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Responsabilidade médica e suas implicações na prática clínica

Resumos

O presente artigo objetiva fornecer elementos epistemológicos e contingenciais para situar e discutir, no âmbito da história da medicina, a questão da responsabilidade na clínica médica. Baseando-se em autores como Foucault, Canguilhem, Scliar e Engelhardt Jr., a questão da responsabilidade médica e sua ética são examinadas no contexto das exigências do discurso científico e, sobretudo, a partir do contexto das práticas clínicas atuais. Os achados da revisão bibliográfica apontam para a importância da escuta clínica nas práticas médicas como balizador importante para pensar a responsabilidade médica e a dimensão do cuidado em uma perspectiva que não se restrinja à prática diagnóstica. Afastando-se de seu lugar clínico, a medicina corre o risco de perder o essencial de seu trabalho com cada indivíduo, a clínica de cada caso.

Clínica médica; Códigos de ética médica; Responsabilidade


This article aims to provide contingency and epistemological elements to locate and discuss, within the history of medicine, the question of responsibility in clinical medicine. Grounded in authors such as Foucault, Canguilhem, Scliar and Engelhardt, Jr., the issue of medical liability and its ethics is examined in the context of the requirements of scientific discourse, and especially in the context of current clinical practice. The findings of the literature review point to the clinical importance of listening in medical practice as a major benchmark for considerations of medical liability and the care dimension from a perspective that is not restricted to diagnostic practice. As it distances itself from the clinical medicine is in danger of losing what is essential in its work with each individual clinical practice for each case.

Medical clinic; Codes of medical ethics; Responsibility


El presente artículo tiene como objetivo proporcionar elementos epistemológicos y contingentes para situar y discutir, en el ámbito de la historia de la medicina, la cuestión de la responsabilidad en la clínica médica. Basándose en autores como Foucault, Canguilhem, Scliar y Engelhardt Jr., se analizan la cuestión de la responsabilidade médica y su ética en el contexto de las exigencias del discurso científico y, sobretodo, a partir del contexto de las prácticas clínicas actuales. Los hallazgos de la revisión bibliográfica apuntan a la importância de la escucha clínica en las prácticas médicas como un importante punto de referencia para pensar la responsabilidade médica y la dimensión del cuidado en una perspectiva que no se restrinja a la práctica diagnóstica. Alejándose de su lugar clínico, la medicina corre el riesgo de perder lo esencial de su trabajo con cada individuo, la clínica de cada caso.

Clínica médica; Códigos de ética médica; Responsabilidad


O presente artigo reflete os processos contingenciais e epistemológicos da responsabilidade médica na visão de Moacyr Scliar, Georges Canguilhem, Michel Foucault e H. Tristam Engelhardt Jr. Com base na leitura de alguns de seus trabalhos, podemos apontar o problema que se apresenta na clínica médica quando se esquece o seu fundamento: a escuta.

Seguindo os passos de Scliar 1. Scliar M. História do conceito de saúde. Physis: Rev Saúde Coletiva. 2007;17(1):29-41., ao apresentar as histórias das práticas médicas e do conceito de saúde em paralelo, percebe-se que o discurso médico vem estabelecendo, ao longo dos séculos, modos de vida em sociedade. Simultaneamente, esse discurso é permeado por diversas mudanças sociais, políticas e culturais. Suas diretrizes orientam-se por códigos que são discutidos desde a Grécia Antiga até os dias atuais e imputam responsabilidade à prática médica.

Desde o início dos tempos, a humanidade tenta dar conta da ameaça que aflige os homens: a doença e o sofrimento correlato. Conforme Scliar 1. Scliar M. História do conceito de saúde. Physis: Rev Saúde Coletiva. 2007;17(1):29-41., diferentes formas de organização cultural responderam ao enigma da doença e da morte. Das concepções mágico-religiosas, em que a doença esteve associada ao pecado, às compreensões no campo científico, cada cultura respondeu, a seu tempo, com lógica própria a esse estado. Dependendo da causalidade em jogo, a responsabilidade pelos cuidados ao doente foi atribuída a determinado ator social.

Na Grécia Antiga, Hipócrates, considerado o pai da medicina, cujos escritos traduzem uma visão racional da medicina, afirmou a causalidade natural para as doenças e postulou a existência de quatro fluidos corporais que, estando em desarmonia, davam origem ao adoecimento. Hipócrates se baseava na observação empírica e antecedeu outros médicos que avançaram no estudo da patologia. A introdução da anatomia, com Leonardo da Vinci no século XVI, permitiu a realização de estudos sobre a circulação e a localização dos órgãos no corpo. Entre esses inclui-se a primeira descrição do sistema circulatório, publicada por William Harvey, a qual os estudiosos atuais atribuem ao conhecimento obtido dos médicos árabes, que permaneceram por quase 800 anos na Península Ibérica. No século seguinte, René Descartes, ao apresentar o dualismo mente-corpo, abre espaço para o conhecimento do corpo morto, ou seja, aquele desprovido de espírito 1. Scliar M. História do conceito de saúde. Physis: Rev Saúde Coletiva. 2007;17(1):29-41..

Com isso, a compreensão da doença apresenta uma mudança clínica correlativa: o corpo observado podia ser manipulado, e suas manifestações apresentavam-se passíveis de verificação. O deslocamento do espírito do corpo foi pensado, nessa perspectiva, como avanço epistemológico na prática e na ciência médica.

No final do século XIX, com a revolução pasteuriana e o uso de novos instrumentos tecnológicos, a doença passa a ser tratada e prevenida à luz da descoberta de fatores etiológicos. Nessa mesma época, também nasceram os estudos epidemiológicos, que impulsionaram o controle do corpo social. É a partir desse momento que se definem políticas estatais de intervenção sobre a saúde e a doença.

A entrada do Estado nos cuidados com a saúde estimulou discussões internacionais sobre o processo de saúde-doença. Com isso, surge em 1948 a Organização Mundial da Saúde (OMS), cuja intenção é estabelecer uma noção de saúde que contemple todas as nações. Em sua constituição, a OMS define saúde como o estado do mais completo bem-estar físico, mental e social, e não apenas a ausência de enfermidade 2. World Health Organization. Constitution of the world health organization. Basic documents. Genebra: WHO; 1946.,indicando ainda os direitos e deveres do Estado para com a saúde da população.

Após essa diretriz, em paralelo ao surgimento de outras correntes de direitos humanos, seguiram-se outras conquistas ligadas a políticas para a saúde, como a Conferência Internacional de Alma-Ata (Cazaquistão) sobre assistência primária, em 1978, que discutiu como as desigualdades sociais entre diversos países refletiam-se na saúde da população 3. Scliar M. Op. cit. p. 38.. Para o Brasil, esses avanços consistiram na introdução da noção de saúde na atual Constituição Federal, bem como dos direitos e deveres do Estado nas ações de promoção e prevenção, e na criação do Sistema Único de Saúde, em 1988, após 40 anos da carta da OMS.

É redundante, mas necessário, afirmar que os desdobramentos de questões teóricas e práticas no campo da saúde têm intrínseca relação com o avanço da ciência médica. Acompanhando o breve histórico anterior, pode-se apontar que a passagem do estudo sobre saúde, vida ou cura para o estudo das doenças provocou um deslocamento epistemológico e clínico da medicina. Segundo Madel Luz 4. Luz MT. Natural, racional, social: razão médica e racionalidade científica moderna. Rio de Janeiro: Campus; 1988., presume-se a existência de uma passagem histórica que irá fundar uma nova racionalidade na anatomia, propiciando o surgimento da medicina moderna. Essa nova racionalidade médica é entendida como o aprimoramento de técnicas capazes de diagnosticar e tratar doenças com maiores chances de acerto e de identificação de um órgão lesado.

O avanço tecnológico propiciou à medicina diversas formas de tratamento; contudo, a esse amparo científico, hoje a responsabilidade médica é bem maior. Canguilhem 5. Canguilhem G. Escritos sobre a medicina. Rio de Janeiro: Forense Universitária; 2005. afirmou haver desconhecimento sobre a história da medicina na formação médica, em que são priorizadas disciplinas voltadas para a prática, que primam pela técnica e objetividade, esquecendo, desse modo, a perspectiva humana da profissão, ou seja, sua vocação humanística. Resgatar o histórico da medicina permite ao médico contextualizar e defender a medicina como prática e clínica ao situá-la em um campo epistemológico e ético. É pertinente dizer que definir o lugar de encontro entre a medicina e a clínica irá realocar da própria estrutura da prática médica, pois permitirá o diálogo sobre os princípios e diretrizes que a prática clínica pressupõe na relação entre paciente e médico.

Nessa perspectiva, Engelhardtconsidera que os médicos deveriam reconstruir uma visão moral fundamentada a partir do lugar da experiência clínica e não deveriam aceitar acriticamente as tendências bioéticas de cada época 6. Engelhardt Jr HT. Ética médica, códigos de ética médica e bioética. Rev. bioét. (Impr.). 2009;17(3):360.. Em síntese, pode-se associar o distanciamento da prática médica de sua perspectiva clínica ao naturalismo atomista e seus paradigmas na biologia anatômica. Na contemporaneidade, esse distanciamento pode ser relacionado, por exemplo, às novas tecnologias. A técnica e seu aparato mecânico separaram a prática médica da escuta e do que só se expressa na voz do paciente. Perdeu-se, nessa trajetória, a prática de cuidados associada ao sofrimento psíquico do paciente.

A figura do médico sempre desfrutou de grande prestígio na sociedade, talvez em decorrência do saber real ou ficcional a ele atribuído. Cabe-lhe instruir e tratar das doenças, promover a saúde e a vida. A ele é imputada responsabilidade moral e ética sobre grande parte do bem-estar da sociedade. Em consequência desse papel, não se pode desconsiderar que, ao circunscrever o que é a saúde, a medicina favorece comportamentos normatizadores.

A partir do que foi levantado, pode-se questionar: o que se entende por responsabilidade na medicina? Situemos, então, essa discussão na história da clínica médica e suas repercussões no campo da saúde, bem como na construção dos códigos de ética médica, tendo como ponto articulador a questão da responsabilidade.

História da clínica médica

Monte 7. Monte FQ. Ética médica: evolução histórica e conceitos. Rev. bioét. (Impr.). 2009;17(3):407-28. levanta significativas discussões acerca do tema da ética na medicina e afirma a importância de se conhecer a dimensão ética no agir profissional para tratar das práticas e procedimentos médicos. Não obstante, para situar e avaliar as questões referentes ao tema da ética, é necessário situar a medicina em um campo histórico em referência aos seus respectivos contextos clínicos.

Ao discutir as mudanças que a clínica médica sofreu ao longo dos séculos, Foucault 8. Foucault M. O nascimento da clínica. 7ª ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária; 2013. aborda a ruptura entre a medicina classificatória das espécies e a medicina moderna, a partir da perspectiva do olhar clínico sobre a morte e a vida. É a partir dessa ruptura que a doença passa a ser definida em uma localização no espaço corpóreo, e, desse modo, se organiza e se inicia uma clínica da doença. Isso ocorre ao mesmo tempo que a medicina vai se afastando do doente e se aproximando da doença. Com isso, ocorre uma mudança na própria pergunta dirigida ao paciente de “O que você tem?” para “Onde lhe dói?”. Dessa maneira, a medicina, ao aderir a um estatuto científico, se associa ao empirismo, à verdade e à objetividade, caracterizando-se como modelo científico de tratar das doenças.

Essa virada de questionamentos decorre da visibilidade que o corpo vai ganhando no imaginário coletivo, o que interfere sobremaneira nos diagnósticos médicos. Tal ato é imbuído de poder, pois detém um saber capaz de discernir uma doença da outra e decidir qual tratamento seguir com base em uma ciência biológica matematizável. Se a demanda por segurança sempre perpassou o imaginário de quem procura o médico, com o advento da medicina científica torna-se ainda mais plausível procurar respostas e cura em uma prática que passou a ser associada à “verdade”.

Com relação aos destinos da prática diagnóstica, vislumbra-se algo da ordem de uma descrição de fenômenos que substituem a clínica do particular. Pode-se dar o exemplo da psiquiatria atual, que, a partir de manuais, se preocupa em apresentar uma linguagem universal, que facilite a comunicação dos médicos e minimize os efeitos de uma atenção voltada para a estrutura dos sintomas e para a implicação do sujeito no seu sintoma.

Para Foucault, a questão do diagnóstico médico como fruto da visibilidade é feita a partir do que é perceptível ao olhar clínico 8. Foucault M. O nascimento da clínica. 7ª ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária; 2013.. Segundo o autor, a clínica aparece para a experiência do médico como um novo perfil do perceptível e do enunciável: nova distribuição dos elementos discretos do espaço corporal (…), reorganização dos elementos que constituem o fenômeno patológico (…), definição das séries lineares de acontecimentos mórbidos (…), articulação da doença com o organismo 9. Foucault M. Op. cit. p. 12.. Considera que o nascimento da clínica ocorreu no final do século XVIII, quando aparece sob o domínio de sua experiência e estrutura sua racionalidade 8. Foucault M. O nascimento da clínica. 7ª ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária; 2013.. A clínica médica também se vinculou a uma função de escuta e fez uso disso para, junto com a percepção dos sintomas, prescrever um tratamento independente dos aparatos tecnológicos que hoje possui.

A clínica, para a medicina, é o ato médico de examinar, prescrever e tratar doenças, ou ainda, é o ato de se colocar em posição de descoberta. Assim, o entendimento está de acordo com Canguilhem 1010 . Canguilhem G. O normal e o patológico. 7ª ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária; 2012., ao estabelecer que a clínica médica tem relação intrínseca com a terapêutica, na medida em que tenta reinstaurar um ideal de saúde como sendo normal. A questão que se verá adiante é como e por quem serão definidos esses ideais de saúde e bem-estar, considerando, dessa forma, a subjetividade na definição de saúde e doença.

No século XVII, a doença era caracterizada por uma experiência histórica que reunia tudo aquilo que podia ser visto. O doente era útil porque dava as informações necessárias para que o médico pudesse visualizar a doença. Nesse momento, o diagnóstico médico dependia do relato dos pacientes, da observação de seu espaço e sinais vitais e do modo como esses pacientes experimentavam sua doença. Só a partir do método anátomo-clínico desenvolvido por Bichat, no século XIX, é que a soberania do olhar foi marcadamente constituída.

A partir do momento em que a medicina cria instrumentos para tratar das doenças, há também uma mudança política. Com o lugar conferido ao corpo doente, criam-se espaços institucionais para a cura, fazendo com que o Estado estabeleça intervenções necessárias para a restauração da saúde. Ao mesmo tempo que a medicina passa por mudanças, a sociedade também se transforma em consequência da Revolução Industrial. Sabe-se que nesse período as forças produtivas reivindicam melhores condições de trabalho, as quais ocorrem paradoxalmente à expansão e ao desenvolvimento das tecnologias. Com a exigência de mão de obra produtiva, os trabalhadores adoecem e se tornam os pacientes. Entretanto, as crescentes exigências da indústria indicam que não podem adoecer, para não diminuir a força produtiva. Dessa forma, para minimizar os efeitos da transferência maciça da população do campo para as cidades, das péssimas condições de moradia, da própria insalubridade do ambiente urbano, bem como da piora da dieta alimentar, tornou-se necessário investir na produção da saúde e no tratamento dos trabalhadores doentes.

A clínica no século XVIII aparece para a medicina, como sinaliza Foucault, articulada ao campo hospitalar, à medida que se utiliza da experiência clínica para a organização e divulgação de um saber sobre o corpo e a doença. A clínica médica surge, nesse período, como produção de saber ligada à experiência, que se utiliza dessa experiência não para produzir novo conhecimento, mas para constatar uma verdade já instituída. Há um redescobrimento da clínica; o saber vai se constituindo com a história. O ensino da medicina agora é organizado em um corpo sistemático repassado por casos já constituídos. Assim, a clínica se apresenta não como instrumento para descobrir a verdade ainda desconhecida, mas como determinada maneira de dispor fatos já adquiridos e de apresentá-los para que ela se desvele sistematicamente 1111 . Foucault M. Op. cit. p. 64..

Os hospitais, a partir do século XVIII, passam a ter papel significativo na produção de saber sobre as doenças e o corpo. Se as instituições hospitalares antes eram exclusivamente destinadas à reclusão dos casos intratáveis e à caridade, a partir desse período, tornam-se espaço médico destinado à cura e ao tratamento de doenças, fazendo uso de medicamentos. Além disso, os hospitais tornaram-se instrumentos para a organização do saber médico, com o estabelecimento de normas e condutas a serem seguidas para alcançar o objetivo de restabelecer a saúde do paciente. Com o poder da vida nas mãos, a medicina cresce consideravelmente. E isso não de dá sem consequências.

Já no século XIX, a clínica médica utiliza-se do hospital não apenas para aplicar o que foi repassado aos profissionais em formação, mas também para aprendizado. É no exame dos doentes que a produção de verdade se instaura, tanto para os experientes quanto para os aprendizes. Nessa fase da medicina há a criação de uma estrutura institucional e científica. É esse olhar que irá determinar os novos caminhos da medicina.

Normatização da prática médica

A obra foucaultiana permite traçar algumas implicações sobre a responsabilidade da medicina a partir de sua constituição como clínica, pois as mudanças ocasionadas no olhar médico produziram normas de saúde e intervenções que suscitaram a criação de condutas para nortear o trabalho. Houve um período em que a prática da medicina estava atrelada à concepção religiosa, quando se considerava a doença como consequência do pecado. A medicina ligava-se à esfera suprassensível e os valores religiosos tinham predominância sobre os valores morais propriamente médicos 1212 . Monte FQ. Op. cit. p. 408.; ou seja, a religião subsidiava a prática médica. Mesmo nessa época, era imprescindível a criação de códigos que regulassem as relações sociais, como foi na Antiguidade (século XV a.C.) o Código de Hamurabi, o mais significativo instrumento de regulação de conduta daquele período.

O referido código trata das leis e normas da vida civil e das práticas administrativas. Nele há um capítulo reservado às práticas profissionais, tratando de honorários e penalidades. Quando ocorriam erros médicos, utilizava-se a lei de talião (olho por olho, dente por dente) para as punições, sendo tomadas, dessa forma, como critério de reciprocidade. Nessa época já havia a preocupação de regulamentar as profissões que estavam diretamente ligadas à vida e à sociedade, entre elas a medicina.

Hipócrates foi responsável não apenas pela passagem da concepção de doença do campo místico-religioso para o terreno da influência da natureza na causa das doenças, mas também pelas primeiras referências a códigos de ética para a conduta médica. A prática hipocrática fundava-se na observação e ocorrência dos processos de saúde-doença. Com essa mudança epistemológica, foram possíveis os avanços que hoje visualizamos na medicina. A medicina hipocrática não apenas agregou conhecimentos teóricos às técnicas usadas, como também estabeleceu os princípios da conduta do médico que delimitaram regras para regular as suas intervenções, princípios estes que se estendem até a atualidade e nos quais a ética médica se baseia:primum non nocere’ e ‘bonum facere’ 1313 . Serra ST. Psicanálise e medicina: uma interlocução histórica, de saber, de prática e de formação. [dissertação]. Rio de Janeiro: Universidade do Estado do Rio de Janeiro; 2009. p. 27..

Esses princípios significam não maleficência e beneficência, respectivamente, e visam sempre a não prejudicar o paciente e fazer o bem. Até hoje o juramento hipocrático é utilizado ao término do curso de medicina, com algumas modificações, e seus princípios continuam a reger a formação ética dos novos médicos. Nos séculos seguintes, o aumento do conhecimento a da tecnologia empregada pela medicina induziu o crescimento das tensões e conflitos na área da saúde, tornando necessário instituir alguma forma de atenuá-los.

Com o crescente clima de tensão no meio hospitalar, Thomas Percival, no início do século XIX, elaborou o primeiro código de ética médica. A intenção desse código foi superar conflitos profissionais, moralizar a profissão e o caráter dos médicos, indicando comportamentos a serem seguidos 1414 . Neves NMBC. Códigos de conduta: abordagem histórica da sistematização do pensar ético. Rev Bioética. 2008;16(1):109-15.. Entretanto, a partir desse período, em paralelo ao avanço científico que exigia cada vez mais o esforço dos médico, as tensões na prática da medicina só recrudesceriam mais e mais.

Diante das exigências científicas e sociais, os comitês internacionais elaboraram alguns documentos que serviram de base para a criação dos códigos profissionais, como a Declaração de Genebra, o Código de Nüremberg e a Declaração de Helsinki, redigidos em meados do século XX, sendo estes dois últimos voltados para a regulamentação da prática profissional no que diz respeito à pesquisa clínica.

O mal-estar na relação entre os seres humanos parece ser intrínseco à civilização, havendo também outras três ameaças que inquietam a humanidade: as forças da natureza, as quais nós, humanos, não podemos dominar; a relação com os outros; e o corpo humano, condenado à decadência e à dissolução, que nem mesmo pode dispensar o sofrimento e a ansiedade como sinais de advertência 1515 . Freud S. Mal-estar na civilização. 2ª ed. Rio de Janeiro: Imago; 1969. v. 21. p. 84-5. (Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud).. A terceira ameaça talvez seja a mais visível ferida narcísica para o campo da saúde, pois se refere ao objeto da medicina. Para dar conta desse mal-estar, o homem utiliza todas as ferramentas possíveis, como, por exemplo, medicamentos que minimizam a dor, aprimoramento das inovações tecnológicas como formas de permanecer com o corpo vivo e são. Essas tentativas excluem, supostamente, ou pelo menos em determinado tempo, aquilo a que todos nós estamos destinados: a morte.

Os códigos sempre trazem explícito que a conduta médica se dirige à saúde do homem e que seus conhecimentos devem ser usados em benefício do paciente. Assim, torna-se nítido que o ideal de um paciente doente é um paciente saudável. Canguilhem aponta a existência de inúmeras discussões sobre a natureza do mal, mas ninguém discute o ideal do bem. Esse ponto abre discussões para repercutir na clínica médica, quando, diante do paciente, o médico deve lhe oferecer um bem. Mas que bem? Quem pode dizer o que é melhor para o paciente? 1616 . Canguilhem G. Op. cit. 2005. p. 75.

Canguilhem, em sua tese 1010 . Canguilhem G. O normal e o patológico. 7ª ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária; 2012., aborda a questão do normal e do patológico na medicina em uma perspectiva filosófica, histórica e médica. As discussões tratam da problemática do que é normal. O autor defende uma normatividade da vida que difere da normatividade biológica, mas diz que ambas estão relacionadas com o modo pelo qual cada organismo se articula em seu sintoma. A norma, para o médico, está ligada a seus conhecimentos de fisiologia, decorrentes de estatísticas que compõem um padrão para diferenciar o normal do patológico. A normatividade da vida a que ele se refere trata das condições que o indivíduo/organismo cria para lidar com sua doença e com sua vida. Isso significa que essa normatividade implica subjetividade e permite afirmar que não é absurdo considerar o estado patológico como normal, pois não é a ausência de normalidade que constitui o anormal. Não existe absolutamente vida sem normas de vida, e o estado mórbido é sempre uma certa maneira de viver 1717 . Canguilhem G. Op. cit. 2012. p. 165..

Citemos, por exemplo, o caso de um paciente que se encontra tetraplégico em decorrência de um acidente. Durante sua internação, afirma a todos que está bem e não necessita de cuidados especiais. Entretanto, a equipe do setor em que se encontra não acredita nisso, visto que, muitas vezes, é dirigida por um ideal de saúde no qual o corpo deve seguir o padrão biológico do corpo são, ou seja, um estado físico perfeito. Por causa da crença em um ideal de saúde padronizada, a equipe está convencida de que o paciente necessita de apoio psicológico e social para superar a nova fase de vida.

Mesmo o paciente reafirmando que está bem e assegurando que conseguirá se adequar à nova rotina ao encontrar novas normas de vida, é difícil para a equipe crer na afirmação desse estado de bem-estar. A normatividade de vida é isto: construção de normas, de mecanismos, de sentidos para se manter vivo. Independentemente do que se entenda por normal nas ciências ditas objetivas, o que também deve ser levado em conta é a forma como cada um consegue criar possibilidades para lidar com a doença. Pode-se ainda acrescentar, seguindo Canguilhem 1010 . Canguilhem G. O normal e o patológico. 7ª ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária; 2012., que o estado em que estamos depois da doença nunca é igual ao estado anterior. Compreender isso é condição sine qua non para criar novas normas de vida que irão se adaptar e proporcionar melhores condições ao estado atual e permitir que algo anterior possa ter outras significações.

Clavreul 1818 . Clavreul J. A ordem médica. São Paulo: Brasiliense; 1978. alerta que, embora a medicina esteja ligada à ideologia predominante da época, não se devem restringir os problemas da ética médica à ideologia científica, que prima pela objetividade e resultados rápidos. Por outro lado, Lacan 1919 . Lacan J. O lugar da psicanálise na medicina. Opção Lacaniana. 2001;32:10. aponta que é a partir dessas mesmas exigências sociais e ideológicas que os problemas da medicina passarão a existir. Ambas as afirmações permitem entender que a reflexão distanciada sobre a prática, ou seja, aquela que não justifica os procedimentos com base em crenças tomadas a priori como verdades, é atitude fundamental para libertar a práxis do dogmatismo inerente à própria construção do conhecimento.

A partir do exposto, pode-se pensar que a responsabilidade médica não está ligada somente a um ideal de bem, mas também a uma relação com o que é subjetivo, na medida em que os conceitos de normal e anormal, bem ou mal, estão ligados a algo que é da ordem da terapêutica, a algo que é construído nas relações com o ser vivo. A responsabilidade da medicina, em alguns momentos da sua história, traduz-se na eliminação das doenças e busca de prevenção da saúde. De acordo com a construção da clínica, constatamos que há uma mudança da clínica médica de um olhar sobre a doença para um modo de intervenção voltado para a manutenção da saúde. Dessa forma, os interesses médicos correspondem a um ideal normativo de saúde imposto pela sua conjuntura histórico-social e econômica.

A responsabilidade médica

Os pacientes procuram o médico acreditando que ele tem resposta para todos os seus males. Eles se apoiam em um significante mestre da saúde e julgam que os médicos são os seus detentores, daí acreditarem que médicos podem proporcionar e dar o estatuto de saúde que tanto almejam. Assim, acabam aceitando as intervenções que acreditam ser necessárias para que sua demanda seja atendida. Sabemos, com Clavreul 2020 . Clavreul J. Op. cit. 1978., que o discurso da doença é o discurso do médico. A esse profissional cabe a posse do saber sobre a doença do paciente; dessa forma, apenas ele poderia apontar o tratamento.

Não obstante a construção desse saber e lugar de fala, os avanços tecnocientíficos fazem que o médico perca poder e respondendo cada vez mais a uma instituição que denominamos de medicina, a qual, por sua vez, se constitui mediante a extrema especialização e se compõe a partir do conjunto das ciências biológicas. Como se pode notar, ao utilizar os benefícios que as ciências lhe oferecem, o médico afasta-se da interpretação do doente sobre sua doença. A voz do paciente vai, cada vez mais, dando lugar a exames, raios X e tomografias, em prol da suposta eficácia oferecida pelos progressos científicos.

Ao doente só é perguntado aquilo que interessa ao diagnóstico. O sentido que ele dá à doença é posto em segundo plano. Disso resulta que tanto o médico quanto o doente respondem, não por si mesmos, mas pela instituição médica e pela doença, respectivamente. Por um lado, o doente fala em nome de sua doença, seu discurso é voltado para questões predeterminadas e de interesse diagnóstico. Por outro, o médico responde não pelo seu lugar de clínica, de escuta, mas por uma instituição que direciona o próprio diagnóstico. Tal situação chega a paroxismo quando a doença relatada pelo doente deixa de ser diagnosticada porque os exames que deveriam indicar sua existência deixam de comprová-la.

Donnangelo e Pereira 2121 . Donnangelo MC, Pereira L. Saúde e sociedade. 2ª ed. São Paulo: Duas Cidades; 1979. alertam para o cuidado que se deve ter de não confundir ciência médica com ato médico. A ciência se reduz a um conjunto de princípios biofísico-químicos e a aparatos tecnológicos que auxiliam na construção da teoria e modos de intervenção. O ato implica uma relação que envolve pelo menos dois agentes: o médico e o seu objeto de intervenção, que, no caso, é o paciente ou parte de seu corpo. É nessa relação que algo se estabelece e que proporciona a construção de um vínculo terapêutico que, em alguns momentos, se torna mais importante do que a própria prescrição do tratamento. Na medida em que o médico assume uma posição marginalizada diante de seu ato ao responder por uma instituição, ele se afasta momentaneamente da terapêutica que possibilitou a sua prática. Isso é consequência do espírito científico do final do século XIX, que primou pela tarefa de responder à patologia humana por uma perspectiva científico-biológica. Pode-se apontar aqui o problema ético da responsabilidade médica ao agir na maioria das vezes em conformidade com um ritual científico, desconsiderando o vínculo estabelecido com a clínica e o paciente, o que acarreta consequências ao tratamento.

Ora, qual médico nunca percebeu que os vínculos de confiança estabelecidos com seu paciente o auxilia a ter melhores resultados no tratamento prescrito? Ou que, às vezes, nem é necessária a indicação de medicamentos, visto que, com algumas palavras ditas, já se resolve aquela enxaqueca ou dor no estômago? Ou, ainda, que, receitado o mesmo tratamento para dois pacientes com diagnóstico em comum, a melhora só é vista em um e não no outro? Esses fatores diretamente associados à subjetividade da relação entre profissional e paciente indicam a importância da construção do vínculo terapêutico.

Se, por um lado, os códigos de ética direcionam a conduta médica para a busca do completo bem-estar biopsicossocial, por outro, o que a prática médica visualiza em seu fazer é a impossibilidade ou a inacessibilidade de um estado de cura como ausência total de sinais de mal-estar, pois há algo que sempre retornará. Segundo o código de ética médica vigente, a responsabilidade médica tem relação com a saúde pública, a educação sanitária e a produção de legislação referente à saúde, e é dever do médico usar o melhor dos recursos científicos em benefício do paciente. Mas que benefício é esse? Há um limite para a resposta do médico?

Alcançar o estado de saúde conforme conceitua a OMS é impossível, na medida em que não há como definir o que é esse completo bem-estar, porque “estar bem” é do campo da subjetividade, e a saúde é um valor que não pode ser objetivado. Além do mais, o completo bem-estar implicaria um estado fora da temporalidade, dado que esse contínuo só poderia existir em um campo imutável, além ou aquém de qualquer tipo de relação, inclusive aquela estabelecida pela simples passagem do tempo. Mesmo fazendo uso de todo o aparato tecnológico que está em suas mãos, o médico sabe que algo permanece fora do recurso terapêutico empregado por ele. Talvez seja por causa desse algo inapreensível pela medicina que se pode pensar na entrada de outras práticas de saúde e saberes na instituição hospitalar, como é o caso da psicologia e da psicanálise, agregadas com o intuito de tentar ampliar o leque de saberes em saúde a fim de responder ao imponderável.

A prática também ensina, e isso os médicos podem confirmar, que em alguns casos, quando o paciente aborda o médico, ele não quer simplesmente a cura. O paciente coloca o saber médico à prova, exigindo que o profissional possa tirá-lo de sua condição de doente, o que implica que ele pode querer permanecer nessa condição 1919 . Lacan J. O lugar da psicanálise na medicina. Opção Lacaniana. 2001;32:10.. Para exemplificar, pode-se pensar no caso de um paciente internado em um hospital e cujos exames comprovam sua melhora física, mas que todas as manhãs, no horário da visita médica, apresenta alguma queixa que vai de fortes dores de cabeça a encenações de enjoo. Com isso, ele consegue permanecer mais um dia no hospital.

Esse exemplo permite entender que a responsabilidade sobre a saúde não é apenas da medicina, mas também, e principalmente, do paciente, uma vez que ele pode não querer se livrar do sintoma e procurar o médico não para ser curado, mas para atestar sua doença. Na verdade, tal situação não é incomum, já que o médico é quem tem poder para definir a existência ou não do estado patológico e, assim, certificar a existência da doença que pode não apenas manter um doente internado, mas afastá-lo definitiva ou temporariamente do emprego ou garantir-lhe uma indenização, por exemplo, são situações que subscrevem o poder do profissional.

Isso exemplifica a demanda, que é a dimensão na qual se exerce a função do médico. A demanda é um apelo à realização da satisfação. Caracteriza-se como pedido de restituição de um estado anterior que o sujeito supôs existir. A demanda é representada pelo enunciado, é aquilo que se apresenta em forma de pedido; ou seja, na demanda há a necessidade da intervenção de um outro que intervenha e faça o papel de intermediador de sua satisfação. Quinet 2222 . Quinet A. A descoberta do inconsciente: do desejo ao sintoma. 4ª ed. Rio de Janeiro: Zahar; 2011. afirma que é a não resposta à demanda que faz aparecer a dimensão do desejo. É justamente na ausência de resposta que encontramos a permissão para ir ao encontro do desejo.

A medicina é sustentada por ideais de saúde que são produzidos a partir do contexto sociocultural. Esses ideais servem como algo que é necessário alcançar; assim, atribui-se à medicina a responsabilidade de proporcionar tal fim aos que a ela se dirigem. Ao colocar-se em um lugar de tudo saber e tudo poder, ignora a dimensão do desejo, já que não corresponde ao seu objeto de intervenções. Entretanto, o modo como responde à demanda pode mudar todo o rumo da clínica. É no ato clínico – quando, ao interrogar, prescrever e diagnosticar, a medicina leva em consideração a existência de cada caso particular – que ela conseguirá responder de um lugar próprio, sem perder de vista sua responsabilidade.

Pierre Benoît 2323 . Benoît P. Psicanálise e medicina. Rio de Janeiro: Jorge Zahar; 1989. considerava que, para haver modificação na atitude do médico, ou seja, mudança em sua posição como terapeuta, seria preciso resgatar a história do paciente e de seu círculo, o que se faria a partir das palavras, que não são acessíveis à ciência, caracterizada como objetiva. O médico francês alerta que, após obter o reconhecimento do médico como algo essencial, esse princípio produzirá consequências significativas tanto para o profissional quanto para o doente.

No artigo “O lugar da psicanálise na medicina”, Lacan assinala: à medida que o registro da relação médica com a saúde se modifica, em que esta espécie de poder generalizado que é o poder da ciência, dá a todos a possibilidade de vir pedir ao médico seu ticket de benefício com um objetivo preciso imediato, vê-se desenhar a originalidade de uma dimensão que denomino demanda e é no registro do modo de resposta à demanda do doente que está a chance de sobrevivência da posição propriamente médica 1919 . Lacan J. O lugar da psicanálise na medicina. Opção Lacaniana. 2001;32:10..

Não se deve esquecer que é o desejo o responsável por alguém tornar-se médico. Benoît 2323 . Benoît P. Psicanálise e medicina. Rio de Janeiro: Jorge Zahar; 1989. lembra que a terapêutica é algo impossível de ensinar, de transmitir, pois depende da relação estabelecida com cada paciente e com as suas próprias experiências de adoecimento e cura, e isso não se encontra em teorias científicas que visam à objetividade. Segundo o autor, o que é realmente importante é o desejo do médico de ser médico e cuidar de pessoas, desejo este que sustenta seu saber técnico 2424 . Benoît P. Op. cit. p. 94..

Talvez seja possível pensar que o desejo de cuidar, de assistir os doentes, de sustentar o saber, presente não somente nos médicos, mas em tantas outras profissões da área da saúde, está ligado a uma dimensão que é pouco discutida no campo científico e também pessoal, sem a qual não conseguiríamos existir: a dimensão do amor. Essa dimensão nos permite passar de um mero corpo físico para um corpo de linguagem e um corpo desejado. O cuidado que vem com a voz, com o toque, com o olhar, é consequência do discurso amoroso, que, possivelmente, coloca o desejo e a responsabilidade em patamares semelhantes, pois tenta responder, de um lugar aparentemente completo e insaciável, com a pretensão de oferecer ao outro algo que o deixaria em plena satisfação.

Scliar 2525 . Scliar M. A paixão transformada: história da medicina na literatura. São Paulo: Companhia das Letras; 1996. p. 307., ao abordar a história da medicina, apresenta de forma literária a paixão pelo ato de cuidar e de tratar. O autor apresenta a medicina como uma arte do amor que, embora venha sofrendo modificações ao longo dos séculos, ainda traz em sua essência a luta pela vida. Ele trata de outro olhar que não é trazido por Foucault. Enquanto Scliar trata do olhar do indizível, da clínica que é feita em cada caso, com cada relato, cada palavra dita e não dita, de uma linguagem no corpo e não do corpo, Foucault trata do olhar sobre o corpo que a clínica médica vai modificando a partir dos avanços tecnocientíficos e das mudanças epistemológicas nas doutrinas que compõem o arcabouço teórico da medicina.

Quem sabe tenha sido por essa via do amor que o médico aceitou as exigências científicas e sociais, na tentativa de responder aos pacientes de forma que fosse possível apresentar uma comprovação científica que provavelmente traria resultados mais rápidos e mais eficazes. É em nome do seu desejo de medicar e da sua promessa hipocrática que ele sempre procura levar benefícios e não prejudicar o paciente.

O que consideramos, portanto, como responsabilidade para a medicina é a sustentação de sua própria ação, ou seja, seu ato. O ato promove uma mudança de posição, ou de um estado patológico para um estado saudável ou a permanência no primeiro estado. Independentemente do que se produza, a responsabilidade médica tem relação com o que pode ser feito de cada caso. E, quanto à questão de ser saudável ou não, isso depende de como cada um articula seu desejo e se estabelece no laço social.

Considerações finais

A partir da leitura aqui empreendida, destacam-se as proposições de Scliar 1. Scliar M. História do conceito de saúde. Physis: Rev Saúde Coletiva. 2007;17(1):29-41. e Canguilhem 5. Canguilhem G. Escritos sobre a medicina. Rio de Janeiro: Forense Universitária; 2005. quanto à importância de resgatar, na história da medicina, os princípios clínicos que fundamentaram o início da prática médica. Engelhardt 2626 . Engelhardt Jr HT. Op. cit. p. 355-61. enfatizou a perspectiva da condição humana como quesito básico para delimitar a ação da medicina. A discussão comum desenvolvida pelos autores desemboca na responsabilidade médica, a qual assumir uma função que perpassa os campos da ética e da alteridade, levando em consideração os limites de sua prática. A finitude corpórea do homem indica a impossibilidade de tudo fazer e saber, impondo assim delimitações.

O presente artigo explicita que a responsabilidade da medicina, mais precisamente do médico, está ligada não somente a uma questão moral definida por códigos de conduta, mas também à sustentação de uma causa que coloca em jogo a atividade clínica da escuta do sofrimento do paciente. Desde a época anterior ao período cristão, era imputada à medicina a função do bem, ou seja, sua prática sempre se baseou no princípio da beneficência, que continua presente no juramento dos médicos. Entretanto, o que também observamos é que se deve ter o cuidado de saber até onde é possível ir e como responder às demandas que se apresentam.

Não podemos deixar de considerar que o campo da saúde coloca em jogo duas ordens de responsabilidade, a saber: a responsabilidade do médico, na medida em que deve responder ato, e a responsabilidade do doente em sustentar ou não sua doença. Portanto, não devemos pensar que, na nossa sociedade medicalizada o indivíduo é passivamente arrastado a uma condição de mero objeto científico 2727 . Pinheiro CVQ. Saberes e práticas médicas e a constituição da identidade pessoal. Physis: Rev Saúde Coletiva. 2006;16(1):46..

Se a medicina se afasta do seu lugar clínico, ela acaba cedendo às exigências científicas e perde seu valor moral e ético. Ela se marginaliza naquilo que tem de essencial: seu trabalho com cada indivíduo, a clínica de cada caso. É fato que os avanços científicos propiciaram inegáveis contribuições para o tratamento de pacientes. Todavia, é prudente que a escuta clínica não seja esquecida, sob o risco da medicina perder o fundamental de sua especificidade.

Referências

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  • 27
    Pinheiro CVQ. Saberes e práticas médicas e a constituição da identidade pessoal. Physis: Rev Saúde Coletiva. 2006;16(1):46.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jan-Apr 2015

Histórico

  • Recebido
    22 Abr 2014
  • Revisado
    6 Jun 2014
  • Aceito
    14 Nov 2014
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