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FIGURAÇÕES DO POETA VULGAR E CRÍTICA DO ROMANTISMO EM MACHADO DE ASSIS

THE VULGAR POET AND CRITICISM OF ROMANTICISM IN MACHADO DE ASSIS

Resumo

A partir da análise de três contos - "Aurora sem dia" (1873), "O programa" (1882) e "Vênus! Divina Vênus!" (1893) -, este artigo discute a figuração do poeta vulgar em Machado de Assis. Por meio dela, procuro demonstrar que o autor atualizou o modelo poético do "Poeta sem Arte", construindo uma figura de poeta vulgar como modo de problematizar o que via como efeitos negativos do triunfo do Romantismo. Essa crítica associou-se, no entanto, a modificações na poética machadiana; a postura normativa e pedagógica, empenhada em evidenciar o ideal do bom poeta, deu lugar progressivamente a uma abordagem mais historicizada daquela figura: de um charlatão oportunista a ser combatido e denunciado, ele passou a poeta de ocasião, objeto de simples registro irônico. Desse modo, Machado de Assis abandonava, igualmente, a perspectiva normativa própria do regime retórico-poético.

Palavras-chave:
Romantismo e antirromantismo; poética e retórica; contos de Machado de Assis

Abstract

From the analysis of three short stories - "Aurora sem dia" (1873), "O programa" (1882) and "Vênus! Divina Vênus!" (1893) - this article discusses the representation of the vulgar poet in Machado de Assis. Through it, I try to demonstrate that the author defeated the poetic model of the "Poet without Art", building a figure of a vulgar poet as a way of problematizing what he saw as the negative effects of the triumph of Romanticism. This criticism remains associated, however, with changes in Machado's poetics; the normative and pedagogical posture, which endeavored to highlight the ideal of the good poet, gave way to a more historicized approach to that figure: from an opportunistic charlatan to be fought and denounced, he became an occasional poet, the object of a simple ironic record. Thus, Machado de Assis also abandoned the normative perspective proper to the rhetorical-poetic regime.

Keywords:
Romanticism and anti-Romanticism; poetics and rhetoric; Machado de Assis' short stories

Uma interpretação consagrada da obra de Machado de Assis divide-a em uma fase romântica e uma fase realista, separadas pelo romance Memórias póstumas de Brás Cubas (1880). Tal compreensão, que fez fortuna em manuais de história literária, livros didáticos e edições das obras machadianas e se encontra vulgarizada, tornou-se objeto de problematização nas últimas décadas.

Em um livro incontornável, Hélio Guimarães (2004GUIMARÃES, Hélio de Seixas. Os leitores de Machado de Assis: o romance machadiano e o público de literatura no século 19. São Paulo: Nankin; Edusp, 2004.) mostrou como os narradores dos romances machadianos da década de 1870, exatamente aqueles classificados como "românticos", criticavam vários postulados do Romantismo, empenhando-se em educar o leitor para a necessária problematização deles. Mais recentemente, no âmbito de suas análises sobre as relações do escritor com aquele movimento literário, Andréa Werkema (2019WERKEMA, Andréa Sirihal. As duas pontas da literatura: crítica e criação em Machado de Assis. Belo Horizonte: Relicário, 2019.) falou no "falso Romantismo dos primeiros romances de Machado de Assis", argumentando que os elementos românticos neles presentes teriam de ser avaliados de acordo com o seu uso - muitas vezes paródico, irônico, desidealizador - só podendo "ser chamados 'românticos' na medida em que são 'estudos' do romance romântico - ou da escrita romântica em seus diversos gêneros" (WERKEMA, 2019WERKEMA, Andréa Sirihal. As duas pontas da literatura: crítica e criação em Machado de Assis. Belo Horizonte: Relicário, 2019., p. 71). Em uma perspectiva um pouco distinta, João Cezar de Castro Rocha (2013ROCHA, João Cezar de Castro. Machado de Assis: por uma poética da emulação. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira , 2013.) também assinalou o distanciamento de Machado de Assis em relação àquele movimento literário. Segundo ele, a grande ficção machadiana - aquela a partir de 1880 - se distingue por uma "poética da emulação", que equivale ao "resgate moderno de práticas retóricas progressivamente abandonadas depois do advento do Romantismo" (ROCHA, 2013ROCHA, João Cezar de Castro. Machado de Assis: por uma poética da emulação. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira , 2013., p. 11). Machado teria buscado no passado preceitos da retórica clássica, a fim de revolucionar sua própria literatura.

Este artigo pretende se situar no interior desse debate sobre o distanciamento crítico do autor de Helena em relação ao Romantismo, considerado aqui sob dois aspectos: de um lado, enquanto um conjunto de ideais literários; de outro, enquanto momento inaugural de uma nova poética, em ruptura com a Retórica clássica e seus preceitos normatizadoras da criação poética. Por meio da análise de três contos - "Aurora sem dia" (1873), "O programa" (1882) e "Vênus! Divina Vênus!" (1893) -, procuro demonstrar que Machado de Assis atualizou o modelo poético do "Poeta sem Arte", construindo uma figura de poeta vulgar como modo de problematização do que via como efeitos negativos do triunfo do Romantismo.

"Aurora sem dia"

"Aurora sem dia" foi publicado originalmente no Jornal das Famílias, em 1870, e republicado, com alterações, em Histórias da meia-noite, segunda coletânea de contos de Machado de Assis, datada de 1873. Seu protagonista foi definido, logo de saída, em relação ao problema da ambição e do renome: "Luís Tinoco possuía a convicção de que estava fadado para grandes destinos" (ASSIS, 1977______. Aurora sem dia. In: ______. Histórias da meia-noite. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira; Brasília: INL, 1977. (Edições críticas das obras de Machado de Assis, v. 4)., p. 155). Essa convicção, e não uma vocação literária, foi o que o levou a se tornar poeta. Conta o narrador: "No tempo em que o Dr. Lemos o conheceu começava a arder-lhe a chama poética. Não se sabe como começou aquilo. Naturalmente os louros alheios entraram a tirar-lhe o sono" (ASSIS, 1977______. Aurora sem dia. In: ______. Histórias da meia-noite. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira; Brasília: INL, 1977. (Edições críticas das obras de Machado de Assis, v. 4)., p. 156, grifo meu). Na versão de 1870, Machado de Assis (1870 apud ASSIS, 1977______. Aurora sem dia. In: ______. Histórias da meia-noite. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira; Brasília: INL, 1977. (Edições críticas das obras de Machado de Assis, v. 4)., p. 155) adotara uma formulação menos sutil, em que o desdobramento dos ditos "louros" enfatizava a relação entre a ambição de Tinoco e a notoriedade dos escritores românticos: "Casimiro de Abreu publicara o seu volume tão merecidamente aplaudido por todos. Uma plêiade de rapazes cultivava as musas com entusiasmo, e a casa de Paula de Brito era, [sic] o centro aonde iam ter todas as vocações imberbes".

Forma tradicional da produção de novos grandes homens, a emulação apareceu ali rebaixada a inveja e o conteúdo da grandeza perdeu importância em prol de seu resultado, o brilho do nome. Pretensioso o bastante para acreditar que a notoriedade era o seu lote, Luís Tinoco se valeu da poesia em seu projeto de ascensão à fama. Assim, mal decidiu que era poeta, escreveu em poucas horas um poema (ruim) e correu a mandá-lo publicar no Correio Mercantil, entre os apedidos. A descrição de sua reação à vista do texto impresso não deixa dúvidas do que estava em jogo naquela "entrada para a literatura", além de colocar em evidência o papel da imprensa como promotora do nome próprio:

Nenhuma mãe contemplou o filho recém-nascido com mais amor do que o rapaz leu e releu a produção poética, aliás decorada desde a véspera. Afigurou-se-lhe que todos os leitores do Correio Mercantil estavam fazendo o mesmo; e que cada um admirava a recente revelação literária, indagando de quem seria esse nome até então desconhecido. (ASSIS, 1977______. Aurora sem dia. In: ______. Histórias da meia-noite. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira; Brasília: INL, 1977. (Edições críticas das obras de Machado de Assis, v. 4)., p. 156, grifo meu).

Tão certo de si mesmo, o poeta recebeu um tratamento inclemente do narrador, que não se cansou de assinalar a mediocridade, a ignorância e a presunção de seu protagonista. Ele fez questão de indicar que Tinoco não apenas desconhecia a tradição literária, valendo-se dela unicamente para afetar certa erudição, como se achava no direito de desprezar alguns dos mais importantes nomes da literatura setecentista brasileira: "Lera casualmente alguns dos salmos do padre Caldas, e achou-os soporíferos; falava mais benevolamente da Morte de Lindoia, nome que ele dava ao poema de J. Basílio da Gama, de que só conhecia quatro versos" (ASSIS, 1977______. Aurora sem dia. In: ______. Histórias da meia-noite. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira; Brasília: INL, 1977. (Edições críticas das obras de Machado de Assis, v. 4)., p. 160). Nem sequer um de seus textos foi considerado razoável. Aliás, a produção copiosa foi reduzida à multiplicação infinita do mesmo: "Como o número de suas ideias fosse mui limitado, podia-se dizer que ele só havia escrito um necrológio, uma elegia, uma ode ou uma congratulação. Os diferentes exemplares de cada uma destas cousas eram a mesma cousa dita por outro modo" (ASSIS, 1977______. Aurora sem dia. In: ______. Histórias da meia-noite. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira; Brasília: INL, 1977. (Edições críticas das obras de Machado de Assis, v. 4)., p. 165).

O narrador de "Aurora sem dia" deixou claro que a vulgaridade de Luís Tinoco não enganava quase ninguém. As expressões elogiosas ou foram postas na boca dele próprio ou eram pura ironia, ou ainda uma mistura das duas, como no trecho em que Tinoco conversou com o dr. Lemos sobre o título de seu livro, Goivos e camélias. Não poderia haver coisa mais clichê. O rapaz, porém, achava-o "distinto e original", a ponto de considerar necessário explicar seu simbolismo evidente: "[…] é o mesmo que se dissesse: tristezas e alegrias" (ASSIS, 1977______. Aurora sem dia. In: ______. Histórias da meia-noite. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira; Brasília: INL, 1977. (Edições críticas das obras de Machado de Assis, v. 4)., p. 162). A mesma divergência entre a alta opinião que Luís Tinoco tinha de si mesmo e a consciência geral de que ele não valia nada, a não ser como motivo de riso, deu a nota do comentário sobre a recepção de seu livro: "Esta obra monumental passou despercebida no meio da indiferença geral. Apenas um folhetinista do tempo escreveu a respeito dela algumas linhas que fizeram rir a toda a gente, menos o autor, que foi agradecer ao folhetinista" (ASSIS, 1977______. Aurora sem dia. In: ______. Histórias da meia-noite. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira; Brasília: INL, 1977. (Edições críticas das obras de Machado de Assis, v. 4)., p. 164-165).

Mau poeta, o autor de Goivos e camélias acreditava piamente em seu talento e na excelência de seus textos. O autor dos Contos fluminenses sugere que a imprensa era um dos responsáveis por esse fenômeno.1 1 A novidade da publicação literária em jornais foi assinalada no próprio conto, por meio de um diálogo entre Luís Tinoco e seu padrinho Anastácio, quando aquele lhe trouxe para ler o número do Correio Mercantil em que acabava de ser publicado seu primeiro poema. Surpreso, o padrinho exclamou: "- E de mais a mais versos! Os jornais já não falam de política? No meu tempo não falavam de outra cousa". Ao que Tinoco replicou: "- Falam de política e publicam versos, porque ambas as cousas têm entrada na imprensa" (ASSIS, 1977, p. 157). Ao abrir a dignidade do impresso a qualquer um, inclusive àqueles que não o mereciam, as folhas públicas conferiam a chancela necessária para que o oportunista se acreditasse verdadeiro poeta. Assim se explica a reação grosseira de Tinoco, quando o dr. Lemos o aconselhou a rasgar os poemas já publicados e estudar um pouco, antes de ensaiar novas produções. O poeta novel reagiu qualificando o advogado de "invejoso" e alegando: "Se os versos não fossem bons, o Mercantil não os publicava" (ASSIS, 1977______. Aurora sem dia. In: ______. Histórias da meia-noite. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira; Brasília: INL, 1977. (Edições críticas das obras de Machado de Assis, v. 4)., p. 160).

Se o amor da multidão conduziu Tinoco às letras, a imprensa permitiu que ele e outros o tomassem por literato, ao oferecer ao público o seu nome como um nome de poeta. Mas a construção da reputação de escritor de Luís Tinoco, com base em poemas ruins, não foi considerada simples responsabilidade da imprensa.

Para o Machado de Assis de 1870, a perturbação na República das Letras, sua invasão por habitantes ilegítimos, explicava-se também pelas modificações e novidades introduzidas pelo Romantismo. A primeira, já indicada, era a ovação pública do escritor romântico ("os louros alheios"), que suscitara naquele que não estava fadado a um grande destino, apenas "possuía a convicção de que estava", a certeza de ter acordado certo dia de manhã poeta e escritor. Mas, se Tinoco pôde passar da certeza à escrita, foi também porque, como veremos, a nova poética lhe oferecera as condições necessárias para tanto.

Pois Luís Tinoco não é um poeta qualquer; ele é construído como um autor indiscutivelmente romântico, com sua "longa ode sentimental", o "ceticismo byroniano", os "goivos e camélias", os versos que "falavam de tudo, da morte e da vida, das flores e dos vermes, dos amores e dos ódios; havia mais de oito ciprestes, cerca de vinte lágrimas, e mais túmulos do que um verdadeiro cemitério" (ASSIS, 1977______. Aurora sem dia. In: ______. Histórias da meia-noite. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira; Brasília: INL, 1977. (Edições críticas das obras de Machado de Assis, v. 4)., p. 156, 161-164, grifo do original). Um exemplar inconteste do ultrarromantismo! Há ainda a proclamação da origem humilde e a "extensa e chorosa elegia" em que nosso poeta se queixou da perfídia da namorada que o trocou por outro. Em suma, Tinoco é autor de uma poesia subjetivista, sentimentalista e melodramática, a que não faltou nem mesmo a intenção de escrever um poema épico - indigenista, claro - intitulado Os tupinambás na versão original do conto, ainda mais antirromântica do que a do livro (ASSIS, 1870 apud ASSIS, 1977______. Aurora sem dia. In: ______. Histórias da meia-noite. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira; Brasília: INL, 1977. (Edições críticas das obras de Machado de Assis, v. 4)., p. 166).

Encarnação dos clichês românticos, Luís Tinoco o era até mesmo nas atitudes e na aparência. O narrador contou que ele

[a]ndava com o ar inspirado de todos os poetas novéis que se supõem apóstolos e mártires. Cabeça alta, olhos vagos, cabelos grandes e caídos; algumas vezes abotoava o paletó e punha a mão ao peito por ter visto assim um retrato de Guizot; outras vezes andava com as mãos para trás. (ASSIS, 1977______. Aurora sem dia. In: ______. Histórias da meia-noite. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira; Brasília: INL, 1977. (Edições críticas das obras de Machado de Assis, v. 4)., p. 161).2 2 Luís Tinoco parece encarnar o tipo, também machadiano, do "parasita literário", definido em termos bastante semelhantes: "Os traços fisiológicos do parasita são especiais e característicos. Não podendo imitar os grandes homens pelo talento, copiam na postura e nas maneiras o que acham pelas gravuras e fotografias. Assumem um certo ar pedantesco, tomam um timbre dogmático nas palavras; e ao contrário do fanqueiro que tem a espinha dorsal mole e flexível - ele não se curva nem se torce; a vaidade é o seu espartilho" (ASSIS, 2009, p. 47). Mas Tinoco, note-se, não tem a generalidade do parasita, já que imita grandes homens de um momento específico, o do Romantismo.

Para além de textos, atitudes, aparência e discurso, cabe destacar a compreensão de Luís Tinoco a respeito da criação poética: "Poesia não se aprende; traz-se do berço", declarou ele ao (já citado) dr. Lemos, agente ficcional da sã doutrina poética (ASSIS, 1977______. Aurora sem dia. In: ______. Histórias da meia-noite. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira; Brasília: INL, 1977. (Edições críticas das obras de Machado de Assis, v. 4)., p. 160). O nome - "Lemos", do verbo "ler" - não poderia, aliás, ser mais sugestivo. Na ocasião em que recebeu essa resposta malcriada, o dr. Lemos tentava convencer seu interlocutor de que "a poesia era uma arte difícil e que pedia longo estudo; mas que, a querer cultivá-la a todo o transe, devia ouvir alguns conselhos", como o de rasgar os maus versos que havia publicado no jornal e "estudar antes algum tempo" (ASSIS, 1977______. Aurora sem dia. In: ______. Histórias da meia-noite. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira; Brasília: INL, 1977. (Edições críticas das obras de Machado de Assis, v. 4)., p. 159). Em outra passagem, Luís Tinoco demonstrou sua fidelidade ao princípio da inspiração, ao confidenciar: "Fiz aquela poesia em meia hora, e não emendei nada. Acontece-me isso muita vez" (ASSIS, 1977______. Aurora sem dia. In: ______. Histórias da meia-noite. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira; Brasília: INL, 1977. (Edições críticas das obras de Machado de Assis, v. 4)., p. 162). Essa feroz defesa da precedência do gênio e da inspiração sobre o conhecimento das regras e o estudo dos modelos consagrados é um outro elemento a permitir a vinculação do nosso poeta ao Romantismo. Afinal, esse movimento literário substituíra a poética da imitação por uma poética da inspiração, o engenho pelo gênio, o conhecimento da tradição pela valorização da originalidade, levantando-se contra o império das regras sem cujo conhecimento, antes dele, poucos se colocariam a escrever - e, menos ainda, a publicar.

Diante desse cenário, o jovem Machado de Assis adotou uma postura conservadora, no limite, retrógrada. Contra o que considerou serem, no fundo, desvirtuamentos permitidos pelo Romantismo (a apoteose dos escritores, suscitando em qualquer espírito medíocre a ambição de fazer luzir seu nome, e a assunção da inspiração e do gênio contra o império das regras poéticas), o escritor atribuiu a si mesmo o papel de reformador do nascente Parnaso brasileiro, brandindo a Epístola aos Pisões, de Horácio, e a Arte poética, de Boileau,3 3 Um dos grandes nomes do Classicismo francês, poeta satírico, Nicolas Boileau-Despréaux (1636-1711) foi autor do poema herói-cômico Le Lutrin, que seria mais tarde imitado pelo poeta português Antônio Dinis da Cruz e Silva (1731-1799), com seu O hissope (1768, publicado postumamente em 1802). Machado de Assis mencionou Antônio Dinis em folhetins da década de 1860, n'O Futuro, periódico literário dirigido por Faustino Xavier de Novais, e seu conto "O país das quimeras" faz uso de figuras presentes n'O hissope. Na advertência ao seu próprio poema herói-cômico, O almada, Machado se deteve em uma discussão de caráter retórico, na qual apontou suas imitações dos poemas de seus dois modelos no gênero. Essa advertência foi publicada apenas postumamente, por Mário de Alencar, no volume Algumas relíquias (ASSIS, 1910, p. 103-108). Além disso, cabe assinalar que o escritor possuía em sua biblioteca as Oeuvres poétiques de Boileau-Despréaux, em uma edição da Hachette, de 1853. Quanto a isso, ver Jobim (2001). contra os poetas vulgares, como Luís Tinoco. Porque o autor dos Goivos e camélias não era apenas um inquestionável adepto dos clichês do Romantismo. Sem o declarar explicitamente, Machado de Assis o construiu também como a encarnação dos equívocos combatidos por essas duas grandes artes poéticas.

Publicada em 1674, a Arte poética do satírico francês era uma imitação da epístola de Horácio, emulando várias de suas passagens. Em suas preceptivas, Boileau (1966BOILEAU. L'Art poétique In: ______. Oeuvres complètes. Introdução de Antoine Adam, textos e notas de Françoise Escal. Paris: Gallimard, 1966. p. 155-185.) constrói um retrato em negativo do bom poeta, ao satirizar o comportamento e as atitudes do versejador de salão: seu desprezo pelo estudo, o amor dos elogios, a incapacidade de ouvir e aceitar críticas, a afoiteza na divulgação de seus versos, a recusa de um intervalo entre a produção e a publicação, o desdém pela revisão e emenda dos textos.

É de Boileau que Machado retira a imagem utilizada para descrever a (falsa) inclinação de Tinoco para as letras: em um certo momento, começou "a arder-lhe a chama poética", conforme vimos anteriormente. O satírico francês lança mão dessa metáfora duas vezes, associando-a, em ambos os casos, a um poeta sem vocação para a poesia. Assim, no canto I, ele fala de um Autor temerário, "a quem o ardor com risco inflama" e que pensa poder atingir as alturas da Poesia, ao passo que seu astro não o fez, de nascença, Poeta (BOILEAU, 1966BOILEAU. L'Art poétique In: ______. Oeuvres complètes. Introdução de Antoine Adam, textos e notas de Françoise Escal. Paris: Gallimard, 1966. p. 155-185., p. 157). Adiante, no canto III, Boileau ([19--]______. L'Art poétique. Arte poética. Tradução do Conde da Ericeira. Prefácio e notas de José Pedro Machado. Lisboa: Papelaria Fernandes Livraria, [19--]., p. 82) se refere a um "Poeta sem arte", que, "confiado/ na chama, que talvez subiu furiosa,/ Porque a quimera em vão orgulho alente,/ Toma a trombeta heroica ousadamente".

Escrito com vagar, aconselham os dois poetas, o poema deve ser submetido a constante revisão, polido e repolido (BOILEAU, 1966BOILEAU. L'Art poétique In: ______. Oeuvres complètes. Introdução de Antoine Adam, textos e notas de Françoise Escal. Paris: Gallimard, 1966. p. 155-185., p. 161), "aperfeiçoado com muito tempo e muita emenda e […] depois de retalhado dez vezes, […] castigado até ao cabo" (HORÁCIO, 2012HORÁCIO. Arte poética. Introdução, tradução e comentários de R. M. Rosado Fernandes. 4. ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2012., p. 141). Sua publicação deve ser retardada e até muito retardada; Horácio (2012HORÁCIO. Arte poética. Introdução, tradução e comentários de R. M. Rosado Fernandes. 4. ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2012., p. 153) recomenda "que em rolos de pergaminho ela repouse durante nove anos, pois o que não for a lume é ainda susceptível de correcção, mas palavra que for lançada já não pode voltar".

Luís Tinoco, pelo contrário, era pura instantaneidade: produção abundante e veloz, nenhuma revisão, publicação imediata. O narrador contou que ele escrevia "como quem se despedia da vida", não havendo "ocasião, enterro ou espetáculo solene, que escapasse à inspiração do fecundo escritor". Já vimos sua orgulhosa recusa de qualquer revisão. E Machado de Assis não deixou de indicar, pela voz do narrador ou pela boca de nosso pobre poeta, seu empenho em logo trazer a lume seus escritos. Não podendo financiar a publicação de sua segunda poesia, composta apenas dois dias após a primeira, ele "alcançou que fosse impressa de graça, motivo este que retardou a publicação por alguns dias. Luís Tinoco tragou a custo a demora, e não sei se não chegou a suspeitar a inveja dos redatores do Correio Mercantil" (ASSIS, 1977______. Aurora sem dia. In: ______. Histórias da meia-noite. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira; Brasília: INL, 1977. (Edições críticas das obras de Machado de Assis, v. 4)., p. 157). Em outra passagem, em que é narrado um encontro entre o dr. Lemos e Luís Tinoco, as três dimensões da negação do tempo apareceram associadas. Foi nessa ocasião que Tinoco, orgulhoso, revelou que escrevera uma de suas poesias em meia hora e sem fazer emendas. O poeta contou ainda que estava a caminho dos jornais, para levar algumas estrofes que compusera… na véspera.

Nessa mesma passagem, Machado de Assis explorou ainda outro comportamento combatido pelas duas poéticas: a recitação implacável e fora de lugar. "Não imiteis a fúria d'um Poeta,/ Que harmonioso Leitor de vãos escritos/ A quantos passam, logo lhe interpreta/ A turba de seus versos infinitos", recomenda Boileau ([19--]______. L'Art poétique. Arte poética. Tradução do Conde da Ericeira. Prefácio e notas de José Pedro Machado. Lisboa: Papelaria Fernandes Livraria, [19--]., p. 96). Mais enfático, Horácio (2012HORÁCIO. Arte poética. Introdução, tradução e comentários de R. M. Rosado Fernandes. 4. ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2012., p. 163) compara "o recitador implacável" a uma sanguessuga. A vítima de nossa sanguessuga, ou melhor, de nosso poeta, foi o dr. Lemos, que quis se esquivar ao perceber o movimento de Tinoco para lhe recitar os versos escritos na véspera. Mas - conta o narrador machadiano, em uma seleção significativa das palavras - "o homem era implacável; segurou-lhe o braço. Ameaçado de ouvir os versos na rua, o doutor convidou o poeta a ir jantar com ele" (ASSIS, 1977______. Aurora sem dia. In: ______. Histórias da meia-noite. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira; Brasília: INL, 1977. (Edições críticas das obras de Machado de Assis, v. 4)., p. 162).

A figura do amigo-censor também está presente em Horácio e em Boileau. O poeta romano evoca um exemplo concreto, escrevendo: "Se algo a Quintílio lesses, ele te dizia: 'Corrige, por favor, isto e isto'" (HORÁCIO, 2012HORÁCIO. Arte poética. Introdução, tradução e comentários de R. M. Rosado Fernandes. 4. ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2012., p. 159). Já Boileau (1966BOILEAU. L'Art poétique In: ______. Oeuvres complètes. Introdução de Antoine Adam, textos e notas de Françoise Escal. Paris: Gallimard, 1966. p. 155-185., p. 161) fala de fato em amigos, aconselhando que o poeta escolhesse aqueles que estariam prontos a censurá-lo, a serem os confidentes sinceros de seus versos e os adversários zelosos de seus erros. Tal era, certamente, o caso do dr. Lemos, que era, mais do que um amigo, um verdadeiro Quintílio do século XIX. O paralelo fica ainda mais claro quando se conhece o restante da preceptiva horaciana, que aborda a reação negativa do poeta aos reparos de seu censor:

E se tu dissesses que não podias fazer melhor e que já tentaras, em vão, duas e três vezes, ele te aconselhava a suprimir os versos maus e a meter de novo na bigorna os que tinham saído mal torneados. Se preferisses, no entanto, defender o erro a corrigi-lo, então, sem mais palavras, não empreendia ele a inútil tentativa de que, desprezando rivais, só de ti e de seus versos gostasses. (HORÁCIO, 2012HORÁCIO. Arte poética. Introdução, tradução e comentários de R. M. Rosado Fernandes. 4. ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2012., p. 159).

Tinoco, um Autor intratável (para falar com Boileau), adotou a postura arrogante de "defender o erro [ao invés de] corrigi-lo", como visto anteriormente, com a sua certeza de que "se os versos não fossem bons, o Mercantil não os publicava". Daí em diante, o dr. Lemos desistiu de qualquer "inútil tentativa" de esclarecer o poeta, limitando-se a tecer elogios aos versos de Tinoco, sempre embevecido na "contemplação de si mesmo" (ASSIS, 1977______. Aurora sem dia. In: ______. Histórias da meia-noite. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira; Brasília: INL, 1977. (Edições críticas das obras de Machado de Assis, v. 4)., p. 160, 164).

Presa da mais cega autocongratulação, certo de que seus versos eram excelentes, de que seu talento era "o alvo de mil ataques" por parte dos invejosos, de que a posteridade o salvaria da incompreensão do presente, Tinoco atualizava, assim, o Poeta sem Arte de Boileau (1966BOILEAU. L'Art poétique In: ______. Oeuvres complètes. Introdução de Antoine Adam, textos e notas de Françoise Escal. Paris: Gallimard, 1966. p. 155-185., p. 176), desprezado pelo Público, que tentava em vão alertá-lo de seu falso mérito. Aplaudindo ele mesmo seu gênio parco, Tinoco incensava-se a si próprio, conforme indicado. E, como o contraexemplo satirizado pelo poeta francês (BOILEAU, 1966BOILEAU. L'Art poétique In: ______. Oeuvres complètes. Introdução de Antoine Adam, textos e notas de Françoise Escal. Paris: Gallimard, 1966. p. 155-185., p. 176), dava-se o direito de menosprezar grandes nomes da tradição literária nacional, como o padre Caldas e Basílio da Gama, que fazem, em "Aurora sem dia", as vezes de Homero e Virgílio, nessa feliz atualização da Arte poética seiscentista para o tempo e o país de Machado de Assis.

A evidenciação desse diálogo conspícuo poderia levar à conclusão de que este constrói, com Luís Tinoco, uma encarnação atual e brasileira de uma figura universal e atemporal. Acontece que o autor de Goivos e camélias foi também cuidadosamente construído, segundo vimos, como um adepto do Romantismo. Assim, embora Machado de Assis acabe se colocando aí como um poeta satírico, castigando o poeta vulgar em sua sátira em forma de conto, o fato é que ele não era propriamente um novo Boileau ou um novo Horácio. Isso porque o romano e o francês ocupavam um outro espaço, arruinado exatamente por ação do Romantismo. Situavam-se ambos no âmbito do regime retórico-poético, com seus gêneros tradicionais, assentados em regras orientadoras da invenção poética, de seu julgamento e de sua fruição - as quais remetiam para a poética aristotélica.

Ora, a necessidade das regras fora justamente o objeto do ataque do Romantismo, atitude cujo símbolo emblemático foi o "Prefácio" do Cromwell, de Victor Hugo, que defendia a forma livre do drama contra os gêneros tradicionais da tragédia e da comédia. Antes dele, na virada do século, os idealistas alemães e as obras fundadoras de Madame de Staël (De la Littérature considérée dans ses rapports avec les institutions sociales [1800]) e de René de Chateaubriand (O gênio do Cristianismo [1802]) haviam, entre outros, comprometido o edifício da representação.4 4 Para uma discussão mais ampla e aprofundada das diferenças entre o regime retórico-poético de produção de textos e o regime literário, introduzido com o Romantismo - impossíveis de abordar no escopo deste artigo - ver, entre outros: HANSEN, 2004; RANCIÈRE, 2005a; ROCHA, 2013. De maneira que Machado de Assis não apenas enfrentava questões inexistentes para Boileau e Horácio, mas inconcebíveis dentro do regime poético que fora o deles. Utilizava-se, pois, de velhas armas, mas, como bem assinalou Jayme Loureiro (2006LOUREIRO, Jayme. Leitura, escrita e crítica em "Aurora sem dia". Teresa: Revista de Literatura Brasileira, São Paulo, n. 6-7, p. 103-123, 2006.), em um combate novo.

Nem de Boileau nem de Horácio vinha nem poderia vir a identificação das causas desse mal, dessa proliferação sem precedentes daquilo que Machado de Assis denominou, na esteira de seus predecessores, de "chama poética". A ênfase no papel legitimador da imprensa, a insistência no tema da inspiração individual, a cuidadosa caracterização da poesia e das referências literárias de Luís Tinoco evidenciam a historicidade das questões com que o autor de "Aurora sem dia" se defronta. Elas nos permitem também mensurar a reação de Machado de Assis diante dessas novidades ameaçadoras, para ele, da pureza do Parnaso brasileiro. O encontro entre a nova poética e a expansão sem precedentes do impresso e dos jornais permitiram que a poesia e a dignidade da página impressa servissem à ambição dos espíritos pretensiosos, daqueles que não sabem que não estão fadados a grandes destinos.

A maneira adequada de corrigi-los seria através de um discurso baseado nas preceptivas clássicas e dirigido aos "trovadores de sala", no intuito de esclarecê-los quanto aos requisitos verdadeiros da boa poesia, oriundos das poéticas tradicionais - não para fazer com que os adotassem (o que era inútil, como sugerem os esforços baldados do dr. Lemos), e sim para expor o papel ridículo a que se prestavam. Tratava-se de convencê-los de que eles não eram efetivamente poetas, sem embargo de escreverem poemas, publicá-los nas folhas e em volumes, receberem brevíssimas recensões negativas nos jornais, sustentarem um discurso de lamento quanto à condição do escritor no Brasil. E, por isso, mais dia, menos dia, teriam que arcar com as consequências negativas de terem querido se fazer passar por tais. Mais dia, menos dia, teriam que se confrontar com o fato de que a convicção de estar fadados a grandes destinos fora "o grande obstáculo da[s] sua[s] existência[s]". Assim foi com Luís Tinoco, que trocou a poesia pela política - indício suplementar de que para ele a poesia não passava de escada para a "glória" - e esta pela vida pacata de lavrador e pai de família, ao descobrir que "não era fadado para grandes destinos", ao ser obrigado a reconhecer "quanto eram pífios" seus versos. Com isso, "uma noite de reflexão" deu-lhe "ânimo de pisar terreno sólido, em vez de patinhar nas ilusões dos primeiros dias. Eu era um ridículo poeta e talvez ainda mais ridículo orador. Minha vocação era esta. Com poucos anos mais estou rico" (ASSIS, 1977______. Aurora sem dia. In: ______. Histórias da meia-noite. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira; Brasília: INL, 1977. (Edições críticas das obras de Machado de Assis, v. 4)., p. 182). Luís Tinoco termina "honrado e pacato lavrador, ar e maneira rústicas, sem o menor vestígio das atitudes melancólicas do poeta, do gesto arrebatado do tribuno, - uma transformação, uma criatura muito outra e muito melhor", casado e com dois filhos (ASSIS, 1977______. Aurora sem dia. In: ______. Histórias da meia-noite. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira; Brasília: INL, 1977. (Edições críticas das obras de Machado de Assis, v. 4)., p. 181).5 5 Um desfecho também inspirado em Horácio e em Boileau - particularmente neste, que, no canto IV da Arte poética, conta a história de um péssimo médico, que se descobre um excelente arquiteto, ao abandonar sua primeira profissão.

Além de deletéria para a poesia, sua manipulação pelos oportunistas seria negativa para eles mesmos. Assim, o melhor que tinham a fazer, em interesse próprio, era abandonar desejos de notoriedade e deixar a poesia a quem ela pertencia legitimamente, isto é, àqueles que sabiam que a boa, a verdadeira não devia servir a desejos de fama, nem era fruto da mera inspiração, mas uma "arte difícil", que exige estudo, dedicação, conhecimento e reconhecimento da autoridade da tradição.

"O programa"

Escrito cerca de dez anos mais tarde, "O programa" (1882) é uma reescrita de "Aurora sem dia", conforme assinalado por Lúcia Miguel Pereira (1955PEREIRA, Lúcia Miguel. Machado de Assis (Estudo crítico e biográfico). 5. ed. Rio de Janeiro: Livraria José Olympio, 1955., p. 137). Como Luís Tinoco, Romualdo foi alguém tomado pelo desejo de alcançar um lugar nas folhas públicas, "um ambicioso"; como o autor de Goivos e camélias, converteu-se em poeta por sua sede de nomeada; como ele, foi um verdadeiro compêndio romântico. Por tudo isso, não há dúvida: estamos diante de mais uma atualização do "Poeta sem Arte" de Boileau. Contudo, o narrador de "O programa" conferiu mais destaque à reação de Romualdo diante da publicação de seus textos do que insistiu na (má) qualidade deles, e enfatizou o poder de legitimação do impresso. Ele contou que, em 1858, quando o rapaz publicou seu primeiro poema - também no Correio Mercantil -, leu-o nada menos que seis vezes no espaço de meia hora, e isso apesar de trazê-lo de cor. Podia parecer espantoso, observou, e era perfeitamente compreensível, desde que se advertisse

[…] na diferença que vai do manuscrito ou decorado ao impresso. Romualdo lera, é certo, a poesia manuscrita; e, à força de a ler, tinha-a "impressa na alma", para falar a linguagem dele mesmo. Mas o manuscrito é vago, derramado; e o decorado assemelha-se a histórias velhas, sem data, nem autor, ouvidas em criança; não há por onde se lhe pegue, nem mesmo a túnica flutuante e cambiante do manuscrito. Tudo muda com o impresso. O impresso fixa. Aos olhos de Romualdo era como um edifício levantado para desafiar os tempos; a igualdade das letras, a reprodução dos mesmos contornos, davam aos versos um aspecto definitivo e acabado. (ASSIS, 2008______. Vênus! Divina Vênus! In: ______. Obra completa em quatro volumes. v. III: Conto, poesia, teatro, miscelânea, correspondência. Organização de Aluizio Leite. Ana Lima Cecilio, Heloisa Jahn. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2008. p. 317-324., p. 89, grifos meus).

A publicação do primeiro livro, no final de 1859, consolou-o da morte do Mosaico, periódico literário que deveria ter sido nada menos que o equivalente da Revista dos Dois Mundos (a pretensão de Romualdo superou em muito a de Luís Tinoco!), mas durou apenas alguns meses. Com o volume Verdades e quimeras, a satisfação e o orgulho foram ainda maiores do que com a publicação do primeiro texto, o que não seria de se espantar; é sabido que o livro eleva-se acima do jornal, permite aspirar a um estatuto não proporcionado pela publicação em folha: a imortalidade - ou, em termos bibliográficos, o clássico:

- Sou autor impresso, dizia rindo, quando recebeu os primeiros exemplares da obra. E abria um e outro, folheava de diante para trás e de trás para diante, corria os olhos pelo índice, lia três, quatro vezes o prólogo, etc. Verdades e quimeras! Via esse título nos periódicos, nos catálogos, nas citações, nos florilégios de poesia nacional; enfim, clássico. […] Que podiam escrever as folhas públicas senão um estribilho? "Cada ano que passa pode-se dizer que este distinto e infatigável poeta nos dá um volume das suas admiráveis Verdades e quimeras […]" (ASSIS, 2008______. Vênus! Divina Vênus! In: ______. Obra completa em quatro volumes. v. III: Conto, poesia, teatro, miscelânea, correspondência. Organização de Aluizio Leite. Ana Lima Cecilio, Heloisa Jahn. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2008. p. 317-324., p. 89-90, grifos meus).

Dez anos depois de "Aurora sem dia", o herói tinha se tornado de fato muito mais presunçoso, acreditando que uma eventual (imerecida) notoriedade ia conduzi-lo necessariamente à glória. Nem por isso se teve notícia de que fosse objeto de escárnio pelos críticos. Pelo contrário, o narrador, bem mais sugestivo e irônico do que o de "Aurora sem dia", anotou a boa recepção do livro: "Toda a imprensa saudou com benevolência o primeiro livro de Romualdo; dois amigos disseram mesmo que ele era o Gonzaga do Romantismo. Em suma, um sucesso" (ASSIS, 2008______. Vênus! Divina Vênus! In: ______. Obra completa em quatro volumes. v. III: Conto, poesia, teatro, miscelânea, correspondência. Organização de Aluizio Leite. Ana Lima Cecilio, Heloisa Jahn. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2008. p. 317-324., p. 90).

A gigantesca imodéstia do protagonista e a menção do próprio nome do movimento literário a que Romualdo se ligou não deixam dúvidas da proximidade entre "O programa" e "Aurora sem dia". Cabe assinalar, ainda, que Machado de Assis deu ao conto uma epígrafe retirada de Schiller: "Também eu nasci na Arcádia". Além disso, o próprio desenrolar e, sobretudo, o desfecho da história de Romualdo, como veremos adiante, reforçam a hipótese de uma reescrita da história de Luís Tinoco. Contudo, o Machado de Assis de 1882 tinha algumas diferenças notáveis em relação ao de 1873.

No que respeita ao problema que nos interessa, a figura do poeta vulgar e a crítica do Romantismo, é importante destacar a adoção de uma compreensão mais complexa dos liames entre literatura e desejos de fama e ascensão social. Em 1882, a entrada dos oportunistas na poesia não aparece como um mero efeito da revolução estética romântica. A ambição de Romualdo foi atribuída a três ou quatro forças distintas, entre as quais não estava a consagração pública dos escritores. Não obstante, a literatura não deixou de ser tomada, de um lado, como veículo para o acesso à fama, e, de outro, como motor da ambição. Em "O programa", ela concorre, tanto quanto o espetáculo das grandezas sociais (a política e a vida elegante) e a presunção, para atiçar nas pessoas comuns o desejo de uma vida outra, ilustre e rica. Assim, ela comparece por meio dos próprios romances, segundo um tópos próprio da literatura oitocentista: eles ensinavam a "retórica do amor" e "a alma sublime das coisas", responsáveis pela insatisfação com uma vida comezinha e obscura.

Uma outra diferença notável: a disposição pedagógica foi abandonada. Não que o narrador deixasse de assinalar a má qualidade dos textos de seu protagonista, desde os primeiros ensaios dele: "[…] se a primeira paixão foi uma pessoa vulgar e sem graça, a primeira composição poética era um lugar-comum" (ASSIS, 2008______. Vênus! Divina Vênus! In: ______. Obra completa em quatro volumes. v. III: Conto, poesia, teatro, miscelânea, correspondência. Organização de Aluizio Leite. Ana Lima Cecilio, Heloisa Jahn. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2008. p. 317-324., p. 88). Seus escritos, a exemplo dos de Luís Tinoco, foram caracterizados como um desfile repetido de imagens batidas e clichês baratos do Romantismo. Sua estreia literária, ocorrida igualmente, como já se viu, no Correio Mercantil, se deu na forma de um poema com "trinta ou quarenta versos, feitos com ímpeto, broslados de adjetivos e imprecações, muitos sóis, basto condor, inúmeras coisas robustas e esplêndidas" (ASSIS, 2008______. O programa. In: ______. Obra completa em quatro volumes. v. III: Conto, poesia, teatro, miscelânea, correspondência. Organização de Aluizio Leite, Ana Lima Cecilio, Heloisa Jahn. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2008. p. 86-100., p. 88-89). Uma de suas paixões, a jovem Lucinda, "apareceu aos olhos do nosso herói com todos os esplendores de uma madrugada. Foi assim que ele definiu esse momento, em uns versos publicados daí a dias no Eco de Guaratinguetá" (ASSIS, 2008______. O programa. In: ______. Obra completa em quatro volumes. v. III: Conto, poesia, teatro, miscelânea, correspondência. Organização de Aluizio Leite, Ana Lima Cecilio, Heloisa Jahn. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2008. p. 86-100., p. 91).

Ocorre que, a despeito dessa pobreza e dessa falta de originalidade, não existe, em "O programa", a figura do amigo empenhado em corrigir a concepção de poesia do herói. Nada de discursos normativos, nada de censuras, nada de conselhos sobre o ideal do poeta e da poesia. Não há uma figura como o dr. Lemos, tentando em vão alertar nosso poeta quanto aos equívocos de sua concepção poética.

Contudo, em uma diferença igualmente significativa, há sim um amigo. Fernandes, embora companheiro de infância de nosso herói, apareceu na trama apenas após o episódio literário e só desempenhou papel relevante a partir do fracasso do primeiro projeto de casamento de Romualdo. Além disso, sincero e devotado, lento em desconfiar das afetações de grandeza do companheiro, ele teve sempre palavras de estímulo e consolo, animando o amigo a teimar, a lutar, a vencer. No entanto, isso era precisamente o que o outro não fazia, à ambição não correspondia a persistência. Seu "programa" de vida, que chegou a incluir a disposição de ser Shakespeare e Pitt, ilustre homem de letras e grande nome da política, não vingou nem em sua cláusula mais banal, o casamento com uma herdeira rica. Seu destino final, advogado obscuro no interior da província, casado e com uma penca de filhos, aproximou-o ainda uma vez de Luís Tinoco. Nenhum deles foi infeliz; pelo contrário, a infelicidade só os perseguiu enquanto eles quiseram ser mais do que poderiam ser. A conclusão de Romualdo, praticamente uma paráfrase da de Tinoco, é significativa: "- Foi talvez o programa que me fez mal; se não pretendesse tanto…" (ASSIS, 2008______. Vênus! Divina Vênus! In: ______. Obra completa em quatro volumes. v. III: Conto, poesia, teatro, miscelânea, correspondência. Organização de Aluizio Leite. Ana Lima Cecilio, Heloisa Jahn. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2008. p. 317-324., p. 100).

As evidentes coincidências entre os dois contos reforçam a hipótese da construção da figura do poeta vulgar, por Machado de Assis, como uma estratégia para problematizar certos efeitos do Romantismo. Nele, são adeptos desse movimento literário os ambiciosos que almejam a notoriedade literária sem querer engajar-se em nada, sem fazer os esforços necessários, sem estudo, sem seriedade - e que conseguem, não obstante, publicar seus versos em jornais e reivindicar, assim, o nome de poeta. Essa figuração traz implícita uma visão sobre um dos males que então assolavam a literatura brasileira; o que cabia denunciar não era apenas nem principalmente a indiferença a que seriam votados os verdadeiros talentos, e sim o fato de eles serem poucos, muitos não passando de Tinocos, Romualdos etc., que, autorizados pelo novo estado de coisas poético e editorial, entraram para a literatura unicamente por "sede de nomeada". Mas, como tal, não continuariam nela, como não continuaram: foram viver uma vida obscura de pai de família com uma penca de filhos - e foi o melhor que fizeram.

Apesar desse destino final comum, não deixa de chamar a atenção a diferença de postura do narrador, que não repete a atuação engajada evidente no conto de 1873. Está em jogo aí, certamente, a própria mudança na poética machadiana, depois da revolução Brás Cubas, a partir da qual, como demonstrou Hélio Guimarães (2004GUIMARÃES, Hélio de Seixas. Os leitores de Machado de Assis: o romance machadiano e o público de literatura no século 19. São Paulo: Nankin; Edusp, 2004.), Machado de Assis modificou os termos de sua relação com o leitor, abandonando uma disposição pedagógica. Nesse sentido, o narrador se abstém de explicitar a distância entre o ideal de poeta e Romualdo. Ele não destaca a pouca dedicação ao estudo, a falta de revisão ou ainda a imediata publicação dos textos. Tudo isso permanece subentendido, substituído o discurso normativo por exageros e ironias estrategicamente situados, aos quais se atribui o papel de despertar a atenção (e a crítica) do leitor. Desse modo, o diálogo com as poéticas tradicionais reduz-se a quase nada, mas não deixa de subsistir no claro esforço de atualizar a figura do Poeta sem Arte (autor de versos ruins, presunçoso, prolífico, resistente ao estudo e à ponderação) e de construir, em negativo, o ideal de poeta.

Dessas diferenças redunda ainda que Machado de Assis parece assumir que não era preciso nem instruir nem combater os charlatões como Tinoco ou Romualdo. Caberia ainda menos esfregar na cara o ridículo papel a que se prestavam - um ridículo, aliás e infelizmente, visto por poucos. Os poetas vulgares abandonariam a literatura de moto próprio, reconhecendo que não estavam à altura da tarefa nem dos sacrifícios exigidos.

Dez anos mais tarde, essa figura do poeta vulgar seria objeto de um tratamento ainda menos normativo.

"Vênus! Divina Vênus!"

O protagonista de "Vênus! Divina Vênus!" (1893)6 6 Publicado no Almanaque da Gazeta de Notícias, esse conto tampouco foi recolhido em volume por Machado de Assis. foi identificado - ainda mais que seus antecessores - ao Romantismo. O narrador nomeou suas principais influências literárias: Casimiro de Abreu, o ultrarromântico português Soares de Passos e Lamartine. Assim como os de Luís Tinoco e os de Romualdo, os poemas de Ricardo eram uma coleção de clichês românticos, mais, dos mesmos clichês, como a obrigatória comparação da mulher amada com Vênus, inspirada por uma "triste cópia em gesso" da Vênus de Milo. Em certa passagem, o narrador, como já haviam feito seus antecessores, indicou expressamente o caráter repetitivo dos textos: "Choviam versos; as rimas buscavam rimas, cansadas de serem as mesmas; a poesia fortalecia o coração do moço" (ASSIS, 2008______. Vênus! Divina Vênus! In: ______. Obra completa em quatro volumes. v. III: Conto, poesia, teatro, miscelânea, correspondência. Organização de Aluizio Leite. Ana Lima Cecilio, Heloisa Jahn. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2008. p. 317-324., p. 318, 321). Mais um autor fecundo da galeria dos antipoetas machadianos, Ricardo era também - e não poderia deixar de ser - um dos fiéis cultores da inspiração a jato: "E despegando os olhos da parede, onde estava uma cópia pequenina da Vênus de Milo, Ricardo arremeteu contra o papel e arrancou de si dois versos para completar uma quadra começada às sete horas da manhã. Eram sete e meia" (ASSIS, 2008______. O programa. In: ______. Obra completa em quatro volumes. v. III: Conto, poesia, teatro, miscelânea, correspondência. Organização de Aluizio Leite, Ana Lima Cecilio, Heloisa Jahn. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2008. p. 86-100., p. 318). E embora não deixasse de emendar e reescrever, não se pode realmente dizer, a se considerar seu sistema de produção literária, que Ricardo subscrevesse a máxima do dr. Lemos, segundo a qual "a poesia era uma arte difícil e que pedia longo estudo":

O amor às unhas faz com que não as roa, quando se acha em dificuldades métricas. Em compensação, afaga a ponta do nariz com a ponta dos dedos. Esforça-se por sacar dali dois versos substitutivos, mas inutilmente. Afinal, tanto repetiu os dois versos condenados, que acabou por achar a quadra excelente e continuou a poesia. Saiu a segunda estrofe, depois a terceira, a quarta e a quinta. (ASSIS, 2008______. Vênus! Divina Vênus! In: ______. Obra completa em quatro volumes. v. III: Conto, poesia, teatro, miscelânea, correspondência. Organização de Aluizio Leite. Ana Lima Cecilio, Heloisa Jahn. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2008. p. 317-324., p. 318)

Em outra passagem, após um sonho sugestivo, Ricardo reata com a musa, com quem se declarara definitivamente rompido. Assim, mal acordou de manhã e olhou para a Vênus de Milo, o poeta

Atirou-se à mesa, ao papel, meteu mãos à obra, para compor alguma coisa, um soneto, um soneto que fosse. E olhava para Vênus - a imagem da prima - e escrevia, riscava, tornava a escrever e a riscar, e novamente escrevia até que lhe saíram os dois primeiros versos do soneto. Os outros vieram vindo, cai aqui, cai acolá (ASSIS, 2008______. Vênus! Divina Vênus! In: ______. Obra completa em quatro volumes. v. III: Conto, poesia, teatro, miscelânea, correspondência. Organização de Aluizio Leite. Ana Lima Cecilio, Heloisa Jahn. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2008. p. 317-324., p. 323-324).

Ao longo de praticamente todo o conto, há "transcrições" de trechos dos poemas de Ricardo, reveladores de sua proximidade com os de seus antecessores, porém desacompanhados da voz insistente do narrador, a assegurar sua vulgaridade. Não é necessário ser um verdadeiro poeta para constatá-la, mas não deixa de ser significativo que Machado de Assis tenha deixado a conclusão a cargo do leitor. Isso é um dos indícios de que, retomando a figura do poeta vulgar, o escritor não voltou a associar-lhe intenção de denúncia, não tomou a prática de escrever versos como originada necessariamente de uma ambição insensata, que prejudicaria ainda mais o espírito simples que a alimentou do que a própria literatura.

Outro indício é o fato de que a publicação dos poemas em jornais - que tampouco faltou na história de Ricardo - não se explicou por uma política de autopromoção. O espírito simples da ocasião, Ricardo, cultivava as musas para fazer face às despesas do coração, não em busca do cimo das folhas públicas. Seu alvo não foi o amor da multidão, mas sim o coração de uma namorada, digo, das namoradas. Definitivamente, o registro já não era o mesmo.

A primeira amada do poeta escapou-lhe sem que ele tivesse tido coragem de lhe dizer nada nem entregar-lhe os versos que ela havia inspirado - uma comparação com Vênus, claro. Como costuma acontecer com os namorados da galeria machadiana, enquanto ele hesitava, apareceu um pretendente mais determinado, o tenor e médico baiano Maciel, e arrebatou-lhe a formosa Marcela. E, como costuma acontecer nessas ocasiões, Ricardo se indignou contra o comportamento da moça, que censurou duramente em um poema intitulado "Perjura", publicado no jornal com a data mesma do casamento da moça. Mas Marcela, observou o narrador, "estava na lua de mel, não lia outros jornais além dos olhos do marido" (ASSIS, 2008______. Vênus! Divina Vênus! In: ______. Obra completa em quatro volumes. v. III: Conto, poesia, teatro, miscelânea, correspondência. Organização de Aluizio Leite. Ana Lima Cecilio, Heloisa Jahn. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2008. p. 317-324., p. 321). Quanto ao poeta, ele se foi a outros amores, afilhadas todas da "divina Vênus!". Entre elas, Virgínia, moça de dezesseis anos e filha de um tabelião também ele poeta, autor não de poesia lírica, que desprezava, e sim de fábulas e sátiras. Com Virgínia, Ricardo demonstrou ter aprendido a lição: fez muitas indiretas galantes e a presenteou com muito verso ruim. Contudo, uma doença os afastou - ela foi convalescer na Tijuca - e um bacharel paulista, o Vieira, os separou definitivamente.

Desencantado, o rapaz "[n]ão compôs mais versos, esteve a ponto de quebrar a Vênus de Milo" (ASSIS, 2008______. Vênus! Divina Vênus! In: ______. Obra completa em quatro volumes. v. III: Conto, poesia, teatro, miscelânea, correspondência. Organização de Aluizio Leite. Ana Lima Cecilio, Heloisa Jahn. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2008. p. 317-324., p. 322). Estava assim rompido com a musa quando soube, pela mãe, que a prima Felismina ia casar. A moça, que já fora objeto de seu desprezo, entrou a parecer-lhe simpática, bonita, graciosa. Funcionário da estrada de ferro, o noivo dela viajava muito. Ricardo aproveitou-se de sua partida para a Barra do Piraí para cortejar Felismina. Retorno do pretendente, nova viagem, e o ex-poeta continuou assediando a prima. Um dia, acordou de um sonho com ela reconciliado com a poesia; escreveu um soneto para a amada, sempre de olho na "divina Vênus", à cata de inspiração. À noite, selou com ele a promessa de se casar com Felismina. E se casou, para espanto da mãe, dona Maria dos Anjos que, se já havia sugerido ao filho casar-se com a sobrinha, ficou surpresa com o fato de ele ter paquerado a prima comprometida. O fato é que se casaram, apadrinhados pela poesia, e foram felizes, como o foram as outras namoradas de Ricardo e o ex-noivo de Felismina, casado mais tarde na Barra.

Com o casamento, o destino do poeta voltou a encontrar o de seus predecessores, fortalecendo a pertinência da comparação entre eles:

O poeta deixou de poetar, com grande mágoa dos seus admiradores. Um deles perguntou-lhe um dia, ansioso:

- Então você não faz mais versos?

- Não se pode fazer tudo - respondeu Ricardo, acariciando os seus cinco filhos. (ASSIS, 2008______. Vênus! Divina Vênus! In: ______. Obra completa em quatro volumes. v. III: Conto, poesia, teatro, miscelânea, correspondência. Organização de Aluizio Leite. Ana Lima Cecilio, Heloisa Jahn. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2008. p. 317-324., p. 324).

Considerações finais

Os três contos que analisamos aqui não foram os únicos em que Machado de Assis criou uma figura de poeta vulgar. Considerando apenas suas narrativas curtas publicadas em livro, podemos citar ainda o Oliveira, personagem secundária de "A mulher de preto______. A mulher de preto. In: ______. Contos fluminenses. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira; Brasília: INL, 1975. (Edições críticas das obras de Machado de Assis, v. 1).", dos Contos fluminenses (1870), ou o Elisiário, de "Um erradio", republicado em Páginas recolhidas (1899), após ter aparecido no periódico A Estação, em 1894. A existência desse grupo mais amplo permite sustentar a hipótese da construção dessa figura em Machado de Assis, fruto de uma atualização das poéticas tradicionais. Por outro lado, os três contos discutidos têm a vantagem de se situar em momentos estratégicos da trajetória literária de seu autor, permitindo efetuar um duplo movimento de análise da obra machadiana.

Inscrevendo-se, por um lado, no esforço de identificar a presença de temas que se repetem, eles evidenciam a permanência de um diagnóstico quanto a efeitos negativos do Romantismo e da publicação literária na imprensa. Não é certamente um acaso que nossos três poetas vulgares sejam poetas românticos, vivendo no final da década de 1850. Isso sugere que, na perspectiva de Machado de Assis, Luís Tinoco, Romualdo e Ricardo somente podem tomar a pena porque o triunfo do Romantismo, significando o fim do regime retórico-poético, com a afirmação da precedência do gênio sobre o estudo da tradição, a destruição das regras poéticas e a promoção de uma poesia subjetivista, abriu o universo sagrado das Musas à penetração dos espíritos simples. Como tais, eles expressam uma série de ideias equivocadas sobre a poesia, redigem textos em que chovem imagens batidas e rimas cansadas, inspiradas nos clichês românticos. Sobretudo, instrumentalizam a literatura, tomada como meio para se alcançarem outros fins: a celebridade, a ascensão social, a conquista amorosa. Sendo assim, não poderiam senão abandoná-la, a essa atividade que exige uma vocação verdadeira e em que o único ganho real está em si mesma, e no máximo em uma "glória que fica, eleva, honra e consola".

Por outro lado, essa repetição permite também discernir modificações na poética machadiana, tornadas ainda mais evidentes quando se analisa a reelaboração a que o escritor submeteu determinado enredo, tema ou figura. Em nosso caso, chama a atenção o abandono da forte disposição pedagógica e mesmo normativa, que marcou seu narrador nas décadas de 1860 e 1870. De "Aurora sem dia" a "O programa", a diferença é inegável: em vez de tentar ensinar a Tinoco e ao leitor o ideal da poesia e do poeta, o narrador adota um tom mais realista e irônico, mais sugestivo do que didático. Essa tendência seria reforçada em "Vênus! Divina Vênus!", em que é igualmente notável o abandono de um juízo extremamente pejorativo a respeito de protagonistas que não só não conhecem nem aceitam os requisitos da boa poesia, como tinham fumos absurdos de grandeza. Luís Tinoco e Romualdo são duramente ridicularizados em seus desejos de uma vida outra, suas infundadas manias de pretenderem tanto. Há ali um certo ar de conformismo social, o qual desaparece por completo no conto de 1893. Ricardo é construído não tanto como um charlatão oportunista a ser combatido e denunciado, e sim mais como um poeta de ocasião.

Tais diferenças sugerem, por seu turno, que Machado de Assis caminhou para a adoção de uma abordagem ainda mais historicizada do problema: em vez de ser um mal, a exigir a condenação mais feroz ou satírica possível, a abertura da poesia àqueles que creem no poder da mera inspiração passou a ser tomada como um simples dado de um momento histórico, uma consequência merecedora de registro irônico e exploração ficcional, nada mais. Com o movimento literário de Byron, Lamartine e Victor Hugo, com as páginas literárias dos jornais e das revistas, alguns jovens passaram a tomar da pena e a escrever e mesmo publicar aqueles fracos poemas que se liam, por exemplo, nas seções de "Apedidos" dos jornais, sem que isso precisasse suscitar a indignação dos verdadeiros cultores das letras; ficaria claro que isso não representava uma ameaça; tratava-se de nada mais do que um fenômeno do tempo - do tempo histórico e individual, já que, chegados os anos, a maturidade e os filhos, a poesia seria necessariamente deixada para trás. Ora, nessa passagem da denúncia à história, o que também ficava para trás era, paradoxalmente, a opção por um diálogo estreito com o regime retórico-poético e sua lógica normativa: em "Vênus! Divina Vênus!", a figura do poeta vulgar não convoca, em negativo, nenhum ideal.

Referências

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  • ______. A mulher de preto. In: ______. Contos fluminenses Rio de Janeiro: Civilização Brasileira; Brasília: INL, 1975. (Edições críticas das obras de Machado de Assis, v. 1).
  • ______. Aurora sem dia. In: ______. Histórias da meia-noite Rio de Janeiro: Civilização Brasileira; Brasília: INL, 1977. (Edições críticas das obras de Machado de Assis, v. 4).
  • ______. O programa. In: ______. Obra completa em quatro volumes v. III: Conto, poesia, teatro, miscelânea, correspondência. Organização de Aluizio Leite, Ana Lima Cecilio, Heloisa Jahn. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2008. p. 86-100.
  • ______. Vênus! Divina Vênus! In: ______. Obra completa em quatro volumes v. III: Conto, poesia, teatro, miscelânea, correspondência. Organização de Aluizio Leite. Ana Lima Cecilio, Heloisa Jahn. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2008. p. 317-324.
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  • WERKEMA, Andréa Sirihal. As duas pontas da literatura: crítica e criação em Machado de Assis. Belo Horizonte: Relicário, 2019.
  • 1
    A novidade da publicação literária em jornais foi assinalada no próprio conto, por meio de um diálogo entre Luís Tinoco e seu padrinho Anastácio, quando aquele lhe trouxe para ler o número do Correio Mercantil em que acabava de ser publicado seu primeiro poema. Surpreso, o padrinho exclamou: "- E de mais a mais versos! Os jornais já não falam de política? No meu tempo não falavam de outra cousa". Ao que Tinoco replicou: "- Falam de política e publicam versos, porque ambas as cousas têm entrada na imprensa" (ASSIS, 1977______. Aurora sem dia. In: ______. Histórias da meia-noite. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira; Brasília: INL, 1977. (Edições críticas das obras de Machado de Assis, v. 4)., p. 157).
  • 2
    Luís Tinoco parece encarnar o tipo, também machadiano, do "parasita literário", definido em termos bastante semelhantes: "Os traços fisiológicos do parasita são especiais e característicos. Não podendo imitar os grandes homens pelo talento, copiam na postura e nas maneiras o que acham pelas gravuras e fotografias. Assumem um certo ar pedantesco, tomam um timbre dogmático nas palavras; e ao contrário do fanqueiro que tem a espinha dorsal mole e flexível - ele não se curva nem se torce; a vaidade é o seu espartilho" (ASSIS, 2009______. Aquarelas - O parasita. In: ______. O Espelho. Organização, introdução e notas de João Roberto Faria. Campinas: Editora da Unicamp, 2009. p. 45-50., p. 47). Mas Tinoco, note-se, não tem a generalidade do parasita, já que imita grandes homens de um momento específico, o do Romantismo.
  • 3
    Um dos grandes nomes do Classicismo francês, poeta satírico, Nicolas Boileau-Despréaux (1636-1711) foi autor do poema herói-cômico Le Lutrin, que seria mais tarde imitado pelo poeta português Antônio Dinis da Cruz e Silva (1731-1799), com seu O hissope (1768, publicado postumamente em 1802). Machado de Assis mencionou Antônio Dinis em folhetins da década de 1860, n'O Futuro, periódico literário dirigido por Faustino Xavier de Novais, e seu conto "O país das quimeras" faz uso de figuras presentes n'O hissope. Na advertência ao seu próprio poema herói-cômico, O almada, Machado se deteve em uma discussão de caráter retórico, na qual apontou suas imitações dos poemas de seus dois modelos no gênero. Essa advertência foi publicada apenas postumamente, por Mário de Alencar, no volume Algumas relíquias (ASSIS, 1910ASSIS, Machado de. Advertência. In: ______. Algumas relíquias. Rio de Janeiro: Livraria Garnier, 1910. p. 103-108., p. 103-108). Além disso, cabe assinalar que o escritor possuía em sua biblioteca as Oeuvres poétiques de Boileau-Despréaux, em uma edição da Hachette, de 1853. Quanto a isso, ver Jobim (2001JOBIM, José Luís (Org.). A biblioteca de Machado de Assis. Rio de Janeiro: ABL; Topbooks, 2001.).
  • 4
    Para uma discussão mais ampla e aprofundada das diferenças entre o regime retórico-poético de produção de textos e o regime literário, introduzido com o Romantismo - impossíveis de abordar no escopo deste artigo - ver, entre outros: HANSEN, 2004HANSEN, João Adolfo. A sátira e o engenho: Gregório de Matos e a Bahia do século XVII. 2. ed. Cotia: Ateliê; Campinas: Editora da Unicamp , 2004.; RANCIÈRE, 2005aRANCIÈRE, Jacques. A partilha do sensível: estética e política. Tradução de Mônica Costa Netto. São Paulo: Editora 34; EXO experimental org, 2005.; ROCHA, 2013ROCHA, João Cezar de Castro. Machado de Assis: por uma poética da emulação. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira , 2013..
  • 5
    Um desfecho também inspirado em Horácio e em Boileau - particularmente neste, que, no canto IV da Arte poética, conta a história de um péssimo médico, que se descobre um excelente arquiteto, ao abandonar sua primeira profissão.
  • 6
    Publicado no Almanaque da Gazeta de Notícias, esse conto tampouco foi recolhido em volume por Machado de Assis.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    22 Maio 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    30 Jan 2023
  • Aceito
    30 Mar 2023
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