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MACHADO DE ASSIS EM GÊNERO MISTO: O CAVALO DE AQUILES, A ILÍADA DE REALEJO E A CÓLERA DO ALMADA

MACHADO DE ASSIS IN MIXED STYLE: THE HORSE OF ACHILLES, THE BARREL ORGAN ILIAD AND THE WRATH OF ALMADA

Resumo

O romance Memórias póstumas de Brás Cubas, a crônica de Manassés datada de 15 de janeiro de 1877 e o inacabado poema herói-cômico conhecido como "O Almada" entrecortam-se nos efeitos burlescos decorrentes dos usos livres e heteróclitos das convenções retóricas de decoro e de verossimilhança dos gêneros elevados. Mirando esses efeitos, Machado de Assis mescla registros altos e baixos de estilo: ora rebaixa figuras, ora as eleva com ironia, mediante expedientes discursivos que, para fazer rir, desbaratam hierarquias social, política e economicamente constituídas.

Palavras-chave:
Machado de Assis; retórica; decoro; verossimilhança; gênero misto

Abstract

The novel Memórias póstumas de Brás Cubas, the chronicle of Manassés published on January 15, 1877 and the unfinished mock-heroic poem known as "O Almada" intersect in the burlesque effects resulting from the free and heteroclite uses of rhetorical conventions of decorum and verisimilitude of sublime genres. Aiming at these effects, Machado de Assis mixes high and low registers of style: sometimes he demotes characters, sometimes elevates them with irony, through discursive expedients that, to make one laugh, dismantle socially, politically and economically constituted hierarchies.

Keywords:
Machado de Assis; rhetoric; decorum; verisimilitude; mixed style

O cavalo de Aquiles

Entre o viço e a lazeira do corcel, primeiro forjado como nunca houve, até a exaustão, depois carcomido de vermes, insinua-se, com uma piscadela, o hipopótamo. Mas bem poderia ser o camelo bactriano de Luciano de Samósata (II d.C.) ou o de François Rabelais (1490-1553), prodigioso espécime que, em ambos os autores, figura a mistura de gêneros, harmonizados sempre sob o risco de que o discurso de registro misto seja encarado como disjuntivo e dissimétrico por leitores incapazes de apreciar com assombro a narrativa heteróclita (BRANDÃO, 2001BRANDÃO, Jacynto Lins. A poética do hipocentauro: literatura, sociedade e discurso ficcional em Luciano de Samósata. Belo Horizonte: UFMG, 2001., p. 79). Os de Memórias póstumas de Brás Cubas (1880; 1881), os menos frívolos e os menos graves, devem se lembrar de que, há duzentos anos, em 1822, de acordo com o relato do caprichoso defunto autor, vinha a independência política, "a nossa", e o primeiro cativeiro pessoal, o do jovem Brás Cubas. Ele, então "lindo garção" de dezessete anos, "lindo e audaz, que entrava na vida de botas e esporas, chicote na mão e sangue nas veias" (ASSIS, 2015______. Obra completa. São Paulo: Nova Aguilar, 2015. 4 v., v. I, p. 617), experimentado, desde a infância, na cavalgadura de todos os dias, esta que logo ensina a violência do mando e do desmando, apontava montando num

corcel nervoso, rijo, veloz, como o corcel das antigas baladas, que o romantismo foi buscar ao castelo medieval, para dar com eles nas ruas do nosso século. O pior é que o estafaram a tal ponto, que foi preciso deitá-lo à margem, onde o realismo o veio achar, comido de lazeira e vermes, e, por compaixão, o transportou para os seus livros (ASSIS, 2015______. Obra completa. São Paulo: Nova Aguilar, 2015. 4 v., v. I, p. 618).

Figurando o jovem cavaleiro e, em particular, a montaria por meio da alusão a lugares-comuns românticos e realistas, referidos com brevidade, o morto de imediato os desfigura com ironia, de maneira a dissolver, simultaneamente, um e outro modo de figuração, como há muito analisou Enylton de Sá Rego (1989REGO, Enylton de Sá. O calundu e a panaceia: Machado de Assis, a sátira menipeia e a tradição luciânica. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1989., p. 133-135). Nessa página de Memórias póstumas de Brás Cubas, alegoriza-se a sucessão, no tempo, dos procedimentos de escola, e, negando-os duplamente, o defunto autor recusa formas de convenção da enunciação narrativa - afinal, é disso que se trata: desviante, nem adere à atualização de ações cavalheirescas, bem ao gosto dos romances históricos de Walter Scott (1771-1832) ou de Alexandre Herculano (1810-1877), por exemplo, nem acata o realismo da representação do morto, o que, para Machado, no fim da década de 1870, é, em língua portuguesa, próprio de Eça de Queirós (1845-1900), na exação fotográfica de inventário das coisas vis (AZEVEDO et al, 2013______; et al. (Org.). Machado de Assis: crítica literária e textos diversos. São Paulo: Editora Unesp, 2013., p. 469; ROCHA, 2013ROCHA, João Cezar de Castro. Machado de Assis: por uma poética da emulação. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2013., p. 107-149).

Essa dupla recusa evidencia-se por meio da narrativa de ficção, no desdobramento cômico do episódio: no plano do enunciado, o que resta, enfim, ao jovem Brás Cubas, é rumar ao coração de Marcela, cavalgando "um asno de Sancho", porque, na enunciação, não sem muita ironia, já se toma o corcel por estafado pelos usos românticos e também por devorado pela novidade realista (ASSIS, 2015______. Obra completa. São Paulo: Nova Aguilar, 2015. 4 v., v. I, p. 616). Agindo ao modo de Sancho Pança, personagem de Miguel de Cervantes (1547-1616), o "lindo garção" da "árvore dos Cubas" é destituído da audácia e da disposição senhoril forjadas pelas esporas e pelo chicote e, sendo desclassificado pelas argúcias do morto, torna-se risível. Atento aos imperativos da enunciação, o leitor de Memórias póstumas de Brás Cubas deve saber que, em literatura, por força da invenção narrativa, tudo é arbítrio, e são retóricos os critérios que orientam a composição ficcional. Essa recusa, enfim, dedicada a corroer o horizonte de expectativas de leituras as mais ingênuas, graves ou frívolas, deve aqui evidenciar o óbvio: a arbitrariedade retórica dos procedimentos compositivos de Machado - e, nisso, é operante a escolha da prosa de tradição satírica pendente de Luciano de Samósata, cuja ficção exibe, de modo desabrido e desabusado, ao pendular parodicamente por matérias e por registros dissonantes, o fingimento muito livre dos confins do verdadeiro e do verossímil (BRANDÃO, 2001BRANDÃO, Jacynto Lins. A poética do hipocentauro: literatura, sociedade e discurso ficcional em Luciano de Samósata. Belo Horizonte: UFMG, 2001., p. 49; HANSEN, 2006HANSEN, João Adolfo. "O imortal" e a verossimilhança. Teresa - Revista de Literatura Brasileira, São Paulo, n. 6-7, p. 56-78, 2006., p. 62).

Logo, os termos "romantismo" e "realismo", na voz de Brás Cubas, não definem extratos do tempo incontornáveis - como se as práticas de escrita fossem irredutíveis a condicionantes idealistas de qualquer espécie -, mas formas (sempre plurais) de pensar o romance como gênero e de escrevê-lo, historiáveis evidentemente. Aqui, as formas ditas românticas ou realistas são rechaçadas, apesar de familiares aos destinatários das narrativas de ficção oitocentistas, e o piparote dá-se às claras, pois Machado, muitíssimo ciente da "natureza artificial e técnica da frase literária" (MERQUIOR, 1972MERQUIOR, José Guilherme. Gênero e estilo das Memórias póstumas de Brás Cubas. Revista Colóquio/Letras, n. 8, p. 12-20, jul. 1972., p. 20), ostenta a linguagem que a perfaz, porque espera que o leitor não se esqueça de que as flores da arte humana são flores de retórica e, como tais, contingentes e convencionais. Espera, no mais, que esse leitor, atentando aos fios ficcionais enredados na narrativa, não lhes naturalize a tessitura nem leia o defunto autor como se lesse os narradores românticos ou realistas fingidos em profusão no século XIX, senão que saiba, por contraste, conhecendo tanto o edifício como o andaime, reconhecer e adentrar as variantes literárias feitas de misturas de gênero, múltiplas na malha discursiva intervalar que há entre o rés do chão da galhofa e a gravidade da melancolia.

O defunto autor, posto que submetido à ruína do tempo e à voracidade dos vermes, como ocorre com o mesmo corcel deixado a perecer à margem, fala da eternidade do nada, de forma tal que só pode plasmar a enunciação ficcional: essa fala não aconteceu e sequer poderia acontecer (BRANDÃO, 2001BRANDÃO, Jacynto Lins. A poética do hipocentauro: literatura, sociedade e discurso ficcional em Luciano de Samósata. Belo Horizonte: UFMG, 2001., p. 49; HANSEN, 2006HANSEN, João Adolfo. "O imortal" e a verossimilhança. Teresa - Revista de Literatura Brasileira, São Paulo, n. 6-7, p. 56-78, 2006., p. 62). E como um morto que fala, padecendo a miséria de toda criatura, Brás Cubas nunca deixa de ser um equivalente discursivo de Xanto, o cavalo de Aquiles, da asna de Balaão e do hipopótamo que o conduz à origem dos séculos, a animália falante que é referida no capítulo "O delírio". Eles todos, seres de prosopopeia e de figuração fantástica, como o camelo bactriano, tragicômicos no ridículo que barateia a dignidade que possam aparentar ter, para a leitura cáustica de quem, sempre faceando a morte, deve saber desfrutar da corrosão de Brás Cubas e dos seus, figuras infladas do progresso, do nacionalismo, do racismo, da propriedade, do mando, da escravidão etc., etc., etc., no tempo de Machado.

A Ilíada de realejo

Com a pena de Manassés, persona que assina as "Histórias de Quinze Dias", na revista Ilustração Brasileira, entre 1876 e 1878, Machado veio a publicar, no dia 15 de janeiro de 1877, uma crônica que guarda a estranheza do estilo incerto dos ébrios, tão comum a Memórias póstumas de Brás Cubas. Essa crônica, embora concisa e desataviada, feita de hiatos e ironias, divide-se em livros como se fosse obra canônica, e os três livros em que se divide, semelhantemente breves, emparelhando o austero e o ridículo, são intitulados, em tipos altos, da seguinte maneira: "ALELUIA! ALELUIA!", "AQUILES, ENEIAS, DOM QUIXOTE, ROCAMBOLE" e "SUPRESSÃO DO ESTÔMAGO". Lida em minúcia por Rego (1989REGO, Enylton de Sá. O calundu e a panaceia: Machado de Assis, a sátira menipeia e a tradição luciânica. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1989., p. 143-144), a crônica abre-se, enquadrada pela exclamação bíblica de efusiva ironia, saudando o retorno de Rocambole, heroico personagem de seriados folhetins franceses do visconde Pierre Alexis Ponson du Terrail (1829-1871). Machado escreve em 1877, logo que chega às livrarias Le retour de Rocambole, obra escrita por Constant Guéroult (1814-1882), - diz-se - à luz de notas deixadas pelo autor defunto Ponson du Terrail. Muito irônica, ironicamente evidente para o mais desatento leitor, sugere Rego (1989REGO, Enylton de Sá. O calundu e a panaceia: Machado de Assis, a sátira menipeia e a tradição luciânica. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1989., p. 144), a saudação de Manassés vem do entusiasmo renovado de todos os que - ausente o herói - antes andavam "sorumbáticos, caquéticos, raquíticos, misantrópicos e calundúticos" e que já se podem imaginar, com a publicação das novas aventuras, livres da tristeza e da melancolia "sem motivo nem consciência" (ASSIS, 2015______. Obra completa. São Paulo: Nova Aguilar, 2015. 4 v., v. IV, p. 314).

Desse modo, louvado com toda a ironia, mas nunca lido por Manassés, como confessado, se confissões aqui há, Rocambole é, na crônica, equivalente a "uma panaceia anticatarral" que, à maneira do emplasto Brás Cubas que promete remediar a melancolia dos seres, seja capaz de curar "a troco de cinco ou seis mil-réis" (ASSIS, 2015______. Obra completa. São Paulo: Nova Aguilar, 2015. 4 v., v. IV, p. 315; REGO, 1989REGO, Enylton de Sá. O calundu e a panaceia: Machado de Assis, a sátira menipeia e a tradição luciânica. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1989., p. 144). E assim o rocambolesco romance é lançado por terra: Manassés metaforiza-o como discurso de propriedades farmacêuticas e medicinais, e, tal as drogas dos anúncios dos jornais, que demandam complacência e amolam "os olhos e a paciência do leitor", ganha o ar das coisas úteis, como as serrilhas "de todas as cores e feitios", tendo a prontidão familiar do que promete sempre o mesmo, no "século das serrilhas" (ASSIS, 2015______. Obra completa. São Paulo: Nova Aguilar, 2015. 4 v., v. IV, p. 315). Nesse século, cada novo romance de Rocambole, figurando, em novas aventuras, um herói "pimpão, audaz, intrépido, prestes a mudar de cara e de roupa e de feitio, a matar, roubar, pular, voar e empalmar", compõe, para a persona machadiana, uma "Ilíada de realejo",1 1 Silvia Maria Azevedo (2011, p. 10) destaca a mistura do alto e do baixo na construção da metáfora "Ilíada de realejo". uma espécie de epopeia burlesca em prosa de repetidas reviravoltas, operada ao modo do instrumento mecânico a manivela.2 2 Machado faz troça com o título L'orgue de Barbarie [O realejo], obra de Ponson du Terrail datada de 1869 e publicada no Brasil pelo Clube do Livro, em 1958, como O homem do realejo. Compreende-se, assim, que, no "pasto cotidiano dos jornais de um tostão" que é o romance de folhetim rocambolesco, na feliz definição de Marlyse Meyer (1991, p. 78), a ficção é bem domesticada em termos inventivos e estilísticos e, ademais, ela feita de clichês que o prelo produz por atacado, como moeda de fácil troca para render outros tantos trocados, prometendo curas, reclamando a condescendência das panaceias e das serrilhas, demonstrando a solicitude das boas almas e, enfim, satisfazendo o leitor que nada deseja estranhar (ASSIS, 2015______. Obra completa. São Paulo: Nova Aguilar, 2015. 4 v., v. IV, p. 315). Não é esse o leitor implícito de Memórias póstumas de Brás Cubas nem o de Manassés. Sabemos todos, Machado nunca confundiu literatura com bom-mocismo.

O arremate de "ALELUIA! ALELUIA!" soa já sabido a quem hoje, conhecendo o romance, chega à crônica estampada em 1877. Assemelhando-se, em retrospectiva, ao episódio do aventuroso corcel desgastado na banalidade dos usos narrativos e literários, Rocambole é, na avaliação de Manassés, com uma ponderação que escarnece, a síntese desse século de serrilhas e de panaceias, como se lê: "E sem embargo de não o haver lido, mas visto e ouvido somente, gosto dele, admiro-o, respeito-o, porque ele é a flor do seu e do meu século, é a representação do nosso Romantismo caduco, da nossa grave puerilidade" (ASSIS, 2015______. Obra completa. São Paulo: Nova Aguilar, 2015. 4 v., v. IV, p. 315). Embora a avaliação convide à leitura anacrônica, propondo que o folhetim de Ponson du Terrail seja "a flor da hipocondria" de um tempo como esse, é certo que a sutileza do oximoro, que concilia o caduco e o pueril (REGO, 1989REGO, Enylton de Sá. O calundu e a panaceia: Machado de Assis, a sátira menipeia e a tradição luciânica. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1989., p. 144), reside na afirmação machadiana de que existe uma insistência algo inocente no que se deveria julgar caidiço, a saber, a forma de figuração reconhecida como romântica, sendo de "grave puerilidade" não inferir o óbvio: a caducidade da escrita de obras dessa mesma cepa, essas "de realejo". Quais autores ou obras os termos "nosso Romantismo" abarcam, isso se cala, mas se o pronome pessoal implica a nacionalidade do romantismo em questão, "o nosso", Manassés sugere que autores ou obras brasileiros sejam bem representados pelo folhetim francês. Aos nacionalistas oitocentistas, talvez a ironia despertasse embaraços; porém, nem no nacionalismo nem nos fetiches que o embalaram no século XIX parece mirar a estocada de Manassés. A prosa que floresce caduca não resulta de aclimatação mal-arranjada; não importa a cor local. Na leitura d'O calundu e a panaceia, é o prefácio de Cromwell (1827), de Victor Hugo (1802-1885), que fornece a chave para a compreensão da posição vituperante de Machado. Caduca e pueril é a crença, em Paris ou no Rio de Janeiro, de que permaneçam vigorosos os princípios hugoanos do sublime e do grotesco (REGO, 1989REGO, Enylton de Sá. O calundu e a panaceia: Machado de Assis, a sátira menipeia e a tradição luciânica. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1989., p. 138-145). Quiçá sejam inverossímeis esses princípios quando se escreve literatura que se sabe linguagem (BARTHES, 2012BARTHES, Roland. O rumor da língua. Tradução de Mário Laranjeira. São Paulo: Martins Fontes, 2012., p. 13) e quando impera a consciência "da historicidade dos modos de escrever e consumir ficção" (HANSEN, 2006HANSEN, João Adolfo. "O imortal" e a verossimilhança. Teresa - Revista de Literatura Brasileira, São Paulo, n. 6-7, p. 56-78, 2006., p. 70-71).

Ora, no que segue, a "Ilíada de realejo" é a Ilíada daquele tempo, o presente histórico de publicação da crônica de "Histórias de Quinze Dias", como o mais recente passo numa "teoria da evolução do espírito épico através das idades" (REGO, 1989REGO, Enylton de Sá. O calundu e a panaceia: Machado de Assis, a sátira menipeia e a tradição luciânica. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1989., p. 137). Com o vezo da ironia, Manassés propõe, em "AQUILES, ENEIAS, DOM QUIXOTE, ROCAMBOLE", que esses quatro heróis personifiquem diferentes idades do espírito humano, nas várias Ilíadas, no plural, que os formam. No princípio, havia Homero (ca. VIII a.C.) e Aquiles:

Na infância o herói foi Aquiles, - o guerreiro juvenil, altivo, colérico, mas simples, desafetado, largamente talhado em granito, e destacando um perfil eterno no céu da loura Hélade. Irritado, acolhe-se às tendas; quando os gregos perecem, sai armado em guerra e trava esse imortal combate com Heitor, que nenhum homem de gosto lê sem admiração; depois, vencido o inimigo, cede o despojo ao velho Príamo, nessa outra cena, que ninguém mais igualou ou nem há de igualar (ASSIS, 2015______. Obra completa. São Paulo: Nova Aguilar, 2015. 4 v., v. IV, p. 315-316).

Sucede-o, na breve descrição de Manassés, Eneias, personagem cujas ações são plasmadas na Eneida de Vergílio (I a.C.). Ele é o segundo herói; "prolongado" - o termo é esse -, com o império romano cristianizado, na figura de Tancredo, personagem de Jerusalém libertada (1581), poema heroico de Torquato Tasso (1544-1595). O terceiro herói, na sequência das Ilíadas, é o protagonista d'O engenhoso fidalgo Dom Quixote de La Mancha (1605), conhecido do leitor machadiano. Arremata a sucessão o herói dos folhetins de Ponson du Terrail, cujas primeiras peripécias remontam ao romance Les exploits de Rocambole (1858-1859). Leia-se:

Tocou a vez a Rocambole. Este herói, vendo arrasado o palácio de Príamo e desfeitos os moinhos da Mancha, lançou mão do que lhe restava e fez-se herói de polícia, pôs-se a lutar com o código e o senso comum.

O século é prático, esperto e censurável; seu herói deve ter feições consoantes a estas qualidades de bom cunho. E porque a epopeia pede algum maravilhoso, Rocambole fez-se inverossímil, morre, vive, cai, barafusta e some-se, tal qual como um capoeira em dia de procissão.

Veja o leitor, se não há um fio secreto que liga os quatro heróis. É certo que é grande a distância entre o herói de Homero e o de Ponson du Terrail, entre Troia e o xilindró. Mas é questão de ponto de vista. Os olhos são outros; outro é o quadro; mas a admiração é a mesma, e igualmente merecida.

Outrora excitavam pasmo aquelas descomunais lanças argivas. Hoje admiramos os alçapões, os nomes postiços, as barbas postiças, as aventuras postiças.

Ao cabo, tudo é admirar (ASSIS, 2015______. Obra completa. São Paulo: Nova Aguilar, 2015. 4 v., v. IV, p. 316).

Por meio da voz cheia de ironias de Manassés, tomam-se a contrapelo os sistemas universalistas que teorizam progressos e evoluções. O cronista, como um filósofo de ocasião, embora não pretenda alcançar a origem dos séculos, à maneira do hipopótamo, vislumbra os tempos das auroras do espírito e das infâncias da arte (ASSIS, 2015______. Obra completa. São Paulo: Nova Aguilar, 2015. 4 v., v. IV, p. 315). Partindo desses tempos imemoriais, a persona machadiana dispõe os nomes dos heróis em relato sequencialmente cronológico, do mais antigo ao mais recente, conforme o momento em que escreve. Sabem, todavia, os leitores de Memórias póstumas de Brás Cubas que nunca é indiferente compor uma narrativa, fictícia ou historiográfica, pelo princípio ou pelo fim; e fazendo pastiche do que seja familiar, a ordo naturalis - essa disposição do discurso pela qual a convenção passa por natureza e a ideologia evolucionista se faz axioma (HANSEN, 2006HANSEN, João Adolfo. "O imortal" e a verossimilhança. Teresa - Revista de Literatura Brasileira, São Paulo, n. 6-7, p. 56-78, 2006., p. 75)3 3 Como bem sugeriu Ivan Teixeira (1987, p. 77), é procedimento comum, em Machado, "ostentar leveza no tratamento de matéria grave" e "inverter a ordem natural, histórica ou esperada das coisas", ou seja, trata-se de "provocar o disparate". -, Manassés identifica, por metáfora, o tempo dos séculos ao tempo de um dia e ao de uma vida humana, donde proponha, como já referido, as "auroras do espírito" ou "a infância" [do espírito humano]" ou "a infância da arte" (ASSIS, 2015______. Obra completa. São Paulo: Nova Aguilar, 2015. 4 v., v. IV, p. 315). Com isso, uma vez que, nessa sucessão, caiba a Aquiles, com juventude guerreira, altivez e cólera, personificar o caráter heroico e auroral do espírito na infância dos tempos, logo se conclui, sem dificuldades, que a Rocambole sobra figurar a velhice, no momento crepuscular. Mais: o descompasso elocutivo entre a composição do caráter de Aquiles e o de Rocambole é manifesto, porque a pena de Manassés vai do sublime ao chão, e o procedimento não só traça diferenças, senão também institui hierarquias, evidentes já pelas escolhas lexicais: num caso, há "altivo", "colérico", "desafetado", "Hélade", "descomunais lanças argivas" etc.; noutro, "barafusta", "capoeira", xilindró" etc. Essa variação de registro, da gravidade à coloquialidade, materializa a diferença entre os tempos e os heróis, e caracteriza, num enunciado que faz imitação burlesca do discurso filosófico, não o progresso, mas o seu avesso. Manassés faz, assim, teoria, como tantas teorias na prosa machadiana, que, em chave paródica, dá lastro à figuração do ridículo, este herói que não deve ser ruminado, mas digerido sem estômago, sugere o arremate da crônica, em "SUPRESSÃO DO ESTÔMAGO" (ASSIS, 2015______. Obra completa. São Paulo: Nova Aguilar, 2015. 4 v., v. IV, p. 316). Tudo bem afeito a um tempo que os vermes ainda carcomerão.

Da Ilíada de Homero à "Ilíada de realejo", ao fim, fica a admiração - graciosa - do feitio postiço das aventuras de Rocambole: "os nomes postiços, as barbas postiças, as aventuras postiças" (ASSIS, 2015______. Obra completa. São Paulo: Nova Aguilar, 2015. 4 v., v. IV, p. 316). E, por que não supor, postiço é o "nosso Romantismo". Na compreensão de Rego (1989REGO, Enylton de Sá. O calundu e a panaceia: Machado de Assis, a sátira menipeia e a tradição luciânica. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1989., p. 145), o Rocambole de Ponson du Terrail é como o Brás Cubas de Machado, e dessa comparação decorre a conclusão: "Machado julgava necessária a superação tanto do romantismo quanto do realismo naturalista, assim como a criação de um novo herói épico que expressasse os tempos modernos" (REGO, 1989REGO, Enylton de Sá. O calundu e a panaceia: Machado de Assis, a sátira menipeia e a tradição luciânica. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1989., p. 142). A comparação e a conclusão, assim postas, de um lado, parecem desejosas de antecipar reflexões machadianas que talvez sejam pendentes da leitura d'O primo Basílio (1878), e, de outro, aventam que o vigor da novidade possa estar em insistir nas formas que, de cabo a rabo na crônica, ganharam a pecha de caducas. O misto genérico da prosa que indicia a ficção liberada das concepções vigentes não está em Rocambole, mas na construção da persona de Manassés, cujo enunciado transita, sempre múltiplo, pelo sublime e pelo ridículo. É Manassés quem guarda as práticas de composição de Miguel de Cervantes - e de Luciano de Samósata, de Ludovico Ariosto (1474-1533), de François Rabelais, de Laurence Sterne (1713-1768) etc. Manassés tem consciência de morto.

A cólera do Almada

Colérico como Aquiles, é assim que se delineia a personagem cuja memória é cantada no conjunto inacabado de versos herói-cômicos de Machado, que circula, desde a publicação de Outras relíquias (1910), como corpo retórico unitário sob o título "O Almada" (CATITA, 2019CATITA, Flávia Barretto Corrêa. Antes e depois de O Almada: percurso editorial e transcrição diplomática do manuscrito do poema herói-cômico de Machado de Assis. 2019. 575 f. Tese (Doutorado em Literatura Brasileira) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2019. , p. 75). Esse título, atribuído postumamente, o que a pesquisa minuciosa de Flávia Barretto Corrêa Catita (2019CATITA, Flávia Barretto Corrêa. Antes e depois de O Almada: percurso editorial e transcrição diplomática do manuscrito do poema herói-cômico de Machado de Assis. 2019. 575 f. Tese (Doutorado em Literatura Brasileira) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2019. , p. 85; p. 92) esclarece, alude ao "prelado administrador do Rio de Janeiro o Dr. Manuel de Sousa Almada, presbítero do hábito de São Pedro", conforme a "Advertência" redigida por Machado para introduzir a obra (ASSIS, 2009ASSIS, Joaquim Maria Machado de. A poesia completa. Organização e fixação dos textos de Rutzkaya Queiroz dos Reis. São Paulo: Nankin; Edusp, 2009., p. 545). Os versos do poema tomam como matéria um caso de assuada envolvendo "gente de representação" do Rio de Janeiro seiscentista, de que dá notícia o tomo III dos Anais do Rio de Janeiro (1835), de Baltasar da Silva Lisboa (ASSIS, 2009ASSIS, Joaquim Maria Machado de. A poesia completa. Organização e fixação dos textos de Rutzkaya Queiroz dos Reis. São Paulo: Nankin; Edusp, 2009., p. 545; p. 617). Ou seja, sempre de acordo com Machado, trata-se de figurar poeticamente um episódio de fundo historiográfico, que se pode assim abreviar: numa noite de 1659, quando Almada era prelado da cidade fluminense, o tabelião Sebastião Ferreira Freire foi vítima de agressão, em razão dessa tal assuada. A investigação do caso, aberta por ordem do ouvidor-geral Pedro de Mustre Portugal, concluiu que criados de Almada foram responsáveis pela agressão. Ciente da devassa, o prelado exigiu de Mustre a entrega dos autos, sob pena de excomunhão. Com a recusa, veio o anátema, logo revogado por autoridades eclesiásticas da cidade, convocadas pelo governador Tomé Correia de Alvarenga, as quais resolveram remeter o caso a Lisboa para apreciação real. A essa abreviação, Machado acrescenta buscar "o cômico onde ele estava: no contraste da causa com os seus efeitos, tão graves, tão solenes, tão fora de proporção" (ASSIS, 2009ASSIS, Joaquim Maria Machado de. A poesia completa. Organização e fixação dos textos de Rutzkaya Queiroz dos Reis. São Paulo: Nankin; Edusp, 2009., p. 545).

O acréscimo explicita quão descabida é a hýbris de Almada, desmedida a personagem, como desproporcional o gênero misto herói-cômico que a figura. Efetuando a paródia de Aquiles, por meio do emprego burlesco de expedientes estilísticos preceituados para a poesia épica desde a antiguidade, Machado goza das liberdades desse misto herói-cômico, e o faz ciente da ruína do estatuto preceptivo da tratadística antiga de poesia, buscando imitar e emular os poemas Le Lutrin, de Nicolas Boileau (1636-1711), e O Hissope (1802), de Antônio Dinis da Cruz e Silva (1731-1799), ainda de acordo com a "Advertência". Nos fragmentos machadianos, para a efetuação do riso, não apenas se barateia o caráter das personagens, ecoando a Ilíada de realejo ou a quixotesca aquileida de cores modernas (ASSIS, 2015______. Obra completa. São Paulo: Nova Aguilar, 2015. 4 v., v. IV, p. 316), mas também se forja o engrandecimento irônico por meio do contraste entre a elevação do estilo adotado e o caráter de personagens como o Dr. Manuel de Sousa Almada. Aquiliano e iliádico, apesar dos pendores para a glutonaria e para a preguiça, o prelado ganha ares de destempero, e o ridículo, no poema, desentranha-se sobretudo da tipificação em estilo alto da feição iracunda que arrebata desarrazoadamente o Almada.

É de se lembrar que o prefácio do Lutrin, que não parece ter escapado a Machado, define duas espécies de burlesco, particularizadas como formas antitéticas de efetuação do riso: uma faz falar Dido e Eneias, personagens de graves caracteres da Eneida vergiliana, como "arenqueiros e carregadores" ("des harengères et des crocheteurs"), tipos de maneiras e de linguajar rudes, na compreensão de Ancien Régime do tratadista francês; outra faz falar "uma relojoeira e um relojoeiro" ("une horlogère et un horloger") como Dido e Eneias (BOILEAU, 1969BOILEAU, Nicolas. Œuvres I: Satires, Le Lutrin. Chronologie et introduction par Jérôme Vercruysse. Paris: Garnier-Flammarion, 1969., p. 182). Num caso, rebaixa-se a figura; noutro, eleva-se por meio do pastiche e da ironia, sempre mediante expedientes elocutivos que, para fazer rir, desbaratam hierarquias social, política e economicamente constituídas. Num caso, seria imaginável uma espécie de Aquiles da Guanabara; noutro, uma espécie de Peleio Almada. É da primeira espécie a figuração do lindo garção Brás Cubas que cavalga ao modo de Sancho Pança. É da segunda espécie esse prelado de altivez de arremedo.

Nos termos das lições retóricas e poéticas sabidas de Boileau e de Machado, sintetizam-se aqui duas maneiras de fazer descompassar o decoro mirando o efeito cômico: ou forja-se voz grosseira na enunciação da matéria que é grave por convenção ou compõe-se voz solene para dizer o que é avaliado como de pouca monta. Aristotelicamente, a impropriedade na composição da elocução, isto é, a desproporção no emprego da expressão verbal em decorrência da falta de conformidade com a matéria inventada pelo poeta é vício de estilo e inconveniente à fatura das ações e dos caracteres de personagens graves em gêneros elevados, como a tragédia ou a epopeia, porque desencadeia o riso; todavia, por assim efetuar-se, essa impropriedade convém na composição cômica (ARISTÓTELES, 1998ARISTÓTELES. Retórica. Tradução de M. Alexandre Júnior, P. F. Alberto e A. N. Pena. Lisboa: IN-CM, 1998., Rh. III, 7 1-2) e, como artifício paródico, deve ser proposta por desproporção. É o que se vê em operação discursiva nos mistos machadianos, lidos na crônica redigida sob a pena fingida de Manassés, na prosa livre de Memórias póstumas de Brás Cubas ou nos versos decassílabos de "O Almada". Esse é o fio, o da construção burlesca, que ata obras aparentemente tão díspares. O descompasso que pauta a composição do Dr. Manuel de Sousa Almada, pauta também o pano de fundo da narrativa e a forja das personagens secundárias. Vale o exemplo, recolhido da estrofe III do canto II do poema inacabado:

Então a Gula, que jamais lograra De todo triunfar na infante igreja, A vil Preguiça revoando busca E vai achá-la cochilando à porta De um amável garção, que os bens houvera E o nome dos avós, à custa ganhos De muita cutilada e muita lança Em África metida. Ali com ela Descem Indigestões e Apoplexias, Sua querida e diligente prole; Umas pálidas são, outras vermelhas, E todas ofegantes e cansadas, De esvaziar boticas sem descanso E encher continuamente os cemitérios. Com a pesada planta a Gula toca O peito da Preguiça, que estremece, Abre os olhos a custo, a custo a língua A mastigar começa alguma frase; Quando a Irmã, nestas vozes prorrompendo, A palavra lhe corta: "Será crível Que do nosso poder sempre mofando Só a Ira governe há tanto tempo A fluminense igreja, e que o prelado, Das nossas armas em desdouro eterno, Num perpétuo lidar empregue os dias, Que nem ócios, nem jogos, nem banquetes A raiva lhe moderem? Mana amiga, Dentro em breve prostradas ficaremos. Que o poder usurpando a pouco e pouco Ela só reinará no mundo inteiro". (ASSIS, 2009ASSIS, Joaquim Maria Machado de. A poesia completa. Organização e fixação dos textos de Rutzkaya Queiroz dos Reis. São Paulo: Nankin; Edusp, 2009., p. 552)

Fazendo pastiche dos conluios que as divindades do Olimpo tramam nos gêneros graves de poesia antiga, Machado, nesta estrofe III, encena as ações de Gula e Preguiça, personagens alegóricas que dão vida aos vícios sob os céus da Guanabara. A Gula, acompanhada de prole numerosa, as Indigestões e as Apoplexias, tal como ocorre com a Stultitia, em Erasmo de Roterdã (1466-1536), vê-se tomada de apetite e desejosa de triunfar sobre a Ira na igreja presidida por Manuel de Sousa Almada, infenso a qualquer moderação. A Preguiça, prostrada, como é de se esperar, partilha do tempo livre com "um amigável garção" que, como o herdeiro da linhagem dos Cubas, vive das benesses da barbárie da escravidão. Evidentemente, nada há de amigável nem de heroico nesse jovem preguiçoso: de epíteto irônico, é vil como a Preguiça que o acomete, pois usufrui da riqueza, do ócio e do ilustre nome amealhados com a violência do tráfico negreiro, "De muita cutilada e muita lança / Em África metida" (canto II, estrofe III, vv. 7-8). Com a agudeza costumeira, Machado entretece contrapontos que dão a medida da figuração construída: particularizando o fundo das ações de Almada, emprega o registro solene, em versos decassílabos, para afirmar a vileza que passa por ação heroica e o horror dos anteparos sociais e econômicos que a sustêm, de modo que seja caracterizado o "amigável garção" à maneira do relojoeiro que, para ser alvo de menosprezo, carrega traços de Eneias, de acordo com Boileau. Menos comedido talvez seja o ridículo no capítulo "Genealogia", de Memórias póstumas de Brás Cubas, ainda que os parentescos entre os passos sejam muitos.

Conhecidíssimo, esse capítulo expõe, na leitura de Valentim Facioli, a genealogia do método orientador do relato do caprichoso defunto autor: a falsificação e a inventiva. E, compreende Facioli (2002FACIOLI, Valentim. Um defunto estrambótico: análise e interpretação das Memórias póstumas de Brás Cubas. São Paulo: Nankin Editorial, 2002. , p. 104), são lições de classe as simulações e as dissimulações mirando a "sede de nomeada" e o "amor da glória". No entanto, assentado nas regalias que só a eternidade do nada pode conceder, Brás Cubas nem falsifica nem inventa nesse passo (ASSIS, 2015______. Obra completa. São Paulo: Nova Aguilar, 2015. 4 v., v. I, p. 602): contrariamente, transpassado pelas prerrogativas de quem pode revelar a ambição paterna de distinção social, porque no ato de enunciação a ruína da morte a tudo perspectiva, o defunto põe-se a dizer, às claras, a falsificação e a inventiva operadas pelo pai, a partir do jogo de palavras - o francês calembour - que promove equívocos com o nome familiar Cubas, no esforço de forjar uma linhagem de fidalguia senão verdadeiramente longeva na exploração da América portuguesa, ao menos verossimilmente memorável pelas façanhas nas lutas de conquista religiosa em África - "Como este apelido de Cubas lhe cheirasse excessivamente a tanoaria, alegava meu pai, bisneto do Damião, que o dito apelido fora dado a um cavaleiro, herói nas jornadas da África, em prêmio da façanha que praticou arrebatando trezentas cubas aos mouros" (ASSIS, 2015______. Obra completa. São Paulo: Nova Aguilar, 2015. 4 v., v. I, p. 602). Esse esforço imaginativo dedica-se a lastrear privilégios e a levar ao esquecimento a origem humilde dos descendentes de um certo tanoeiro chamado Damião Cubas, vinculando o nome da família à exploração secular da colônia e os interesses particulares dos Cubas aos da monarquia lusitana. Mas a genealogia paterna, na medida em que seja efetuada pelo trocadilho de efeito cômico, sem os propósitos cômicos, é vazada pelas ironias que dimensionam Memórias póstumas de Brás Cubas e, exposta nos termos lidos, escancara e escarnece os "fumos de pacholice" de quem, sobretudo, tem pretensões de descender de fundadores de cidades - "[...] primeiramente, entroncou-se na família daquele meu famoso homônimo, o capitão-mor Brás Cubas, que fundou a vila de São Vicente, onde morreu em 1592, e por esse motivo é que me deu o nome de Brás" (ASSIS, 2015______. Obra completa. São Paulo: Nova Aguilar, 2015. 4 v., v. I, p. 602) -, como se o capitão-mor que dá nome ao morto fosse Eneias, e São Vicente, Roma. Nem uma coisa nem outra.

A memória do capitão-mor (referido tal o varão troiano), em razão da fundação da vila (dignificada como a Urbe), guarda o descompasso da aproximação entre referentes demasiado desiguais, e isso franqueia o ridículo das pretensões de classe do descendente burguês de tanoeiro que ambiciona ares eneádicos, à maneira do que afirma Boileau. Não menos jocoso, porém, é o que resta ao imaginativo pai de Brás Cubas, depois que conhecido o dolo da falsificação: inventar-se herdeiro do "soldadão cristão", esse "cavaleiro, herói nas jornadas da África" que faz as vezes de versão aviltada do Tancredo tassiano rememorado por Manassés. A façanha de arrebatar as cubas aos mouros é por si só disparatada e, como ação que integra o relato de invenção da genealogia familiar, embora não deixe de indiciar quão minguada é a inventividade mesma de quem assim trama almejando prestígio e boa reputação, serve, sobretudo, a rememorar o horror da violência em África, vista como dignificante aos olhos das elites senhoriais tanto em Memórias póstumas de Brás Cubas como em "O Almada". No mais, o termo "façanha", conforme consagrado pelos usos na poesia épica, como se lê em Luís de Camões (ca. 1524-1580), por exemplo, em acepção que designa ação heroica, notável, extraordinária e de grande esforço, só convém aqui porque assume conotação irônica na voz do narrador. Não há esteio que sustenha o heroísmo num século de serrilhas e de panaceias.

Na miudeza dos exemplos lidos, ressalta o uso heteróclito dos procedimentos retóricos próprios, por convenção, à poesia elevada, os quais servem machadianamente à figuração zombeteira que a tudo destrata. Por isso proliferam aqui e ali personagens homéricas ou vergilianas, barateadas nas variedades burlescas pelas quais transita a escrita em registro misto de Machado. O romance, a crônica e o poema inacabado partilham desses procedimentos compositivos aptos a operar descompassos, os quais, no léxico das artes retóricas, já esvaziadas do lastro prescritivo no século XIX, incidem na invenção, na disposição e na elocução dos discursos de ficção. Entre o lindo garção que cavalga ao modo de Sancho Pança e o prelado de altivez de arremedo, entre o Aquiles da Guanabara e o Peleio Almada, entre o Eneias vicentino e o tanoeiro eneádico, só varia o diapasão que, nos modos de dizer, pode pender mais ao chão ou mais ao alto; não varia, todavia, a eleição do discurso de registro misto que, mediante esses descompassos, espera escarnecer. Sempre.

Referências

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  • TEIXEIRA, Ivan. Apresentação de Machado de Assis. São Paulo: Martins Fontes , 1987.
  • 1
    Silvia Maria Azevedo (2011AZEVEDO, Silvia Maria (Org.). História de Quinze Dias, História de Trinta Dias: crônicas de Machado de Assis - Manassés. São Paulo: Editora Unesp, 2011., p. 10) destaca a mistura do alto e do baixo na construção da metáfora "Ilíada de realejo".
  • 2
    Machado faz troça com o título L'orgue de Barbarie [O realejo], obra de Ponson du Terrail datada de 1869 e publicada no Brasil pelo Clube do Livro, em 1958, como O homem do realejo.
  • 3
    Como bem sugeriu Ivan Teixeira (1987TEIXEIRA, Ivan. Apresentação de Machado de Assis. São Paulo: Martins Fontes , 1987., p. 77), é procedimento comum, em Machado, "ostentar leveza no tratamento de matéria grave" e "inverter a ordem natural, histórica ou esperada das coisas", ou seja, trata-se de "provocar o disparate".

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    12 Maio 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    25 Jan 2023
  • Aceito
    31 Mar 2023
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