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A POLÊMICA COMO EXPEDIENTE RETÓRICO NOS PRIMEIROS TEXTOS DE MACHADO DE ASSIS

POLEMIC AS A RHETORICAL DEVICE IN THE FIRST TEXTS BY MACHADO DE ASSIS

Resumo

Este artigo propõe-se a tratar de três textos machadianos escritos em 1858 e publicados no jornal Marmota Fluminense. Com base nos textos de Ruth Amossy, Arthur Schopenhauer, Chaïm Perelman e Lucie Olbrechts-Tyteca, pretende-se compreender a função social da polêmica, como também evidenciar seus procedimentos composicionais, depreendendo nesses textos os modos de funcionamento da polêmica como expediente retórico. Com isso, pretende-se observar a importância da polêmica na pena machadiana, como também sua relevância nas sociedades democráticas. Por fim, este artigo teve como referência dos estudos machadianos as obras de Jean-Michel Massa.

Palavras chaves:
Machado de Assis; polêmica; retórica; Literatura Brasileira

Abstract

The aim of the paper is to address three texts written by Machado de Assis in 1858 and published in a newspaper called Marmota Fluminense. Based on authors Ruth Amossy, Arthur Schopenhauer, Chaïm Perelman and Lucie Olbrechts-Tyteca, the objective is to understand the social function of polemic, as well as to highlight its compositional procedures, by understanding the ways it functions as a rhetorical device in the texts selected. The intention is to observe the importance of polemic in Machado's writings, as well as its relevance in democratic societies. Jean-Michel Massa's research is used as a reference of Machadian studies.

Keywords:
Machado de Assis; polemic; rhetoric; Brazilian Literature

Em sua obra Dispersos de Machado de Assis, Jean-Michel Massa (1965MASSA, Jean-Michel. Dispersos de Machado de Assis. Rio de Janeiro: Ministério da Educação e Cultura; Instituto Nacional do Livro, 1965.) traz à luz alguns textos do escritor carioca e de grande relevância para os estudos machadianos. Trata-se de uma sequência de três artigos escritos por Machado de Assis e publicados no jornal Marmota Fluminense em fevereiro de 1858. Conforme pontua Massa (2009)______. A juventude de Machado de Assis, 1839-1870: ensaio de biografia intelectual. 2. ed. São Paulo: Editora Unesp, 2009., eles foram produzidos para participar de uma discussão proposta pelo editor Paula Brito. Essa polêmica, lançada no periódico, tinha como mote a seguinte questão:

Qual dos dois cegos mais sente

O penoso estado seu:

O que cegou por desgraça,

O que cego já nasceu? (MASSA, 2009______. A juventude de Machado de Assis, 1839-1870: ensaio de biografia intelectual. 2. ed. São Paulo: Editora Unesp, 2009., p. 170)

Era comum na impressa carioca do século XIX propor tais polêmicas como forma de entretenimento do leitor e, conforme Massa, Paula Brito inovara esse jogo ao propor concurso aos leitores, possibilitando que participassem dessas discussões.

Ao tratar do jornal Marmota, Juliana Simionato (2010SIMIONATO, Juliana. A Marmota de Paula Brito. In: RAMOS JR., José de Paula; DEAECTO, Marisa Midori; MARTINS FILHO, Plínio (Org.). Paula Brito: editor, poeta e artífice das letras. São Paulo: Edusp; Com Arte, 2010. p. 103-182.), informa as condições limitadas de seu editor, o que lhe impedia a produção de textos com teor político que interferissem nas discussões políticas da época. Mediante essa limitação, a escolha de Paula Brito foi a de focar seu trabalho na divulgação cultural, literária e de entretenimento, para angariar o máximo de assinantes possíveis:

Mais uma vez, Paula Brito divulga os objetivos de sua folha: produzir matérias que pudessem ser consumidas pela família carioca, especialmente as mulheres, deixando de lado temas políticos, intrigas da sociedade, anúncios enfadonhos e textos bajuladores. Nesse trecho, a poesia recebe destaque, pois é expressa a intenção de trazer literatura da melhor qualidade para instrução e divertimento (SIMIONATO, 2010SIMIONATO, Juliana. A Marmota de Paula Brito. In: RAMOS JR., José de Paula; DEAECTO, Marisa Midori; MARTINS FILHO, Plínio (Org.). Paula Brito: editor, poeta e artífice das letras. São Paulo: Edusp; Com Arte, 2010. p. 103-182., p. 147).

Conforme Massa (2009______. A juventude de Machado de Assis, 1839-1870: ensaio de biografia intelectual. 2. ed. São Paulo: Editora Unesp, 2009., p. 170), no século XIX, havia no Brasil o gosto pela polêmica, de modo que, na imprensa, tornava-se uma segunda natureza como forma de animar a vida provinciana da capital. Nesse sentido, Mendonça (1938MENDONÇA, Carlos Süssekind de. Sílvio Romero: sua formação intelectual 1850-1880. Rio de Janeiro: Companhia Editora Nacional, 1938., p. 76-77) informa que a polêmica era o entretenimento predileto dos intelectuais da época:

O estudioso, que queria aparecer, já sabia o recurso mais eficiente de que dispunha: aguardava uma oportunidade para entrar em polêmica com quem quer que fosse, a propósito dos assuntos em que se sentisse mais à vontade. O fato, apesar da sua frequência, despertava sempre a atenção dos círculos intelectuais e fazia ou inutilizava para sempre o polemista. Como, às vezes, todavia, a "polêmica" já se apresentava completa com seus dois contendores, o terceiro, que não queria perder a vasa para mostrar o que sabia, também entrava no brinquedo, discutindo com os primeiros.

Foi nesse contexto, portanto, que Machado de Assis publicou seus primeiros escritos em prosa no jornal Marmota Fluminense, estabelecendo a polêmica com o autor Jq. Sr. sobre o mote lançado por Paula Brito.

No dia 26 de fevereiro de 1858, Jq. Sr. fez sua primeira manifestação sobre o tema. Conforme Massa (2009______. A juventude de Machado de Assis, 1839-1870: ensaio de biografia intelectual. 2. ed. São Paulo: Editora Unesp, 2009.), o tom despretensioso e cheio de gracejos dava à sua escrita um estilo quase humorístico. Antes da manifestação do jovem Machado de Assis - que contava com 18 anos -, dois outros autores publicaram seus textos respondendo à polêmica do jornal: Alcipe, a mulher-poeta, escreveu em 9 de março; e A. - sugerido por Massa como talvez sendo a assinatura de Moreira de Azevedo -, em 2 de abril. Ambos os comentadores manifestaram posição semelhante à de Jq. Sr., isto é, a de que o cego por desgraça é quem sentia mais o seu penoso estado de cegueira.

O primeiro texto de Machado foi publicado no dia 05 de abril e em resposta direta a Jq. Sr. Apesar de os outros autores terem tomado posicionamento semelhante, Machado - único a manifestar-se contrário aos demais - estabeleceu polêmica aberta somente com esse autor. Para Sousa Neto (2015SOUSA NETO, Dário Ferreira. A pena do cronista: a presença das crônicas nos romances machadianos. 2015. 581 f. Tese (Doutorado em Literatura Brasileira) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2015., p. 26), há uma diferença de estilo entre esses autores, isto é, enquanto Alcipe e A. operam um posicionamento direto ao tema proposto, Jq. Sr. busca estabelecer proximidades com o leitor:

Provavelmente, a diferença de abordagem entre os três textos - de Alcipe, de A. e de Jq. Sr. (cujos dois primeiros estão próximos do discurso da vida, conforme mostramos, devido à sua conexão com a situação pragmática extraverbal, enquanto esse, dada sua veridicção pela verossimilhança, está próximo do discurso da arte) - seja o motivo por que Machado de Assis fez questão de envolver-se na polêmica com Jq. Sr.

A polêmica de Machado de Assis com Jq. Sr. torna-se importante para compreender não apenas o processo de amadurecimento retórico do escritor carioca, como também seu interesse pelos expedientes retóricos1 1 A expressão expediente retórico tem como base a definição dada por Perelman e Olbrechts-Tyteca, que definem expediente como sendo uma operação da linguagem visando um determinado resultado, uma técnica. Conforme nota do tradutor, o termo em francês é procédé - palavra definida pelo Dicionário Le Robert como aquilo que indica um artifício. Considerando o propósito deste artigo sobre os usos que Machado faz dos argumentos retóricos como polêmica, optamos por manter essa expressão. desde sua mocidade. Nesse caso, a polêmica como uma modalidade argumentativa. Para Sousa Neto (2015SOUSA NETO, Dário Ferreira. A pena do cronista: a presença das crônicas nos romances machadianos. 2015. 581 f. Tese (Doutorado em Literatura Brasileira) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2015., p. 35), a relevância dessa produção deve-se ao fato de mostrar a habilidade de Machado, desde os dezoito anos, de "elaborar textos em perspectiva dialógica que permite a troca de ideias e de experiências para sua produção estético-literária".

Pretendemos avaliar esses textos com base nos estudos sobre a erística e a polêmica abordados por alguns teóricos da análise do discurso e da Nova Retórica.Schopenhauer (2009SCHOPENHAUER, Arthur. A arte de ter razão: exposta em 38 estratagemas. 3. ed. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2009., p. 3), conceitua a dialética erística2 2 Cabe pontuar que os autores da retórica clássica como Platão, Aristóteles, Quintiliano, Cícero, entre outros, tratam a erística como um raciocínio aparente, pelo fato de seus praticantes não terem compromisso com a verdade. Em sua obra Dos argumentos sofísticos, Aristóteles afirma que os argumentos erísticos são apenas "contenciosos [...] visto que parecem raciocinar, mas na realidade não o fazem" (ARISTÓTELES, 1987, p. 33). Schopenhauer observa, na introdução de sua obra, essa definição limitada da retórica aristotélica e se coloca como o primeiro a tratar a erística como elemento fundamental da dialética, refutando essa perspectiva dela como raciocínio aparente. Essa também é a perspectiva de Ruth Amossy sobre o que ela define como "retórica do dissenso". como "a arte de disputar, mais precisamente a arte de disputar de maneira tal que se fique com a razão". Para ele, a função da dialética erística é a de ensinar para se defender dos ataques do adversário, sobretudo quando são desonestos. Por mais que o orador/escritor tenha razão, a dialética se faz necessária, pois o litígio não se refere apenas a mostrar a verdade de determinado tema, mas envolve a vaidade dos litigantes que, mesmo sabendo serem falsos seus argumentos, farão de tudo para confirmar sua aparente verdade.

Como observa Amossy (2017AMOSSY, Ruth. Apologia à polêmica. São Paulo: Editora Contexto, 2017.), Schopenhauer é o responsável por lançar os rudimentos iniciais do que a autora chama de "retórica do dissenso". Nas palavras de Saes (2015SAES, Sílvia Faustino de Assis. A arte de ter razão. Revista Voluntas: Estudos sobre Schopenhauer, v. 6, n. 2, p. 122-135, jul./dez. 2015., p. 122):

[...] ao absorver e tentar superar os ensinamentos de ambas as tradições, Schopenhauer acaba produzindo os rudimentos de uma espécie de racionalidade comunicativa na qual o funcionamento polêmico da linguagem, concebida como instrumento eficaz de certa "vontade de poder", torna-se o único responsável pela consolidação das crenças e valores sociais.

Portanto, a definição de dialética erística apresentada por Schopenhauer fundamenta o conceito de polêmica que Amossy desenvolve em sua obra. Para ela, a polêmica é uma modalidade argumentativa da retórica e, como tal, ela é uma arte da refutação. Para que se constitua como tal, a polêmica tem como primeira marca uma oposição de discurso, isto é, a autora a define como "choque de opiniões antagônicas marcando o caráter constitutivo que desempenha nela o conflito" (AMOSSY, 2017AMOSSY, Ruth. Apologia à polêmica. São Paulo: Editora Contexto, 2017., p. 53).

Com base nessas duas definições, podemos analisar os textos de Machado de Assis para depreender o funcionamento da polêmica em torno do tema "os cegos" lançado por Paula Brito e, com isso, evidenciar a polêmica como expediente retórico nessa produção machadiana. Portanto, centraremos nossa análise nos artigos de Machado e, quando necessário, citaremos ou analisaremos os de Jq. Sr.

Ambos os autores iniciam com um exórdio daquilo que pretendem apresentar. Conforme Perelman e Olbrechts-Tyteca (2005PERELMAN, Chaïm; OLBRECHTS-TYTECA, Lucie. Tratado da argumentação: a nova retórica. Tradução de Maria Ermantina de Almeida Prado Galvão. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2005., p. 561), o exórdio tem como função atuar sobre as disposições do auditório:

Seu objetivo será conquistar o auditório, captar a benevolência, a atenção, o interesse. Fornecerá também certos elementos dos quais nascerão argumentos espontâneos tendo o discurso e o orador como objeto. [...] em muitos casos ele é indispensável para o efeito persuasivo do discurso. Garante as condições prévias para a argumentação.

Jq. Sr. inicia com uma pergunta e uma citação de Hamlet: "That is the question". A citação determina o tom humorístico empreendido no texto, que se confirma no parágrafo seguinte: "A vontade, essa eletricidade intelectual, fez-me lembrar que se eu discutisse rindo-me, ainda o fazia filosoficamente, pois o riso já foi o característico de uma escola de pensadores" (SOUSA NETO, 2015SOUSA NETO, Dário Ferreira. A pena do cronista: a presença das crônicas nos romances machadianos. 2015. 581 f. Tese (Doutorado em Literatura Brasileira) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2015., p. 532). O título já anuncia o tom humorístico ao fazer referência ao filósofo Demócrito, conhecido como o filósofo que ri. Com esse tom humorístico, Jq. Sr. pôde minimizar sua habilidade de orador como forma de evitar possíveis refutações a seus argumentos.

Essa estratégia de minimizar suas habilidades faz com que o autor eluda o que Perelman e Olbrechts-Tyteca definem como evitar a acusação de expediente, isto é, evitar que qualquer falha em sua argumentação seja atribuída ao talento do autor. Isso se evidencia nas duas respostas que dá a Machado de Assis, conforme podemos ver no segundo texto:

[...] apesar de repararmos que o mesmo senhor tenha ligado mais importância do que nós mesmos a esse ligeiro escrito, e que trata com mais interesse, do que apresenta mostrar um artigo humilde e obscuro como o seu autor (SOUSA NETO, 2015SOUSA NETO, Dário Ferreira. A pena do cronista: a presença das crônicas nos romances machadianos. 2015. 581 f. Tese (Doutorado em Literatura Brasileira) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2015., p. 536).

Ou ainda, no terceiro texto:

Já dissemos uma vez, e o colega teria lido, que o nosso primeiro artigo, escrito humoristicamente e num estilo ligeiro, com quanto apresentasse a ideia que nos domina na presente questão, no ponto em que encarávamos como mais infeliz o cego por desgraça, era, contudo, essa ideia revestida de argumentos adequados ao estilo, e não um verdadeiro estudo metafísico; [...] (SOUSA NETO, 2015SOUSA NETO, Dário Ferreira. A pena do cronista: a presença das crônicas nos romances machadianos. 2015. 581 f. Tese (Doutorado em Literatura Brasileira) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2015., p. 544).

Essa escolha de exórdio é qualificada por Reboul (2000REBOUL, Olivier. Introdução à Retórica. São Paulo: Martins Fontes , 2000.) como cleuasmo, cuja função é a de se depreciar para angariar a confiança e simpatia do auditório. Diferentemente, Machado de Assis inicia seu exórdio prometendo uma batalha:

Esperávamos que alguém agitasse esta questão; e esperávamos na sombra, sem a ninguém comunicar as nossas intenções, os nossos pensamentos. Um artigo publicado no n. 929 da Marmota, decide-nos; vamos entrar na questão, expender as nossas ideias com a simplicidade e firmeza, filhas da convicção; certos da atenção e benevolência dos leitores (ASSIS, 2008ASSIS, Machado de. Obra Completa em quatro volumes: volume três. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2008., p. 996).

Ele opera o exórdio em direção ao auditório, solicitando a atenção e a benevolência dos leitores. Com isso, busca provocar o amor-próprio de seu auditório (os leitores) como forma de conquistá-lo para si e contra seu oponente. Direta ou indiretamente, ambos convocam a presença do leitor como avaliador dos argumentos. Segundo Amossy (2017AMOSSY, Ruth. Apologia à polêmica. São Paulo: Editora Contexto, 2017.), a polêmica se constitui de dois oponentes e do ouvinte-espectador da confrontação. Desse modo, os oponentes disputam a atenção desse terceiro para dissuadi-lo a aderir o ponto de vista de quem escreve contra seu adversário. Como sabemos, o leitor tem papel relevante nas obras machadianas ou, como observou Guimarães (2004GUIMARÃES, Hélio de Seixas. Os leitores de Machado de Assis: o romance machadiano e o público de literatura no século 19. São Paulo: Nankin Editorial; Edusp, 2004., p. 26), "o leitor é figura onipresente na obra de Machado de Assis".

Além desse diálogo direto ou indireto com o leitor, tanto Jq. Sr. como Machado enunciam a polêmica em seus argumentos. O primeiro a fazer isso é Machado, ao iniciar referenciando o texto do adversário. Por sua vez, Jq. Sr. inicia sua réplica com o título "Réplica ao Sr. As." e Machado, ao responder a seu adversário, insere o título "Tréplica ao Sr. Jq. Sr.". Por fim, o terceiro texto de Jq. Sr. é intitulado: "Ainda uma resposta ao Ilmo. Sr. As.". Ambos estabelecem a polêmica por meio do que Amossy (2017AMOSSY, Ruth. Apologia à polêmica. São Paulo: Editora Contexto, 2017., p. 198) chamou de "interação polêmica", isto é, uma refutação direta ao discurso do oponente:

A polêmica é um contradiscurso centrado na refutação e no descrédito, no qual a fala do outro só aparece no esforço feito para contrariá-la. Nesse sentido, ela comporta, em si, múltiplos traços do discurso reportado tomado sob suas mais diversas formas: citação, paráfrase, discurso indireto, antífrase irônica, alusão, negação etc. Ela não é, entretanto, dialogal. Entendo que ela não se submete à estrutura do diálogo no seio do qual dois parceiros respondem simetricamente, face a face ou em interações não síncronas.

Como discurso reportado, a polêmica retoma o argumento do outro para respondê-lo, distorcê-lo e evidenciar seus pontos fracos. Para tanto, há a necessidade de recuperar o texto do adversário, sem a qual a polêmica não se estabelece. Desse modo, os títulos presentes tanto em Jq. Sr., como em Machado informam ao leitor a proposta da polêmica pública. É importante observar que a escolha de se estabelecer a polêmica parte de Machado de Assis. Logo, seu adversário ocupa o lugar desconfortável de apenas se defender dos ataques. Enquanto Jq. Sr. opera um tom galhofeiro em seu texto, Machado opta por um tom beligerante e, para isso, opera outro elemento que Amossy (2017AMOSSY, Ruth. Apologia à polêmica. São Paulo: Editora Contexto, 2017.) identifica como característico da polêmica: o exagero:

O Sr. Jq. Sr., autor do artigo acima mencionado, à parte alguns absurdos, nada disse sobre a questão; entretanto, esperávamos o contrário ao começar a ler as primeiras linhas; ilusão que se desfez ao terminarmos o artigo (ASSIS, 2008ASSIS, Machado de. Obra Completa em quatro volumes: volume três. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2008., p. 996).

Ao informar que o autor do artigo nada disse sobre a questão, ele estabelece o exagero pela negativa, cuja função é nomeada por Perelman e Olbrechts-Tyteca (2005PERELMAN, Chaïm; OLBRECHTS-TYTECA, Lucie. Tratado da argumentação: a nova retórica. Tradução de Maria Ermantina de Almeida Prado Galvão. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2005., p. 332) como lítotes. Para os autores, a lítotes é "em geral definida pelo contraste com a hipérbole, como sendo uma forma de exprimir que parece enfraquecer o pensamento". Ao dizer para o leitor que seu oponente, à parte de alguns absurdos, nada disse sobre a questão, tal afirmação exagerada não pretende negar a escrita, mas o valor da escrita e, com isso, enfraquecer seus argumentos.

Na referenciação dos argumentos de Jq. Sr., o autor se utiliza de duas formas de refutação direta que Schopenhauer (2009SCHOPENHAUER, Arthur. A arte de ter razão: exposta em 38 estratagemas. 3. ed. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2009.) identifica como nego consequentiam e nego majorem, minorem. A refutação, para o filósofo polonês, pode se dar por dois modos - ad rem e ad hominem - e dois caminhos: a refutação direta e a indireta. A nego consequentiam como uma das maneiras de refutação direta faz com que o refutador admita os fundamentos do argumento refutado, contudo, mostra que "a afirmação não resulta deles, ou seja, atacamos a consequência, a forma da inferência" (SCHOPENHAUER, 2009SCHOPENHAUER, Arthur. A arte de ter razão: exposta em 38 estratagemas. 3. ed. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2009., p. 15). O autor carioca evidencia esse procedimento no seguinte trecho:

O Sr. Jq. Sr. diz que, para o cego de nascença a vida começa sem a aniquilação da melhor parte da vida - a vista - e que, portanto, o cego por acidente, sofrendo essa aniquilação, é o mais digno de lástima. A consequência é errada, e está diametralmente oposta à única conclusão possível do princípio estabelecido. É pela razão mesma de que o cego de nascença não sofre a aniquilação da vista, que é o mais desgraçado (ASSIS, 2008ASSIS, Machado de. Obra Completa em quatro volumes: volume três. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2008., p. 996).

O autor, portanto, admite o fundamento apresentado por Jq. Sr., mas refuta a consequência de que isso torna o cego por desgraça mais infeliz. A divergência de ambos os autores sobre esse ponto em específico deve-se ao fato de Jq. Sr. defender o conceito cartesiano de ideias inatas, o que possibilita ao cego de nascença criar para si um mundo imaginário. Por sua vez, Machado refuta essa perspectiva com base em Diderot (1979DIDEROT, Denis. Textos escolhidos. São Paulo: Abril Cultural, 1979.) - não citado diretamente em seu texto -, cuja obra sobre os cegos enfatiza a incapacidade de um cego de nascença formar ideias com base nos sentidos.

A segunda maneira de refutação direta dá-se neste trecho:

Continua o mesmo senhor, dizendo que o cego de nascença fantasia um mundo à sua guisa, e identifica-se com ele, idealizando e colorindo as coisas melhor do que elas são. Isto importa um erro psicológico. Não é possível ao cego em questão criar esse mundo à sua guisa: e a razão é esta: - A criação desse mundo espiritual só pode ser fantasiada pela imaginação e pelo raciocínio. Estas duas faculdades desenvolvem-se no centro das ideias; as ideias são adquiridas pelos sentidos. Ora, sendo o cego de nascença totalmente estranho ao mundo físico, não pode receber ideias para povoar o seu mundo pela ausência do importante órgão da percepção visual: Como idealizar, colorir, e identificar-se com o seu mundo? (ASSIS, 2008ASSIS, Machado de. Obra Completa em quatro volumes: volume três. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2008., p. 996)

Aqui o autor opera o que Schopenhauer define como nego majorem, minorem, isto é, nega os fundamentos da argumentação de Jq. Sr. Novamente com base em Diderot (1979DIDEROT, Denis. Textos escolhidos. São Paulo: Abril Cultural, 1979.), o autor afirma a incapacidade de o cego de nascença figurar imagens como os demais.

Essas refutações, entre outras, permitem ao autor do artigo expor ao leitor seus argumentos e justificar o motivo pelo qual resolve vir a campo para combater seu adversário em específico e não os demais, que manifestaram posicionamento semelhante. No segundo texto, a motivação fica mais evidente, quando Machado a explicita: "Havia nisso um pensamento humanitário; - Receávamos que espíritos menos fortes se deixassem impressionar por uma linguagem que tão bem soube dourar uma aluvião de paradoxos" (ASSIS, 2008ASSIS, Machado de. Obra Completa em quatro volumes: volume três. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2008., p. 999). Essa justificativa surge como resposta a Jq. Sr., que acusou Machado de, como D. Quixote, combater moinhos de vento.

A utilização de comentários irônicos e sarcásticos faz parte da argumentação polêmica identificada muitas vezes como argumentum ad hominem. Machado terminou seu primeiro texto com esse recurso argumentativo, mas de forma mais sutil ao dizer que "fique certo de uma verdade: nós não ferimos personalidades, mas sim argumentos: mesmo apesar da frase de Buffon: - O estilo é o homem" (ASSIS, 2008ASSIS, Machado de. Obra Completa em quatro volumes: volume três. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2008., p. 998). Logo, nega o uso do recurso ad hominem, quando informa que atacou apenas os argumentos, porém, ao citar Buffon, nega sua negativa, isto é, se ele ataca o estilo e Buffon afirma que o estilo é o homem, portanto, opera inevitavelmente o argumentum ad hominem. Essa sutileza se sustenta na ambiguidade da frase, outro procedimento predominante nas obras machadianas. Jq. Sr., em sua resposta, não deixa por menos ao informar que: "Entretanto, o nobre cavalheiro nem de leve nos ofende, ao contrário, trata-nos com a urbanidade que o caracteriza, e tem, portanto, toda a razão quando diz: - o estilo é o homem" (SOUSA NETO, 2015SOUSA NETO, Dário Ferreira. A pena do cronista: a presença das crônicas nos romances machadianos. 2015. 581 f. Tese (Doutorado em Literatura Brasileira) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2015., p. 537). Conforme nota Amossy (2017AMOSSY, Ruth. Apologia à polêmica. São Paulo: Editora Contexto, 2017., p. 98):

Para bem levar a cabo a tarefa de refutação, o discurso e a interação polêmicos não hesitam em usar não somente contra-argumentos, mas também modos de escárnio (ironia, demonstração pelo absurdo), recursos que se apoiam no bom senso (utilização de elementos da doxa que marcam uma característica irracional do outro), argumentos ad hominem (ataque à tese por meio da pessoa que a defende), marcas de pathos (ímpeto de indignação, cólera...).

Para arrematar seu ataque, Machado se vale do argumento ontológico para, a partir dele, firmar no leitor sua tese:

Uma das provas eloquentes, mais vivas, por isso que palpável, da existência de Deus, é o universo, o mundo físico, esta natureza que se desenrola aos olhos do homem, colorida e perfumada por uma mão suprema (ASSIS, 2008ASSIS, Machado de. Obra Completa em quatro volumes: volume três. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2008., p. 997).

O argumento ontológico, conhecido também como ratio Anselmi, tem como fundador Santo Anselmo de Aosta, no século XI, como forma de provar a necessidade da existência de Deus. Conforme Cordeiro (2009CORDEIRO, Andréa Maria. A interpretação do argumento ontológico segundo Leibniz. Revista Intuitio, v. 2, n. 3, p. 56-65, nov. 2009., p. 60):

De acordo com o argumento ontológico a existência de Deus segue o a priori desde sua definição como um ser absolutamente perfeito. Uma vez que, existência é mais perfeita do que não existência a própria ideia de deus implica que ele existe. Leibniz formula o argumento ontológico de maneiras distintas, contudo, ele acredita que todas expressem mais ou menos a mesma ideia.

Logo, ao fazer referência ao argumento ontológico, Machado manipula seu leitor por meio da topoi cristã, isto é, a existência de Deus é um pressuposto comum que o autor compartilha tanto com o leitor, como com seu adversário. Contudo, essa crença é deslocada para sua manifestação material: Deus existe e a prova de sua existência é a de estar em todas as coisas. A percepção da existência de Deus dá-se por meio do desenrolar aos olhos humanos e, com isso, arremata:

Este reconhecimento que importa um dos pontos capitais da filosofia, é a base da religião não pode ser operado senão pelas ideias recebidas pelos sentidos. Pode o cego de nascença sem uma só noção do mundo físico, esta grande manifestação da existência de Deus, fazer uma ideia exata da Divindade? Não o cremos (ASSIS, 2008ASSIS, Machado de. Obra Completa em quatro volumes: volume três. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2008., p. 998).

A sustentação de seu posicionamento o faz operar aquilo que Schopenhauer (2009SCHOPENHAUER, Arthur. A arte de ter razão: exposta em 38 estratagemas. 3. ed. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2009., p. 30) identifica como "alternativa forçada", isto é, apresenta a tese oposta e deixa que o adversário faça a escolha. Em sua argumentação, Machado usa a expressão: "Uma das provas eloquentes, mais vivas, por isso que palpável da existência de Deus" (ASSIS, 2008ASSIS, Machado de. Obra Completa em quatro volumes: volume três. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2008., p. 997). A refutação de Jq. Sr. dá-se por acusar seu opositor de reduzir Deus ao mundo físico:

Perguntais ainda se pode o cego de nascença, sem uma só noção do mundo físico, fazer uma ideia exata da divindade?! Com efeito! É uma contingência muito mesquinha essa em [que] pondes as provas da existência de Deus! É acabar com todas as ideias imateriais e em que se funda a crença dos espiritualistas sobre a divindade! É reconhecer a Deus, somente em suas obras, e fazer dependente de acontecimentos físicos, uma ideia toda dependente da alma!!... (SOUSA NETO, 2015SOUSA NETO, Dário Ferreira. A pena do cronista: a presença das crônicas nos romances machadianos. 2015. 581 f. Tese (Doutorado em Literatura Brasileira) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2015., p. 537)

Ao que Machado arremata no texto seguinte:

O último tópico do artigo do Sr. Jq. Sr. é interessantíssimo. S. S. acusa-nos de materialista: e para prová-lo lança mão de um dos sofismas mais reprovados; atribui-nos uma opinião que não temos, dizendo que admitimos e reconhecemos Deus somente nas suas obras, nós que dissemos que uma das provas mais vivas, por isso que palpável da existência de Deus, era o mundo físico! (ASSIS, 2008ASSIS, Machado de. Obra Completa em quatro volumes: volume três. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2008., p. 1000)

Embora Jq. Sr. não admita a proposição alternativa de seu oponente, reduzindo-a a uma única possibilidade de interpretação - "reconhecer a Deus, somente em suas obras" -, Machado enfraquece o ataque do adversário ao evidenciar sua leitura propositadamente reducionista. Há nessa operação, outra estratégia discursiva que Perelman e Olbrechts-Tyteca (2005PERELMAN, Chaïm; OLBRECHTS-TYTECA, Lucie. Tratado da argumentação: a nova retórica. Tradução de Maria Ermantina de Almeida Prado Galvão. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2005. p. 192) identificam como prolepse, isto é, uma refutação antecipada que funciona como objeção simulada. Ao usar o termo "uma das provas", além de criar uma alternativa, o autor também fez uma objeção simulada, caso seu opositor não lhe aceitasse a proposição. Uma vez não aceita, o autor pode então acionar essa prolepse para destruir de vez o ataque reducionista feito por seu opositor.

Por fim, outro recurso argumentativo utilizado por Machado manifesta-se no seu último texto, ao proclamar a vitória sobre seu oponente. Schopenhauer (2009SCHOPENHAUER, Arthur. A arte de ter razão: exposta em 38 estratagemas. 3. ed. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2009., p. 30-31) denomina esse procedimento como fallacia non causae ut causae:

Um golpe insolente ocorre quando, após o adversário ter respondido várias perguntas sem favorecer a conclusão que temos em mente, apresentamos como comprovada a conclusão a que queremos chegar, embora ela não resulte absolutamente das suas respostas, e a exclamamos triunfantes. Se o adversário é tímido ou tolo e nós temos uma boa dose de impertinência e uma boa voz, o golpe pode funcionar muito bem. Esse estratagema pertence à fallacia non causae ut causae [engano mediante o reconhecimento da não-causa como causa].

Desse modo, o opositor não precisa reconhecer sua derrota, muito menos dar o braço a torcer a favor dos argumentos de seu adversário. Basta que o tom beligerante do adversário imponha a vitória por si, silenciando de vez seu oponente. Como observam Perelman e Olbrechts-Tyteca (2005PERELMAN, Chaïm; OLBRECHTS-TYTECA, Lucie. Tratado da argumentação: a nova retórica. Tradução de Maria Ermantina de Almeida Prado Galvão. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2005.), a busca pelo reconhecimento da vitória por parte do orador não é motivada apenas por orgulho ou desejo frívolo, ela é um recurso de persuasão operado pelo orador e direcionado a seu auditório. Caso o opositor não intervenha para negar a vitória, a tendência é de aceitação por parte do público. Para os autores, esse recurso faz parte das muitas técnicas que favorecem a comunhão entre o orador e seu auditório (PERELMAN; OLBRECHTS-TYTECA, 2005PERELMAN, Chaïm; OLBRECHTS-TYTECA, Lucie. Tratado da argumentação: a nova retórica. Tradução de Maria Ermantina de Almeida Prado Galvão. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2005., p. 365).

Vemos, portanto, a manifestação dessa técnica na terceira e última publicação de Machado de Assis:

Sucedeu o que esperávamos; o nosso adversário recuando passo a passo encontrou a parede a que levaram os nossos argumentos sensatos e consequentes. S. S. fica, pois, impossibilitado de discutir na questão atual, pelo menos com argumentações da ordem das que tem posto em prática. Mitos nasceram, e mitos foram parar à tumba, donde não sairão, nem mesmo na consumação dos séculos! A terra lhes seja leve (ASSIS, 2008ASSIS, Machado de. Obra Completa em quatro volumes: volume três. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2008., p. 1001).

O leitor atento, ao retomar o texto anterior de Jq. Sr., verificará que não se trata de um reconhecimento de sua derrota. O autor diz no final:

O nosso colega poderá resistir às nossas razões, poderá mesmo em consciência não se achar convencido, pois a questão é toda de sentimento e não de razões; porém nós julgamos que temos mais companheiros de crença do que ele. Aguardamos a sua resposta e o saudamos (SOUSA NETO, 2015SOUSA NETO, Dário Ferreira. A pena do cronista: a presença das crônicas nos romances machadianos. 2015. 581 f. Tese (Doutorado em Literatura Brasileira) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2015., p. 546).

Jq. Sr. argui que os argumentos de seu oponente se sustentam sobre sentimentos e, portanto, o oponente não pode refutar os argumentos que sustentam a tese de ser o mais infeliz o cego por acidente. Além disso, Jq. Sr. se utiliza daquilo que Perelman e Olbrechts Tyteca (2005PERELMAN, Chaïm; OLBRECHTS-TYTECA, Lucie. Tratado da argumentação: a nova retórica. Tradução de Maria Ermantina de Almeida Prado Galvão. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2005., p. 98) identificam como premissa dos lugares de quantidade, isto é, afirmar que sua tese é verdadeira por ter maior número de apoiadores:

O lugar da quantidade, a superioridade do que é admitido pelo maior número, é que fundamentam certas concepções da democracia e, também, as concepções da razão que assimilam esta ao "senso comum". Mesmo quando certos filósofos, como Platão, opõem a verdade à opinião do grande número, é, contudo, em virtude de um lugar da quantidade que eles valorizam a verdade, fazendo dela um elemento de acordo de todos os deuses e que deveria suscitar o de todos os homens; o lugar quantitativo do duradouro permite também valorizar a verdade como o que é eterno, em comparação com as opiniões instáveis e passageiras.

Com isso, vemos que não há reconhecimento de derrota por parte de Jq. Sr. Desse modo, o reconhecimento por parte de Machado constitui-se como fallacia non causae ut causae. O autor opera esse recurso sofístico como estratégia para dar cabo à discussão. Cabe lembrar as observações feitas por Schopenhauer, que define a polêmica (litígio) como esgrima intelectual. Por mais que o orador/escritor tenha razão, esteja bem fundamentado em suas opiniões sobre determinado tema, a dialética erística é necessária, sem a qual a verdade desse orador não poderá triunfar. São precisos estratagemas para refutar os falsos argumentos de seu adversário e, para isso, necessita-se utilizar todas as armas retóricas (SCHOPENHAUER, 2009SCHOPENHAUER, Arthur. A arte de ter razão: exposta em 38 estratagemas. 3. ed. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2009., p. 12). É o que faz Machado de Assis contra Jq. Sr.

Esses procedimentos, evidenciados aqui, mostram em seu conjunto a importância da polêmica no debate público. Como pontua Amossy (2017AMOSSY, Ruth. Apologia à polêmica. São Paulo: Editora Contexto, 2017., p. 65), a polêmica pública não é um discurso selvagem, pelo contrário, ela pertence ao espaço democrático onde ganha corpo e é regulada por esse espaço. Entendida dessa maneira, a polêmica cumpre duas funções sociais: a primeira deve-se justamente à sua relação com o público. O papel dos polemistas não é o de convencer seu adversário, mas o auditório. Nesse sentido, o poder de decisão sobre determinados temas abordados na polêmica é dado à população que atua como terceiro na polêmica. Daí seu papel democrático, pois pode inclusive transformar o diálogo em polílogo, conforme observa Amossy, pois a polêmica pode ser exercida entre um número maior de participantes e não necessariamente dois.

A segunda função da polêmica deve-se ao fato de ela tecer o elo social entre os participantes da discussão. À medida que a polêmica expõe grupos antagônicos, ela também possibilita encontros no espaço público e cria elos entre os sujeitos interessados nela. É nesse sentido que Paula Brito promove não apenas essa polêmica, mas tantas outras formas de participação coletiva por meio do jornal Marmota Fluminense. Conforme citado por Simionato (2010SIMIONATO, Juliana. A Marmota de Paula Brito. In: RAMOS JR., José de Paula; DEAECTO, Marisa Midori; MARTINS FILHO, Plínio (Org.). Paula Brito: editor, poeta e artífice das letras. São Paulo: Edusp; Com Arte, 2010. p. 103-182., p. 138), em julho de 1853, Paula Brito anuncia a proposta da Sociedade Petalógica, criada por ele com objetivo recreacional e de liberdade de opinião:

A Sociedade Petalógica, ou de Petalogia, sociedade que, segundo o seu título, não trata senão de petas, é um ajuntamento de pessoas, mais ou menos instruídas, que há cerca de vinte anos se reúnem num dos lugares mais belos e mais conhecidos dessa Corte. Criada espontaneamente sem nome, ao princípio o seu fim era todo político; mas como mudam-se os tempos e nós mudamos com ele - tempora mutantur, nos et mutamur in illis -, passou a ser unicamente recreativa, podendo todo mundo que nela tem assento expender com franqueza sua opinião, com tanto que haja de responder pelos abusos que cometer no exercício desse direito. Exceto vida particular de famílias, de tudo se trata na Sociedade Petalógica.

Com isso, vemos na proposta do jornal Marmota Fluminense e de seu editor Paula Brito o interesse em cumprir essas duas funções da polêmica. Como observa Amossy (2017AMOSSY, Ruth. Apologia à polêmica. São Paulo: Editora Contexto, 2017.), "coexistir no dissenso" é a base necessária da realidade de uma democracia pluralista e, para tanto, a existência da polêmica como expediente retórico torna-se fundamental, pois essa democracia se nutre das diferenças e dos conflitos. Recuperar esses textos do jovem Machado de Assis, bem como compreender o contexto em que foram produzidos, nos ajuda a entender as bases de suas principais obras centradas na polêmica e no exercício retórico de forma mais ampla. Ajuda-nos também a compreender a importância da polêmica na sociedade democrática como nutriente de grandes escritores e intelectuais.

Referências

  • AMOSSY, Ruth. Apologia à polêmica. São Paulo: Editora Contexto, 2017.
  • ARISTÓTELES. Tópicos, Dos argumentos sofísticos, Metafísica (Livro I e II), Ética a Nicômaco, Poética. Série Os Pensadores, São Paulo: Nova Cultural, 1987.
  • ASSIS, Machado de. Obra Completa em quatro volumes: volume três. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2008.
  • CORDEIRO, Andréa Maria. A interpretação do argumento ontológico segundo Leibniz. Revista Intuitio, v. 2, n. 3, p. 56-65, nov. 2009.
  • DIDEROT, Denis. Textos escolhidos. São Paulo: Abril Cultural, 1979.
  • GUIMARÃES, Hélio de Seixas. Os leitores de Machado de Assis: o romance machadiano e o público de literatura no século 19. São Paulo: Nankin Editorial; Edusp, 2004.
  • MASSA, Jean-Michel. Dispersos de Machado de Assis. Rio de Janeiro: Ministério da Educação e Cultura; Instituto Nacional do Livro, 1965.
  • ______. A juventude de Machado de Assis, 1839-1870: ensaio de biografia intelectual. 2. ed. São Paulo: Editora Unesp, 2009.
  • MENDONÇA, Carlos Süssekind de. Sílvio Romero: sua formação intelectual 1850-1880. Rio de Janeiro: Companhia Editora Nacional, 1938.
  • PERELMAN, Chaïm; OLBRECHTS-TYTECA, Lucie. Tratado da argumentação: a nova retórica. Tradução de Maria Ermantina de Almeida Prado Galvão. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2005.
  • REBOUL, Olivier. Introdução à Retórica. São Paulo: Martins Fontes , 2000.
  • SAES, Sílvia Faustino de Assis. A arte de ter razão. Revista Voluntas: Estudos sobre Schopenhauer, v. 6, n. 2, p. 122-135, jul./dez. 2015.
  • SCHOPENHAUER, Arthur. A arte de ter razão: exposta em 38 estratagemas. 3. ed. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2009.
  • SIMIONATO, Juliana. A Marmota de Paula Brito. In: RAMOS JR., José de Paula; DEAECTO, Marisa Midori; MARTINS FILHO, Plínio (Org.). Paula Brito: editor, poeta e artífice das letras. São Paulo: Edusp; Com Arte, 2010. p. 103-182.
  • SOUSA NETO, Dário Ferreira. A pena do cronista: a presença das crônicas nos romances machadianos. 2015. 581 f. Tese (Doutorado em Literatura Brasileira) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2015.
  • 1
    A expressão expediente retórico tem como base a definição dada por Perelman e Olbrechts-Tyteca, que definem expediente como sendo uma operação da linguagem visando um determinado resultado, uma técnica. Conforme nota do tradutor, o termo em francês é procédé - palavra definida pelo Dicionário Le Robert como aquilo que indica um artifício. Considerando o propósito deste artigo sobre os usos que Machado faz dos argumentos retóricos como polêmica, optamos por manter essa expressão.
  • 2
    Cabe pontuar que os autores da retórica clássica como Platão, Aristóteles, Quintiliano, Cícero, entre outros, tratam a erística como um raciocínio aparente, pelo fato de seus praticantes não terem compromisso com a verdade. Em sua obra Dos argumentos sofísticos, Aristóteles afirma que os argumentos erísticos são apenas "contenciosos [...] visto que parecem raciocinar, mas na realidade não o fazem" (ARISTÓTELES, 1987ARISTÓTELES. Tópicos, Dos argumentos sofísticos, Metafísica (Livro I e II), Ética a Nicômaco, Poética. Série Os Pensadores, São Paulo: Nova Cultural, 1987., p. 33). Schopenhauer observa, na introdução de sua obra, essa definição limitada da retórica aristotélica e se coloca como o primeiro a tratar a erística como elemento fundamental da dialética, refutando essa perspectiva dela como raciocínio aparente. Essa também é a perspectiva de Ruth Amossy sobre o que ela define como "retórica do dissenso".

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    30 Jun 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    26 Jan 2023
  • Aceito
    30 Mar 2023
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