de mel na Tijuca, que cinge pela primeira vez o casal Bentinho-Capitu, é embalada, circundada pela natureza, mas como se sabe, Capitu, entediada, anseia por sair dela e mergulhar no mundo societal.7 7 "Não lhe bastava ser casada entre quatro paredes e algumas árvores; precisava do resto do mundo também." (ASSIS, 2015b, p. 1007). O casal vai morar numa casa na Glória, pace a ironia da topografia. Se a mata da (então) Tijuca se assemelha ao quarto conjugal do castelo em Goethe, aí temos um exemplo de incongruência afetiva que já está bem longe da afinidade. O prêmio veio tarde demais e os esforços que levaram à sua realização já agora se esvaziaram, pois o investimento erótico, que pode nunca ter existido, agora se assoma com a força inevitável do daimon, rasgando o véu das ilusões matrimoniais. De fato, essa não é uma receita de felicidade conjugal.

Já muito antes no romance, no ousado beijo invertido de Capitu em Bentinho, a espontaneidade do gesto é suspeita. Não se trata da atração inevitável do daimon, essa força centrípeta e unívoca, que carrega o ser para fora de si mesmo. Capitu é sempre um feixe de considerações negociadas em favor de e contra seus desejos. Prudente como Charlotte, ela só se deixa reger pelo daimon em situações extremas, e como Charlotte, luta para controlá-lo, não sem que ambas sofram posteriormente as consequências do destino. Comparemos duas cenas:

Ao encontrar-se na canoa com o Capitão, a noite descendo, o vento impede a canoa de atracar. Próximos da margem menos perigosa, respeitoso, o Capitão toma Charlotte nos braços para depositá-la com segurança em terra firme; a força do daimon entra em ação, eles se beijam.8 8 No mesmo lago artificialmente criado pelo Capitão e idealizado por Eduard, no qual, no fim do livro, Ottilie deixará a criança, filho de Eduard e Charlotte, cair e morrer afogada. A natureza, o daimon e o destino confabulam, mas Charlotte e o Capitão os dominam. Isso não ocorre, porém, sem pesadas consequências, pois o filho de Charlotte com seu legítimo marido Eduard terá as feições do Capitão.9 9 Charlotte representa a oscilação entre lei natural e lei humana, algumas vezes cedendo ao divórcio para depois retroceder. Sua disposição afetiva e emocional é oposta à do marido. O Capitão é o oposto de Eduard: habilidoso, contido, exímio engenheiro.

O par ilegítimo Eduard e Ottilie, que cede à natureza e ao daimon, é destruído pela força da paixão que os leva à morte. Ottilie é personagem regida por forças tectônicas, assim como Capitu o é pela água do mar em seu poder de empuxo: ressaca.10 10 Na mitologia clássica não eram apenas as sereias que atraíam os homens ao fundo do mar, mas também as nereidas. O afogamento que resulta dessa atração inevitável está representado em várias culturas, inclusive no folclore brasileiro, com a Uiara/Iara. Ottilie, cujos olhos não são de ressaca, pois simboliza um elemento tectônico, tem enfraquecido seu poder na água, daí o afogamento da criança, que como todos concordam, possui os mesmos olhos dela, mas não seu poder.

Capitu, que amparava e consolava Sancha no velório de Escobar, no meio da confusão geral "olhou alguns instantes para o cadáver tão fixa, tão apaixonadamente fixa, que não admira lhe saltassem algumas lágrimas poucas e caladas" (ASSIS, 2015b______. Dom Casmurro. In: ______. Obras completas. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2015b. v. I., p. 1025). O cadáver de Escobar

parece que a retinha também. Momento houve em que os olhos de Capitu fitaram o defunto, quais os da viúva, sem o pranto nem palavras desta, mas grandes e abertos, como a vaga do mar lá fora, como se quisesse tragar também o nadador da manhã (ASSIS, 2015b______. Dom Casmurro. In: ______. Obras completas. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2015b. v. I., p. 1026).

A complexa trama do olhar aqui, o ritmo no qual emoção e suspensão buscam se equilibrar, lembra o mesmo momento paradoxal e climático entre o Capitão e Charlotte, sobretudo por sua falência. Arrisco mesmo a dizer que no caso de Machado há a liberação de uma energia que não havia sido plenamente reconhecida anteriormente, uma energia em que as três facetas narrativas desse romance se juntam numa só perspectiva. Ali estão Bentinho, Bento Santiago e Casmurro, os três focos narrativos em prisma, observando a cena. Não teria sido essa a cena primitiva que pode ter dado início ao relato de "catarse" que lemos sob o nome Dom Casmurro? Ali se condensam esses três pontos de vista num só momento trágico e revelador. O que vem depois é a tentativa falha de resgate, reunindo aquelas três facetas numa só. Tarefa impossível.

O gesto/olhar de Capitu ao ver Escobar morto é assim apreendido pelo prisma do foco narrativo tripartite. A vantagem hermenêutica é a de tomar esse momento, e talvez todo o romance como obra regida pelas feições, ou talvez pelo trauma da fisionomia; tal hermenêutica libera igualmente a obra, que pode assim livremente exibir aquela qualidade única: o fato de ser afirmativa e ousadamente desinteressada, como observa Kant (1914KANT, Immanuel. Critique of Judgment. Tradução de John Henry Bernard. London: Macmillan, 1914. Disponível em: <Disponível em: https://archive.org/details/kantscritiqueofj00kantuoft/page/xxiv/mode/2up?q=colour >. Acesso em: 22 de abril de 2022.
https://archive.org/details/kantscritiqu...
). Ao mesmo tempo, ela também auxilia a reinterpretar o foco narrativo do romance, promovendo uma liberação interpretativa condizente com o aspecto multifacetado dele; um foco narrativo subjetivamente episódico e fragmentado, em vez de meramente inconfiável.11 11 Essa leitura é condizente e complementar com a interpretação que faço desse romance enquanto narrativa episódica e que desenvolvi em Variações sob a mesma luz: Machado de Assis repensado. V também "Against Narrativity", de Galen Strawson.

Sabe-se que um dos pontos candentes da controvérsia adulterina entre Bentinho, Capitu e Escobar se revela nas feições e na linguagem corporal de Ezequiel. O problema da crítica de "tribunal", centrada na culpa/inocência de Capitu, não é fundamentalmente um problema hermenêutico, mas de julgamento extrínseco. Por isso, quero apresentar alguma reflexão quanto à atratividade do que, por falta de melhor termo, vou chamar de "hermenêutica das feições"12 12 Não encontrei nos volumes críticos dedicados ao estudo da fisionomia em literatura algo satisfatório no sentido de abarcar o que estou propondo neste artigo. Isso implica o reconhecimento de uma intenção textual que opera através da e pela linguagem literária, mas que, ao mesmo tempo, está estritamente subentendida nela. Algo como o gestual do teatro ou da ópera; gestos e olhares que complementam o texto e a ação sem separar-se deles. para dar conta de alguns elementos textuais que, ao que me parece, reúnem Machado de Assis, Goethe e Hoffmann, e, se possível, ampliar as perspectivas críticas que com isso se abrem; afinal, a aquisição de feições denunciadoras é um poderoso recurso ficcional, e como tal, magistralmente bem empregado pelos autores mencionados. No caso em questão, a aproximação entre eles se dá por coincidências entre os três, que merecem ser comentadas.

Nas ocasiões nas quais vem à tona a semelhança do bebê de Eduard e Charlotte com o Capitão e Ottilie, os contextos indicam que não se trata de impressão subjetiva, mas um fato objetivamente reconhecido por gente de fora. Para não deixar dúvidas quanto a isso, Goethe faz questão de trazer dois convidados de fora, ingleses interessados em ciência (inclusive magnetismo), que ficam espantados com o fenômeno que veem na criança:

Via-se nele uma criança admirável, um prodígio [prodige/Wunderkind] […] e o que causava mais surpresa ainda era essa dupla semelhança [double ressemblance/doppelte Ähnlichkeit] que se desenvolvia sempre mais. Para os traços do rosto, o conjunto das formas, a criança era sempre cada vez mais a imagem do Capitão; os olhos sempre se distinguiam cada vez menos dos olhos de Ottilie. (GOETHE, 1870______. Les Affinités électives. In: ______. Poëmes et romans de Goethe. Tradução de Jacques Porchat. Paris: Hachette, 1870. p. 335- Disponível em: <https://books.google.com/books?id=WiZMAQAAMAAJ&pg=PP9&lpg=PP9&dq=goethe+traduction+par+Jacques+Porchat+Hachette+1869+V&source=bl&ots=_k0aMkrT_w&sig=ACfU3U1fZJrHcCtsHAFmGtx0yfnqQFffrQ&hl=en&sa=X&ved=2ahUKEwigw4_AiJn1AhXtHDQIHSb8BrAQ6AF6BAgDEAM#v=onepage&q=affinit%C3%A9s&f=false>. Acesso em: 21/5/22
https://books.google.com/books?id=WiZMAQ...
, p. 540, tradução minha)13 13 Faço aqui o cotejo entre o texto alemão (GOETHE, 1968) e a versão francesa que Machado possuía (GOETHE, 1870), inserindo dentro do texto os termos correspondentes em alemão e em francês.

Da mesma maneira, ao olhar o filho pela primeira vez,14 14 O comentário de Eduard se explica, pois ele havia se afastado de seu castelo, da mulher, Charlotte, e de Ottilie e se alistado no exército. A cena comentada o faz encontrar pela primeira vez o filho nos braços de Ottilie. num encontro secreto com Ottilie, que está passeando com o bebê, Eduard se espanta e exclama que se "pudesse duvidar de minha mulher e de meu amigo, esse rosto seria contra eles um testemunho terrível. Esses traços, não são eles os do major?15 15 O Capitão, depois de também ter partido para a guerra, é promovido, por sua bravura, a major. Nunca jamais vi uma tal semelhança", ao que Ottilie replica: "Entretanto não! Todo o mundo assegura que ele se parece comigo" (GOETHE, 1870______. Les Affinités électives. In: ______. Poëmes et romans de Goethe. Tradução de Jacques Porchat. Paris: Hachette, 1870. p. 335- Disponível em: <https://books.google.com/books?id=WiZMAQAAMAAJ&pg=PP9&lpg=PP9&dq=goethe+traduction+par+Jacques+Porchat+Hachette+1869+V&source=bl&ots=_k0aMkrT_w&sig=ACfU3U1fZJrHcCtsHAFmGtx0yfnqQFffrQ&hl=en&sa=X&ved=2ahUKEwigw4_AiJn1AhXtHDQIHSb8BrAQ6AF6BAgDEAM#v=onepage&q=affinit%C3%A9s&f=false>. Acesso em: 21/5/22
https://books.google.com/books?id=WiZMAQ...
, p. 549, tradução minha, grifo meu).

Nesse momento a criança abre os olhos e Eduard também verifica a semelhança apontada objetivamente por todos. A explicação de Eduard ao encontrar seu filho pela primeira vez é sintomática. Para ele a criança, mesmo a despeito dos olhos de Ottilie, não passa de uma criatura que denuncia uma falta grave. A criança é apenas símbolo de uma falta grave:

Deixe-me jogar um véu na hora fatal que deu nascimento a este ser. Será que eu deveria espantar tua alma pura com o pensamento infortunado de que, tornados estranhos um ao outro, o homem e a mulher podem, em seus abraços, profanar por seus desejos ardentes um laço legítimo! Mas sim, […] já que meu casamento com Charlotte deve ser rompido, já que tu deves ser minha, por que não dizê-lo! Por que não pronunciar essa dura palavra: essa criança nasceu de um duplo adultério. (GOETHE, 1870______. Les Affinités électives. In: ______. Poëmes et romans de Goethe. Tradução de Jacques Porchat. Paris: Hachette, 1870. p. 335- Disponível em: <https://books.google.com/books?id=WiZMAQAAMAAJ&pg=PP9&lpg=PP9&dq=goethe+traduction+par+Jacques+Porchat+Hachette+1869+V&source=bl&ots=_k0aMkrT_w&sig=ACfU3U1fZJrHcCtsHAFmGtx0yfnqQFffrQ&hl=en&sa=X&ved=2ahUKEwigw4_AiJn1AhXtHDQIHSb8BrAQ6AF6BAgDEAM#v=onepage&q=affinit%C3%A9s&f=false>. Acesso em: 21/5/22
https://books.google.com/books?id=WiZMAQ...
, p. 550, tradução minha, grifo meu).

Eduard prossegue dizendo que a criança na verdade o separa de Charlotte em vez de os unir. O que se segue é uma série de fatalidades, e Ottilie, pondo a criança no barco para voltar ao castelo, deixa que ela caia na água e morra afogada.16 16 Não seria o lugar de comentar aqui o estranho comportamento de Ottilie com relação a essa criança, e que já foi apontado pela crítica pelo inusitado da situação. Em outro momento, Goethe narra que Ottilie passeia com a criança ao colo, simultaneamente lendo um livro (!). No barco, ela confunde o remo com a criança e esta cai na água sem maior explicação. O componente demônico e ctônico de Ottilie não estaria aí sendo reforçado?

A disposição de Eduard com relação ao filho ilumina a de Bento Santiago, embora, no caso da obra de Machado, a amargura de uma vida de desilusão, como a de Casmurro, seja mais dura do que a cega paixão de Eduard. Teria um ato adulterino dentro do casamento, por parte de Capitu, gerado as feições denunciadoras de Ezequiel?17 17 No capítulo CXVII, conversando a respeito dos filhos de ambos os casais, que passavam "dias, ora no Flamengo, ora na Glória", Sancha observa que "até já se iam parecendo", ao que Bento observa: "Não; é porque Ezequiel imita os gestos dos outros". Em seguida temos a seguinte observação de Escobar: "Escobar concordou comigo e insinuou que alguma vez as crianças que se frequentam muito acabam parecendo-se umas com as outras" (ASSIS, 2015b, p. 1021, grifos meus).

Mesmo levando-se em conta a hipótese dos gestos e das feições "imitativos" no caso de Ezequiel, não seria essa atribuição de imitação uma tentativa de explicar o inexplicável? Ou aquilo que se quer calar? Não seriam as feições a causa da atribuição da imitação, e não o contrário? O mal-estar de todos diante das "imitações" de Ezequiel pode esconder questões que nenhuma das personagens ousa se perguntar, sequer responder. Daí o recurso ao que me parece uma saída pela tangente.

Mas, se no romance de Goethe é explicitada a objetividade da semelhança e do adultério dentro do casamento, no caso de Dom Casmurro, o incômodo de todos com as imitações de Ezequiel, e o estranho procedimento de José Dias em sua insistência com a expressão "filho do homem" parece criticamente "resolvido" com o recurso vale-tudo do narrador não confiável (cap. CXVI). Mais difícil de justificar pela inconfiabilidade é o afastamento de D. Glória para com Capitu e a cessação das visitas, o que centra o desenvolvimento da relação entre as duas num eixo objetivo (tal como a observação dos visitantes ingleses em Goethe) que não pode facilmente ser adicionado à conta já grande da inconfiabilidade do narrador sem diminuir a força estética do romance e comprometer seu autor em mediocridade. Afinal, é atribuir a Machado uma falta de imaginação sem par, acreditar que ele tenha escrito essa obra como uma galeria de espelhos deformantes. Assim como Goethe, Machado manipula tanto os eixos subjetivos quanto os objetivos em sua narrativa.

Lendo a infidelidade nas feições

Johann Kaspar Lavater era dotado de uma acurada percepção psicológica associada a uma capacidade de observação que sintetizava minuciosamente os traços da fisionomia e do caráter, fornecendo uma detalhada e sofisticada descrição da personalidade do analisado. Mesmo tendo se distanciado do fanático pastor, Goethe, em Dichtung und Wahreit______. Dichtung und Wahrheit. Disponível em: <https://www.projekt-gutenberg.org/goethe/dichwah2/chap011.html>. Acesso em: 23/5/22
https://www.projekt-gutenberg.org/goethe...
(v. 4, livro 19), não deixa de reproduzir com admiração parte da análise que Lavater lhe havia feito. Nessa leitura e interpretação, pode-se argumentar que haja muito do que hoje se denomina cold Reading, sem que por isso tenhamos que qualificar o então famoso pastor de charlatão. Lavater era pessoa de rígido código de ética e fanaticamente religioso, razão inclusive pela qual Goethe, que o admirava, se afastou do pastor, que queria convertê-lo à força. Goethe no romance, também faz uso do magnetismo como recurso simbólico e literário, embora achando Mesmer um charlatão; e o faz para enfatizar a relação demônica entre as forças tectônicas e psíquicas em Ottilie.

Goethe usa das possibilidades ficcionais que a ciência da época oferecia, e estende ainda mais a suspensão de incredulidade do leitor com a proposta desse bebê nascido do pecado entre o casal casado, e vai ainda mais longe, pois ao dar ao bebê as características dos amantes traídos pelo casal casado, estabelece, como nas tragédias gregas, uma falha trágica, uma hybris, que desequilibra a lei suprema do amor e só pode acabar na morte e punição dos infratores. O magnetismo experimentado por Ottilie transforma-a em objeto tabu, e acaba sendo um dos fatores que a leva à morte.18 18 Loisa Nygaard (1988) atribui isso a fatores intratextuais. O magnetismo em Hoffmann aparece bastante criticado (v. Der Magnetiseur, publicado em Fantasiestücke in Callots Manier). A seleção foi publicada anonimamente em 1814. Foi a tradução para o francês que mudou "fantasia" para "fantástico" na edição de 1829 (Contes fantastiques), com isso criando o "fantástico" com o qual Hoffmann e imitadores serão identificados.

E não é isso o que sucede em Dom Casmurro? Machado também se rende ao paradigma, e como enfatizei em outro lugar, a relação estreita entre Machado e o teatro que se manifesta soberana em seus romances fornece ao autor tais possibilidades de falha trágica que se manifestam corporalmente na fisionomia denunciadora de Ezequiel.

Tais coincidências me levam a reavaliar Dom Casmurro sob a luz da hipótese goetheana das afinidades eletivas. Em Goethe, quando vence o daimon, a paixão destrói (WIESE, 1949WIESE, Benno von. Das Dämonische in Goethes Weltbild und Dichtung. Münster: Aschendorff, 1949.).

Em Dom Casmurro, o par Capitu e Escobar também sucumbe, unido pelos olhos de ressaca de Capitu e a ressaca das ondas do mar. Como em Goethe, a Natureza, no romance, determina o empuxo contrário das forças demônicas. Como Ottilie, Escobar morre na água. Dom Casmurro, em sua faceta Bento Santiago, resiste ao olhar de Sancha, outra afinidade eletiva na qual o daimon não vence. O único personagem n'As afinidades eletivas que representa a sanção social no romance é Mittler ("mediador"), nome apropriado, pois era conhecido por sua mediação para impedir separações de casais. Figura moral e moralizadora, Mittler apenas desencadeia tragédias. Por causar a morte de Ottilie, é a origem, em consequência, da morte de Eduard.

Tal comparação enriquece aspectos pouco discutidos de Dom Casmurro, sobretudo desde que a hipótese da inocência e da vitimização de Capitu tomou pé, obscurecendo alguns fatores cruciais, dentre os quais a possibilidade de seu desejo por Escobar, uma afinidade correspondente ao demonismo goetheano. Admitir que a afinidade entre ela e Escobar existiu e gerou efeitos obriga também a repensar a fisionomia de Ezequiel e sua semelhança com Escobar. É preciso retomar a ideia de que tal semelhança não é apenas projeção ou insanidade de um narrador não confiável, mas leva o problema para o da complexidade paradoxal do caso do bebê de Eduard e Charlotte, concebido pela transgressão entre dois seres legitimamente unidos mas em união, uma ilegítima e consensual infidelidade.

Essa ousadia, em Goethe, causou perplexidade à crítica e ao público e o autor foi acusado de ter introduzido elementos do fantástico na obra, ou de ter falhado no bom-tom, introduzindo um elemento grotesco com a semelhança do bebê aos amantes.19 19 A recepção crítica da obra variou enormemente. V. Goethe's Elective Affinities and the Critics, de Astrida Orle Tantillo, e a introdução de Joseph-François Angelloz ao volume bilíngue alemão/francês. Mas, mesmo admitindo-se que o fantástico tenha sido empregado para realçar os elementos cruciais do romance, o fato é que o bebê é o objeto concreto que reúne elementos difíceis de serem digeridos pelas normas sociais que exigem a congruência entre o casamento sancionado e as afinidades eletivas. Mais que isso, tais congruências devem ser permanentes e indissolúveis. Porém, tanto na união entre Eduard e Charlotte quanto na da faceta Bento Santiago e Capitu, as coisas não se passam exatamente desse jeito. Eduard e Charlotte haviam se conhecido e se apaixonado quando jovens, mas separaram-se, vindo a se unirem posteriormente, na maturidade, na ilusão de reviverem o passado. A relação entre a faceta Bentinho e Capitu é de sedução por parte de Capitu, mas não necessariamente de afinidade. Uma vez casados e passando a lua de mel na Glória, o tédio se instala.

A escolha do foco na fisionomia dos filhos, tanto em Goethe quanto em Machado, põe em relevo o nódulo moral complexo que ambos os autores apresentam. Como dito acima, há duas leis, a do demonismo da afinidade eletiva, e a da sanção da sociedade, mas para Goethe, de forma mais direta e desafiadora, é a sanção da sociedade que se torna imoral, pois legitima o ilegítimo no ato de infidelidade praticado pelo casal. As feições do bebê denunciam esse ato de transgressão emocional, desmascarando aos olhos de todos, inclusive deles mesmos, a hipocrisia de uma relação vazia. Em Machado é absolutamente dispensável a especulação quanto ao adultério cometido ou não, pois é, igualmente, a fisionomia do filho que determina e "resolve" a equação química.

Na insistente interpretação estreita de um Machado apegado a uma visão realista isso incomoda e tenta-se explicar o fato seja defendendo Capitu, seja culpando o narrador Casmurro. Vejo, em ambas as obras, uma inversão irônica do paradigma cristão tal como apresentado no Evangelho de Mateus: "Ouviste o que foi dito aos antigos: Não cometerás adultério. Eu, porém, vos digo: todo aquele que lançar um olhar de cobiça para uma mulher já adulterou com ela em seu coração" (5, 27-28).

Mas, diferentemente da opinião de Cristo, Goethe e Machado lançam outras possibilidades, dentre as quais, a fidelidade do coração dos amantes praticando a infidelidade de corpos dentro de relações sancionadas socialmente.

Pode-se até mesmo admitir nessa virada de paradigma algo da ordem da magia simpática. As superstições que envolvem crianças nascendo com marcas corporais de animais (lobos, botos etc.) "explicam" tais caracteres corporais ou fisionômicos através dos desejos da mãe ou de um encontro fortuito com alguma força extraordinária ou inexplicável.20 20 Knut Hamsum, em Growth of the Soil, faz Inger, que nasceu com lábio leporino, atribuir o nascimento de sua primeira criança, que também nasce com lábio leporino, ao lapão que lhe oferece uma lebre morta. Para vários exemplos de magia simpática, v. o capítulo III de The Golden Bough, de James George Frazer.

Entre idênticos: gêmeos e duplos

O contato de Machado com o conto fantástico de Hoffmann se deu através das mutiladas versões francesas feitas por Loève-Veimars. Como indica Elizabeth Teichmann (1961TEICHMANN, Elizabeth. La Fortune d'Hoffmann en France. Genève: E. Droz, 1961.), os primeiros contos de Hoffmann foram publicados primeiro em revistas como a Revue de Paris, o Journal des Débats, o Mercure de France, a Revue de Deux Mondes a partir de 1828,21 21 Os contos e artigos sobre Hoffmann apareceram em toda a parte. Em La Mode, Revue de Paris, Le Courrier, Le Globe, Le Temps. Seria impossível que Machado não os tivesse lido. todas publicações às quais Machado de Assis tinha acesso. A primeira seleção em livro foi feita em 1829, por Loève-Veimars, e publicada sob o título de Contes fantastiques.22 22 Loève-Veimars corta trechos, introduz interpolações, erros, e muda o título dos contos. Mesmo assim, Hoffmann conheceu sucesso inigualável na França. A tradução de Henri Egmont, conscienciosa, nunca encontrou editor que a publicasse, pois ele se recusou a cortar trechos e diluir o estilo original (TEICHMANN, 1961). Hoffmann era reconhecido na França como o inventor do gênero conto fantástico, ao qual imediatamente se dedicou uma coorte de escritores franceses, mais ou menos bem sucedidos.23 23 Teichmann (1961, p. 79) cita as críticas à tradução feitas por Théophile Gautier, e a tradução de dois capítulos de "As aventuras da noite de São Silvestre" por Gérard de Nerval.

Jean-Pierre Castex, ao comentar a moda do fantástico na França, não deixa de brevemente indicar o contexto das artes visuais e da música, o sucesso do violinista Paganini tanto pelo virtuosismo "diabólico" quanto pelas suas características físicas.24 24 "Personagem longe e magro, de rosto pálido, cabelos negros, nariz aquilino, fulgurantes meninas dos olhos […] sua técnica fascinante fazia o resto" (CASTEX, 1982, p. 59, tradução minha). Castex, entretanto, não comenta o pastiche de Jacques Offenbach, a ópera Les Contes d'Hoffmann, que obteve grande sucesso, e é mencionada duas vezes em Esaú e Jacó.25 25 O libreto dessa ópera distorce ainda mais a obra e o autor, apresentando-o boêmio, permanentemente inebriado de punch nas tavernas alemãs. Os títulos dos contos em francês são aleatórios, tornando a identificação com os originais difícil. Um exemplo: "Rat Krespel" [O conselheiro Krespel] em francês é intitulado "Le Violon de Crémone" [O violino de Cremona].

Embora o fantástico tenha sido amplamente empregado por Machado, o autor se refere a Hoffmann uma vez apenas, no conto "Os óculos de Pedro Antão". O conto interessa porque, ao reconhecer a presença de Hoffmann em sua vida ficcional, Machado ali tece uma interessante reflexão quanto à composição de seu modo de operação ficcional.26 26 Sintomaticamente, no conto, Machado de Assis chama E.T.A. Hoffmann de "Teodoro", forma traduzida do francês, pois assim o escritor era chamado naquele país. "Apenas vimos sobre uma mesa um cachimbo alemão, que necessariamente devia ter pertencido ao cavaleiro Teodoro Hoffmann, pois a sua forma era de todo fantástica." (ASSIS, 2015d, p. 1204). O conto propõe duas leituras simultâneas; uma versão "fantástica" que busca reconstruir os acontecimentos da vida de Pedro Antão a partir dos indícios por ele deixados ao sobrinho, e uma realista na qual, a cada voo da fantasia, a realidade prosaica explica o mistério. O conto não pode existir sem uma nem outra versão, pois ambas se complementam, o que, aliás, ocorre igualmente nos contos de Hoffmann. Ali, a trama elaborada por Pedro, o amigo de Mendonça, para explicar as pistas deixadas por outro Pedro, o tio de Mendonça depois de morto, constituem um enredo dentro do enredo.27 27 Para não dizermos nada desses dois Pedros que aparecem no conto: o tio, Pedro Antão, morto, e o narrador Pedro, amigo do sobrinho do Pedro morto. O conto se desenvolve em duas direções opostas e supostamente irreconciliáveis, pois, à medida que as pistas misteriosas deixadas por Pedro vão se revelando cada vez menos dignas de um conto fantástico, ao mesmo tempo são elas o material sem o qual o conto não poderia ser escrito. Assim, o conto é e não é fantástico. Mas, esse processo, Machado o emprega igualmente em outras instâncias.28 28 Um exemplo está em Quincas Borba no episódio envolvendo o cocheiro que assumindo momentaneamente a narração, conta a Rubião um conto misterioso sobre um suposto encontro secreto, e que alimenta o ciúme do protagonista, com relação a Sofia e Carlos Maria, projetando-o cada vez mais à derrocada final na demência. Os capítulos LXXXIX, XC, XCVII desenvolvem a trama. Depois de alimentar no leitor as suspeitas de Rubião, o capítulo CVI, dirigido ao leitor, desmascara a armação fantástica que tecera.

Quero enfatizar com isso o que me parece o uso do fantástico hoffmanniano em Machado, aquele que irrompe no meio da "realidade normal" e revira de maneira fatal a vida de uma personagem, tal como o bebê de Goethe. Em Esaú e Jacó, Flora é incapaz de separar Pedro e Paulo, idênticos, mas igualmente incapaz de juntá-los, visto que o desenho que primeiro esconde e depois mostra ao conselheiro Aires não passa de um esboço inacabado, que Aires logo rasga (tentando talvez separá-los e salvar Flora?). Igualmente Ezequiel irrompe na vida de Bento Santiago, que, reagindo como Bentinho, acaba em Casmurro. O controle do volume do fantástico em Machado é nesses e em outros exemplos calibrado para gerar o máximo de desestabilização sem sofrer as consequências de tal desestabilização. Como dito acima, essa ossatura é muito bem exposta no conto dos óculos de Pedro Antão.

Machado, ao buscar descoser e desfiar o tecido que tece as narrativas fantásticas, igualmente as reafirma. Com seu característico understatement, Machado transfere elementos do fantástico para narrativas supostamente realistas, como com Brás Cubas defunto autor e não autor defunto, Pandora-Natureza, a poderosa imagem da ressaca em Dom Casmurro. É essa técnica de atenuação uma das ferramentas mais atraentes do estilo machadiano.

Há algo intrigante entre Dom Casmurro, Esaú e Jacó e a novela "Der Doppeltgänger" [O duplo], de Hoffmann. Da mesma maneira, essa mesma novela tem pontos de contato importantes com As afinidades eletivas. Em todas essas obras, as feições e as fisionomias são elementos que parecem irromper do nada, "inauditos", mas que podem ocorrer, como se expressou Goethe, e, quando irrompem na narrativa, parecem conjurar todas as forças ocultas que estão à espreita, esperando ser chamadas a sinalizar o que não pode ser dito ou reconhecido pelas personagens que vivem seus dramas: a natureza, o destino, o daimon. Por mais que Goethe criticasse a nova geração de "românticos" (leia-se Hoffmann), o uso que faz de elementos fantásticos em toda a sua obra indica que para o autor os elementos "inauditos" são amplamente necessários, como o eram para o próprio Hoffmann, aliás. O "fantástico" em Hoffmann é primordialmente um acontecimento real; ele intensifica respostas psicológicas, mas, em geral, é parte do mundo objetivamente reconhecido enquanto tal pelos personagens dentro da estória. Com essa perspectiva em mente, pode-se dizer igualmente que o fantástico em Dom Casmurro combina elementos objetivos e subjetivos de maneira a desfamiliarizar a narrativa mas não a realidade nela contida.

Teria Machado de Assis lido "Der Doppeltgänger"? A novela foi publicada com o título "Ménechemes"29 29 Em alusão à peça de Plauto, Menaechmi. No entanto, o título se aplica mal à estória, pois a comédia de Plauto trata de irmãos gêmeos e não de Duplos. É o inexplicável do Duplo que atrai. Shakespeare joga com as duas possibilidades em The Comedy of Errors, mas, sendo uma comédia, tudo se explica no final. A notar que em Esaú e Jacó, é Flora que é caracterizada como inexplicável pelo conselheiro Aires. no tomo XVIII da tradução de Loève-Veimars, intitulado Contes et fantaisies, publicado em 1833.

Não é possível assegurar que Machado tivesse ou não lido a novela, entretanto o que intriga são pontos de conexão entre as tramas de "Der Doppeltgänger" e Esaú e Jacó. Nos dois casos também, como em Goethe, a trama se desenvolve entre fisionomias idênticas. Em Hoffmann, o tema do duplo; em Machado, os gêmeos, uma forma "realista", atenuada, do duplo.

Em Hoffmann, a semelhança entre os duplos se dá exatamente segundo os mesmos paradigmas d'As afinidades eletivas. É o filho da princesa Angela30 30 Preservo o nome em alemão, sem circunflexo. que nasce com as feições do conde Törny, denunciando assim, ao marido desta, a afinidade eletiva (mas igualmente casta) entre o conde e a princesa. Também nesse caso, a coincidência de feições é inexplicável pelos caminhos da razão, mas se justifica pelas afinidades que residem além da razão. Como afirmei em nota anterior, no caso de Esaú e Jacó, se as feições de Pedro e Paulo são plenamente explicáveis por serem gêmeos, resta a Flora, que não pode escolher entre os dois, a qualificação de inexplicável feita pelo conselheiro Aires, pois ela tenta fundi-los num esboço inacabado que o conselheiro, por sua vez, busca posteriormente separar, rasgando o desenho.

Como se vê, o clímax centrado no tema das fisionomias idênticas, que tanto em Goethe quanto em Hoffmann denunciam a afinidade amorosa real mas casta entre os pares maritalmente separados, é também empregado por Machado. Tanto em "Der Doppeltgänger" quanto em Esaú e Jacó, o dénouement da trama amorosa envolvendo as duas figuras masculinas - os duplos, em Hoffmann, e os gêmeos, em Esaú e Jacó, termina na impossibilidade da escolha pela figura feminina, em posição de terceiro elemento: Natalie em "Der Doppeltgänger" e Flora em Esaú e Jacó. Natalie, não podendo escolher entre Georg e Deodatus, verdadeiros doppeltgänger um do outro, heroicamente desiste de seu amor impossível, aparecendo ao fim da estória como o elemento transcendente que, afinal, elimina a rivalidade entre Deodatus e Georg.

Instada insistentemente a escolher entre os dois-Entscheide, Natalie, entscheide [Escolha, Natalie, escolha] -, ela em desespero assim se expressa: "Justo Deus, a quem, a quem, dentre os dois, amo eu? - Não está o meu coração dividido, e ainda assim amo? Justo Deus - deixa-me morrer, morrer neste instante" (HOFFMANN, 1985HOFFMANN, E.T.A. Die Doppeltgänger. In: ______. Gesammelte Werke in Einzelausgaben. Berlin: Aufbau-Verlag, 1985. v. 8., p. 321, tradução minha).

E em gesto desesperado, ajoelhando-se e em "tom penetrante e de cortar o coração de tanta dor", diz: " Renuncio". Ao que a princesa com uma "transfigurada” [verklärter] exaltação replica: "É o Anjo da eterna luz, ele mesmo, que fala através de ti" (HOFFMANN, 1985HOFFMANN, E.T.A. Die Doppeltgänger. In: ______. Gesammelte Werke in Einzelausgaben. Berlin: Aufbau-Verlag, 1985. v. 8., p. 321, tradução minha).

Natalie exclama: "Estou grata, estou grata, ó eterno poder dos Céus, que tudo tenha terminado" (HOFFMANN, 1985HOFFMANN, E.T.A. Die Doppeltgänger. In: ______. Gesammelte Werke in Einzelausgaben. Berlin: Aufbau-Verlag, 1985. v. 8., p. 321, tradução minha). É o fecho, a renúncia de corpo e alma que não ocorre com Flora, que funde as figuras dos gêmeos num só ser imaginário, impossível e inexistente. Sem renunciar em seu coração, como o faz Natalie, Flora definha e morre.

Em Esaú e Jacó, os irmãos são gêmeos idênticos; em Hoffmann, o filho gerado pela princesa Angela, Georg, dentro do matrimônio, tem os mesmos inexplicáveis traços do Conde Törny, e nesse sentido lembra o caso de Ezequiel. As consequências dessa semelhança inusitada condensam, como em Dom Casmurro, as suspeitas do marido, o que o leva a exilar esposa e filho, e afastar o Conde Törny, primeiro-ministro de seu reino, que também tivera um filho da mesma idade, com sua esposa legítima. No mundo da justiça poética hoffmanniana, entretanto, a peripeteia final revela que na verdade, a princesa havia criado, em vez de seu próprio filho, Georg, o filho de seu verdadeiro amor, o conde Törny, que havia sido trocado.

A questão da paternidade na novela é explícita, tal como em Goethe, e não deixa dúvidas quanto à fidelidade tanto de Angela, em Hoffmann, quanto de Charlotte, em Goethe. Novamente, o recurso provoca uma comparação com Dom Casmurro. Em Dom Casmurro, como observado anteriormente, é o distanciamento da família de Bento Santiago que marca sutilmente o reconhecimento da semelhança com Escobar. Em Hoffmann, a princesa é levada a um castelo e torre distantes. Capitu vai morar com o filho na Suíça com criados.

Se Dom Casmurro é uma faixa de Möbius, na qual o dentro está fora e o fora está dentro, a narrativa de Casmurro tem que ser validada a partir de um trauma real. É aí que o elemento fantástico faz maravilhas por Machado de Assis, como o fez para Goethe (sem que este reconhecesse inteiramente sua adesão ao recurso) e para Hoffmann.

E mais: o recurso de Hoffmann de empregar uma pluralidade de focos narrativos numa mesma estória, como discutido acima, pode iluminar também a sutileza com que Machado empregou os mesmos recursos em todos os seus romances, tal como dito acima sobre Esaú e Jacó.

Embora não possa elaborar aqui mais detalhadamente esse ponto, vejo em Dom Casmurro o recurso originalíssimo de estender a pluralidade de focos narrativos dentro da aparência de um só narrador. Assim, temos as facetas Bentinho, Bento Santiago e Casmurro que tecem os fios da narrativa mudando o foco narrativo à medida em que um ou outro desses três toma a si a tarefa de recontar-se. Essa perspectiva me parece muito mais rica de consequências para uma interpretação dos pontos-chave do livro do que o lugar-comum proporcionado pelo recurso batido do narrador não confiável.

Talvez até mesmo a instabilidade narrativa presente em Machado possa ser lida como uma exploração do foco narrativo que já havia sido iniciada por Hoffmann, para quem a troca de foco narrativo em meio a uma novela ou conto é bastante comum.

Pode ser que seja isso o que ocorre em Esaú e Jacó. Não um experimentalismo faulkneriano avant la lettre mas a desestabilizadora manipulação do foco narrativo hoffmanniano: romântica. O narrador de Esaú e Jacó é dividido. Entre os papéis deixados pelo conselheiro Aires, consta misteriosamente o manuscrito do livro. Entretanto, um narrador externo, no mesmo livro, revela que Aires morreu no capítulo XIX. Ali, Natividade, fazendo quarenta anos, em discurso indireto livre, com alívio pensa que ainda continua viva.

O cabo das Tormentas converteu-se em cabo da Boa Esperança, e ela venceu a primeira e a segunda mocidade […]. Não negaria que alguma lufada mais rija pudera levar-lhe a vela do traquete, como no caso de João de Melo, ou ainda pior no de Aires, mas foram bocejos de Adamastor. (ASSIS, 2015c______. Esaú e Jacó. In: ______. Obras completas. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2015c. v. I., p. 1073, grifos meus).

Ora, a vela do traquete é a vela principal de uma embarcação. Se tombada, a embarcação soçobra. Da mesma maneira em "Os óculos de Pedro Antão", o narrador Pedro se desdobra e a certa altura, em seu diálogo com o amigo, Mendonça deixa escapar:

O leitor facilmente calculará…

¬ Que leitor?

¬ Foi engano. Quero dizer que tu facilmente calcularás as emoções do namorado […] (ASSIS, 2015d______. Os óculos de Pedro Antão. In: ______. Obras completas. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2015d. v. II., p. 1222)

A profusão de focos narrativos em Hoffmann é uma de suas características mais atraentes, e não foi preciso esperar pelo experimentalismo das obras do início do século XX para apreciarmos o grau de suspensão e instabilidade que tal recurso criou. Certamente, o conhecido efeito de desfamiliarização, e de estranhamento, é uma das características mais marcantes da obra do autor. Muito disso é consequência do cambiamento de foco narrativo. É preciso reconhecer a dimensão que esse fantástico romântico tem em Machado de Assis, em contrapelo ao viés sociologizante que privilegia uma visão idealizada da literatura como "retrato" da sociedade, como se a obra de literatura fosse produto subserviente de uma realidade empiricamente demonstrável. A assim chamada realidade longe de estar empiricamente estiolada, é, contudo, efeito de um discurso cultural que a amolda e do qual a literatura é parte integrante e formadora.

Os diversos usos que faz Machado dos recursos do fantástico abrem possibilidades para o aprofundamento hermenêutico de sua obra, reconhecendo tanto o impacto quanto a amplitude das leituras que entraram na elaboração da complexa obra machadiana. Em seus romances e muitos contos, Machado de Assis camuflou tais dimensões, diminuindo seu tom a quase um sussurro, mas elas florescem plenamente em lugares proeminentes de sua obra e são absolutamente atuantes e necessárias à sua ficção.

Referências

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  • ______. Dom Casmurro. In: ______. Obras completas. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2015b. v. I.
  • ______. Esaú e Jacó. In: ______. Obras completas. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2015c. v. I.
  • ______. Os óculos de Pedro Antão. In: ______. Obras completas. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2015d. v. II.
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  • ______. Les Affinités électives. In: ______. Poëmes et romans de Goethe. Tradução de Jacques Porchat. Paris: Hachette, 1870. p. 335- Disponível em: <https://books.google.com/books?id=WiZMAQAAMAAJ&pg=PP9&lpg=PP9&dq=goethe+traduction+par+Jacques+Porchat+Hachette+1869+V&source=bl&ots=_k0aMkrT_w&sig=ACfU3U1fZJrHcCtsHAFmGtx0yfnqQFffrQ&hl=en&sa=X&ved=2ahUKEwigw4_AiJn1AhXtHDQIHSb8BrAQ6AF6BAgDEAM#v=onepage&q=affinit%C3%A9s&f=false>. Acesso em: 21/5/22
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  • WIESE, Benno von. Das Dämonische in Goethes Weltbild und Dichtung. Münster: Aschendorff, 1949.
  • 1
    Machado de Assis possuía as obras de Goethe em alemão e a versão em francês, por Jacques Porchat, das Obras completas. Cito neste artigo tanto o volume bilíngue Die Wahlverwandtschaften/Les Affinités électives, cuja tradução foi feita por Joseph-François Angelloz (GOETHE, 1968GOETHE, Johann Wolfgang von. Die Wahlverwandtschaften/Les Affinités électives. Tradução e introdução de Joseph-François Angelloz. Ed. bilíngue alemão-francês. Paris: Aubier Flammarion, 1968. 2 v.), quanto a edição francesa anteriormente mencionada (GOETHE, 1870______. Les Affinités électives. In: ______. Poëmes et romans de Goethe. Tradução de Jacques Porchat. Paris: Hachette, 1870. p. 335- Disponível em: <https://books.google.com/books?id=WiZMAQAAMAAJ&pg=PP9&lpg=PP9&dq=goethe+traduction+par+Jacques+Porchat+Hachette+1869+V&source=bl&ots=_k0aMkrT_w&sig=ACfU3U1fZJrHcCtsHAFmGtx0yfnqQFffrQ&hl=en&sa=X&ved=2ahUKEwigw4_AiJn1AhXtHDQIHSb8BrAQ6AF6BAgDEAM#v=onepage&q=affinit%C3%A9s&f=false>. Acesso em: 21/5/22
    https://books.google.com/books?id=WiZMAQ...
    ). Ao citar da obra bilíngue, acrescento o número do tomo e traduzo do alemão.
  • 2
    V. TYTLER, 1982TYTLER, Graeme. Physiognomy in the European Novel: Faces and Fortunes. Princeton: Princeton University Press, 1982.; RIVERS, 1994RIVERS, Christopher. Face Value: Physiognomical Thought and the Legible Body in Marivaux, Lavater, Balzac, Gautier, and Zola. Madison: University of Wisconsin Press, 1994.; PERCIVAL, TYTLER, 2005PERCIVAL, Melissa; TYTLER, Graeme (Org.). Physiognomy in Profile. Newark: University of Delaware Press, 2005..
  • 3
    Goethe tomou o título da obra do químico sueco Bergmann, De attractionibus electivis, que havia sido traduzido ao alemão em 1785 com o título Die Wahlverwandtschaften.
  • 4
    V. a introdução de Joseph-François Angelloz (GOETHE, 1968GOETHE, Johann Wolfgang von. Die Wahlverwandtschaften/Les Affinités électives. Tradução e introdução de Joseph-François Angelloz. Ed. bilíngue alemão-francês. Paris: Aubier Flammarion, 1968. 2 v., p. 20-49).
  • 5
    "Em todos os seres da Natureza observamos primeiramente que eles estão em relação consigo próprios. Pode parecer estranho expressarmos dessa maneira, não obstante somente entendemos completamente o conhecido podemos progredir ao desconhecido" (GOETHE, 1968GOETHE, Johann Wolfgang von. Die Wahlverwandtschaften/Les Affinités électives. Tradução e introdução de Joseph-François Angelloz. Ed. bilíngue alemão-francês. Paris: Aubier Flammarion, 1968. 2 v., I, p. 118, tradução minha), diz o Capitão ao iniciar a discussão sobre as afinidades eletivas na natureza. A água se junta à água mas não ao óleo, e o mercúrio se divide. V. cap. IV.
  • 6
    "Natureza" (com maiúscula) para distinguir o caráter filosófico e literário do termo. Idem: "Daimon" e "Destino".
  • 7
    "Não lhe bastava ser casada entre quatro paredes e algumas árvores; precisava do resto do mundo também." (ASSIS, 2015b______. Dom Casmurro. In: ______. Obras completas. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2015b. v. I., p. 1007). O casal vai morar numa casa na Glória, pace a ironia da topografia.
  • 8
    No mesmo lago artificialmente criado pelo Capitão e idealizado por Eduard, no qual, no fim do livro, Ottilie deixará a criança, filho de Eduard e Charlotte, cair e morrer afogada.
  • 9
    Charlotte representa a oscilação entre lei natural e lei humana, algumas vezes cedendo ao divórcio para depois retroceder. Sua disposição afetiva e emocional é oposta à do marido. O Capitão é o oposto de Eduard: habilidoso, contido, exímio engenheiro.
  • 10
    Na mitologia clássica não eram apenas as sereias que atraíam os homens ao fundo do mar, mas também as nereidas. O afogamento que resulta dessa atração inevitável está representado em várias culturas, inclusive no folclore brasileiro, com a Uiara/Iara. Ottilie, cujos olhos não são de ressaca, pois simboliza um elemento tectônico, tem enfraquecido seu poder na água, daí o afogamento da criança, que como todos concordam, possui os mesmos olhos dela, mas não seu poder.
  • 11
    Essa leitura é condizente e complementar com a interpretação que faço desse romance enquanto narrativa episódica e que desenvolvi em Variações sob a mesma luz: Machado de Assis repensado. V também "Against NarrativitySTRAWSON, Galen. Against Narrativity. Ratio, Reading, v. 17, n. 4, p. 428-452, Dec. 2004. Disponível em: <Disponível em: https://lchc.ucsd.edu/mca/Paper/against_narrativity.pdf >. Acesso em: 10 de março de 2022.
    https://lchc.ucsd.edu/mca/Paper/against_...
    ", de Galen Strawson.
  • 12
    Não encontrei nos volumes críticos dedicados ao estudo da fisionomia em literatura algo satisfatório no sentido de abarcar o que estou propondo neste artigo. Isso implica o reconhecimento de uma intenção textual que opera através da e pela linguagem literária, mas que, ao mesmo tempo, está estritamente subentendida nela. Algo como o gestual do teatro ou da ópera; gestos e olhares que complementam o texto e a ação sem separar-se deles.
  • 13
    Faço aqui o cotejo entre o texto alemão (GOETHE, 1968GOETHE, Johann Wolfgang von. Die Wahlverwandtschaften/Les Affinités électives. Tradução e introdução de Joseph-François Angelloz. Ed. bilíngue alemão-francês. Paris: Aubier Flammarion, 1968. 2 v.) e a versão francesa que Machado possuía (GOETHE, 1870______. Les Affinités électives. In: ______. Poëmes et romans de Goethe. Tradução de Jacques Porchat. Paris: Hachette, 1870. p. 335- Disponível em: <https://books.google.com/books?id=WiZMAQAAMAAJ&pg=PP9&lpg=PP9&dq=goethe+traduction+par+Jacques+Porchat+Hachette+1869+V&source=bl&ots=_k0aMkrT_w&sig=ACfU3U1fZJrHcCtsHAFmGtx0yfnqQFffrQ&hl=en&sa=X&ved=2ahUKEwigw4_AiJn1AhXtHDQIHSb8BrAQ6AF6BAgDEAM#v=onepage&q=affinit%C3%A9s&f=false>. Acesso em: 21/5/22
    https://books.google.com/books?id=WiZMAQ...
    ), inserindo dentro do texto os termos correspondentes em alemão e em francês.
  • 14
    O comentário de Eduard se explica, pois ele havia se afastado de seu castelo, da mulher, Charlotte, e de Ottilie e se alistado no exército. A cena comentada o faz encontrar pela primeira vez o filho nos braços de Ottilie.
  • 15
    O Capitão, depois de também ter partido para a guerra, é promovido, por sua bravura, a major.
  • 16
    Não seria o lugar de comentar aqui o estranho comportamento de Ottilie com relação a essa criança, e que já foi apontado pela crítica pelo inusitado da situação. Em outro momento, Goethe narra que Ottilie passeia com a criança ao colo, simultaneamente lendo um livro (!). No barco, ela confunde o remo com a criança e esta cai na água sem maior explicação. O componente demônico e ctônico de Ottilie não estaria aí sendo reforçado?
  • 17
    No capítulo CXVII, conversando a respeito dos filhos de ambos os casais, que passavam "dias, ora no Flamengo, ora na Glória", Sancha observa que "até já se iam parecendo", ao que Bento observa: "Não; é porque Ezequiel imita os gestos dos outros". Em seguida temos a seguinte observação de Escobar: "Escobar concordou comigo e insinuou que alguma vez as crianças que se frequentam muito acabam parecendo-se umas com as outras" (ASSIS, 2015b______. Dom Casmurro. In: ______. Obras completas. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2015b. v. I., p. 1021, grifos meus).
  • 18
    Loisa Nygaard (1988NYGAARD, Loisa. "Bild" and "Sinnbild": The Problem of the Symbol in Goethe's Wahlverwandtschaften. The Germanic Review, Philadelphia, v. 63, n. 2, p. 58-76, 1988.) atribui isso a fatores intratextuais. O magnetismo em Hoffmann aparece bastante criticado (v. Der Magnetiseur, publicado em Fantasiestücke in Callots Manier). A seleção foi publicada anonimamente em 1814. Foi a tradução para o francês que mudou "fantasia" para "fantástico" na edição de 1829 (Contes fantastiques), com isso criando o "fantástico" com o qual Hoffmann e imitadores serão identificados.
  • 19
    A recepção crítica da obra variou enormemente. V. Goethe's Elective Affinities and the CriticsTANTILLO, Astrida Orle. Goethe's Elective Affinities and the Critics. Suffolk: Camden House, 2001., de Astrida Orle Tantillo, e a introdução de Joseph-François Angelloz ao volume bilíngue alemão/francês.
  • 20
    Knut Hamsum, em Growth of the SoilHAMSUN, Knut. Growth of the Soil. Tradução de William John Alexander Worster. New York: Modern Library, 1935. Disponível em: <Disponível em: https://www.google.com/books/edition/Growth_of_the_Soil/rE5MAAAAMAAJ?hl=en&gbpv=1&pg=PA3&printsec=frontcover >. Acesso em: 17 de maio de 2022.
    https://www.google.com/books/edition/Gro...
    , faz Inger, que nasceu com lábio leporino, atribuir o nascimento de sua primeira criança, que também nasce com lábio leporino, ao lapão que lhe oferece uma lebre morta. Para vários exemplos de magia simpática, v. o capítulo III de The Golden BoughFRAZER, James George. Sympathetic Magic. In: ______. The Golden Bough. 3. ed. Cambridge: Cambridge University Press, 2012. v. I, p. 52-219. Disponível em: <https://www.cambridge.org/core/books/abs/golden-bough/sympathetic-magic/6B4CA532CBEB54F0CFDB10171A999CB0>. Acesso em: 20/5/22
    https://www.cambridge.org/core/books/abs...
    , de James George Frazer.
  • 21
    Os contos e artigos sobre Hoffmann apareceram em toda a parte. Em La Mode, Revue de Paris, Le Courrier, Le Globe, Le Temps. Seria impossível que Machado não os tivesse lido.
  • 22
    Loève-Veimars corta trechos, introduz interpolações, erros, e muda o título dos contos. Mesmo assim, Hoffmann conheceu sucesso inigualável na França. A tradução de Henri Egmont, conscienciosa, nunca encontrou editor que a publicasse, pois ele se recusou a cortar trechos e diluir o estilo original (TEICHMANN, 1961TEICHMANN, Elizabeth. La Fortune d'Hoffmann en France. Genève: E. Droz, 1961.).
  • 23
    Teichmann (1961TEICHMANN, Elizabeth. La Fortune d'Hoffmann en France. Genève: E. Droz, 1961., p. 79) cita as críticas à tradução feitas por Théophile Gautier, e a tradução de dois capítulos de "As aventuras da noite de São Silvestre" por Gérard de Nerval.
  • 24
    "Personagem longe e magro, de rosto pálido, cabelos negros, nariz aquilino, fulgurantes meninas dos olhos […] sua técnica fascinante fazia o resto" (CASTEX, 1982CASTEX, Jean-Pierre. Le Conte Fantastique en France de Nodier à Maupassant. Paris: José Corti, 1982., p. 59, tradução minha).
  • 25
    O libreto dessa ópera distorce ainda mais a obra e o autor, apresentando-o boêmio, permanentemente inebriado de punch nas tavernas alemãs. Os títulos dos contos em francês são aleatórios, tornando a identificação com os originais difícil. Um exemplo: "Rat Krespel" [O conselheiro Krespel] em francês é intitulado "Le Violon de Crémone" [O violino de Cremona].
  • 26
    Sintomaticamente, no conto, Machado de Assis chama E.T.A. Hoffmann de "Teodoro", forma traduzida do francês, pois assim o escritor era chamado naquele país. "Apenas vimos sobre uma mesa um cachimbo alemão, que necessariamente devia ter pertencido ao cavaleiro Teodoro Hoffmann, pois a sua forma era de todo fantástica." (ASSIS, 2015d______. Os óculos de Pedro Antão. In: ______. Obras completas. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2015d. v. II., p. 1204). O conto propõe duas leituras simultâneas; uma versão "fantástica" que busca reconstruir os acontecimentos da vida de Pedro Antão a partir dos indícios por ele deixados ao sobrinho, e uma realista na qual, a cada voo da fantasia, a realidade prosaica explica o mistério. O conto não pode existir sem uma nem outra versão, pois ambas se complementam, o que, aliás, ocorre igualmente nos contos de Hoffmann.
  • 27
    Para não dizermos nada desses dois Pedros que aparecem no conto: o tio, Pedro Antão, morto, e o narrador Pedro, amigo do sobrinho do Pedro morto.
  • 28
    Um exemplo está em Quincas BorbaASSIS, Machado de. Quincas Borba. In: ______. Obras completas. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2015a. v. I. no episódio envolvendo o cocheiro que assumindo momentaneamente a narração, conta a Rubião um conto misterioso sobre um suposto encontro secreto, e que alimenta o ciúme do protagonista, com relação a Sofia e Carlos Maria, projetando-o cada vez mais à derrocada final na demência. Os capítulos LXXXIX, XC, XCVII desenvolvem a trama. Depois de alimentar no leitor as suspeitas de Rubião, o capítulo CVI, dirigido ao leitor, desmascara a armação fantástica que tecera.
  • 29
    Em alusão à peça de Plauto, Menaechmi. No entanto, o título se aplica mal à estória, pois a comédia de Plauto trata de irmãos gêmeos e não de Duplos. É o inexplicável do Duplo que atrai. Shakespeare joga com as duas possibilidades em The Comedy of Errors, mas, sendo uma comédia, tudo se explica no final. A notar que em Esaú e Jacó, é Flora que é caracterizada como inexplicável pelo conselheiro Aires.
  • 30
    Preservo o nome em alemão, sem circunflexo.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    04 Nov 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    23 Jul 2022
  • Aceito
    29 Ago 2022
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