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LAURENCE STERNE, MACHADO DE ASSIS E O ATO DA LEITURA: A PALAVRA LITERÁRIA COMO EXPERIÊNCIA DO FORA

LAURENCE STERNE, MACHADO DE ASSIS, AND THE ACT OF READING: THE LITERARY WORD AS EXPERIENCE OF THE OUTSIDE

Resumo

Este artigo analisa Tristram Shandy (1759-1767), de Laurence Sterne, e Memórias póstumas de Brás Cubas (1881), de Machado de Assis, a partir do espelhamento que apresentam do leitor enquanto personagem que atualiza as faíscas de sentido nesse espaço do fora da linguagem, a partir do conceito de Maurice Blanchot. Os narradores Brás Cubas e Tristram Shandy se eximem de dar descrições completas de eventos e personagens para não macular a experiência literária de seus leitores. A perspectiva de ambos está no cerne do que configura essa experiência: ela se dá no espaço externo à palavra. Ler literatura implica levantar os olhos das páginas e mergulhar em outras dimensões das significações.

Palavras-chave:
Tristram Shandy; Memórias póstumas de Brás Cubas; leitura literária; experiência do fora

Abstract

This article analyzes Tristram Shandy (1759-1767), by Laurence Sterne, and The Posthumous Memoirs of Brás Cubas (1881), by Machado de Assis, considering the mirroring they present of the reader as a character who updates the sparks of meaning in that space of the outside language, based on the concept of Maurice Blanchot. The narrators Brás Cubas and Tristram Shandy refrain from giving full descriptions of events and characters so as not to tarnish the literary experience of their readers. The perspective of both is at the heart of what configures the literary experience: it is an experience that takes place in the space outside the word. Reading literature implies constantly lifting your eyes from the pages and diving into other dimensions of meanings.

Keywords:
Tristram Shandy; The Posthumous Memoirs of Brás Cubas; literary reading; experience of the outside

1. Introdução

Nos romances A vida e as opiniões do cavalheiro Tristram Shandy (1759-1767), do irlandês Laurence Sterne, e Memórias póstumas de Brás Cubas (1881), de Machado de Assis, há um questionamento radical do fazer literário até então praticado por seus contemporâneos e antecessores, no qual o grande coadjuvante é o leitor ou a leitora. Neste artigo, enfatiza-se a discussão dessa experiência de leitura em que a palavra literária funda o seu próprio universo, cria a sua própria realidade, segundo o conceito do fora de Maurice Blanchot (2011______. O espaço literário. Tradução de Álvaro Cabral. Rio de Janeiro: Rocco, 2011.). Os elementos da narrativa são apresentados para que os leitores de Sterne e Machado os vivenciem e isso torna a experiência indiscutivelmente real, já que, por meio da linguagem da ficção, eles são colocados em contato com o mundo imaginário, ou seja, o outro de todos os mundos, conforme Blanchot (2011______. O espaço literário. Tradução de Álvaro Cabral. Rio de Janeiro: Rocco, 2011.).

Muito se tem estudado sobre os pontos de contato entre esses dois textos, assim, também, sobre as suas divergências, pois são obras produzidas em tempos e contextos diferentes. Neste estudo, a ênfase está sobre as semelhanças para a indicação da experiência do fora nas duas obras. O diálogo entre Sterne e Machado é perceptível durante toda a leitura dos relatos de vida de seus protagonistas. É fato que o autor brasileiro conhecia a forma livre de Sterne, como Brás indica no prólogo "Ao leitor", pois, no levantamento que fez da biblioteca de Machado de Assis na década de 1960, Jean-Michel Massa (2014MASSA, Jean-Michel. A biblioteca de Machado de Assis. In: JOBIM, José Luís (Org.). A biblioteca de Machado de Assis. 2. ed. Rio de Janeiro: ABL; Topbooks, 2014. p. 21-90., p. 66) encontrou dois volumes de Sterne: Tristram Shandy e Uma viagem sentimental através da França e Itália, publicados em Londres em 1849 e 1861 respectivamente, e que, hoje, integram o acervo da Academia Brasileira de Letras.

A presença de Tristram Shandy na construção da narrativa de Brás Cubas tem movimentado os estudiosos de Machado em torno da afinidade entre eles. Desde a época da publicação de Memórias póstumas, a crítica literária aponta a participação do autor irlandês nesta obra do brasileiro.1 1 Ainda que de forma depreciativa, Sílvio Romero, em seu livro Machado de Assis, de 1897, foi talvez o primeiro crítico a perceber as semelhanças entre a forma dos romances. Com clara intenção de agredir o escritor, Romero declara: "O artifício evidente é a macaqueação de Sterne [...] a ilusão provém da maneira pela qual o autor distribui capítulos, imitando Sterne" (ROMERO, 1936, p. 82 e 85). Antonio Candido afirma que Romero não compreendeu a obra de Machado de Assis pois esta fugia da "orientação esquemática e maciçamente naturalista" do espírito do crítico sergipano (CANDIDO, 1977, p. 16). Dentre os estudos específicos que vinculam Laurence Sterne às Memórias póstumas, destacam-se, entre outros, a pesquisa de Enylton de Sá Rego (1989REGO, Enylton José de Sá. O calundu e a panaceia: Machado de Assis, a sátira menipeia e a tradição luciânica. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1989.), que indica a importância da sátira menipeia e da tradição luciânica ao filiar os dois autores a uma linhagem literária específica; os ensaios de Marta de Senna (1998SENNA, Marta de. O olhar oblíquo do Bruxo: ensaios em torno de Machado de Assis. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1998.), nos quais a pesquisadora compara Machado a Sterne e discute, especialmente, o pacto deles com o leitor e as considerações sobre a forma shandiana no romance de Machado, na interpretação de Sérgio Paulo Rouanet (2007ROUANET, Sérgio Paulo. Riso e melancolia: a forma shandiana em Sterne, Diderot, Xavier de Maistre, Almeida Garrett e Machado de Assis. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.).

Na produção de obras literárias a partir do século XVIII, e com maior ênfase no século XIX, há uma frequente tensão entre o leitor idealizado pelo escritor e a relação verdadeira entre eles tanto nos grandes centros dessa produção quanto nos países periféricos que buscavam modelos alternativos para desenvolver suas literaturas, como aponta Hélio de Seixas Guimarães (2004GUIMARÃES, Hélio de Seixas. Brás Cubas e a textualização do leitor. In: ______. Os leitores de Machado de Assis: o romance machadiano e o público de literatura no século 19. São Paulo: Edusp; Nankin, 2004. p. 175-193.). Um exemplo dessa tensão pode ser observado nos romances de Sterne e Machado, ambos do período citado, que, além de ter uma recepção crítica cercada de polêmicas e contradições, se desmontam nas mãos do leitor e despertam a atenção para que perceba o que está por trás das palavras, fazendo-o compreender, pelos vazios narrativos, que o silêncio também fala.

2. A experiência do fora no espaço da palavra literária

A literatura é vista por Blanchot (1997BLANCHOT, Maurice. A parte do fogo. Tradução de Ana Maria Scherer. Rio de Janeiro: Rocco, 1997.) como uma experiência que cria um mundo a partir de uma linguagem que não mais remete ao uso real e que sequer se encontra dentro do pensamento. É a experiência do fora, pela palavra que se desprende do uso cotidiano e funda uma realidade própria a partir da experiência singular de cada leitor. Em sua função usual, subordinada ao mundo, as palavras estão coladas a suas significações. Em contrapartida, na ficção, a palavra não se encarrega da função de representar o mundo, mas, sim, de fundá-lo: é um novo tempo e espaço com delimitações menos salientes entre múltiplos mundos.

O real representado pela literatura, que existe a partir de e em cada leitor, acontece enquanto uma realização do irreal, ou seja, como uma negação do real, visto que é imaginário, pela perspectiva de Blanchot. Está aí a ideia de solidão e "violência aberta da obra"; como diz Blanchot (2011______. O espaço literário. Tradução de Álvaro Cabral. Rio de Janeiro: Rocco, 2011., p. 12), "a obra é solitária". Isso não implica, necessariamente, a falta do leitor e, sim, que essa solidão e esse apagamento estão, justamente, onde se opera sua função de se abrir à intimidade de quem a lê. No espaço da palavra literária, o mundo é desdobrado em outros mundos e, nestes, as certezas que regem a cultura e a história são abandonadas. Esta é a violência: a transgressão das leis.

Tatiana Salem Levy (2011LEVY, Tatiana Salem. A experiência do fora: Blanchot, Foucault e Deleuze. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2011.), ao analisar o pensamento de Blanchot, Foucault e Deleuze sobre a ideia do fora da linguagem na literatura, aponta que o "todo, ou nada, representado pela literatura se dá como acontecimento, não como ideia, uma vez que é realizado" (LEVY, 2011LEVY, Tatiana Salem. A experiência do fora: Blanchot, Foucault e Deleuze. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2011., p. 23). Nessa reflexão, tem-se a ideia de experiência literária que interessa a este artigo. A autora destaca que o realismo da ficção induz o leitor a um mundo onde é impossível se reconhecer. A ficção surge a partir do estranhamento, do que não tem relação com o espaço nem com o tempo do leitor, mas, enquanto o retira do primeiro, nele o coloca novamente. O leitor o percebe com outro olhar, "pois a realidade criada na obra abre no mundo um horizonte mais vasto, ampliado" (LEVY, 2011LEVY, Tatiana Salem. A experiência do fora: Blanchot, Foucault e Deleuze. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2011., p. 25).

Nesse processo, ocorre o desdobramento do mundo do leitor, que toma a forma de um espelho. Isso resulta na forma invertida, os seres e as coisas são trazidos por outro signo, a partir de um movimento de exteriorização. É nisso que consiste a experiência do fora, quando o mundo se desdobra em outras versões. Para Blanchot (2001______. A conversa infinita: a palavra plural. Tradução de Aurélio Guerra Neto. São Paulo: Escuta, 2001. v. 1.), o fora da palavra, ou seja, o fora da linguagem, o movimento de escrever atraído pelo fora surge onde cessa o discurso do narrador que chama de ausência da obra.

Nos romances de Sterne e Machado em estudo, essa relação de criação literária, que configura um deserto em que as palavras vagam, atingindo proporções múltiplas a partir do leitor, torna-se elemento autoficcional. O narrador tem consciência dessa função da literatura, de criar um mundo duplicado, com a possibilidade de duplicar o mundo do leitor para que ele também seja autoconsciente. A autoconsciência do leitor, porém, está fora das páginas, fora do mundo refletido por Sterne e por Machado. O leitor se vê refletido não pelo que os narradores dizem dele, ou pelo modo como se relacionam com os leitores-personagens. Ele se apercebe de si mesmo em sua experiência literária com aquela linguagem. Seu mergulho no espaço literário é único e não cabe a ele desvendar nenhum segredo por trás da linguagem. Não é para desvendar o significado da página marmórea ou da página pontilhada, isso implicaria congelar os sentidos, limitar as percepções, limitar a si mesmo. Como afirma Levy (2011LEVY, Tatiana Salem. A experiência do fora: Blanchot, Foucault e Deleuze. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2011., p. 50), "o segredo é a própria linguagem e não o que ela esconde - pois ela nada esconde. Promover encontros ao acaso, deixar fluírem, as palavras livremente, eis o que sucede quando a literatura alcança a experiência do fora".

3. A experiência do fora em Tristram Shandy e Memórias póstumas de Brás Cubas

Tanto Tristram Shandy quanto Brás Cubas, narradores-autores-personagens, iniciam as suas autobiografias cientes da impossibilidade da captura do real. É assim que os livros se tornam livres, que se desmontam e remontam, como quebra-cabeças. Quem adentra o mundo shandiano e o machadiano pertence, de certo modo, à comunidade dos leitores que se colocam ou se veem colocados no espaço literário. Esse leitor já conheceu os vazios dos protagonistas, já preencheu ou suspendeu suas certezas nas páginas em branco de Tristram (STERNE, 1984STERNE, Laurence. A vida e as opiniões do cavalheiro Tristram Shandy. Tradução de José Paulo Paes. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984., p. 598-599) e nas reticências da comunicação entre Brás e Virgília (ASSIS, 1986ASSIS, Machado de. Memórias póstumas de Brás Cubas. In: ______. Obras completas. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1986. v. 1, p. 511-639., p. 570). Já se viu no papel de criador ao reverberar em sua mente a página em preto sobre a morte de Yorick (STERNE, 1984STERNE, Laurence. A vida e as opiniões do cavalheiro Tristram Shandy. Tradução de José Paulo Paes. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984., p. 73-74) e os pontilhados do capítulo "De como não fui ministro d'Estado" (ASSIS, 1986ASSIS, Machado de. Memórias póstumas de Brás Cubas. In: ______. Obras completas. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1986. v. 1, p. 511-639., p. 627). Não mais se choca com a abstração, mas ela ainda é capaz de causar o choque frente ao próprio mundo e às próprias condições humanas.

Brás Cubas, em sua soberania sobre o leitor por ser um defunto autor dialogando com interlocutores vivos, "lava as mãos" ao reconhecer que estes buscavam uma narrativa fluida, linear, que prejudicaria "a integridade estética das Memórias" (ROUANET, 2007ROUANET, Sérgio Paulo. Riso e melancolia: a forma shandiana em Sterne, Diderot, Xavier de Maistre, Almeida Garrett e Machado de Assis. São Paulo: Companhia das Letras, 2007., p. 59), e decreta: "[…] o maior defeito deste livro és tu, leitor. Tu tens pressa de envelhecer, e o livro anda devagar [...]" (ASSIS, 1986ASSIS, Machado de. Memórias póstumas de Brás Cubas. In: ______. Obras completas. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1986. v. 1, p. 511-639., p. 583). Essa digressão dialoga com Tristram Shandy quando o narrador também preza por essas fugas do assunto principal para melhor representar o seu mundo. Mostra estar consciente sobre o impacto disso no leitor quando afirma: "[...] quanto mais escrevo, mais terei de escrever - e, por conseguinte, quanto mais vossas senhorias lerem, mais vossas senhorias terão de ler./ Será isso benéfico para os olhos de vossas senhorias?" (STERNE, 1984STERNE, Laurence. A vida e as opiniões do cavalheiro Tristram Shandy. Tradução de José Paulo Paes. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984., p. 294). Tristram declara o desejo de frustrar aqueles que esperam uma narrativa convencional, com começo, meio e fim. Para bem apreciar a obra, o leitor precisa estar atento às digressões que o transportam a diferentes tempos e espaços, num labirinto narrativo.

O trato com o real, tanto em Tristram Shandy como nas Memórias póstumas, não se orienta por ordenação linear e cronológica, visto que estão a trabalhar com aspectos de memória e sentimentos, que são impulsivos, concomitantes, rápidos e envolvem a percepção daquele que narra. A busca dos narradores, motivo das angústias que os levam a continuar variando os experimentos narrativos, consiste em contornar a impossibilidade de captar uma personalidade ou um evento em sua totalidade, numa ânsia em representar a essência das ideias que circundam o indivíduo, com todas as suas ambivalências e experiências. Os romances exploram os limites da palavra, do ato de contar uma história e do ato da leitura, tocando em outras formas de representação que o objeto gráfico permite, fornecendo elementos visuais dos mais diversos, numa abordagem que apreende diferentes ângulos por meio de congelamentos de cena.

De modo paradoxal, os dois textos estão construídos não apenas por meio de palavras, mas, também, por imagens, desenhos e pontuações livres. Diferentemente das palavras, que são insignificantes sem os sentidos aventados pela leitura (pelo leitor), as imagens arroladas nos livros de Sterne e de Machado existem por si sós: as páginas pretas, marmóreas e brancas, os desenhos, os asteriscos, as reticências - tudo isso constitui elementos materiais que existem independentemente do contexto da obra, carregam em si mesmos as significações por serem elementos visuais. Os signos que podem aventar não são sequer indispensáveis para o entendimento dos romances, ou seja, a materialidade das obras faz parte de seus espaços ficcionais, portanto, os livros, enquanto artefatos literários, se presentificam diante do leitor que os folheia, ainda que este se recuse a aderir ao pacto ficcional. Diante da transgressão das palavras, não se pode extrair uma significação. As obras também convidam o leitor a tornar-se espectador e a contemplar o silêncio.

Logo após as marcas gráficas, os narradores-autores sempre preenchem tais vazios com palavras. O leitor experimenta uma leitura de si mesmo nessa retomada dos vazios por palavras. Tem-se, por exemplo, as páginas preenchidas apenas com tinta preta em Tristram Shandy, nas quais se pode tentar uma definição de sua simbologia, ainda que o narrador nada diga a respeito delas: trata-se de uma representação do apagamento por completo do personagem Yorick, que morre e, portanto, sua mente e seu olhar deixam de existir, conforme o relato do narrador: "[...] Yorick seguiu Eugenius com os olhos, até a porta, - então fechou-os, - e nunca mais os abriu" (STERNE, 1984STERNE, Laurence. A vida e as opiniões do cavalheiro Tristram Shandy. Tradução de José Paulo Paes. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984., p. 72). No entanto, em seguida, apresenta as palavras que figuram na inscrição da lápide, destacando a frase em uma caixa e trazendo a leitura que os transeuntes fazem ao passar em frente do túmulo. Não apenas apresenta, como narra o que acontece nesse evento, repetindo, como se vê ao final da citação, a frase dita pelos passantes:

Dez vezes por dia o fantasma de Yorick tem o consolo de ouvir sua inscrição mortuária ser lida numa variedade de tons plangentes que bem denotam a geral piedade e estima por ele; [aqui o texto é interrompido por duas páginas pretas] - - pelo caminho que atravessa o cemitério e passa ao lado do túmulo, - nenhum transeunte avança sem deter-se para lançar-lhe um olhar, - e dar um suspiro, enquanto segue adiante. Ai do pobre Yorick! (STERNE, 1984, p. 72-75).

Entre a passagem descrita no parágrafo anterior e o momento da citação, as imagens pretas irromperam abruptamente na narrativa. Não foi dada significação, explicação ou título por parte do narrador, nem do autor sobre o que as duas páginas pretas significam. O leitor que prossegue a leitura e pensa nas imagens está contemplando o esvaziamento das significações do livro. Qualquer análise que venha a ser realizada a respeito de um possível sentido é mera construção discursiva sobre o nada. Não equivale às palavras, assim como as palavras não equivalem às ações, exigindo muito mais tempo para se escrever do que para viver, conforme declara o próprio narrador (STERNE, 1984STERNE, Laurence. A vida e as opiniões do cavalheiro Tristram Shandy. Tradução de José Paulo Paes. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984., p. 294).

Uma página com efeito similar pode ser encontrada no capítulo "Epitáfio", de Memórias póstumas, em que há a representação gráfica do túmulo da noiva de Brás Cubas, Nhã-loló. Com o título "Vá de intermédio", o capítulo anterior ao epitáfio insinua a transição entre o capítulo que o precede e que trata de uma descrição longa do caráter do cunhado de Brás, "O verdadeiro Cotrim", tio de Nhã-loló, e o capítulo com a notícia da morte dela no texto de sua lápide. Brás relata que, se não compusesse o "Vá de intermédio", o leitor levaria um forte susto. Refere-se a este como se estivesse a preveni-lo sobre a morte da noiva que foi súbita e inesperada durante a epidemia de febre amarela, assim como é súbito e inesperado o registro gráfico do óbito dentro da narrativa. Nesse jogo de avisar sem revelar o que realmente vai acontecer a seguir, pois não conta quem vai morrer no próximo capítulo, o narrador cria a expectativa, eleva o suspense com a pergunta que abre o texto, "Que há entre a vida e a morte? Uma curta ponte" (ASSIS, 1986ASSIS, Machado de. Memórias póstumas de Brás Cubas. In: ______. Obras completas. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1986. v. 1, p. 511-639., p. 620), fazendo com que a mancha gráfica na página represente, na sua concretude, a brevidade que deseja destacar no seu discurso desse capítulo com apenas sete linhas, para, só então, apresentar, em seguida, o epitáfio de Nhã-loló (ASSIS, 1986ASSIS, Machado de. Memórias póstumas de Brás Cubas. In: ______. Obras completas. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1986. v. 1, p. 511-639., p. 621):

_______ AQUI JAZ D. EULÁLIA DAMASCENA DE BRITO MORTA AOS DEZENOVE ANOS DE IDADE ORAI POR ELA! _______

Mesmo na leitura da inscrição na lápide, o leitor não tem a informação objetiva de quem se trata, pois conhece a noiva mais pelo apelido Nhã-loló. Seu nome de batismo só foi mencionado uma vez, brevemente, 32 capítulos antes, no intitulado "O jantar" (ASSIS, 1986ASSIS, Machado de. Memórias póstumas de Brás Cubas. In: ______. Obras completas. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1986. v. 1, p. 511-639., p. 601). O narrador parece forçar a memória de quem o lê para desvendar o mistério da identidade da falecida, como a testar a sua atenção na leitura do romance. A única possível sugestão, muito velada, é que seu pai era chamado de Damasceno, o que se aproxima do nome do meio da moça, apenas isso, mas não há nada mais que indique a filiação de d. Eulália. Como Tristram Shandy, Brás Cubas só preencherá esse vazio no capítulo seguinte ao epitáfio, com o título de "Desconsolação", no qual narra o que aconteceu com a noiva. Antes disso, fará o leitor contemplar o esvaziamento das significações de sua narrativa. Na suspensão de significado, desafia a argúcia e memória dele para que entenda quem morreu.

No texto de Laurence Sterne, o risco que o leitor corre é ter as suas suposições, que se sustentam por um fio invisível frente aos espaços em branco, quebradas ou confirmadas. Nas passagens em que surgem os asteriscos, por exemplo, há a seguinte situação: se o texto confirma o que está implicado ali na supressão, então saberá de eventos obscenos ou íntimos da mente das personagens; se não confirmar, as implicações terão sido fruto da mente do leitor. Como exemplo, tem-se o capítulo que trata da destinação que a natureza dá a cada coisa. O que move tais reflexões é a situação do tio de Tristram, Toby, que, por ter sido ferido na virilha quando em combate, suscita na viúva Wadman pensamentos que o narrador aborda de modo velado em sua retórica. Trata-se de saber se Toby ainda será capaz de desempenhar sua função sexual no caso de contraírem matrimônio. O narrador reflete, com ironia, que, ao moldar o homem com argila, a natureza poderia errar e o marido "pode tornar-se (como sabeis) demasiado duro, de um lado - ou não o bastante, por falta de calor, de outro [...]" (STERNE, 1984STERNE, Laurence. A vida e as opiniões do cavalheiro Tristram Shandy. Tradução de José Paulo Paes. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984., p. 602). Depois de perseguir algumas tantas metáforas concernentes ao assunto, declara que tio Toby foi agraciado pela natureza, e estava preparado para:

[...] todas as outras causas por que o matrimônio fora instituído - E por conseguinte * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * A DÁDIVA não foi invalidada pelo ferimento do tio Toby. (STERNE, 1984STERNE, Laurence. A vida e as opiniões do cavalheiro Tristram Shandy. Tradução de José Paulo Paes. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984., p. 602-603).

Os asteriscos são uma encenação, o modo de Tristram demonstrar o que se passa na mente da viúva Wadman, assim como a grafia com letras maiúsculas da palavra dádiva. É possível notar, entretanto, que a introdução dos asteriscos, ainda que colocados dentro de uma frase, não apresentam definição ou explicação. Além do mais, no início desse capítulo, Tristram já anuncia que o mundo está "cercado de mistérios e enigmas por todos os lados" (STERNE, 1984STERNE, Laurence. A vida e as opiniões do cavalheiro Tristram Shandy. Tradução de José Paulo Paes. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984., p. 602). Assim, a obra, visto que se constrói a partir da realidade, apresenta também os não ditos e os apagamentos das explicações.

Essa mesma intenção pode ser observada, de forma bem nítida, em dois capítulos de Memórias póstumas: "O velho diálogo de Adão e Eva" e "De como não fui ministro d'Estado" (ASSIS, 1986ASSIS, Machado de. Memórias póstumas de Brás Cubas. In: ______. Obras completas. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1986. v. 1, p. 511-639., p. 570 e 627). Neles, o vazio da página em branco é preenchido por reticências e não por asteriscos. No diálogo, há ainda a indicação dos nomes das personagens, Brás Cubas e Virgília, e as marcas de pontuação com pontos-finais, de interrogação e de exclamação no término de cada linha preenchida só por reticências, como se fosse o texto de uma peça teatral, mas sem palavras. Na explicação sobre o fracasso da carreira política de Brás, há somente reticências sem pontuação e, no início do capítulo seguinte, o narrador comenta: "Há cousas que melhor se dizem calando; tal é a matéria do capítulo anterior" (ASSIS, 1986ASSIS, Machado de. Memórias póstumas de Brás Cubas. In: ______. Obras completas. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1986. v. 1, p. 511-639., p. 627). Nesses dois capítulos, propositalmente, não há narrador nem palavras, o leitor fica apenas com as suas próprias conjecturas externas à narrativa e, dessa maneira, experimenta o fora ao preencher, mentalmente, o que lhe falta na leitura do livro.

Somente no espaço ficcional que está fora das páginas, o leitor das narrativas de Tristram e de Brás Cubas pode vagar pelos caminhos em que os narradores preveem a sua presença: é o momento de atualizar os vazios, de suspender as obrigações e as certezas. Nos romances, o olhar do narrador para o leitor só existe na medida em que o leitor o atualiza. Apenas se o leitor adentrar o espaço ficcional e suspender a concretude de seus pensamentos é que poderá entender que o narrador o percebe, notando que ele está fazendo um pacto com a leitura. É o efeito em cascata, a mise en abyme, que se concretiza: Sterne e Machado fazem dessa relação profunda da existência literária um elemento autoficcional. Há leitores na diegese constantemente fazendo e rompendo o pacto com o narrador.

Tristram e Brás convocam o leitor a expressar a sua própria subjetividade, garantindo que suas descrições não conseguirão descrever fidedignamente Mrs. Wadman ou Virgília. São elementos que envolvem o aspecto visual e aquilo que se sente diante de tal imagem. É uma experiência que o leitor precisaria viver, pois palavras não seriam capazes de lhe comunicar o equivalente. Assim, vê-se refletido no instante de leitura pelo texto do narrador e pela tessitura do livro que apresenta um papel em branco ou pontilhado e diz que compete ao leitor fazer esse trabalho na construção do enunciado. O leitor, então, toma consciência de como está lendo, de como não sabe de fato quais são os traços das personagens, podendo surgir o receio de imaginar algo errado sobre elas. Dessa forma, entra-se no jogo de metamorfoses em que parece que o narrador fala com quem o lê, quando na verdade esse ser é múltiplo, invisível, assim como permanecem invisíveis as imagens da viúva e da amante. Nesse momento, há a troca constante de modelo e espectador.

O leitor experimenta o intenso dilema que também angustia o narrador: como ver por completo a alma e o caráter de um homem e como transmiti-la ao mundo. Assim, é levado à ação criativa e sente a experiência de sua própria criação de vazio. Aos seus olhos, inúmeras aberturas se formam: são as trilhas do labirinto ficcional, mas cada qual terá uma combinação diferente para cada leitor. Na relação dialógica entre o texto e o indivíduo, cada uma das partes ressoantes trará significações únicas que só existirão a partir de cada experiência que lhe for colocada à frente.

Ao ser trazido ao centro da narrativa, o leitor vai criar aquilo que falta, aquilo que os autores não puderam concretizar. Tristram reluta em deixar aspectos de si nas páginas, que poderão ser interpretadas de modos tão diferentes, até mesmo quando ele próprio desconhece seus significados. O narrador, por vezes, roga ao leitor para que não culpe o autor pelo que se cria em sua mente, pois o que ele pensa, e que de certo modo o choca, é fruto de sua própria imaginação. Assim, pede ao leitor que considere a questão e não coloque a culpa inteiramente no livro:

Eu lhe disse, senhor - porquanto, na verdade, quando um homem se põe a contar uma história da estranha maneira por que conto a minha, vê-se continuamente obrigado a ir ora para trás, ora para a frente, a fim de manter tudo bem coeso na imaginação do leitor [...] (STERNE, 1984STERNE, Laurence. A vida e as opiniões do cavalheiro Tristram Shandy. Tradução de José Paulo Paes. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984., p. 452).

Nessa passagem, Tristram pede consideração e cuidado ao leitor, enquanto ele próprio se vê desorientado, perdido. Já para Brás, essa desorientação é o próprio "senão do livro", título do capítulo LXXI, quando confessa: "[...] tu amas a narração direta e nutrida, o estilo regular e fluente, e este livro e o meu estilo são como ébrios: guinam à direita e à esquerda, andam e param, resmungam, urram, gargalham, ameaçam o céu, escorregam e caem..." (ASSIS, 1986ASSIS, Machado de. Memórias póstumas de Brás Cubas. In: ______. Obras completas. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1986. v. 1, p. 511-639., p. 583). Por isso, os dois narradores convocam o leitor para dar forma aos seus relatos, o que permite a experiência do fora.

4. A experiência do fora e a crítica

Dentre a vasta fortuna crítica das duas obras, opta-se, aqui, por mencionar, brevemente, apenas quatro críticos que ratificam as características narrativas das obras com as quais se torna possível corroborar o conceito de experiência do fora de Blanchot.

A crítica e escritora Susan Sontag (2020SONTAG, Susan. Vidas póstumas: o caso de Machado de Assis. In: ______. Questão de ênfase: ensaios. Tradução de Rubens Figueiredo. São Paulo: Companhia de Bolso, 2020. p. 41-53.), no ensaio que trata das Memórias póstumas publicado na revista The New Yorker em 1990, considera que, ao mesmo tempo que o narrador de Machado de Assis está preocupado com o leitor, este poderia questionar "se o narrador entende todas as implicações daquilo que está sendo contado" (SONTAG, 2020SONTAG, Susan. Vidas póstumas: o caso de Machado de Assis. In: ______. Questão de ênfase: ensaios. Tradução de Rubens Figueiredo. São Paulo: Companhia de Bolso, 2020. p. 41-53., p. 48). Essas implicações são percebidas na experiência do fora que o leitor experimenta, pois cabe a ele lidar com os vazios que a narrativa traz. Com essência fundamentalmente shandiana, a ironia no discurso e no próprio livro de Brás Cubas, começando após a morte, é o contraponto e, ao mesmo tempo, o equivalente ao livro de Tristram. Este é visto por Sontag como o principal modelo para Machado testar a atenção de seus leitores por meio de ritmos narrativos esfuziantes e marcas tipográficas, que considera recursos complexos de sedução. Ao término do ensaio, faz uma reflexão sobre Machado ser um precursor dos escritores modernos pela sua originalidade e lucidez.

Impressão similar teve Virginia Woolf (1960WOOLF, Virginia. The "Sentimental Journey". In: ______. The Second Common Reader. New York: Harcourt, Brace & World, 1960. p. 68-75.), ao se colocar como leitora de Sterne em ensaio de 1928. Comenta que ele transfere o interesse do exterior do livro, na sua materialidade, para o interior dos leitores, pois estes devem consultar suas próprias mentes para entender a importância das comparações que sua narrativa instiga e acrescenta: "No interesse pelo silêncio e não pela fala, Sterne é o precursor dos modernos" (WOOLF, 1960WOOLF, Virginia. The "Sentimental Journey". In: ______. The Second Common Reader. New York: Harcourt, Brace & World, 1960. p. 68-75., p. 71, tradução nossa). Por essas razões, ele estaria muito mais íntimo do leitor de hoje do que seus grandes contemporâneos. Particularmente sobre Tristram Shandy, Woolf observa: "Em nenhum outro livro o autor e o leitor estão tão envolvidos" (WOOLF, 2020______. Fases da ficção. In: ______. A leitora incomum: Virginia Woolf. Tradução de Emanuela Siqueira. Curitiba: Arte & Letra, 2020. p. 45-134., p. 116).

O crítico sterneano Melvyn New (2002NEW, Melvyn. Job's Wife and Sterne's Other Women. In: WALSH, Marcus (Org.). Laurence Sterne. London: Pearson, 2002. p. 69-90.) discorre sobre a relação de Sterne com os sentidos, as palavras e a comunicação. Para o estudioso, quando o autor se abstém de nomear e evitar as expectativas de ordem e dominação decorrentes é que o leitor alcança, de forma sutil, as associações e correspondências criativas, as comunicações e os intercâmbios que, em momentos fortuitos, o prendem a uma busca vã de sentido. Esse mesmo efeito da palavra literária está presente no romance de Machado de Assis. Não há, nas duas narrativas, o conforto para o leitor mergulhar num tempo-espaço que lhe permita vislumbrar outras vidas. Seus textos têm estruturas desconcertantes, que se apresentam ao leitor de forma, também, a desconcertá-lo abalando as suas certezas, o que se concretiza quando este experimenta o fora, como Blanchot (2001______. A conversa infinita: a palavra plural. Tradução de Aurélio Guerra Neto. São Paulo: Escuta, 2001. v. 1.) o conceitua.

Ao analisar Memórias póstumas de Brás Cubas, Décio Pignatari (2004PIGNATARI, Décio. "Rabisco sem intenção alfabética". In: ______. Semiótica e literatura. 6. ed. Cotia: Ateliê, 2004. p. 133-151.) afirma que, em Tristram Shandy assim como em Brás Cubas: "a todo momento, leitor, autor e narrador são apartados da alienação narrativa por acidentes gráficos e tipográficos, que os despertam para o fato de que estão lendo um livro, um livro e nada mais - words, words, words" (PIGNATARI, 2004PIGNATARI, Décio. "Rabisco sem intenção alfabética". In: ______. Semiótica e literatura. 6. ed. Cotia: Ateliê, 2004. p. 133-151., p. 151). De fato, os aspectos gráficos e tipográficos são interferências na leitura e na narrativa, colocando-se como ponte para a percepção material da obra, mas as linhas que se criam aí vão além do âmbito pragmático do visual, pois o leitor, ao olhar os desenhos e os espaçamentos gráficos dos romances, dificilmente tem a ideia de que se trata de algo que o conecta tão intimamente aos autores, que esteja frente à organização e ao desenho deles próprios. O leitor reconhece a distância que separa as reproduções dos manuscritos originais, consciente inclusive da interferência da máquina de impressão nas páginas que visualiza. Para além disso, está o inevitável sentido que adentra a imaginação ao perceber tais ações do narrador-autor (o termo em destaque também é utilizado por Pignatari). O resultado tipográfico que se vê é entendido a partir da percepção de que Tristram e Brás são autores no espaço literário. Na experiência do fora da linguagem literária está o leitor. Sendo assim, não se trata apenas de uma tentativa dos autores de representar o abismo entre vida e texto, mas, também, de permitir ao leitor fruir justamente o que acontece com ele diante dessa ausência de significado.

5. Considerações finais

A linguagem é uma convenção e assim também é o discurso. Tristram e Brás Cubas discorrem justamente sobre a limitação das convenções discursivas para o texto com vias a representar a realidade. Querem comunicar suas opiniões, mas querem comunicar, também, os sentimentos que as acompanham. Para isso, o discurso é completamente ineficiente, pois nunca conseguiriam conclui-lo. Encenam, portanto, outros modos de aventar significações.

A história principal é sobre como exercer a função de narrador, sobre como ser o mediador entre o visto, ouvido, lido, sentido e percebido e como transmitir isso sem alterar completamente aquela realidade dada em um contexto específico, por outras pessoas. Esse processo de narrar envolve também o processo de entregar isso à posteridade, cujo método eleito é o do livro. Poderia ter sido a música, a pintura, o teatro, mas, como foi escolhido o livro, é preciso, então, encarar a impossibilidade de congelar os significados da palavra, garantindo que a compreensão atenda a seus desejos. Não sendo isso possível, busca-se operar sinais visuais que vão desde marcas e desenhos até vazios, que, interrompendo a voz autoral, permitirão percepções e compreensões de coisas que estão por detrás das palavras, compondo o evento, ou seja, considerando por esse viés, tem-se uma obra que reflete sua criação enquanto jornada do narrador-autor-personagem. É a palavra criando a experiência literária, transformando essa experiência, que está fora das páginas, em parte integrante da obra.

O narrador-autor fala com os editores, dialoga com a crítica, e visualiza as possíveis leituras e os tipos de leitores que sua narrativa terá. Assim, não são somente words, words, words, mas também, simultaneamente, a concretização visual dos desejos do narrador que busca exprimir que a leitura implica muito mais do que decodificação, que ler a linguagem do mundo envolve compreender o discurso a partir de um tempo e de um espaço em todas as suas implicações e circunstâncias. Considerado a primeira antinarrativa do mundo moderno, Tristram Shandy faz parte da linhagem dos que saturam o código com rabiscos sem intenção de formar palavras ou indicar um significado único e absoluto. É a antinarrativa que apregoa a essência do que é uma narrativa, representando suas limitações e suas possibilidades. A narrativa só se torna possível no momento em que reconhece sua posição de incompletude.

Os narradores Tristram e Brás Cubas desestruturam a própria noção do eu, questionam e atravessam as inconstâncias. Percebendo-se fragmentados, pressupõem também um leitor que possa se desdobrar, sair de uma estrutura consolidada, numa leitura que é inesgotável, com deslocamento infinito, pois cada leitor produzirá, na sua experiência do fora, uma narrativa diversa.

Referências

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  • ______. A conversa infinita: a palavra plural. Tradução de Aurélio Guerra Neto. São Paulo: Escuta, 2001. v. 1.
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  • CANDIDO, Antonio. Esquema de Machado de Assis. In: ______. Vários escritos. 2. ed. São Paulo: Duas Cidades, 1977. p. 13-32.
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  • NEW, Melvyn. Job's Wife and Sterne's Other Women. In: WALSH, Marcus (Org.). Laurence Sterne. London: Pearson, 2002. p. 69-90.
  • PIGNATARI, Décio. "Rabisco sem intenção alfabética". In: ______. Semiótica e literatura. 6. ed. Cotia: Ateliê, 2004. p. 133-151.
  • REGO, Enylton José de Sá. O calundu e a panaceia: Machado de Assis, a sátira menipeia e a tradição luciânica. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1989.
  • ROMERO, Sílvio. Machado de Assis. Organização de Nelson Romero. 2. ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1936.
  • ROUANET, Sérgio Paulo. Riso e melancolia: a forma shandiana em Sterne, Diderot, Xavier de Maistre, Almeida Garrett e Machado de Assis. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.
  • SENNA, Marta de. O olhar oblíquo do Bruxo: ensaios em torno de Machado de Assis. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1998.
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  • STERNE, Laurence. A vida e as opiniões do cavalheiro Tristram Shandy. Tradução de José Paulo Paes. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984.
  • WOOLF, Virginia. The "Sentimental Journey". In: ______. The Second Common Reader. New York: Harcourt, Brace & World, 1960. p. 68-75.
  • ______. Fases da ficção. In: ______. A leitora incomum: Virginia Woolf. Tradução de Emanuela Siqueira. Curitiba: Arte & Letra, 2020. p. 45-134.
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    Ainda que de forma depreciativa, Sílvio Romero, em seu livro Machado de Assis, de 1897, foi talvez o primeiro crítico a perceber as semelhanças entre a forma dos romances. Com clara intenção de agredir o escritor, Romero declara: "O artifício evidente é a macaqueação de Sterne [...] a ilusão provém da maneira pela qual o autor distribui capítulos, imitando Sterne" (ROMERO, 1936ROMERO, Sílvio. Machado de Assis. Organização de Nelson Romero. 2. ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1936., p. 82 e 85). Antonio Candido afirma que Romero não compreendeu a obra de Machado de Assis pois esta fugia da "orientação esquemática e maciçamente naturalista" do espírito do crítico sergipano (CANDIDO, 1977CANDIDO, Antonio. Esquema de Machado de Assis. In: ______. Vários escritos. 2. ed. São Paulo: Duas Cidades, 1977. p. 13-32., p. 16).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    02 Dez 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    26 Ago 2022
  • Aceito
    30 Out 2022
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