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MACHADO DE ASSIS, O LIVRO E O METALIVRO

MACHADO DE ASSIS, THE BOOK, AND THE METABOOK

Resumo

Este artigo aborda a representação do livro na obra de Machado de Assis, seja como um objeto que estimula a bibliofilia e determinadas reflexões, ou na forma de analogias gráfico-visuais. É a partir do livro que Machado evidencia tanto as motivações da sua consciência narrativa, quanto figurações de sua consciência tipográfica. Essas maneiras de abordar o livro podem ser verificadas no conto “Casa velha” e nos romances Helena, Quincas Borba, Dom Casmurro e Memórias Póstumas de Brás Cubas. Quanto ao aporte teórico, destacam-se as contribuições de Chartier (1999)CHARTIER, Roger. A aventura do livro: do leitor ao navegador. Tradução de Reginaldo Carmello Correa de Moraes. São Paulo: Editora Unesp, 1999., Robert Darnton (2010)DARNTON, Robert. A questão dos livros: passado, presente e futuro. Tradução de Daniel Pellizzari. São Paulo: Companhia das Letras, 2010., Regina Zilberman (1998)ZILBERMAN, Regina. Memórias póstumas de Brás Cubas: diálogos com a tradição literária. Tempo Brasileiro, Rio de Janeiro, v. 133, n. 133/134, p. 155-170, abr./set. 1998. etc.

Palavras-chave:
Machado de Assis; Livro; Metalivro

Abstract

This article approaches the representation of the book in the work of Machado de Assis, either as an object that stimulates bibliophilia and certain reflections or as a form of graphic-visual analogies. It is from the book that Machado shows both the motivations of his narrative consciousness and the figurations of his typographic consciousness. These ways of approaching the book can be seen in the short story “Casa velha” and in the novels Helena, Quincas Borba, Dom Casmurro and Memórias Póstumas de Brás Cubas. As for the theoretical framework, it highlights contributions from Chartier (1999)CHARTIER, Roger. A aventura do livro: do leitor ao navegador. Tradução de Reginaldo Carmello Correa de Moraes. São Paulo: Editora Unesp, 1999., Robert Darnton (2010)DARNTON, Robert. A questão dos livros: passado, presente e futuro. Tradução de Daniel Pellizzari. São Paulo: Companhia das Letras, 2010., Regina Zilberman (1998)ZILBERMAN, Regina. Memórias póstumas de Brás Cubas: diálogos com a tradição literária. Tempo Brasileiro, Rio de Janeiro, v. 133, n. 133/134, p. 155-170, abr./set. 1998. etc.

Keywords:
Machado de Assis; Book; Metabook

Este trabalho discute o modo como o livro se constitui em importante tema da prosa de Machado de Assis, através da análise dos seguintes textos: o conto "Casa velha" e os romances Helena, Memórias póstumas de Brás Cubas, Quincas Borba e Dom Casmurro. Essa escolha se deve ao fato de que, nesses textos, são encontradas marcas efetivas de um procedimento narrativo machadiano que permitiu abordá-los pelo seguinte critério: evidenciar o tema do livro na sua perspectiva tipográfica e editorial, a partir da relação que os personagens, em suas trajetórias, estabelecem com os livros.

Parte-se do pressuposto de que, na denominada fase realista da prosa de Machado de Assis, a relação entre os personagens, muitas vezes, desenvolve-se mediatizada pelo objeto livro, com destaque para a sua materialidade tipográfica. Segundo Norberto G. Junior (2004, p. 38), "por materialidade tipográfica entenda-se não somente o objeto, no caso a letra que substitui e fixa no papel a ausência do narrador e sua voz, mas também seus aspectos físicos e as condições sociais em que foram produzidas".

Determinadas metáforas do texto machadiano, construídas em torno do universo do livro, são analisadas, portanto, levando em consideração a tecnologia da tipografia que começava a fazer parte, com mais intensidade, do cotidiano do leitor brasileiro da segunda metade do século XIX.

O presente artigo alinha-se com o que discorre João Cezar de Castro Rocha (2013ROCHA, João Cezar de Castro. Machado de Assis: por uma poética da emulação. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2013.) a respeito da riqueza semântica do texto machadiano; ele afirma que Machado é o autor-matriz por excelência da literatura brasileira, ou seja, aquele cuja obra, por sua complexidade, autoriza a pluralidade de leituras críticas. Uma das questões levantadas por ele sobre as possíveis novas leituras da obra de Machado de Assis é a seguinte: "Por que não estudar a presença de temas recorrentes, assim como a transformação de seu tratamento?" (ROCHA, 2013ROCHA, João Cezar de Castro. Machado de Assis: por uma poética da emulação. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2013., p. 29-30). É diante dessa vitalidade do texto machadiano que se pode indagar, por exemplo, acerca das representações do livro, que se diferenciam de um texto a outro, e sobre os processos metafóricos construídos em diálogo com a cultura livresca do contexto oitocentista brasileiro.

O tema do livro está presente nas incursões que Machado de Assis faz não só pela metalinguagem da narrativa, mas também pelo uso da tipografia para metaforizar a relação que podia ser estabelecida entre autor, obra e leitor.

Consciência narrativa e "consciência tipográfica"

No que se refere às obras analisadas, Machado de Assis destaca o objeto livro através de dois posicionamentos: deixa marcas do que se poderia denominar como uma consciência narrativa, isto é, narradores intradiegéticos fazem reflexões sobre não somente o que narrar, mas também como tornar a ficção verossímil e, somado a esse exercício de metalinguagem no plano de conteúdo, também estão presentes indícios, no plano da expressão, daquilo que Roger Chartier, em conversa com Jean Lebrun, denominou de "consciência tipográfica", ou seja, referências a aspectos tipográficos das edições dos livros que servem como elementos simbólicos:

Lembremos da consciência que certos autores antigos tinham da forma do livro, da tipografia, da disposição do texto. Entre os séculos XVI e XVIII, ou mesmo no XIX, há autores mais sensíveis, mais abertos a esta "consciência tipográfica" do que outros: aqueles que jogam com as formas, aqueles que querem controlar a publicação impressa, que querem subvertê-la ou revolucioná-la. Nem todos os autores deixavam a responsabilidade da forma para a oficina. Por analogia, a "consciência multimídia" contemporânea poderia aparentar-se a esta consciência tipográfica muito esquecida. (CHARTIER, 1999CHARTIER, Roger. A aventura do livro: do leitor ao navegador. Tradução de Reginaldo Carmello Correa de Moraes. São Paulo: Editora Unesp, 1999., p. 72).

A "consciência tipográfica" - à maneira de uma "consciência multimídia" - interpreta os elementos tipográficos como algo tão importante quanto o enredo, a fábula, os personagens etc., construindo uma perspectiva metalinguística que convoca, para o primeiro plano da narrativa, a materialidade impressa do livro.

É preciso considerar que, possivelmente, essa "consciência tipográfica" tem raízes na trajetória de Machado de Assis como trabalhador e cidadão carioca. Diferentemente de outros escritores seus contemporâneos, ele vivenciou bastante o universo da materialidade tipográfica do livro, começando como caixeiro e, depois, passando a revisor de provas na loja de Paula Brito, cargo que também exerceu tanto na tipografia da praça da Constituição quanto nos jornais A Marmota e Correio Mercantil; além disso, foi aprendiz de tipógrafo na Imprensa Nacional e redator no Diário do Rio.

Ainda é importante destacar que, das cinco obras selecionadas para esta análise, três delas não apresentam marcas expressivas de intervenções metalinguísticas, visto que o livro está representado, sobretudo, como um objeto que compõe um cenário físico, principalmente nas histórias em que constam os espaços das bibliotecas.

Todavia, mesmo nessa condição, a presença do livro nunca é passiva, visto que ajuda a descrever o comportamento de determinados personagens. Isso demonstra como Machado de Assis documenta algo da história do livro no Brasil, de como eram os hábitos dos leitores da época.

Bibliofilia burguesa: o livro em Helena e "Casa velha" 1 1 Sobre "Casa velha", optou-se por enquadrá-lo no gênero conto, como consta na Obra completa de Machado de Assis (Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2006, v. 2), um procedimento similar ao de alguns críticos machadianos, exceto John Gledson (2003), que o analisa como romance.

Em Vale quanto pesa, afirma Silviano Santiago (1982SANTIAGO, Silviano. Vale quanto pesa: ensaios sobre questões político-culturais. Rio de Janeiro: Paz e Terra , 1982. p. 25-40., p. 28): "O livro é, pois, objeto de classe no Brasil e, incorporado a uma rica biblioteca particular e individual, é signo certo de status social". No romance Helena (1876), assim são valorizados os livros pelo conselheiro Vale, alguém que "ocupava elevado lugar na sociedade, pelas relações adquiridas, cabedais, educação e tradições de família" (ASSIS, 2006aASSIS, Machado de. Helena. In: ______. Obra completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2006a. v. 1: Romance, p. 271-389., p. 273). Com a sua morte, os livros são transferidos para o seu filho, Estácio, que mantinha o zelo de bibliófilo: "Durante dous dias não saiu ele de casa. Tendo recebido alguns livros novos, gastou parte do tempo em os folhear, ler alguma página, colocá-los nas estantes, alterando a ordem e a disposição dos anteriores, com a prolixidade e o amor do bibliófilo" (ASSIS, 2006aASSIS, Machado de. Helena. In: ______. Obra completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2006a. v. 1: Romance, p. 271-389., p. 304-305).

Outro personagem que chama a atenção é o padre Melchior, homem solitário, que passava a maior parte do seu tempo lendo: "[…] amava sobretudo estar separado dos homens. Nessas horas, que eram a maior parte do tempo, lia ou meditava, esquecido ou estranho a todas as cousas do seu século" (ASSIS, 2006aASSIS, Machado de. Helena. In: ______. Obra completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2006a. v. 1: Romance, p. 271-389., p. 345). Em sua biblioteca, predominavam os formatos in-fólio e in quarto:2 2 No formato in-fólio, a página era dobrada apenas uma vez, o que gerava volumes grandes e pesados. No in-quarto, a folha era dobrada duas vezes, gerando, assim, volumes menores e mais leves. "Simples era a mobília, nenhuns adornos, uma estante de jacarandá, com livros grossos in-quarto e in-fólio; uma secretária, duas cadeiras de repouso e pouco mais" (ASSIS, 2006aASSIS, Machado de. Helena. In: ______. Obra completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2006a. v. 1: Romance, p. 271-389., p. 345).

No conto "Casa velha" (1885), cujo enredo desenrola-se em torno de uma biblioteca particular, a posse de livros destaca-se e justifica-se pela posição social de seu proprietário, e tanto a casa quanto a biblioteca são apresentadas como espaços suntuosos, exalando “um cheiro de vida clássica” (ASSIS, 2006e______. Casa velha. In: ______. Obra completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2006e. v. 2: Conto e teatro, p. 998-1044., p. 999, 1001).

A importância simbólica dos livros acentua-se pela reverência de moradores como d. Antônia, herdeira da “Casa velha” e da biblioteca do marido: “[…] livros e papéis estão lá em grande respeito. Não se mexe em nada que foi do marido, por uma espécie de veneração, que a boa senhora conserva e sempre conservará” (ASSIS, 2006e______. Casa velha. In: ______. Obra completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2006e. v. 2: Conto e teatro, p. 998-1044., p. 999).

Em relação à casa, a biblioteca é um lugar de recolhimento, solene e pouco habitado, “peça que raramente se abria” (ASSIS, 2006e______. Casa velha. In: ______. Obra completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2006e. v. 2: Conto e teatro, p. 998-1044., p. 1010) aos membros da família, um espaço antiquário, de grandes dimensões:

Antes de me despedir deles, fui ver a biblioteca. Era uma vasta sala, dando para a chácara, por meio de seis janelas de grade de ferro, abertas de um só lado. Todo o lado oposto estava forrado de estantes, pejadas de livros. Estes eram, pela maior parte, antigos, e muitos in-fólio (ASSIS, 2006e______. Casa velha. In: ______. Obra completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2006e. v. 2: Conto e teatro, p. 998-1044., p. 1003).

A morte do ex-ministro é a razão de a biblioteca manter-se fechada, mas um padre, que tinha o intuito de escrever uma obra sobre a história do reinado de d. Pedro I, consegue a permissão para frequentá-la. A biblioteca configura-se no palco privilegiado de revelações e desenlaces familiares.

A personagem Lalau, por exemplo, apesar de alfabetizada, não tinha a liberdade para frequentar a biblioteca, mas, em virtude da presença do padre, consegue obtê-la. Na primeira vez em que entrou no espaço, assustou-se com o tamanho dos livros: "Achou-os grande demais; admirava como havia quem tivesse a paciência de os ler. E depois alguns eram tão velhos!" (ASSIS, 2006e______. Casa velha. In: ______. Obra completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2006e. v. 2: Conto e teatro, p. 998-1044., p. 1012). Eram livros de outro tempo, como se vindos de uma época em que a leitura exigia maior vagar e paciência.

Lalau encontra-se distante do formato in-fólio; ela representa um tipo de leitor que não precisa de tanto esforço para se relacionar com os livros, pois os formatos in-oitavo e duodécimo, que já existiam "em seus dias", criavam novas possibilidades de leitura.

Tanto em Helena como em "Casa velha", o livro é um objeto especial no espaço das casas, destaca-se como um bem simbólico que, na primeira metade do século XIX, começava a fazer parte dos lares de uma classe média, a qual se consolidava nos centros urbanos do Brasil pós-joanino.

O livro como mercadoria e objeto de ostentação em Quincas Borba

Em Quincas Borba, o livro também está associado aos hábitos de uma classe burguesa, porém o sentido é diferente do que se observa em Helena e "Casa velha", porque Rubião, o protagonista, não mantém uma relação de encantamento com os livros; para ele, são apenas objetos materiais que figuram como uma parte valiosa de uma herança que recebeu: "Não cinco, nem dez, nem vinte contos, mas tudo, o capital inteiro, […] joias, dinheiro amoedado, livros, - tudo finalmente passava às mãos do Rubião" (ASSIS, 2006c______. Quincas Borba. In: ______. Obra completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2006c. v. 1: Romance, p. 641-806., p. 654, grifo nosso).

Conforme Robert Darnton (2010DARNTON, Robert. A questão dos livros: passado, presente e futuro. Tradução de Daniel Pellizzari. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.), os diversos usos que as pessoas fazem dos livros - em juramentos, na troca de presentes, na concessão de prêmios e doação de heranças - fornecem indícios de seu significado na sociedade. Sobre isso, André Belo (2002BELO, André. História & livro e leitura. Belo Horizonte: Autêntica, 2002.) diz que os livros mereciam inventário, ao passo que folhetos, gazetas e as cartas manuscritas, por serem mais frágeis, eram considerados de pouco valor econômico e, por isso, não se registravam.

Para Rubião, o livro era muito mais uma mercadoria que um objeto cultural. O que lhe interessava não era o conhecimento, mas apenas usufruir o valor financeiro que a posse de livros lhe propiciaria:

E quanto seria tudo? Ia ele pensando. Casas, apólices, ações, escravos, roupa, louça, alguns quadros, que ele teria na Corte, porque era homem de muito gosto, tratava das cousas de arte com grande saber. E livros? Devia ter muitos livros, citava muitos deles. Mas em quanto andaria tudo? Cem contos? Talvez duzentos. (ASSIS, 2006c______. Quincas Borba. In: ______. Obra completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2006c. v. 1: Romance, p. 641-806., p. 654).

Para tentar impressionar Sofia, mulher por quem se apaixona, Rubião resolve manter os livros como objetos de ostentação, assim como fazia com bronzes, quadros, bandejas de prata, cálices, charutos importados etc.

Apesar de ter sido professor, Rubião não mergulhava no universo dos livros, fortuitamente os lia, desistindo por qualquer trivialidade. Essa sua postura mostrava que o livro deixava de ser venerado como fora outrora, e tornava-se um produto de novas relações sociais, como as que são impostas pelo mercado editorial.

Mas como o paradoxo é uma característica da prosa machadiana, a essa indiferença de Rubião com os livros em Quincas Borba, Machado contrapõe os hábitos livrescos de um leitor contumaz como Bentinho em Dom Casmurro, o que significa dizer que, em Dom Casmurro, abre-se o espaço para a prática tanto de uma consciência narrativa, quanto de uma consciência tipográfica.

Os moinhos de vento de Dom Casmurro

Em Dom Casmurro, a relação entre homem e livro assume outros significados. Mais que um objeto de biblioteca e, muito mais que mercadoria, o livro torna-se uma fonte de reflexões sobre os meios de expressão de um personagem-narrador.

As preocupações de D. Casmurro referem-se tanto aos problemas inerentes ao ato de escrever e para quem escrever, quanto às imagens obsessivas do seu ciúme. As questões sobre os limites dos gêneros da escrita provocam-lhe tanta hesitação quanto os olhos de Capitu.

Quis variar, e lembrou-me escrever um livro. Jurisprudência, filosofia e política acudiram-me, mas não me acudiram as forças necessárias. Depois, pensei em fazer uma "História dos Subúrbios", menos seca que as memórias do padre Luís Gonçalves dos Santos, relativas à cidade […] vou deitar ao papel as reminiscências que me vieram vindo. Deste modo, viverei o que vivi, e assentarei a mão para alguma obra de maior tomo. (ASSIS, 2006d______. Dom Casmurro. In: ______. Obra completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2006d. v. 1: Romance, p. 807-944., p. 810-811).

O desejo de escrever as suas memórias é uma confissão de Bentinho, uma inclinação da qual não escapa: "Esta sarna de escrever, quando pega aos cinquenta anos, não despega mais" (ASSIS, 2006d______. Dom Casmurro. In: ______. Obra completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2006d. v. 1: Romance, p. 807-944., p. 864). Bentinho estava pleno de memórias, mas, como não era um "defunto autor" como Brás Cubas, cuja trajetória já se concluíra, ele marca a sua passagem de personagem para narrador, tornando-se Dom Casmurro.

São três as grandes obsessões de D. Casmurro: Capitu, o seu livro de memórias e a relação a ser estabelecida com o leitor. A forma como ele questiona a vida - que pretende transformar em capítulos - aproxima-se da maneira como ele interroga Capitolina. É como se o ato de escrever tivesse alguma semelhança com os "olhos de ressaca", de "cigana oblíqua e dissimulada" de Capitu.

Em outros termos, Bentinho, como marido, olha nos olhos de Capitu e fascina-se pelo que não consegue ver ou entender, pelo que está oblíquo e dissimulado; assim também, Dom Casmurro, como autor, olha paro o ato de narrar e percebe os vazios das convenções narrativas, pois a representação possível, através da escrita, também é oblíqua. Sendo assim, Capitu e as memórias são um problema para D. Casmurro, porque ambas evidenciam a complexidade da significação.

Nessa relação de D. Casmurro com Capitu, com o leitor e com os capítulos, só há uma convicção - a própria incerteza de tudo: "Nem eu, nem tu [leitor], nem ela [Capitu], nem qualquer outra pessoa desta história poderia responder mais, tão certo é que o destino, como todos os dramaturgos, não anuncia as peripécias nem o desfecho" (ASSIS, 2006d______. Dom Casmurro. In: ______. Obra completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2006d. v. 1: Romance, p. 807-944., p. 883-884).

No romance Dom Casmurro, o livro não é objeto de bibliofilia ou de ostentação, antes desperta no protagonista, sobretudo, dois significados: o de guardião de memória e o de "cocaína moral". O primeiro surge quando ele reencontra um ex-colega de seminário, que o presenteia com o penúltimo exemplar do Panegírico de Santa Mônica: "Ah! Mas não eram só os seminaristas que me iam saindo daquelas folhas velhas do Panegírico. Elas me trouxeram também sensações passadas, e tantas que eu não poderia dizê-las todas, sem tirar espaço ao resto" (ASSIS, 2006d______. Dom Casmurro. In: ______. Obra completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2006d. v. 1: Romance, p. 807-944., p. 868). A memória de D. Casmurro tem uma base livresca, muito do que ele viveu é desencadeado a partir da leitura de livros.

O segundo significado, "cocaína moral", aparece quando D. Casmurro percebe pretensas semelhanças físicas entre seu filho Ezequiel e seu amigo Escobar, confirmando, na sua versão, a suspeita de que fora traído, motivo pelo qual pensa em se suicidar. Ele busca nos livros a possibilidade de enobrecer o suicídio; ler um livro, antes de morrer, seria como tomar um entorpecente, tornando a morte menos dolorida ou menos vulgar:

[…] lembrou-me que Catão, antes de se matar, leu e releu um livro de Platão. […] Um dos males da ignorância é não ter este remédio à última hora. Há muita gente que se mata sem ele, e nobremente expira; mas estou que muita mais gente poria termo aos seus dias, se pudesse achar essa espécie de cocaína moral dos bons livros. (ASSIS, 2006d______. Dom Casmurro. In: ______. Obra completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2006d. v. 1: Romance, p. 807-944., p. 935).

Percebe-se que, em Dom Casmurro, a relação entre homem e livro é diferente da perspectiva social, familiar, adotada em Helena e "Casa velha", assim como não se assemelha à condição pecuniária presente em Quincas Borba. D. Casmurro mergulha numa busca por autoexpressão, em um constante diálogo com a especificidade dos gêneros da escrita. Pode-se dizer que D. Casmurro tem algo de Dom Quixote, sendo Capitu, os livros e a relação construída com os leitores os seus moinhos de vento.

No capítulo XVII, por exemplo, forma-se um cenário fantástico em que seres como os vermes, que vivem de devorar a materialidade decomposta dos livros, ascendem à condição de personagens com os quais D. Casmurro, na sua forma livresca de ver o mundo, dialoga:

Quando, mais tarde, vim a saber que a lança de Aquiles também curou uma ferida que fez, tive tais ou quais veleidades de escrever uma dissertação a este propósito. Cheguei a pegar em livros velhos, livros mortos, livros enterrados, a abri-los, a compará-los, catando o texto e o sentido […]. Catei os próprios vermes dos livros, para que me dissessem o que havia nos textos roídos por eles.

- Meu senhor, respondeu-me um longo verme gordo, nós não sabemos absolutamente nada dos textos que roemos, nem escolhemos o que roemos, nem amamos ou detestamos o que roemos; nós roemos. (ASSIS, 2006d______. Dom Casmurro. In: ______. Obra completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2006d. v. 1: Romance, p. 807-944., p. 826-827).

O diálogo com os vermes representa um mergulho de Dom Casmurro na materialidade dos livros, o sentido que buscava ia além das palavras, era preciso interrogar novas possibilidades de significação: o suporte dos textos através dos vermes. Tratava-se de uma insinuação de que, entre a palavra escrita e aquilo que ela representa, há uma sutil escala de matizes que contribui para determinar um significado impregnado pelo seu significante.

Nesse aspecto, Dom Casmurro ultrapassa os limites da sua consciência narrativa e aproxima-se, guardadas as devidas proporções, da "consciência tipográfica" que domina o romance mais experimental de Machado de Assis: Memórias póstumas de Brás Cubas.

Brás Cubas, o homem-livro

O "defunto autor" de Memórias póstumas de Brás Cubas é alguém que apresenta umas "rabugens de pessimismo" (ASSIS, 2006b______. Memórias póstumas de Brás Cubas. In: ______. Obra completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2006b. v. 1: Romance, p. 511-639., p. 512). O seu relato é uma visão, mais irônica que melancólica, da morte, que é encarada como uma espécie de grande reserva de memórias: "[…] evito contar o processo extraordinário que empreguei na composição destas Memórias, trabalhadas cá no outro mundo" (ASSIS, 2006b______. Memórias póstumas de Brás Cubas. In: ______. Obra completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2006b. v. 1: Romance, p. 511-639., p. 513).

Nas páginas de Memórias póstumas de Brás Cubas, a consciência tipográfica aparece em grande destaque: às vezes, é representada por algo do universo livresco que serve de cenário para encontros entre os personagens, como o que se lê no capítulo L - "Virgília casada": "No dia seguinte, estando na Rua do Ouvidor, à porta da tipografia do Plancher, vi assomar, à distância, uma mulher esplêndida" (ASSIS, 2006b______. Memórias póstumas de Brás Cubas. In: ______. Obra completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2006b. v. 1: Romance, p. 511-639., p. 566); outras vezes, a consciência tipográfica surge como a metáfora do livro-vida que, inicialmente, aparece no capítulo VI: "Talvez eu exponha ao leitor, em algum canto deste livro, a minha teoria das edições humanas" (ASSIS, 2006b______. Memórias póstumas de Brás Cubas. In: ______. Obra completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2006b. v. 1: Romance, p. 511-639., p. 519). Brás Cubas continua a desenvolver a metáfora do livro-vida ao longo do relato, sendo reencontrada, com minúcias, no capítulo XXVII:

Deixa lá dizer Pascal que o homem é um caniço pensante. Não; é uma errata pensante, isso sim. Cada estação da vida é uma edição, que corrige a anterior, e que será corrigida também, até a edição definitiva, que o editor dá de graça aos vermes. (ASSIS, 2006b______. Memórias póstumas de Brás Cubas. In: ______. Obra completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2006b. v. 1: Romance, p. 511-639., p. 549).

A passagem do tempo, que indica a transitoriedade da vida humana -nascimento, apogeu e decadência -, é materializada por Brás Cubas tipograficamente, como se fosse a sucessão das edições de um livro, mas a diferença é que, em vez de um tom melancólico ou funéreo, Brás Cubas assume uma postura jocosa, quase cínica, na descrição dessa imagem do livro-vida, conforme se verifica no capítulo XXXVIII, cujo título é "A quarta edição":

Lembra-vos ainda a minha teoria das edições humanas? Pois sabei que, naquele tempo, estava eu na quarta edição, revista e emendada, mas ainda inçada de descuidos e barbarismos; defeito que, aliás, achava alguma compensação no tipo, que era elegante, e na encadernação, que era luxuosa. (ASSIS, 2006b______. Memórias póstumas de Brás Cubas. In: ______. Obra completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2006b. v. 1: Romance, p. 511-639., p. 556-557).

Essa quarta edição, com seu tipo elegante e o luxo da encadernação, representa os quarenta anos de Brás Cubas, idade que é citada num diálogo que ele trava com uma baronesa: "Pois, meu amigo, apresse-se, porque o senhor deve estar com quarenta anos… ou perto disso… Não tem quarenta anos?" (ASSIS, 2006b______. Memórias póstumas de Brás Cubas. In: ______. Obra completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2006b. v. 1: Romance, p. 511-639., p. 579).

Nesse capítulo, verifica-se ainda outra passagem que sugere essa sucessão das edições do homem-livro Brás Cubas. Ao reconstituir o episódio de seu primeiro namoro e refletindo sobre o caráter de Marcela, Brás Cubas compara os seus primeiros dezessete anos à primeira edição de seu livro-vida; revela ainda que, naquele tempo, não era possível perceber o grande defeito de Marcela, "amiga de dinheiro e de rapazes" (ASSIS, 2006b______. Memórias póstumas de Brás Cubas. In: ______. Obra completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2006b. v. 1: Romance, p. 511-639., p. 533), pois a enxergava pelas lentes da "primeira edição":

Não era esta certamente a Marcela de 1822; mas a beleza de outro tempo valia uma terça parte dos meus sacrifícios? Era o que eu buscava saber, interrogando o rosto de Marcela. O rosto dizia-me que não; ao mesmo tempo os olhos me contavam que, já outrora, como hoje, ardia neles a flama da cobiça. Os meus é que não souberam ver-lha; eram olhos da primeira edição. (ASSIS, 2006b______. Memórias póstumas de Brás Cubas. In: ______. Obra completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2006b. v. 1: Romance, p. 511-639., p. 557-558).

É no capítulo VII, em que consta o delírio de Brás Cubas e a sua "viagem à origem dos séculos", que a metáfora do livro-vida chega ao seu ápice, a partir da fusão literal do corpo do protagonista com os elementos tipográficos do códice impresso que circulava nos seus dias:

Logo depois, senti-me transformado na Suma Teológica de S. Tomás, impressa num volume, e encadernada em marroquim, com fechos de prata e estampas; ideia esta que me deu ao corpo a mais completa imobilidade; e ainda agora me lembro que, sendo as minhas mãos os fechos do livro, e cruzando-as eu sobre o ventre, alguém as descruzava (Virgília decerto), porque a atitude lhe dava a imagem de um defunto. (ASSIS, 2006b______. Memórias póstumas de Brás Cubas. In: ______. Obra completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2006b. v. 1: Romance, p. 511-639., p. 520).

Nessa passagem, não há mais nenhuma distância entre o homem e o objeto livro, agora são um só na forma de uma edição da Suma Teológica, com elaborada encadernação e "com fechos de prata". Mas essa fusão de homem e livro não se limita somente ao narrador-personagem, pois o que se observa é que, através de inúmeras apóstrofes, ela é ampliada para envolver o próprio leitor: "Capítulos compridos quadram melhor a leitores pesadões; e nós não somos um público in-fólio, mas in-12, pouco texto, larga margem, tipo elegante, corte dourado e vinhetas… principalmente vinhetas…" (ASSIS, 2006b______. Memórias póstumas de Brás Cubas. In: ______. Obra completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2006b. v. 1: Romance, p. 511-639., p. 544).

Assim, a passagem das edições in-fólio, maiores e mais pesadas, para edições in-12, menores e mais leves, estaria elucidando, ao mesmo tempo, a formação de um novo público, afeito a leituras "triviais", porém muito mais vasto. O leitor in-12 representaria, portanto, aquele público pouco letrado e avesso ao convívio demorado com os livros.

Em Memórias póstumas de Brás Cubas a visualidade tipográfica do homem-livro deixa de ser apenas imaginada, construída mentalmente pelo leitor, para ser olhada, vista. É o que se poderia constatar na forma gráfico-visual do capítulo LV, em que Brás Cubas, com seu pensamento "ardiloso e traquinas", supõe estar na casa de Virgília e imagina "os dous vadios ali postos, a repetirem o velho diálogo de Adão e Eva" (ASSIS, 2006b______. Memórias póstumas de Brás Cubas. In: ______. Obra completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2006b. v. 1: Romance, p. 511-639., p. 570).

O VELHO DIÁLOGO DE ADÃO E EVA

BRÁS CUBAS . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . ?

VIRGÍLIA . . . . . . . . . . . . . . . . .

BRÁS CUBAS . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

VIRGÍLIA . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . !

BRÁS CUBAS . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

VIRGÍLIA . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . ? . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

BRÁS CUBAS . . . . . . . . . . . . . . . . . .

VIRGÍLIA . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

BRÁS CUBAS . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . ! . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . ! . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . !

VIRGÍLIA . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . ?

BRÁS CUBAS . . . . . . . . . . . . . . . . !

VIRGÍLIA . . . . . . . . . . . . . . . . . . . !

(ASSIS, 2006______. Memórias póstumas de Brás Cubas. In: ______. Obra completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2006b. v. 1: Romance, p. 511-639., v. 1, p. 570).

O assunto desse capítulo - codificado graficamente em pontilhados, junto com exclamações e interrogações - está explicitado no anterior, "A pêndula", em que Brás Cubas imagina os seus pensamentos e os de Virgília, à maneira de dois amigos muito íntimos, encontrando-se e travando uma alegre conversa "ao peitoril de uma janela".

Esses pontilhados representam algo que pode ser imaginado pelo leitor; funcionam como as próprias palavras. Machado de Assis eleva os pontilhados à categoria de palavra, o que permite novos significados. Como as palavras foram substituídas, reticenciadas por essas linhas pontilhadas, o processo pelo qual Machado optou não foi mais o da metáfora, mas o de algo que se aproxima da metonímia ou, mais precisamente, da sinédoque: um elemento de um grupo substituindo todo o grupo.

Essa construção tipográfica abre novas possibilidades de leitura. O leitor é instigado a não apenas ler e imaginar, mas também a olhar, a ver o texto e, nesse caso específico, a inventar as próprias palavras que foram substituídas por pontilhados. Com o seu leitor, Machado busca estabelecer um diálogo não apenas centrado nas palavras em si, mas também na visualidade da escrita, algo que suscita leitores que possam ler vendo.

Tendo por base a Estética da Recepção, a interação entre texto e leitor, presente em Machado, estaria sendo mediada por um "esquema virtual" (COMPAGNON, 2003COMPAGNON, Antoine. O leitor. In: ______. O demônio da teoria: literatura e senso comum. Tradução de Cleonice Paes Barreto Mourão e Consuelo Fortes Santiago. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2003. p. 139-164., p. 150), uma espécie de programa ou partitura feita de lacunas, de buracos e de indeterminações. Assim, caberia ao leitor completar essas lacunas, uma vez que o texto seria:

[…] composto por um mundo que ainda há de ser identificado e que é esboçado de modo a incitar o leitor a imaginá-lo e, por fim, a interpretá-lo. Essa dupla operação de imaginar e interpretar faz com que o leitor se empenhe na tarefa de visualizar as muitas formas possíveis do mundo identificável. (ISER, 2002ISER, Wolfgang. O jogo do texto. In: LIMA, Luiz Costa (Org.). A Literatura e o leitor: textos de estética da recepção. 2. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2002. p. 105-118., p. 107).

O leitor desse capítulo pontilhado precisa fazer um trabalho duplo. Ele é impelido a não somente imaginar e interpretar, mas também a preencher com palavras reais as lacunas representadas pela sinédoque gráfica. Machado de Assis ausenta-se na forma de pontilhados, como estratégia para possibilitar esse trabalho do leitor. Trata-se de uma possibilidade que também é observada por João Cezar de Castro Rocha (2013ROCHA, João Cezar de Castro. Machado de Assis: por uma poética da emulação. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2013., p. 330): "Machado não é apenas um escritor ciente de ser, em primeiro lugar, um leitor, mas também um autor que desenvolve recursos formais que tornam o leitor um coautor potencial da obra".

Se Machado de Assis reticenciou, omitiu a própria palavra através de um recurso gráfico-visual, caberia ao leitor, por sua conta e risco, desomiti-la, retirá-la do esconderijo dos pontilhados. Ou, nas palavras de Maria Heloísa Martins Dias (2006DIAS, Maria Heloísa Martins. A atualidade do "velho diálogo" machadiano: o vazio-pleno da linguagem. In: RAMOS, Maria Celeste Tommasello; MOTTA, Sérgio Vicente. À roda de Memórias póstumas de Brás Cubas. Campinas: Alínea, 2006. p. 107-119., p. 112): "É preciso, portanto, que o leitor saiba redimensionar esse vazio, saiba ler novos sentidos gerados a partir da ausência".

Procedimento semelhante, em termos de visualidade gráfica, Machado utiliza no capítulo CXXXIX:

DE COMO NÃO FUI MINISTRO D' ESTADO

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(ASSIS, 2006b______. Memórias póstumas de Brás Cubas. In: ______. Obra completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2006b. v. 1: Romance, p. 511-639., p. 627).

Nesse capítulo, não há nem pontos de exclamação nem de interrogação traduzindo qualquer condição emocional. Brás Cubas apenas comunica a sua decepção por ter perdido a cadeira da Câmara dos Deputados, conduzindo o leitor a imaginar essa perda através de uma espécie de silêncio gráfico.

Brás Cubas preferiu pontilhar as suas aspirações não realizadas. No capítulo seguinte, o CXL - "Que explica o anterior " -, ele declara: "Há cousas que melhor se dizem calando; tal é a matéria do capítulo anterior" (ASSIS, 2006b______. Memórias póstumas de Brás Cubas. In: ______. Obra completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2006b. v. 1: Romance, p. 511-639., p. 627).

Diante do exposto, pode-se afirmar que, em Memórias póstumas de Brás Cubas, a consciência narrativa e a consciência tipográfica aproximam-se e complementam-se, formando uma grande estrutura de metalinguagem literária. Isso faz com que, na relação homem e livro, Brás Cubas seja muito mais que um bibliófilo. Ele é o homem que virou livro ou o livro que se humanizou.

O metalivro de Machado de Assis

O uso de símiles tipográficos e a prática de expor o processo editorial do objeto livro, como possibilidade de representação da realidade, fazem de Machado de Assis um autor que não pode ser compreendido somente a partir do estilo realista da segunda metade do século XIX. Percebe-se que ele ultrapassa os limites desse período literário, aproximando-se de determinados aspectos do ideário modernista, para o qual:

A arte deixa de ser apenas elemento pictórico, ou mero instrumento para a representação da natureza, pois quando o artista descobre na materialidade o essencial da linguagem, deseja organizá-la de forma construtiva. Quando a sintaxe discursiva e a função representativa da obra são abandonadas, resta apenas a qualidade icônica, cujo conteúdo é a especificidade do material que a constrói. A sintaxe agora é técnica, e, como tal, revela as estruturas de seu funcionamento. (GAUDÊNCIO JUNIOR, 2004GAUDÊNCIO JUNIOR, Norberto. A herança escultórica da tipografia. São Paulo: Rosari, 2004., p. 50).

Conforme Regina Zilberman, em "Memórias póstumas de Brás Cubas: diálogos com a tradição literária", a ênfase que Machado de Assis promove na materialidade do texto pode ser entendida como:

[…] um marco, relativamente ao aproveitamento, numa obra literária, de técnicas de impressão, em processo de aperfeiçoamento na segunda metade do século XIX, colocando-se de certo modo como precursor no que se refere ao emprego de artifícios visuais, de que o Modernismo lançaria mão em várias circunstâncias. (ZILBERMAN, 1998ZILBERMAN, Regina. Memórias póstumas de Brás Cubas: diálogos com a tradição literária. Tempo Brasileiro, Rio de Janeiro, v. 133, n. 133/134, p. 155-170, abr./set. 1998., p. 160).

É evidente que Machado de Assis não fez experimento gráfico-visual à maneira das vanguardas europeias como o Futurismo ou o Dadaísmo, embora ele tenha dado pistas de que, de modo similar a um modernista, descobriu "na materialidade o essencial da linguagem" (GAUDÊNCIO JUNIOR, 2004GAUDÊNCIO JUNIOR, Norberto. A herança escultórica da tipografia. São Paulo: Rosari, 2004., p. 50). Ele pertencia a um período da história em que a literatura buscava, na perspectiva do Realismo-Naturalismo, preservar "a sintaxe discursiva e a função representativa da obra" (GAUDÊNCIO JUNIOR, 2004GAUDÊNCIO JUNIOR, Norberto. A herança escultórica da tipografia. São Paulo: Rosari, 2004., p. 50), o que significava que não havia espaço para experimentalismos tipográficos.

Aquilo que aproximaria Machado de Assis dos modernistas é que ele já antecipa algo do metalivro, ou seja, traz à tona, ainda na segunda metade do século XIX, uma prática semelhante a determinados procedimentos modernistas cuja intenção era: "[…] investigar a fundo como o material que produz a arte se articula e processa seus significados" (GAUDÊNCIO JUNIOR, 2004GAUDÊNCIO JUNIOR, Norberto. A herança escultórica da tipografia. São Paulo: Rosari, 2004., p. 50). Segundo K. D. Jackson, em "A modernidade do eterno em Machado de Assis" (2009JACKSON, K. David. A modernidade do eterno em Machado de Assis. In: ANTUNES, Benedito; MOTTA, Sérgio Vicente (Org.). Machado de Assis e a crítica internacional. São Paulo: Editora Unesp , 2009. p. 55-75., p. 58, grifo do original):

Machado […] em seus romances e contos consegue abrir espaço entre estilo e conteúdo, ou, nos termos da linguística saussuriana, entre significante e significado, que, se antecipa algumas práticas do romance modernista, não deixa de ser uma invenção do momento, uma síntese sui generis de perspectivas e ideias.

Machado de Assis expõe criticamente, com sua "consciência tipográfica", os mecanismos de representação da escrita, chegando a insinuar que a realidade que se pode representar, a partir da mídia livro, ou seja, a realidade imaginada pelos realistas é suspeita, imperfeita e limitada.

Na segunda metade do século XIX, seu metalivro já anunciava, através da prosa, que as significações possíveis do fenômeno literário, cada vez mais, iriam ganhar novos matizes a partir de um diálogo entre diferentes mídias como o livro e o jornal, que o leitor seria mais sujeito que objeto, e que, sobretudo, a metalinguagem, à maneira de uma espécie de aurea mediocritas do dia a dia, auxiliaria o homem a medir os graus de interface entre o seu corpo e suas extensões.

Finalmente, pode-se afirmar que a tematização do livro, importante aspecto na prosa machadiana, aponta - no que diz respeito às metáforas tipográficas - para um traço de modernidade literária, e parece manifestar também uma aspiração, isto é, o desejo de se criar uma cultura do livro, um país de leitores.

Referências

  • ASSIS, Machado de. Helena. In: ______. Obra completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2006a. v. 1: Romance, p. 271-389.
  • ______. Memórias póstumas de Brás Cubas. In: ______. Obra completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2006b. v. 1: Romance, p. 511-639.
  • ______. Quincas Borba. In: ______. Obra completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2006c. v. 1: Romance, p. 641-806.
  • ______. Dom Casmurro. In: ______. Obra completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2006d. v. 1: Romance, p. 807-944.
  • ______. Casa velha. In: ______. Obra completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2006e. v. 2: Conto e teatro, p. 998-1044.
  • BELO, André. História & livro e leitura. Belo Horizonte: Autêntica, 2002.
  • CHARTIER, Roger. A aventura do livro: do leitor ao navegador. Tradução de Reginaldo Carmello Correa de Moraes. São Paulo: Editora Unesp, 1999.
  • COMPAGNON, Antoine. O leitor. In: ______. O demônio da teoria: literatura e senso comum. Tradução de Cleonice Paes Barreto Mourão e Consuelo Fortes Santiago. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2003. p. 139-164.
  • DARNTON, Robert. A questão dos livros: passado, presente e futuro. Tradução de Daniel Pellizzari. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.
  • DIAS, Maria Heloísa Martins. A atualidade do "velho diálogo" machadiano: o vazio-pleno da linguagem. In: RAMOS, Maria Celeste Tommasello; MOTTA, Sérgio Vicente. À roda de Memórias póstumas de Brás Cubas. Campinas: Alínea, 2006. p. 107-119.
  • GAUDÊNCIO JUNIOR, Norberto. A herança escultórica da tipografia. São Paulo: Rosari, 2004.
  • ISER, Wolfgang. O jogo do texto. In: LIMA, Luiz Costa (Org.). A Literatura e o leitor: textos de estética da recepção. 2. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2002. p. 105-118.
  • JACKSON, K. David. A modernidade do eterno em Machado de Assis. In: ANTUNES, Benedito; MOTTA, Sérgio Vicente (Org.). Machado de Assis e a crítica internacional. São Paulo: Editora Unesp , 2009. p. 55-75.
  • ROCHA, João Cezar de Castro. Machado de Assis: por uma poética da emulação. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2013.
  • SANTIAGO, Silviano. Vale quanto pesa: ensaios sobre questões político-culturais. Rio de Janeiro: Paz e Terra , 1982. p. 25-40.
  • ZILBERMAN, Regina. Memórias póstumas de Brás Cubas: diálogos com a tradição literária. Tempo Brasileiro, Rio de Janeiro, v. 133, n. 133/134, p. 155-170, abr./set. 1998.
  • 1
    Sobre "Casa velha", optou-se por enquadrá-lo no gênero conto, como consta na Obra completa de Machado de Assis (Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2006______. Casa velha. In: ______. Obra completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2006e. v. 2: Conto e teatro, p. 998-1044., v. 2), um procedimento similar ao de alguns críticos machadianos, exceto John Gledson (2003), que o analisa como romance.
  • 2
    No formato in-fólio, a página era dobrada apenas uma vez, o que gerava volumes grandes e pesados. No in-quarto, a folha era dobrada duas vezes, gerando, assim, volumes menores e mais leves.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    04 Nov 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    06 Ago 2022
  • Aceito
    05 Out 2022
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