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Perspectiva bioética intercultural e direitos humanos

Resumos

Este artigo tem como objetivo contribuir para o aprofundamento da reflexão acerca dos conflitos culturais na esfera bioética e problematizar o emprego dos direitos humanos como referencial teórico-normativo, mediador dos conflitos em bioética que apresentem elementos de interculturalidade. Os passos metodológicos adotados neste estudo foram: análise do conceito de perspectiva bioética intercultural e de conflito cultural em bioética, a partir da acepção desenvolvida pelo Colectivo Amani; exame dos direitos humanos como instrumentos da cultura da humanidade, com base na teoria de Bauman; investigação acerca dos instrumentos que os direitos humanos fornecem para a solução de conflitos culturais em bioética. Concluiu-se que a perspectiva bioética intercultural deve incorporar às suas dimensões prescritivas e descritivas os instrumentos dos direitos humanos, que concorrem para a solução de conflitos culturais, bem como as normas e instituições de direitos humanos, que asseguram a participação e integração social dos sujeitos integrantes de comunidades culturais em conflito.

Bioética; Direitos humanos; Comparação transcultural; Cultura-controles informais da sociedade


The aim of this study was to contribute to a deeper understanding of intercultural conflicts within the field of bioethics, and to identify problems associated with using human rights as a theoretical normative that mediator of bioethical conflicts characterized by interculturalism. The methodological steps adopted in this study were: an analysis of the concept of intercultural conflict in bioethics, from the perception of the Colectivo Amani; a study of human rights as tools of human culture based on Bauman’s theory; and an investigation of the tools human rights offer for the solving of intercultural conflicts in bioethics. It was concluded that intercultural bioethics must apply the norms and institutions of human rights to its prescriptive and descriptive dimensions so as to ensure the participation and social integration of individuals from communities in cultural conflict. Such measures will act as tools for the solution of intercultural conflicts.

Bioethics; Human rights; Cross-cultural comparison; Culture-social control, informal


Este artículo tiene como objetivo contribuir a la profundización de la reflexión sobre los conflictos culturales en la esfera bioética y discutir el uso de los derechos humanos como un referente teórico y normativo, mediador de conflictos en materia de bioética que presentan elementos interculturales. El proceso metodológico utilizado en este estudio fueron: análisis del concepto de perspectiva intercultural bioética y del conflito cultural en bioética desde el sentido desarrollado por el Colectivo Amani; examen de los derechos humanos como instrumentos de la cultura de la humanidad, basado en la teoría de Bauman; investigación sobre los instrumentos de derechos humanos que plantean soluciones para los conflictos culturales en bioética. Se concluyó que la perspectiva intercultural bioética debe incorporar en sus dimensiones prescriptivas y descriptivas los instrumentos de los derechos humanos que buscan la solución de los conflictos culturales, y también las normas e instituciones de derechos humanos, con vistas a garantizar la participación y la integración social de los sujetos de las comunidades culturales en conflicto.

Bioética; Derechos humanos; Comparación transcultural; Cultura-controles informales de la sociedad


A bioética, em seu percurso de construção teórica, institucional e normativa, não tem conferido ênfase aos conflitos culturais, a despeito das inúmeras situações conflituosas que envolvem elementos culturais como fonte de embate, controvérsia, e mesmo guerras, nas mais variadas regiões do planeta. Como exemplo, Koenig e Gates-Williams 1. Koenig BA, Gates-Williams J. Understanding cultural differences in caring for dying patients. West J Med. 1995;163(5):244-9. pontuam as distinções culturais acerca da vida e da morte que refletem em temas como a doação de órgãos, a resposta dos pacientes à dor e a definição sobre o início da pessoa humana. No mesmo sentido, Searight e Gafford 2. Searight HR, Gafford J. Cultural diversity at the end of life: Issues and guidelines for family physicians. Am Fam Physician. 2005;71(3):515-22. assinalam o impacto da cultura na comunicação médico-paciente ao longo do processo deliberativo na esfera clínica e nos cuidados de pacientes em final de vida. Com efeito, Porto assinala que a questão cultural passou a ser incorporada, aproximadamente na metade da década de 1960, aos debates acerca da qualidade de vida das populações, especialmente de grupos ou segmentos com características socioculturais distintas 3. Porto D. Bioética na América Latina: desafio ao poder hegemônico. Rev. bioét. (Impr.). 2014;22(2):213-24..

Desse modo, sustenta-se que a bioética, na condição de ética aplicada de cunho prescritivo, voltada para a solução de conflitos concretos em contextos variados, há que se ocupar das consequências decorrentes do encontro entre culturas distintas no campo da medicina, das ciências da vida e das tecnologias. Esse foco da bioética lançado sobre os conflitos culturais é essencial para ampliar sua esfera de atuação, na medida em que, ao incorporar uma dimensão intercultural quando lida com conflitos entre pessoas ou grupos de diferentes culturas, a bioética torna-se ferramenta essencial na solução de questões que surgem na esfera hospitalar ou no âmbito de políticas e programas públicos.

Sendo assim, este artigo tem como objetivo contribuir para a elaboração teórica de uma perspectiva bioética intercultural (PBI), entendida como a vertente da bioética que se apropria dos fundamentos dos estudos da interculturalidade para esquadrinhar os conflitos marcados pelo embate entre distintas culturas, com o intuito de produzir reflexão sobre os aspectos constituintes dos conflitos e contextos que envolvem, bem como estabelecer prescrições, concorrendo para sua solução. Com efeito, entende-se que a PBI não se caracteriza tão-somente pelo seu objeto específico – qual seja, os conflitos culturais, compreendidos como aqueles que se dão entre pessoas ou grupos culturais distintos –, mas também pelo seu caráter normativo, na medida em que se engaja na defesa do respeito às diferentes culturas, superando as falhas do etnocentrismo e do relativismo cultural, em busca de um encontro em igualdade 4. Reija BA, Lara JG, Pardo MM, Abad JV. Educación intercultural: análisis y resolución de conflictos. Madrid: Catarata; 2009..

Desse modo, além de caracterizar-se pela descrição de conflitos morais de base cultural, a PBI também se particulariza em função de seus argumentos normativos em defesa do respeito às culturas e dos direitos humanos. Para tanto, isto é, com o propósito de transpor seu postulado para o plano prático, a PBI precisa lançar mão de ferramentas aptas a assegurar que o processo de tomada de decisão em contextos de pluralismo cultural não seja permeado pelo etnocentrismo e pelo relativismo cultural. Por outro lado, tais ferramentas também devem garantir o fortalecimento do interculturalismo, cujas premissas consistem em: 1) não analisar outras culturas a partir de padrões culturais próprios; 2) buscar o encontro, a igualdade entre culturas; 3) promover uma visão crítica das culturas, cabendo o enfrentamento de alguns de seus elementos 4. Reija BA, Lara JG, Pardo MM, Abad JV. Educación intercultural: análisis y resolución de conflictos. Madrid: Catarata; 2009..

Essas ferramentas de auxílio à tomada de decisão e mediação apresentam tanto um caráter procedimental, uma vez que dizem respeito ao regramento do procedimento de tomada de decisão, quanto um caráter substantivo, pois limitam o espaço de deliberação, colocando de antemão princípios que não estão em jogo em tal procedimento. Assim, neste artigo, advoga-se que as ferramentas apontadas são os direitos humanos, em sua condição de normas de ação universalmente compartilhadas, o que corresponde a uma verdadeira cultura da humanidade no sentido proposto por Bauman 5. Bauman Z. Ensaios sobre o conceito de cultura. Rio de Janeiro: Zahar; 2012..

Os passos metodológicos adotados neste estudo foram: 1) análise do conceito de PBI e de conflito cultural em bioética, a partir da acepção desenvolvida pelo Colectivo Amani 4. Reija BA, Lara JG, Pardo MM, Abad JV. Educación intercultural: análisis y resolución de conflictos. Madrid: Catarata; 2009.; 2) exame dos direitos humanos como instrumentos da cultura da humanidade, com base em Bauman 5. Bauman Z. Ensaios sobre o conceito de cultura. Rio de Janeiro: Zahar; 2012. e em aportes de Rorty 6. Rorty R. Human rights, rationality and sentimentality. In: Hayden P, editor. The philosophy of human rights. St. Paul: Paragon House; 2001. p. 151-62.; 3) investigação acerca dos instrumentos que os direitos humanos fornecem para a solução de conflitos culturais em bioética, de modo a desenvolver uma concepção de PBI baseada nos direitos humanos. Subsequentemente, aborda-se o tema acerca da PBI, com ênfase nos conflitos morais correlatos.

Perspectiva bioética intercultural: dimensão descritiva e normativa

Este tópico tem como objetivo discorrer sobre os conceitos de cultura adotados neste artigo, formular uma proposta de PBI e, por fim, demarcar a noção de conflito bioético de base cultural.

O estudo da PBI impõe o enfrentamento prévio da questão relativa ao conceito de cultura. Considerando o escopo deste trabalho, optou-se por discorrer sobre o tema a partir de um único referencial teórico, qual seja, Bauman 5. Bauman Z. Ensaios sobre o conceito de cultura. Rio de Janeiro: Zahar; 2012.. O teórico inicia sua abordagem acerca da cultura como conceito, reconhecendo a ambiguidade do termo em razão da existência de diversas linhagens teóricas que se reúnem historicamente em torno do mesmo termo. De acordo com Bauman, há três conceitos distintos de cultura que sistematizam seu conteúdo e põem em relevo diferentes aspectos que a constituem: cultura como conceito hierárquico; cultura como conceito diferencial; e o conceito genérico de cultura.

Iniciando por sucinta alusão ao conceito hierárquico, a cultura designa uma qualidade de determinada pessoa, a “culta”, e assim se correlaciona com os seguintes termos: instruído, educado, cortês, requintado 7. Bauman Z. Op. Cit. 62. Passando à cultura como conceito diferencial, seu uso lança luz sobre as diferenças visíveis entre as comunidades de pessoas. O conceito diferencial é incompatível com a ideia de universais culturais, e o único universal que se ajusta a tal conceito é o alusivo a características humanas comuns da espécie.

Segundo Bauman, a pluralidade e a singularidade das culturas tornaram-se de tal modo paradigma entre os antropólogos, constituindo-se, assim, em “fato”, que dispensa verificação e comprovação. Por outro lado, o conceito diferencial se atrela à compreensão de cultura como sistema fechado de características que distingue uma comunidade de outra, de modo que, se cada cultura constitui uma entidade, fechada, coesa, singular, os desencontros entre culturas são vistos como choque entre totalidades culturais distintas e coexistentes, tornando a ideia de “choque cultural” uma “verdade evidente” 8. Bauman Z. Op. Cit. p. 125.. Sendo assim, os filiados ao conceito diferencial de cultura prezam a singularidade das culturas e julgam a mistura de culturas como algo anormal e condenável 5. Bauman Z. Ensaios sobre o conceito de cultura. Rio de Janeiro: Zahar; 2012..

O conceito genérico de cultura liga-se aos atributos compartilhados por todos os membros da espécie humana, distinguindo-a das demais. Essa perspectiva compreende cultura como algo próprio do humano, constituindo-se, dessa forma, em um conceito abarcante de aspectos humanos universais. Como exemplo, o homem é o único animal que ri, constrói ferramentas, produz arte, interditos morais e símbolos; ou seja, há um conjunto de elementos constituintes da espécie humana que são universais, o qual pode ser definido como a cultura humana.

Nesse sentido, a cultura da humanidade é única, e as culturas, que se forjam em esferas sociais, econômicas e ambientais distintas, são porções desse todo. O conceito genérico de cultura também se ancora no entendimento de que, a despeito das especificidades de cada comunidade humana, o ser humano partilha um elenco de necessidades básicas que, não atendidas, inviabilizam a coexistência e a própria sobrevivência da espécie. Assim, independentemente das características idiossincráticas dos agrupamentos humanos, é corrente que a linguagem e a produção de símbolos consistem no cerne universal e básico da cultura humana 8. Bauman Z. Op. Cit. p. 125..

Partindo dos conceitos de Bauman, este trabalho adota especificamente o conceito diferencial e o conceito genérico de cultura, entendendo que comunidades humanas têm culturas particulares, porém tal constatação empírica não conduz à negação da existência de uma cultura da humanidade, para a qual as culturas singulares confluem e com a qual compartilham seus elementos.

O estudo da PBI implica previamente a distinção entre abordagens não normativas e normativas da bioética 9. Beauchamp TL. Ethical theory and bioethics. In: Beauchamp TL, Walters L, editors. Contemporary issues in bioethics. Belmont: Wadsworth; 2003.. A abordagem não normativa, descritiva, da bioética ocupa-se da descrição factual e de explicações de comportamentos e concepções morais. A abordagem normativa centra-se em princípios básicos que governam a vida moral e no delineamento de padrões de conduta para as ações. Tendo em conta tal distinção, a PBI, do ponto de vista não normativo, tem como objeto de estudo a descrição e o entendimento de conflitos bioéticos de base cultural, mediante análise de comportamentos morais de culturais distintas e seus desencontros. Sendo assim, a PBI descritiva ancora-se no conceito diferencial de cultural – ou seja, comunidades diferenciadas apresentam moralidades singulares –, bem como se aproxima do entendimento de multiculturalidade como fenômeno social 4. Reija BA, Lara JG, Pardo MM, Abad JV. Educación intercultural: análisis y resolución de conflictos. Madrid: Catarata; 2009..

Do ponto de vista normativo, a PBI supõe um sistema de princípios morais e prescreve modos de efetivar sua aplicação 9. Beauchamp TL. Ethical theory and bioethics. In: Beauchamp TL, Walters L, editors. Contemporary issues in bioethics. Belmont: Wadsworth; 2003.. Assim, fundamenta-se tanto na acepção de interculturalismo, como referência ao igual valor de cada cultura 1010 . Piacentini DQ. Direitos humanos e interculturalismo: análise da prática cultural da mutilação genital feminina. Florianópolis: Conceito; 2007. p. 98., quanto no conceito genérico de cultura. Os princípios e guias morais que regem a PBI podem ser subdivididos em: princípios do interculturalismo, como o do diálogo intercultural e do igual valor das culturas; e princípios dos direitos humanos.

Iniciando pela PBI descritiva, a definição de conflito revela-se tarefa árdua na medida em que há enfoques variados, tais como o psicossociológico e o sociológico 4. Reija BA, Lara JG, Pardo MM, Abad JV. Educación intercultural: análisis y resolución de conflictos. Madrid: Catarata; 2009.. À luz da psicossociologia, os conflitos podem ser definidos como situação em que os atores buscam objetivos diferentes, defendem valores contraditórios, têm interesses opostos ou distintos, ou bem, perseguem simultânea e competitivamente a mesma meta. Pelo prisma sociológico, a sociologia do conflito define-o como situação na qual coexistem entre pessoas fins e valores inconciliáveis ou particulares de cada um. Sendo assim, conflito de base cultural, em linhas gerais, pode ser entendido como situação de divergência entre pessoas ou grupos de pessoas de culturas distintas.

O conflito de base cultural verifica-se em situações explicitamente marcadas por diferenciação cultural entre as partes implicadas. Nesses casos, há que atentar especialmente para o fator cultural, que interferirá diretamente no processo de interação e comunicação entre os concernidos 4. Reija BA, Lara JG, Pardo MM, Abad JV. Educación intercultural: análisis y resolución de conflictos. Madrid: Catarata; 2009.. Do ponto de vista da PBI, conflito bioético de base cultural é compreendido como a situação moral divergente que envolve partes de diferentes culturas relacionadas com a medicina, as ciências da vida e as tecnologias associadas quando aplicadas aos seres humanos, conforme a descrição do objeto da bioética constante da Declaração Universal sobre Bioética e Direitos Humanos 1111 . Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura. Declaração Universal sobre Bioética e Direitos Humanos. [Internet]. Paris: Unesco; 2005 [acesso 24 maio 2014]. Disponível: http://unesdoc.unesco.org/images/0014/001461/146180por.pdf
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A PBI de cunho normativo não se ancora apenas no fato da diversidade moral, mas também traz como princípios norteadores o diálogo intercultural e o igual valor das culturas, bem como os direitos humanos, os quais serão tratados mais adiante neste trabalho. O diálogo intercultural supera o etnocentrismo, que implica aproximação de uma cultura a partir da perspectiva da nossa própria cultura, acarretando falta de compreensão, paternalismo e tratamento desigual entre as partes envolvidas em conflitos culturais 4. Reija BA, Lara JG, Pardo MM, Abad JV. Educación intercultural: análisis y resolución de conflictos. Madrid: Catarata; 2009..

No mesmo sentido, o interculturalismo suplanta o relativismo cultural, entendido como a análise de uma cultura tendo em conta tão-somente padrões avaliativos internos. O risco do relativismo é abortar qualquer visão crítica de determinada cultura, impedindo o rechaço de certas práticas tradicionais ou a luta contra elas; estabelecer que cada comunidade tradicional permaneça limitada ao seu espaço, afastando a possibilidade de encontros entre culturas 4. Reija BA, Lara JG, Pardo MM, Abad JV. Educación intercultural: análisis y resolución de conflictos. Madrid: Catarata; 2009.; e, por fim, endossar culturas excludentes ou etnocêntricas.

Ao sustentar o princípio do igual valor das culturas, o interculturalismo propugna o desmantelamento de toda ideia de superioridade cultural, limitando, desse modo, o etnocentrismo das partes no conflito 1212 . Zambrano CV. Dimensiones culturales en la bioética: aproximación para una perspectiva bioética intercultural y pública. Revista Colombiana de Bioética. 2006;1(2):83-104.. Nessa linha, a hermenêutica diatópica contribui para o encontro em igualdade, à medida que problematiza o emprego de ferramentas de uma cultura para a compreensão de outra e o preenchimento de lacunas entre duas culturas distintas 1313 . Panikkar R. Seria a noção de direitos humanos um conceito ocidental? In: Baldi CA, organizador. Direitos humanos na sociedade cosmopolita. Rio de Janeiro: Renovar; 2004. p. 205-38.. Para Santos, a hermenêutica diatópica tem como escopo ampliar ao máximo a consciência da incompletude mútua através de um diálogo que se desenrola, por assim dizer, com um pé numa cultura e outro, noutra 1414 . Santos BS. Por uma concepção multicultural de direitos humanos. Revista Crítica de Ciências Sociais. 1997;(48):11-32.; ou seja, o autor trata do diálogo intercultural, que será abordado adiante.

Assim, no tocante ao princípio do diálogo intercultural, cabe registrar que a interculturalidade denota a construção de espaços de participação coletiva entre culturas diferentes 1515 . Krohling A. Direitos humanos fundamentais: diálogo intercultural e democracia. São Paulo: Paulus; 2010. p. 104., nos quais se dará o diálogo intercultural, de natureza dialógica. Com efeito, Panikkar 1616 . Panikkar R. Sobre el diálogo intercultural. Salamanca: San Esteban; 1990. propõe o diálogo dialógico como forma de manejar um conflito pluralista, o qual pressupõe uma abertura mútua em direção ao outro e o reconhecimento da incompletude das culturas. O diálogo intercultural vai além da simples tolerância ou do respeito formal 1010 . Piacentini DQ. Direitos humanos e interculturalismo: análise da prática cultural da mutilação genital feminina. Florianópolis: Conceito; 2007. p. 98.; implica, ademais, uma atitude cooperativa entre os participantes, que buscam sinceramente a construção de acordos 1717 . Eberhard C. Direitos humanos e diálogo intercultural: uma pesquisa antropológica. In: Baldi CA, organizador. Direitos humanos na sociedade cosmopolita. Rio de Janeiro: Renovar; 2004. p. 159-204..

De acordo com Panikkar, a busca dos “equivalentes homeomórficos” 1616 . Panikkar R. Sobre el diálogo intercultural. Salamanca: San Esteban; 1990. integra o diálogo intercultural, pois a conversa dialógica entre pessoas ou grupos de culturais distintos demanda não apenas a tradução literal da linguagem, mas principalmente a criação de meios que propiciem a compreensão dos símbolos 4. Reija BA, Lara JG, Pardo MM, Abad JV. Educación intercultural: análisis y resolución de conflictos. Madrid: Catarata; 2009. de determinada cosmovisão por outra, mediante a busca de termos cujo sentido se aproxime dos significados da linguagem da outra cultura 1313 . Panikkar R. Seria a noção de direitos humanos um conceito ocidental? In: Baldi CA, organizador. Direitos humanos na sociedade cosmopolita. Rio de Janeiro: Renovar; 2004. p. 205-38.. O diálogo intercultural enseja o entendimento entre as partes envolvidas no conflito por meio da adoção de postura aberta diante do diferente e da construção de pontes que atravessam os esquemas interpretativos da realidade culturalmente apreendidos, com vistas à construção partilhada de símbolos e significados.

A PBI – cujo foco recai sobre os conflitos de base cultural, refletindo a respeito deles, normatizando-os e mediando-os por intermédio das instâncias da dimensão institucional, conforme será visto adiante neste trabalho – requer respeito à igualdade entre culturas e diálogo intercultural, com a participação equitativa e equilibrada de todas as partes envolvidas 1818 . Raymundo MM. Uma aproximação entre bioética e interculturalidade em saúde a partir da diversidade. Rev HCPA. 2011;31(4):491-6.. Na sequência, serão discutidos os direitos humanos como princípios e normas universais, constituintes da cultura da humanidade.

Direitos humanos universais: aspectos constituintes da cultura da humanidade

Atualmente, é notório que as pessoas convivem com uma pluralidade de culturas, não pertencendo apenas a uma comunidade cultural 1919 . Tilio RC. Reflexões acerca do conceito de cultura. Revista Eletrônica do Instituto de Humanidades. 2009;7(28):35-46.. Mesmo as comunidades tradicionais interagem com aqueles que não as integram, atuando como emissoras e receptoras de crenças, valores, costumes e outros elementos constituintes da cultura. Assim, surge a noção de que a cultura é um dispositivo de adaptação, visto que as culturas se modificam historicamente, não são algo estático, e as mudanças podem a vir a enriquecê-las 4. Reija BA, Lara JG, Pardo MM, Abad JV. Educación intercultural: análisis y resolución de conflictos. Madrid: Catarata; 2009.. Do mesmo modo, as culturas são vivenciadas diferentemente por seus integrantes, os membros de uma comunidade cultural nunca apresentam homogeneidade em todos os seus aspectos, pois cada um traz múltiplas identidades sociais 2020 . Lorenzo CFG. Desafios para uma bioética clínica interétnica: reflexões a partir da política nacional de saúde indígena. Rev. bioét. (Impr.). 2011;19(2):329-42..

Sendo assim, dado que culturas se modificam e se alteram por influência de outras culturas e que seus integrantes compartilham diversamente os elementos culturais que as compõem, constata-se uma abertura inexorável das culturas e daqueles que as integram para elementos externos a elas. O movimento de abertura provoca a incorporação de linguagens não originárias, o que, por si só, não pode ser visto como positivo ou negativo para a manutenção do tecido social daquele grupo social.

Além da visão de diferenças entre culturas, há uma cultura da humanidade, constituída por aspectos amplamente compartilhados por membros da espécie humana. Entre esses elementos comuns encontram-se normas morais básicas para a convivência social, que atravessam culturas, o que não implica a observância dessas normas por todos, indistintamente. Ancorando-se em tal entendimento, este artigo sustenta que os direitos humanos, previstos em tratados internacionais, são normas de conduta amplamente partilhadas pelas distintas culturas, de modo a constituir a cultura da humanidade; contudo, reconhece que algumas dessas regras apresentam problemas em sua efetivação. Sem o objetivo de refutar os variados argumentos contrapostos à concepção universal dos direitos humanos, é oportuno recorrer ao filósofo Richard Rorty com o intuito de agregar fundamentação teórica à acepção de direitos humanos como cultura da humanidade. Rorty, distintamente da tradição ocidental, não os ancora na racionalidade, mas sim em sentimentos humanos comuns a todos os membros da espécie.

Com efeito, Rorty 6. Rorty R. Human rights, rationality and sentimentality. In: Hayden P, editor. The philosophy of human rights. St. Paul: Paragon House; 2001. p. 151-62. assinala que a superação da visão do outro como um “quase humano”, não merecedor do mesmo respeito e consideração, implica buscar o que todos nós temos em comum: nossa humanidade, elemento constituinte de uma cultura compartilhada considerado crucial para integrar o outro à comunidade moral. Assim, a despeito de suas diferenças triviais, brancos e negros, homens e mulheres, cristãos e muçulmanos, heterossexuais e homossexuais possuem algo que os une e que os faz iguais, permitindo a constituição de uma comunidade moral em que todos detêm o mesmo valor intrínseco. O alcance de tal resultado, segundo Rorty, só é possível mediante a educação afetiva, e não pelo simples cálculo utilitarista ou pelo engajamento no processo de deliberação pública. Produzindo gerações de pessoas gentis, tolerantes, seguras, respeitadoras do outro, a cultura dos direitos humanos se fortalecerá.

Neste artigo, buscou-se pontuar a contribuição de Rorty para a concepção da cultura da humanidade, desenvolvida por Bauman, não se ambicionou discutir a complexidade da efetivação dos direitos humanos. A universalidade, distintamente do proposto por Santos 1414 . Santos BS. Por uma concepção multicultural de direitos humanos. Revista Crítica de Ciências Sociais. 1997;(48):11-32., não é questão específica da cultura ocidental, é aspecto fundamental para todos os indivíduos vulneráveis, independentemente da sua cultura. Mulheres, crianças, indígenas, grupos marginalizados economicamente são titulares de direitos humanos, e o recurso a tal instrumental com a finalidade de exigirem dos governos nacionais e dos organismos internacionais medidas para efetivá-los é um avanço inegável. No tópico seguinte será abordado o tema dos direitos humanos como normas de conduta balizadoras da PBI.

Perspectiva bioética intercultural baseada nos direitos humanos

Esta parte do artigo tem como escopo contribuir para o desenvolvimento de uma PBI baseada nos direitos humanos. Essa proposta parte do pressuposto de que os direitos humanos não são o único referencial teórico apto a lidar com conflitos morais de base cultural. Conforme propugna Lorenzo 2020 . Lorenzo CFG. Desafios para uma bioética clínica interétnica: reflexões a partir da política nacional de saúde indígena. Rev. bioét. (Impr.). 2011;19(2):329-42., decisões éticas em contextos interculturais podem ser fundamentadas no modelo habermasiano de diálogo. A despeito de se reconhecer a desconfiança que os pleitos universalistas provocam em certas correntes da filosofia contemporânea 3. Porto D. Bioética na América Latina: desafio ao poder hegemônico. Rev. bioét. (Impr.). 2014;22(2):213-24.,2121 . Aguilar PC. Razones para una perspectiva intercultural en bioética. Rev Perú Med Exp Salud Publica. 2012;29(4):566-9., uma PBI baseada nos direitos humanos parte, necessariamente, de sua universalidade e aceitação transcultural.

Por essa associação indébita, o paradigma biomédico é imposto de maneira generalizada, reforçando a assimetria de poder entre os interlocutores, nos casos em que as particularidades culturais das minorias não correspondem aos parâmetros aceitos pela maioria. Nesse sentido, os direitos humanos são fundamento de uma PBI procedimental e substancialista 2222 . Cortina A. Ética. São Paulo: Loyola; 2005.. A PBI, em suas três dimensões – teórica, institucional e normativa 2323 . Oliveira AAS. Bioética e direitos humanos. São Paulo: Loyola; 2011. –, tem como foco a dimensão institucional, isto é, as instituições bioéticas que cooperam com os envolvidos nos conflitos morais, objetivando a sua resolução por meio do diálogo intercultural, tais como comitês de revisão ética, comitês de ética hospitalar e comitês nacionais de bioética 1111 . Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura. Declaração Universal sobre Bioética e Direitos Humanos. [Internet]. Paris: Unesco; 2005 [acesso 24 maio 2014]. Disponível: http://unesdoc.unesco.org/images/0014/001461/146180por.pdf
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Do ponto de vista procedimental, não se buscam prescrições de conteúdo moral concreto, mas sim a introdução de procedimentos que permitam legitimar ou deslegitimar normas procedimentais que balizam os processos de resolução de conflitos morais de base cultural. À luz do substancialismo, a PBI opta por normas de conduta compartilhadas 2222 . Cortina A. Ética. São Paulo: Loyola; 2005.. Assim, pelo viés procedimental, os direitos humanos assentam uma série de normas de conduta que devem ser observadas pelos partícipes do processo de tomada de decisões nos casos concretos ou de mediação de conflitos morais por meio da adoção do diálogo intercultural. Sendo assim, determinados direitos humanos devem pautar a atividade das instituições bioéticas anteriormente apontadas quando da adoção de procedimentos destinados à resolução de conflitos morais de base cultural.

Com efeito, os direitos culturais dos envolvidos, definidos no artigo 27 da Declaração Universal dos Direitos Humanos 1111 . Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura. Declaração Universal sobre Bioética e Direitos Humanos. [Internet]. Paris: Unesco; 2005 [acesso 24 maio 2014]. Disponível: http://unesdoc.unesco.org/images/0014/001461/146180por.pdf
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e nos artigos 13 e 15 do Pacto Internacional sobre os Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (Pidesc) 2424 . Organização das Nações Unidas. Pacto Internacional sobre direitos econômicos, sociais e culturais. [Internet]. 1966 [acesso 22 jan 2015]. Disponível: http://www.prr4.mpf.gov.br/pesquisaPauloLeivas/arquivos/PIDESC.pdf
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, devem ser respeitados por todos os concernidos no procedimento dialógico. Esses direitos assentam que as pessoas ou grupos envolvidos em conflitos morais de base cultural têm direito de expressar-se em sua própria língua, bem como de escolher e exercer suas práticas culturais 1111 . Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura. Declaração Universal sobre Bioética e Direitos Humanos. [Internet]. Paris: Unesco; 2005 [acesso 24 maio 2014]. Disponível: http://unesdoc.unesco.org/images/0014/001461/146180por.pdf
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. Os direitos culturais são fundamentais para a proteção dos indivíduos inseridos em grupos minoritários, na medida em que buscam permitir a defesa de seu estilo de vida contra as incursões de outras comunidades, especialmente do Estado 2525 . Donnelly J. Universal human rights in theory and practice. 2ª ed. Ithaca: Cornell University Press; 2003..

Deve-se destacar o direito das pessoas de participar das decisões que lhes concernem e lhes afetam, seu direito de não serem discriminadas, bem como o direito à liberdade de expressão. O direito de participação implica que os envolvidos no conflito podem tomar parte nos processos decisórios ou de mediação. O direito de não ser discriminado pressupõe o respeito por suas crenças, religião, valores e estilo de vida; assim, por exemplo, afrodescendentes no Brasil vêm sofrendo discriminação em virtude da prática do candomblé 2626 . Shaheed F. Report of the independent expert in the field of cultural rights: mission to Brazil. [Internet]. 21 mar 2011 [acesso 23 maio 2014]. Disponível: http://acnudh.org/en/2011/03/report-of-the-independent-expert-on-cultural-rights-mission-to-brazil/
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. Essa discriminação se reflete em conflitos morais de base cultural, nos quais os adeptos do candomblé pleiteiam o recurso a práticas tradicionais que auxiliam no tratamento de doenças, em contraposição às práticas consideradas corretas pela maioria.

Pelo prisma substancialista, o princípio que rege a PBI baseada nos direitos humanos é o constante do artigo 12 da Declaração Universal sobre Bioética e Direitos Humanos: o princípio do respeito pela diversidade cultural e do pluralismo, segundo o qual é preciso levar em conta a importância da diversidade cultural e do pluralismo, com a ressalva de que tais considerações não devem ser invocadas para violar os direitos humanos 1111 . Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura. Declaração Universal sobre Bioética e Direitos Humanos. [Internet]. Paris: Unesco; 2005 [acesso 24 maio 2014]. Disponível: http://unesdoc.unesco.org/images/0014/001461/146180por.pdf
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. A mesma ideia se encontra na Declaração Universal sobre a Diversidade Cultural, também da Unesco, firmada em 2012 2727 . Organização das Nações Unidas. Declaração Universal sobre a diversidade cultural. Paris: Unesco; 2012. [acesso 23 maio 2014]. Disponível: http://unesdoc.unesco.org/images/0012/001271/127160por.pdf
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. Com efeito, conforme pontua Beuchot 2828 . Beuchot M. Interculturalidad y derechos humanos. Ciudad de México: Siglo XX; 2005., os direitos humanos servem de limite a determinadas práticas culturais; contudo, não se pode esquecer que uma ambiência de respeito às diferenças culturais e de outras ordens é condição sine qua non para o florescimento dos direitos humanos.

Determinadas práticas danosas a mulheres e crianças, como casamentos precoces, estupros coletivos como forma de justiça entre comunidades e homicídios de mulheres em nome da honra, não devem ser toleradas sob o manto de serem práticas culturais. Até porque certas práticas culturais são reflexos de patriarcalismo, relações assimétricas de poder, discriminação de mulheres e subjugação de crianças. Desse modo, os comitês de revisão ética, os comitês de ética hospitalar e os comitês nacionais de bioética devem adotar os direitos humanos como pano de fundo para a análise ética da justeza e correção de determinada conduta. Embora se reconheça a importância de procedimentos dialógicos legítimos, ancorados nos direitos humanos, admite-se que não são suficientes para chegar a decisões efetivas, fruto de acordo entre as partes. Existem limites que se impõem às partes envolvidas nos conflitos morais de base cultural; ou seja, certas condutas não são previamente aceitáveis, uma vez que conflitam com normas de direitos humanos.

Na solução de conflitos morais de base cultural, é importante fazer distinção entre dois tipos de conflito: conflito em que há violação de direitos humanos e aquele em que não há a presença de violação de direitos humanos. No primeiro tipo de conflito, há um desacordo moral sobre determinadas condutas, porém não se caracterizam situações violadoras de direitos humanos. No segundo caso, além do desacordo moral, as práticas, objeto do dissenso, constituem violação de direitos humanos. Importa esclarecer que a violação de direitos humanos caracteriza-se como conduta perpetrada pelo Estado, mediante ação ou omissão, em infringência aos tratados internacionais de direitos humanos.

Conforme a tipologia obrigacional dos direitos humanos, o Estado tem três obrigações: respeitar, proteger e promover; desse modo, sua violação pressupõe o descumprimento de um ou mais desses deveres. Exemplo de descumprimento, no caso de respeitar, é quando o Estado atua violando diretamente os direitos humanos, ao torturar cidadãos por razões políticas ou quaisquer outras; em se tratando de proteger, é quando o Estado se omite ao deixar de adotar medidas de proteção da população destinadas a impedir a violação de seus direitos humanos; e, por fim, no que concerne a promover, é quando o Estado falha na execução de programas e políticas e na criação de medidas administrativas e legislativas com o objetivo de efetivar os direitos humanos.

Reconhece-se certo grau de subjetividade no enquadramento de determinada prática como violadora ou não dos direitos humanos. Entretanto, há manifestações oficiais dos órgãos de direitos humanos da ONU nesse sentido, como, por exemplo, a resolução adotada em dezembro de 2012, conclamando todos os países-membros a eliminarem a mutilação genital feminina 2828 . Beuchot M. Interculturalidad y derechos humanos. Ciudad de México: Siglo XX; 2005.. Dessa forma, há consensos globais, conformados nos espaços de construção dialógica da ONU, acerca do que sejam condutas violadoras dos direitos humanos. Uma vez que os conflitos podem ser analisados casuisticamente ou em abstrato, as instituições bioéticas responsáveis por tal exame deverão levar em conta os padrões internacionais previamente assentados, bem como o princípio da máxima proteção dos direitos humanos. De qualquer forma, a consideração a ser feita acerca da presença ou não de violação de direitos humanos em determinado conflito deve anteceder à aplicação dos instrumentos da PBI propostos neste artigo, pois essa definição irá determinar o caminho subsequente para lidar com o conflito bioético de base cultural.

Para ilustrar o conflito em que não há violação de direitos humanos, recorre-se ao exemplo de Lorenzo 2020 . Lorenzo CFG. Desafios para uma bioética clínica interétnica: reflexões a partir da política nacional de saúde indígena. Rev. bioét. (Impr.). 2011;19(2):329-42. acerca da criança da etnia tucano que sofreu uma picada de cobra jararaca e foi internada em uma unidade de saúde de Manaus. Na referida unidade, o pai da criança solicitou a entrada do pajé, para que fosse submetida ao tratamento de acordo com sua cultura. Como o pedido foi negado, o pai adotou medidas judiciais com o objetivo de retirar a criança da unidade de saúde. O diretor de um hospital da região propôs ao pai que a criança ficasse internada na unidade de terapia intensiva (UTI) e se submetesse ao tratamento da medicina ocidental em conjunto com as formas tradicionais ministradas pelo pajé. A proposta foi aceita pelo pai, e o relato culmina com a cura da criança. Por meio desse exemplo verifica-se que houve conflito bioético de base cultural concernente ao tratamento da criança; contudo, resta evidente que nenhuma das partes envolvidas praticou qualquer ato violador dos direitos humanos da criança, ambas atuaram em prol da salvaguarda de sua saúde.

Distintamente, nos conflitos do segundo tipo, como no caso do infanticídio indígena e da mutilação genital feminina, há violação dos direitos humanos de crianças e mulheres, embora os contextos em que se produzem tais práticas sejam manifestamente distintos. Nesses casos, aplica-se o princípio do respeito pela diversidade cultural e do pluralismo, segundo o qual não devem ser invocados a diversidade cultural e o pluralismo para justificar a violação dos direitos humanos. Desse modo, rechaçam-se tais práticas, muito embora o fato de se concebê-las violadoras dos direitos humanos não constitua incentivo a mudanças culturais imediatas, impondo medidas interculturais efetivas nessa direção.

Assim, no que concerne à solução de conflitos morais de base cultural por instituições bioéticas, distinguem-se dois tipos de procedimento com fulcro no tipo de conflito. Os conflitos em que não há violação de direitos humanos caracterizada podem ser solucionados mediante o diálogo intercultural, de base habermasiana 2020 . Lorenzo CFG. Desafios para uma bioética clínica interétnica: reflexões a partir da política nacional de saúde indígena. Rev. bioét. (Impr.). 2011;19(2):329-42., e a adoção dos direitos humanos como balizadores do procedimento de deliberação entre os concernidos, tais como o direito de expressar-se em sua própria língua, o direito de escolher e exercer suas práticas culturais, o direito de participação nas decisões que lhes concernem e lhes afetam, o direito de não ser discriminado, o direito à liberdade de expressão.

Os conflitos em que a presença de violação de direitos humanos demandam, além do fomento do diálogo intercultural, medidas de outra natureza, tendo em conta a própria violação de direitos humanos de grupos vulneráveis. Entretanto, ressalte-se que essas medidas devem respeitar os direitos culturais dos envolvidos e todos os demais apontados anteriormente. Importa registrar que a determinação das medidas depende da verificação do tipo de prática, objeto do conflito; ou seja: 1) se é prática tradicional de uma minoria cultural; 2) se é prática tradicional de uma maioria cultural e hegemônica. No primeiro caso, medidas intervencionistas, sem o respeito às especificidades culturais, devem ser rechaçadas, ao mesmo tempo que a abordagem intercultural impõe a percepção da cultura, objeto de análise, despida de olhar etnocêntrico, eliminando os estereótipos negativos e buscando uma relação de empatia com essa cultura. Sendo assim, entende-se que estratégias baseadas na mediação intercultural 4. Reija BA, Lara JG, Pardo MM, Abad JV. Educación intercultural: análisis y resolución de conflictos. Madrid: Catarata; 2009. são adequadas a conflitos em que se detectou violação de direitos humanos.

No segundo caso, quando práticas tradicionais refletem a posição de inferioridade de mulheres e crianças em dada sociedade patriarcal, o diálogo intercultural e a mediação intercultural não são suficientes para a solução de conflitos morais de base cultural. Utilizando-se das estratégias do Fundo de População das Nações Unidas (UNFPA) para lidar com a mutilação genital feminina, cabe destacar as seguintes medidas: 1) alteração da legislação nacional para proibir a prática, sem necessariamente criminalizá-la, sinalizando sua desaprovação por parte do Estado; 2) promoção de campanhas públicas; 3) empoderamento de comunidades para debater o assunto e alcançar consensos internos; 4) informação às comunidades acerca das consequências da prática tradicional para a saúde; 5) declarações públicas de membros influentes das comunidades, como forma de persuasão; 6) participação de líderes religiosos e comunitários como agentes de mudança 2929 . United Nations Population Fund. News on female genital mutilation. [Internet]. [acesso 23 maio 2014]. Disponível: http://www.unfpa.org/topics/genderissues/fgm/strategicapproaches
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Quanto à atuação das instituições bioéticas, pode-se verificar que os comitês de revisão ética e os comitês de ética hospitalar lidam comumente com conflitos em que não há presença de violação de direitos humanos, e que a maior parte desses conflitos diz respeito à relação entre o sujeito da pesquisa e o pesquisador ou o patrocinador e à relação entre o paciente e o profissional de saúde – relações que, apesar de assimétricas, são usualmente permeadas pela atuação ética das partes envolvidas. Já os conflitos em que há violação de direitos humanos serão objeto de comissões nacionais de bioética, uma vez que envolvem práticas violadoras de direitos humanos de grupos vulneráveis.

Portanto, a PBI tem como objeto conflitos de base cultural em que há violação ou não de direitos humanos. Por conseguinte, as instituições bioéticas que irão aplicá-la na solução desse tipo de conflito devem atentar para as diferentes formas de lidar com eles. Contudo, sempre há que nortear sua atuação pelas normas de direitos humanos, seja pelo prisma procedimental, seja pela perspectiva substancialista.

Considerações finais

Os conflitos morais de base cultural são realidade em grande parte do globo; culturas distintas ensejam práticas médicas, sanitárias ou ligadas às ciências da vida também diferenciadas, o que pode conduzir a dissensos acerca de sua moralidade. É de suma importância que a bioética, na condição de ética aplicada a questões morais, se ocupe de tais questões, demonstrando sua conexão com o mundo da vida e seu papel de instrumento relevante para a ordenação do convívio social. Destinada a construir aportes teóricos específicos para lidar com conflitos morais de base cultural, a PBI, além de centrar-se nos desacordos morais entre culturas, toma o princípio da igualdade das culturas e do diálogo intercultural como preceito norteador da tomada de decisão e da mediação intercultural, o que implica o rechaço do etnocentrismo e do relativismo cultural.

Acrescente-se o referencial teórico-normativo dos direitos humanos como pauta ética procedimental e substantiva, dada sua condição de elemento integrante da cultura da humanidade, cujo papel de defesa das culturas diferentes, mormente as minoritárias, é essencial. Dessa forma, os direitos humanos – universais, na medida em que todos os membros da espécie humana são titulares – revelam-se instrumental singular na defesa dos grupos vulneráveis e no rechaço de governos e práticas autoritárias. Isso se expressa no uso dos direitos humanos por parte dos povos indígenas para fazer valer seus direitos perante o Sistema Interamericano de Direitos Humanos, e por parte de organizações não governamentais de países onde há a prática tradicional danosa, como casamentos de crianças, mutilação genital feminina e assassinato de mulheres em nome da honra.

Em virtude de seu universalismo e da defesa dos grupos vulneráveis, propugna-se a construção da PBI baseada nos direitos humanos, por meio dos quais conflitos morais de base cultural em que não há violação de tais direitos deverão ser resolvidos mediante o diálogo e a mediação intercultural, balizados procedimentalmente pelos direitos culturais, direito de participação, direito de não ser discriminado e direito à liberdade de expressão. No caso dos conflitos morais de base cultural em que há a presença de violação de direitos humanos, além dos direitos humanos norteadores do diálogo e da mediação intercultural, será preciso lançar mão do princípio da prevalência dos direitos humanos, rejeitando, assim, argumentos de autoridade quanto ao predomínio das culturas sobre os direitos de qualquer ser humano de não ser submetido à tortura, tratamentos cruéis, desumanos ou degradantes, e outros da mesma natureza.

Por fim, registrem-se as estratégias para solução de conflitos morais de base cultural, as quais, independentemente da sua natureza, ancoradas nos direitos humanos, partem do pressuposto de que não há hierarquia entre as culturas e de que a proteção dos vulneráveis, não importando a comunidade cultural de que fazem parte, é dever inexorável do Estado.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jan-Apr 2015

Histórico

  • Recebido
    23 Jan 2015
  • Revisado
    12 Fev 2015
  • Aceito
    26 Fev 2015
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