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Representação de valores morais para o exercício profissional em estudantes de odontologia

Resumos

O presente estudo, de natureza qualitativa, objetivou identificar em estudantes de odontologia as representações de valores morais considerados centrais para o exercício profissional. Para a maioria deles, a ética relaciona-se com normas, condutas e princípios impostos pela sociedade a todos os indivíduos, enquanto a moral, por ser mais subjetiva, diz respeito à forma de pensar e agir do ser humano no plano individual. Elencaram respeito, honestidade e humildade como os principais valores morais para o exercício profissional. Constatou-se também que as representações elaboradas desses valores foram bastante amplas e, às vezes, idealizadas. Nesse contexto, torna-se imprescindível repensar a ética pedagógica adotada no processo de formação acadêmica, visto que as sociedades democráticas pós-industriais necessitam, mais do que nunca, de cidadãos éticos, que empreguem alternativas de trabalho viáveis e humanizadoras, capazes de vivenciar e de promover a realização dos valores humanos.

Moral; Ética; Prática profissional


The present qualitative study aimed to identify the moral values considered central to professional practice. For most students the subject of ethics is related to the rules, behavior, and principles imposed by society on all individuals, while morals, being more subjective, relate to the way human beings think and act on an individual level. The students identified respect, honesty and humility as the main moral values for professional practice. It was also noted that the representations of these values were wide-ranging and sometimes idealized. In this context, it is essential to rethink the way ethical education is taught within the academic process, given that democratic post-industrial societies require, now more than ever, ethical citizens who employ viable and humanizing working alternatives and are able to experience and promote the valorization of human values

Moral; Ethics; Professional practice


El presente estudio, de naturaleza cualitativa, tiene como objetivo identificar las representaciones de los valores morales, consideradas fundamentales para el ejercicio profesional. Para la mayoría de los estudiantes, la ética se refiere a las normas, conductas y principios impuestos por la sociedad a todas las personas, mientras que la moral, por ser más subjetiva, refiere a la manera de pensar y actuar del ser humano de forma individual. Los estudiantes indicaron respeto, honestidad y humildad como los principales valores morales para el ejercicio profesional. Se observó también que las representaciones elaboradas de estos valores fueran bastante amplias y a veces idealizadas. En este contexto, es imprescindible repensar la educación ética adoptada en el proceso de formación académica, en vista que las sociedades post-industriales democráticas requieren, ahora más que nunca, ciudadanos éticos, que utilicen alternativas de trabajo viables y humanizadoras, capaces de vivenciar y promover la realización de los valores humanos.

Moral; Ética; Práctica profesional


Aprovação CEP CCS/UFPE 474.252/2012

As frequentes e rápidas transformações pelas quais o mundo passa em todos os setores da sociedade provocam mudanças até mesmo nas relações entre ética, ciência e exercício profissional. Tais transformações podem ser questionadas, tomando-se como marco inaugural o ideal científico da Ilustração, a partir do século XVIII, que defendia não um saber cego e dissociado de fins humanos, mas aquele controlado pelo homem e posto a serviço do bem-estar coletivo. O progresso das ciências era visto como parte de uma evolução complexa, em que atuavam, solidariamente, fatores éticos, sociais e políticos, diante dos quais a ciência encontraria seu lugar e seus limites.

O progresso da humanidade futura era medido pelo aumento da justiça, da moralidade, da igualdade em cada nação e entre as nações, e não pelo aumento isolado do saber científico, capaz de dominar e destruir a humanidade. Assim, o projeto científico formulado pelo Iluminismo e que ele transmitiu a seus herdeiros, o liberalismo e o socialismo, não visava à servidão. Foi uma modernidade contrailuminista que perverteu tal projeto. Aliás, a humanidade seria muito mais feliz se a ciência, como prática de poder destinada a produzir docilidade social, não tivesse se transformado em fetiche, no sentido de ser considerada neutra, intrinsecamente boa e com capacidade de proporcionar bem-estar a um número cada vez maior de indivíduos 1. Rouanet SP. Mal-estar na modernidade. São Paulo: Companhia das Letras; 2003..

Em contraposição ao ideal científico do Iluminismo, o período atual, a partir do último quartel do século XX, apresenta como uma das características predominantes a associação entre ciência e técnica, ambas utilizadas a serviço do mercado. Constata-se que várias vezes o que a ciência produz não interessa à humanidade em geral. Portanto, progresso científico e técnico não vem necessariamente acompanhado de progresso moral 2. Santos M. Por uma outra globalização do pensamento único à consciência universal. São Paulo: Record; 2009. , 3. Vásquez AS. Ética. 31ª ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira; 2010..

A falência do projeto iluminista empurrou os seres humanos para uma crise de valores sociais e éticos sem precedentes na história, que atinge a família, a escola, a saúde pública, os negócios, os meios de comunicação social, as atividades políticas e até a sobrevivência do planeta, em processo acelerado de devastação. Vive-se um momento marcado por relativismo, indiferença, deturpação de valores, comodismo individualista e apatia. A essa crise ante a capacidade dos homens de exercer a cidadania plena de direitos e deveres contrapõem-se os enormes progressos científicos e tecnológicos acumulados ao longo dos séculos, os quais, paradoxalmente, possibilitam conquistas extraordinárias, mas não conseguem responder à busca de felicidade individual nem assegurar a paz entre os homens 1. Rouanet SP. Mal-estar na modernidade. São Paulo: Companhia das Letras; 2003. , 2. Santos M. Por uma outra globalização do pensamento único à consciência universal. São Paulo: Record; 2009. , 4. Pottker RS. Um estudo sobre o desenvolvimento moral da criança. Analecta. 2002;3(1):121-34.

. Finkler M, Calvo MC, Caetano JC, Ramos FRS. Um novo olhar bioético sobre as pesquisas odontológicas brasileiras. Ciênc Saúde Col. 2009;4(4):1.205-14.
- 6. Bauman Z. Ética pós-moderna. São Paulo: Paulus; 2010..

Já nos primórdios da vida em sociedade o homem percebeu que era preciso estabelecer uma organização social para nortear as ações de cada indivíduo e da coletividade. A esse modo de agir convencionou-se chamar costumes e/ou cultura de um povo, os quais estão em relação de influência mútua com os chamados valores 3. Vásquez AS. Ética. 31ª ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira; 2010., cuja construção se faz a partir das projeções afetivas do sujeito sobre os objetos ou pessoas de seu convívio 7. Piaget J. O juízo moral na criança. São Paulo: Summus; 1994..

A ética estabelece profunda relação com os valores, contudo não se resume a eles. Pode ser considerada como o princípio reflexivo que questiona o fundamento e a validade dos valores sociais, os quais têm no espaço da moralidade seu ambiente de manifestação. Já no âmbito da moral se circunscrevem os hábitos, os costumes e os comportamentos. É nesse plano que as atitudes se revelam e são julgadas pela moral como corretas ou não. Nesse sentido, ética e moral, embora distintas, são indissociáveis 3. Vásquez AS. Ética. 31ª ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira; 2010. , 8. Lourenço O. Reflections on narrative approaches to moral development. Hum Dev. 1996;39(2):83-99.

. Rios TA. O que será da avaliação sem a ética? Cadernos Cenpec. 2007;2(3):45-52.
- 1010 . Silva LRC. A dimensão ética do ensino na docência universitária: concepções e manifestações na formação inicial de professores [dissertação]. Fortaleza: Universidade Estadual do Ceará; 2010..

Educação para a ética

Em muitas discussões contemporâneas se faz presente a preocupação com os rumos tomados pela sociedade. Entre essas questões, com frequência se inclui o relevante papel da educação como referencial de esperança para um mundo mais justo, digno e harmonioso. Compreendendo a educação como processo cujo objetivo é a humanização do educando, não se pode excluir a tarefa de procurar torná-lo um ser que orienta seu agir por princípios éticos 1111 . Jares XR. Educar para a verdade e para a esperança: em tempos de globalização, guerra preventiva e terrorismos. Porto Alegre: Artmed; 2005.

12 . Carvalho V. Ética e valores na prática profissional em saúde: considerações filosóficas, pedagógicas e políticas. Rev Esc Enferm USP. 2011;45(2):1.797-802.
- 1313 . Razera JCC. O ensino de ciências entre a cultura do tédio e do sentido. Rev Ensaio. 2011;13(1):157-64..

Nesse sentido, a educação para a cidadania e para a vida em uma sociedade democrática não se limita ao conhecimento de leis e regras. A universidade, consciente de seu papel formativo e instrutivo, não pode trabalhar com qualquer valor. Almeja-se a educação para a cidadania, sua responsabilidade reside em propiciar a oportunidade para que os alunos interajam, reflexivamente e na prática, com valores e virtudes universalmente desejáveis e vinculados à justiça, à igualdade, à cidadania, ao autorrespeito e ao respeito em seu sentido amplo, objetivando a busca consciente da felicidade e do bem pessoal e coletivo, tais como propugna na Declaração Universal dos Direitos Humanos 1414 . Organização das Nações Unidas. Declaração Universal dos Direitos Humanos. [Internet]. 1948 [acesso out 2014]. Disponível: http://www.unicef.org/brazil/pt/resources_10133.htm
http://www.unicef.org/brazil/pt/resource...
, ainda que esses valores não sejam extensivos a toda e qualquer cultura existente hoje no planeta 1515 . Araújo VAV. Cognição, afetividade e moralidade. Educ Pesqui. 2000;26(2):137-53..

No campo da odontologia, a ética tem-se constituído em importante motivo de preocupação, especialmente em virtude do crescente número de profissionais formados na área e, por consequência, da elevação da concorrência no mercado de trabalho. Observa-se que a ausência de formação ético-profissional adequada e o aumento da competitividade acabam impelindo o cirurgião-dentista a desconsiderar a dimensão ética da prática profissional 1616 . Amorim AG, Souza ECF. Problemas éticos vivenciados por dentistas: dialogando com a bioética para ampliar o olhar sobre o cotidiano da prática profissional. Ciênc Saúde Col. 2010;15(3):869-78..

Esses problemas éticos na prática odontológica ocorrem rotineiramente e podem envolver aspectos referentes ao paciente, à organização dos serviços de saúde, ao relacionamento com os colegas e com a sociedade de modo geral. No entanto, os profissionais nem sempre estão preparados para lidar com as questões de caráter ético, o que pode levá-los a vivenciar conflitos éticos no exercício profissional. Para os dentistas em especial, as dificuldades na resolução de tais conflitos são reforçadas pelo conhecimento odontológico fragmentado em disciplinas e pela excessiva tecnificação do trabalho odontológico. Esse tecnicismo é mantido principalmente pelo ensino odontológico, que desconsidera, na maioria das vezes, as dimensões ética, política, social e cultural inerentes às questões da saúde em geral e à prática odontológica em particular 1616 . Amorim AG, Souza ECF. Problemas éticos vivenciados por dentistas: dialogando com a bioética para ampliar o olhar sobre o cotidiano da prática profissional. Ciênc Saúde Col. 2010;15(3):869-78..

Pretende-se lançar no mercado de trabalho cirurgiões-dentistas com formação generalista, humanista, crítica e reflexiva, para atuar em todos os níveis da atenção à saúde, com base no rigor técnico e científico. Além disso, devem estar capacitados para o exercício de atividades referentes à saúde bucal da população, pautados por princípios ético-legais e pela compreensão da realidade social, cultural e econômica de seu meio, dirigindo sua atuação para a transformação da realidade em benefício da sociedade. Uma das questões principais do processo de formação profissional relaciona-se com a dimensão ética nessa formação, porque, para além da competência técnica, a excelência profissional exige o aprimoramento ético-humanístico dos estudantes, voltando-se para o desenvolvimento da reflexão crítica desses educandos, sobretudo acerca de si e das consequências de suas ações sobre os demais 5. Finkler M, Calvo MC, Caetano JC, Ramos FRS. Um novo olhar bioético sobre as pesquisas odontológicas brasileiras. Ciênc Saúde Col. 2009;4(4):1.205-14. , 1717 . Brasil. Conselho Nacional de Educação. Resolução CNE-CES nº 32, de 19 de fevereiro de 2002. Institui as diretrizes curriculares nacionais do curso de graduação em odontologia. Diário Oficial da União. mar 2002:seção 1, p. 10. , 1818 . Finkler M, Verdi MIM, Caetano JC, Ramos FRS. Formação profissional ética: um compromisso a partir das diretrizes curriculares? Trab Educ Saúde. 2010;8(3):449-62..

Nesse contexto, torna-se urgente a reflexão sobre a importância do ensino da odontologia para a formação de novos profissionais, uma vez que, na maioria das vezes, ele se baseia em atividades práticas realizadas pelos alunos nas clínicas das universidades. É nessas clínicas que o futuro profissional aprende, executa ações, assimila condutas e adquire hábitos, fazendo delas espaços privilegiados não só para o aprendizado de procedimentos técnicos, mas também para o exercício da reflexão ética acerca da odontologia 5. Finkler M, Calvo MC, Caetano JC, Ramos FRS. Um novo olhar bioético sobre as pesquisas odontológicas brasileiras. Ciênc Saúde Col. 2009;4(4):1.205-14. , 1919 . Gonçalves ER, Verdi MIM. Os problemas éticos no atendimento a pacientes na clínica odontológica de ensino. Ciênc Saúde Coletiva. 2007;12(3):755-64..

Diante da necessidade de discutir valores e princípios morais e incluí-los claramente nos projetos educacionais do ensino superior, o presente estudo teve por objetivo identificar as representações de valores morais considerados centrais para o exercício profissional entre alunos regularmente matriculados no início do ciclo profissional (a partir do 5º período) e no último período do curso de odontologia da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE).

Método

O presente estudo, de natureza qualitativa, segundo orientação metodológica de Minayo 2020 . Minayo MCS. O desafio do conhecimento: pesquisa qualitativa em saúde. São Paulo: Hucitec; 2006., foi aprovado pelo Comitê de Ética e Pesquisa em Seres Humanos da UFPE e aplicado no período compreendido entre novembro de 2012 a março de 2013 e todos os participantes concordaram em assinar o termo de consentimento livre e esclarecido.

A metodologia de Minayo 2020 . Minayo MCS. O desafio do conhecimento: pesquisa qualitativa em saúde. São Paulo: Hucitec; 2006. leva em consideração três tipos de método analítico – a análise de conteúdo (influenciada pelo positivismo), a análise do discurso (influenciada pelo materialismo histórico, pela teoria do discurso e pela linguística) e, principalmente, a análise hermenêutico-dialética (influenciada pela filosofia e pelas ciências sociais) – e permite a compreensão da fala, do depoimento e do texto como resultado simultâneo de um processo social e de conhecimento, conforme proposto pelo filósofo e sociólogo alemão Jürgen Habermas, da Escola de Frankfurt.

A amostra se constituiu de 14 alunos (28,6%) dos 49 regularmente matriculados no 5º período. Este semestre foi selecionado para o levantamento de dados por ser aquele em que os estudantes são introduzidos no ciclo profissional, como dispõe o novo currículo do curso de odontologia, do qual, esta é a primeira turma. A reformulação curricular que propôs esta mudança pedagógica se preocupou em aprofundar a formação humanística dos alunos. Com relação ao currículo antigo, foram selecionados 15 alunos (32,6%) dos 46 regularmente matriculados no 10º período, que já haviam cursado a maioria das disciplinas obrigatórias do curso e, teoricamente, deveriam apresentar maior conhecimento acerca dos valores morais considerados centrais para o exercício profissional.

A definição do número de indivíduos não se fez com base em amostragem probabilística, e sim pela técnica de saturação do discurso 2121 . Bauer MW, AARTS B. A construção do corpus: um princípio para a coleta de dados qualitativos. In: Gaskell G, organizador. Pesquisa qualitativa com texto imagem e som: um manual prático. Petrópolis: Vozes; 2002.. Os critérios de exclusão foram recusa em participar da pesquisa, trancamento de matrícula e afastamento do curso de odontologia no período da coleta de dados.

Para obter as variáveis sociodemográficas e econômicas dos estudantes, elaborou-se um formulário estruturado. Os dados obtidos foram tabulados e analisados no programa estatístico Epi Info, versão 7.3.1.1. No que diz respeito à linha metodológica adotada para desenho e aplicação da pesquisa, ou seja, à orientação de Minayo 2020 . Minayo MCS. O desafio do conhecimento: pesquisa qualitativa em saúde. São Paulo: Hucitec; 2006., é possível sintetizá-la em duas etapas – 1) construção do instrumento para a coleta de informações sobre o tema em questão e 2) análise dos dados levantados –, ambas descritas a seguir.

A construção do instrumento da pesquisa ocorreu mediante a elaboração de roteiro para entrevista aberta, não diretiva e realizada verbalmente, cujas perguntas estão explícitas nos resultados. O período de coleta de informações estendeu-se de novembro de 2012 a março de 2013. Utilizou-se um gravador para auxiliar no registro verbal dos dados levantados nas entrevistas, as quais foram realizadas por um único pesquisador. Para manter a fidedignidade das informações, todas as questões respondidas foram transcritas integralmente e revistas por mais de um pesquisador.

Concomitantemente às entrevistas, foram levadas em consideração, por seu caráter enriquecedor para a pesquisa, reações não verbais dos entrevistados, tais como comportamentos, gesticulações, expressões faciais, costumes.

Após a transcrição das entrevistas gravadas, as informações obtidas foram exaustivamente lidas, sintetizadas e categorizadas em três núcleos centrais: 1) representações dos conceitos de ética e moral; 2) influência da sociedade atual na adoção de valores morais; 3) representações dos valores morais considerados essenciais para o exercício profissional. Em seguida, esses aspectos foram confrontados com os referenciais teóricos previamente selecionados.

No contexto deste estudo, as representações devem ser compreendidas como estados mentais que intermedeiam a relação do sujeito com o ambiente, constituindo-se no próprio material do pensamento. Elas podem ser construídas tanto pelo contato direto com o mundo (representações primárias) quanto pela capacidade de abstração do ser humano, que analisa eventos passados e tece projeções sobre o futuro, o que permitirá o raciocínio hipotético-dedutivo, isto é, as representações secundárias, as quais precisam ser interpretadas.

Resultados

Com relação às variáveis sociodemográficas, verificou-se que, para o 5º período, os entrevistados eram majoritariamente do sexo feminino (66,4%), com idade entre 19 e 21 anos (80%), brasileiros (100%), procedentes da cidade de Recife (63,4%) e que moravam com os pais (89%). Para o 10º período, viu-se também que os estudantes eram na maioria do sexo feminino (55,7%), na faixa etária entre 21 e 22 anos (74%), brasileiros (100%), procedentes da cidade de Recife (58,4%) e que moravam com os pais (75%). Quanto à variável econômica, verificou-se que, para o 5º e 10º períodos, a maioria não exercia atividade remunerada (92% e 66%, respectivamente) e, portanto, não contava com renda individual mensal. Entre aqueles que a possuíam, ela era de cerca de R$ 400,00, proveniente de mesada, estágio ou bolsa de monitoria/pesquisa.

Para investigar as representações dos valores morais em estudantes de odontologia do 5º período (início do ciclo profissional) e do 10º (concluintes), solicitou-se a eles que apresentassem um conceito de ética e outro de moral. Em virtude da enorme pluralidade de sentidos que ambos os termos suscitavam na imaginação dos estudantes, na impossibilidade de apresentar todos os conceitos fornecidos, e levando em consideração a semelhança entre os conceitos de ética e de moral elaborados pelos alunos de ambos os períodos, foram selecionados os mais frequentes. Desse modo, para a grande maioria, a ética está relacionada a “ideias”, “regras”, “normas”, “condutas”, “valores” e “princípios” impostos pela sociedade a todos os indivíduos.

Em seguida, foi possível categorizar, em frequências semelhantes, outras representações de ética: a) “uma moral coletiva”; b) “as leis e os códigos escritos”; c) “regras para se exercer a profissão”; d) “depende do caráter de cada pessoa” e; e) “é o que você faz quando todo mundo está vendo”. Merece destaque, também, o fato de que alguns alunos não conseguiram fazer distinção entre o conceito de ética e o de moral, porque, segundo eles, ambos são muito parecidos, como está explícito no depoimento de uma aluna do 5º período: “Ética é seguir à risca as regras. Ser uma pessoa correta, centrada e moral. Já a moral, eu não sei. Está tudo relacionado. Moral é parecido com ética. Deve ser a mesma coisa”.

Dentro da variedade de representações que os alunos fazem do conceito de moral, as mais frequentes foram caracterizadas em três grupos: 1) para a maioria dos estudantes, moral diz respeito a “regras”, “normas”, “princípios”, “costumes” ou “valores” adotados individualmente (como explicitado na fala de um aluno do 10º período: “A moral é intrínseca, individual, é o modo de ser e de agir de cada pessoa. É o que você é”); 2) alguns alunos a conceituavam como “leis”, “regras”, “normas”, “hábitos”, “costumes” ou “comportamentos” impostos pela sociedade às pessoas; 3) outros falavam da “valorização da profissão e do respeito aos profissionais da mesma área, porém no plano individual”.

Pediu-se aos alunos que elencassem os valores morais que consideravam essenciais para o exercício profissional da odontologia. Entre os diferentes valores apresentados por ambos os grupos, os mais enfatizados, em ordem decrescente, foram “respeito”, “honestidade”, “humanização” e “humildade”. Também foram apresentados aos estudantes os valores de honestidade profissional, respeito mútuo e justiça social, e solicitado que conceituassem cada um deles. Com relação às representações de honestidade profissional, os alunos do 5º período associaram o conceito a: “não fraudar, não iludir nem enganar à procura de benefícios pessoais e em detrimento da saúde do paciente”; “ser competente, responsável, humilde e digno de respeito”; “respeitar e ter a capacidade de se colocar no lugar do outro”. A esses conceitos os alunos do 10º período acrescentaram: “clareza na comunicação profissional-paciente”.

Quanto ao respeito mútuo, os alunos de ambos os períodos responderam que: “respeito implica reciprocidade”; é preciso “respeitar os direitos do outro, não ultrapassando os limites para merecer e ter o respeito dele”; se deve “tratar o outro com cordialidade, não desvalorizando a si próprio e ao próximo”; é preciso “tolerar as opiniões e convicções de alguém e esperar o mesmo da parte dele”; “é você dar exatamente ao outro o que você gostaria que ele desse pra você”.

No que diz respeito à justiça social, os alunos do 5º período relacionaram esse valor moral com: “a criação de leis e regras pela sociedade”; “todos terem os mesmos direitos dentro de uma sociedade”. Já os alunos do 10º período responderam que a justiça social representa: “justiça que rege as pessoas”; “igualdade entre os indivíduos”. Merece destaque também a opinião de alguns alunos para quem a justiça social está associada ao princípio da equidade, como se observa na seguinte fala: “Justiça social é dar mais a quem precisa mais e menos a quem precisa menos, e não dar igual a todo mundo”.

Com relação às qualidades que um profissional de saúde precisa ter para ser considerado referência ética, os alunos do 5º período responderam: “honestidade”; “respeito”; “ser correto”; “humildade”. A esses conceitos os alunos do 10º período acrescentaram: “agir conforme a ética e a moral”; “ter caráter”; “ter conhecimento adequado na sua área de atuação no sentido de estar apto a exercer sua profissão”.

Questionados acerca dos valores morais que podem ser modificados durante o exercício profissional, os alunos de ambos os períodos citaram: “honestidade”; “respeito”; “humildade”; “humanização”. Outros afirmaram que todos os valores sofrem alterações porque a sociedade é dinâmica, como exemplificado na fala do aluno do 10º período: “A informação faz com que a gente mude nosso pensamento, porque aquilo que é desconhecido, a gente tem preconceito; quando é esclarecido tudo muda, agora você já conhece e pode tratar de outra maneira e acaba mudando tudo em relação a tudo”.

Levando em conta o desenvolvimento moral no contexto da contemporaneidade, foi perguntado aos alunos se as características da sociedade atual influem na adoção de valores morais essenciais ao exercício profissional. Os estudantes de ambos os períodos responderam afirmativamente, enfatizando que “a hipervalorização do dinheiro e a ganância provocadas pelo consumismo”, “a corrupção”, “a desordem social”, “a competitividade”, “a distribuição desigual de renda” interferem negativamente na adesão a valores morais.

Discussão

A relação entre ética e ciência é um dos grandes desafios com os quais o homem se defronta desde a segunda metade do século XX. As pessoas começaram a perceber, na vida cotidiana, a deterioração galopante do ambiente físico e social, ao lado do mundo estonteante e maravilhoso da tecnologia. As conquistas tecnológicas nos campos da comunicação, transporte, alimentação, moradia, saúde e lazer convivem com o desequilíbrio ecológico, a miséria, a fome, os sem-emprego, sem-terra, sem-teto, enfim, ao lado de toda sorte de violência que destrói a dignidade dos excluídos 6. Bauman Z. Ética pós-moderna. São Paulo: Paulus; 2010..

Considerando que não há progresso científico e tecnológico sem que haja progresso moral, só é possível falar da odontologia como ética do cuidado se o profissional for pessoa consciente de si e dos outros, reconhecendo-se responsável pelos valores éticos que adota como sujeito 9. Rios TA. O que será da avaliação sem a ética? Cadernos Cenpec. 2007;2(3):45-52. , 2222 . Chauí M. Convite à filosofia. São Paulo: Ática; 1994.

23 . Cardoso CM. Ciência e ética: alguns aspectos. Ciência Educ. 1998;5(1):1-16.
- 2424 . Candiotto C. Algumas aproximações entre a ética e o ensino superior. Rev Diálogo Educ. 2001;2(4):61-5..

Os conceitos de ética e de moral elaborados pelos estudantes do 5º e 10º períodos foram muito semelhantes. Por consequência, não se evidenciou um nível de reflexão mais aprofundado no campo da ética nos dois grupos investigados. Pelas representações produzidas, e por se tratar de jovens, é provável que a razão de ser da linearidade encontrada nos discursos analisados extrapole o âmbito das mudanças feitas na proposta pedagógica do curso de odontologia, devendo ela ser justificada pelas características do mundo atual, características essas analisadas por intelectuais como Santos 2. Santos M. Por uma outra globalização do pensamento único à consciência universal. São Paulo: Record; 2009., Bauman 6. Bauman Z. Ética pós-moderna. São Paulo: Paulus; 2010., entre outros.

Para a grande maioria dos entrevistados, a ética tem o caráter de obrigatoriedade e, portanto, deveria ser respeitada, uma vez que é imposta pela sociedade com o objetivo de organizar a convivência dos indivíduos e orientar o comportamento humano, prescrevendo-lhe limites, normas destinadas a influenciar as tomadas de decisão e atitudes individuais. Para os alunos, a adoção de comportamentos éticos pelos indivíduos ocorre mais por medo de castigos ou pela esperança de receber recompensas que pelo sentimento de bem-estar resultante do dever cumprido. Consequentemente, os casos de transgressão exigem punição social, porque existem leis e códigos de ética que determinam como se deve viver em sociedade e exercer uma profissão. Nesse contexto, a ética poderia ser equiparada à deontologia.

Nesse sentido, segundo La Taille 2525 . La Taille Y. Moral e ética: dimensões intelectuais e afetivas. Porto Alegre: Artmed; 2006., até mesmo sujeitos heterônomos são sujeitos morais, porque experimentam o sentimento de obrigatoriedade. Porém, os conteúdos que elegem para sua moral são aqueles dominantes em sua comunidade. Apenas sujeitos moralmente autônomos é que elegem a equidade e a reciprocidade como princípios para seus juízos e ações morais. Concebem a moral como regras e princípios que regem não apenas as relações entre membros de determinada sociedade, mas sim as relações entre todos os seres humanos, pertencentes ou não a sua comunidade.

No que tange à interpretação que os estudantes fizeram do conceito de “moral”, a maioria afirmou que se tratava de uma “questão pessoal”, orientada pelo agir consciente do indivíduo, visto que “algumas atitudes para certa pessoa não têm o mesmo significado que para outra”. Portanto, para eles, moral é o que “cada indivíduo considera como certo ou errado, independentemente do que cada época considera como correto”. Para eles, a perspectiva moral dos indivíduos pode ser percebida em seu posicionamento diante das opções de escolha e dos atos que regem as relações interpessoais, e a moral é formada ao longo da vida, por influência tanto dos pais e educadores quanto dos demais familiares e dos colegas.

Merece destaque o fato de que, para eles, podem existir tantos conceitos de moral quantos indivíduos existam. Se por um lado se constatou certa relatividade dos conceitos de moral – os quais dependem do contexto sócio-histórico analisado –, por outro, não se percebeu que a excessiva relativização da moral traria o caos social, já que seria impossível organizar e assegurar a convivência mais saudável dos indivíduos em sociedade. Verifica-se, portanto, que as elaborações em torno da ideia de moral revelam-se paradoxais, uma vez que os alunos conseguiram identificar a relação da moral com a introjeção de valores considerados socialmente corretos ou errados – o que traz implícita a ideia de que o comportamento moral está ligado à restrição da liberdade individual –, mas, contraditoriamente, não demonstraram perceber que a flexibilidade irrestrita no campo da moral pode aniquilar a própria ideia de moralidade e gerar a barbárie social.

Entre os alunos que não fizeram clara distinção entre o conceito de ética e o de moral, considerando-os semelhantes, pôde-se observar que, enquanto para um grupo a ética é uma moral, porém moral coletiva, o outro a restringia ao plano individual, visto que ela está na dependência do caráter de cada um, mas com a ressalva de que é aconselhável “pensar, agir e se comportar em público de acordo com o que a sociedade julga correto”, como afirmou um dos entrevistados do 10º período. Deduz-se, portanto, que, para os participantes que pensam dessa forma, tudo aquilo que não tem aceitação social precisa ser realizado fora da esfera pública, caso se queira escapar a críticas, julgamentos ou punições.

Ainda que filósofos como Comte-Sponville e Ferry 2626 . Comte-Sponville A, Ferry l. A sabedoria dos modernos. São Paulo: Martins Fontes; 1998. e Vásquez 3. Vásquez AS. Ética. 31ª ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira; 2010. considerem ética e moral conceitos distintos, mesmo que indissociáveis, observou-se que alguns entrevistados não conseguiram diferençá-los. Segundo Silva 1010 . Silva LRC. A dimensão ética do ensino na docência universitária: concepções e manifestações na formação inicial de professores [dissertação]. Fortaleza: Universidade Estadual do Ceará; 2010., tal proximidade ocorre pelos sentidos originais desses termos. Como esclarece Vásquez 3. Vásquez AS. Ética. 31ª ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira; 2010., ethos, em grego, não se refere apenas à natureza (physis), mas também ao ambiente social (domínio da cultura e dos costumes) transformado pelos indivíduos. Por sua vez, “moral”, do latim mos/mores, significa costume(s), no sentido de conjunto de normas ou regras adquiridas por hábito. Desse modo, ambos os termos estão associados não a um comportamento correspondente a determinada disposição natural, mas sim a um comportamento adquirido ou conquistado por hábito.

Neste estudo, defende-se que os alunos, durante sua formação acadêmica, precisam ser confrontados com conceitos de ética e moral que postulem o respeito aos direitos humanos, valorizem a liberdade, a igualdade, a solidariedade, rechacem a intolerância ou a tolerância passiva e apontem o diálogo como meio de lidar com os conflitos morais.

Na impossibilidade de discutir todos os valores morais considerados centrais para o exercício profissional, segundo a percepção dos alunos, e considerando que eles não conseguiram fazer distinção entre qualidades profissionais desejáveis e valores morais essenciais para a prática odontológica, o estudo restringiu-se à análise das representações feitas dos conceitos de honestidade, respeito mútuo e justiça social. A honestidade foi conceituada como sinônimo de não mentir, não fraudar ou não enganar. O respeito mútuo relacionou-se, além da noção de limite (reconhecimento dos direitos do outro), com a necessidade de reciprocidade (“dar exatamente ao outro o que você gostaria que ele desse pra você”) e de tolerância (“tolerar opiniões e convicções de alguém e esperar o mesmo da parte dele”). Justiça social foi delimitada entre a igualdade de direitos e a submissão a leis e regras impostas pela sociedade. Poucos foram os alunos que associaram a justiça social ao princípio de equidade, como pode ser observado na seguinte fala: “Justiça social é dar mais a quem precisa mais e menos a quem precisa menos, e não dar igual a todo mundo”.

Constatou-se que os alunos conseguiam identificar os valores que deveriam permear a boa prática clínica na área de saúde. No entanto, com exceção da honestidade, os demais valores foram conceituados de modo genérico e impreciso. O questionamento a ser feito diante de tamanha plasticidade consiste em identificar as estratégias que adotarão para escolher os valores capazes de evidenciar a moral autônoma em sociedades como as atuais, cujos valores adquiriram liquidez, como afirma Bauman 6. Bauman Z. Ética pós-moderna. São Paulo: Paulus; 2010..

Quanto ao respeito mútuo, segundo Piaget 7. Piaget J. O juízo moral na criança. São Paulo: Summus; 1994., trata-se de um sentimento fundamental, que possibilita a aquisição das noções morais. É fruto da relação dialética entre os sentimentos de amor e de temor de perder o amor, possibilitando que os indivíduos se percebam como iguais. O respeito unilateral implica a desigualdade entre aquele que respeita e aquele que é respeitado. O respeito mútuo e a solidariedade entre os indivíduos, ao contrário, conduzem ao sentimento de justiça.

Para Piaget 7. Piaget J. O juízo moral na criança. São Paulo: Summus; 1994., na moral heterônoma, a obediência passa à frente da justiça, e a noção do que é justo acaba por confundir-se com o que é mandado ou imposto do alto. Os deveres costumam vir de forma pronta e acabada, como imperativos a ser cumpridos. Na moral autônoma, a justiça representa antes um modo de pensar e agir moralmente diante de conflitos de interesse ou dilemas éticos. Enfim, justiça é um ideal a ser conquistado.

A odontologia, como ética do cuidado, a odontologia precisa levar em conta a concepção de justiça como equidade e reconhecimento. Nesse sentido, para Rawls 2727 . Rawls J. A theory of justice. Cambridge: Harvard University Press; 1971., dois são os princípios definidores de uma sociedade justa: 1) igualdade fundamental entre todos os membros e 2) tolerância apenas às desigualdades que resultem em benefícios para o conjunto da sociedade. Com isso, o autor procura conciliar os princípios liberais de igualdade jurídica com a preocupação de limitar as desigualdades sociais, priorizando o princípio distributivo.

Diversos autores, a exemplo de Taylor 2828 . Taylor C. Multiculturalism and the “politics of recognition”. Princeton: Princeton University Press; 1992. e Honneth 2929 . Honneth A. La lutte pour la reconnaissance. Paris: Éditions du CERF; 2000., irão refutar essa visão liberal-social de justiça. Taylor 2828 . Taylor C. Multiculturalism and the “politics of recognition”. Princeton: Princeton University Press; 1992. argumenta que a primazia dada pelas teorias distributivistas à divisão dos bens materiais, na definição de uma sociedade justa, escamoteia o fato de que muitas vezes as injustiças não são de natureza econômica, e sim morais. Para Honneth 2929 . Honneth A. La lutte pour la reconnaissance. Paris: Éditions du CERF; 2000., o reconhecimento das diferenças é a força motriz transformadora das sociedades modernas, devendo ser considerado o princípio definidor de uma teoria da justiça. Portanto, quando não há reconhecimento ou quando esse é falso, ocorre uma luta por reconhecimento. Qualquer experiência de desrespeito afeta os sentimentos de honra e de dignidade do indivíduo como membro de uma comunidade cultural de valores.

Fraser 3030 . Fraser N. Rethinking recognition. New Left Rev. 2000;3(7):107-20., ao discutir a dicotomia entre os critérios de justiça válidos no mundo contemporâneo, defende que eles precisam dar conta, simultaneamente, da justiça social (ligada aos aspectos distributivistas) e da justiça simbólica (que envolve o reconhecimento das diferenças). Essa crítica será retomada por outros autores, a exemplo de Rorty 3131 . Rorty R. Achieving our country: leftist thought in twentieth-century America. Cambridge: Harvard University Press; 1998. e Bauman 6. Bauman Z. Ética pós-moderna. São Paulo: Paulus; 2010., de modo que hoje se assiste ao estabelecimento de um debate bipolar sobre os critérios de justiça válidos no mundo contemporâneo: de um lado, os que priorizam a distribuição igualitária dos bens e, de outro, os que priorizam o reconhecimento social que os indivíduos gozam ou não na sociedade. Parte do desafio atual consiste em elaborar um conceito amplo de justiça que consiga acomodar tanto as reivindicações defensáveis de igualdade social quanto às reivindicações defensáveis de reconhecimento da diferença.

Além disso, é interessante registrar que, para a maioria dos alunos, qualquer valor considerado central para o exercício profissional pode modificar-se ao longo do tempo de prática clínica. Por outro lado, os entrevistados afirmaram que na contemporaneidade “a hipervalorização do dinheiro e a ganância provocadas pelo consumismo”, “a corrupção”, “a desordem social”, “a competitividade”, “a distribuição desigual de renda” interferem na adoção de valores morais desejáveis.

Nesse contexto, torna-se pertinente refletir sobre a ideia de que as sociedades contemporâneas, sob o impacto da globalização, tendem a transformar-se em sociedades sem limites, fluidas, líquidas 6. Bauman Z. Ética pós-moderna. São Paulo: Paulus; 2010.. Essas condições trazem consequências para a subjetividade dos indivíduos e também para a natureza das relações interpessoais. Por outro lado, a sociedade atual, apoiada nas ideologias capitalista e neoliberal – sustentáculos do processo de globalização –, fundada na tirania da informação, na ganância pelo dinheiro e na competitividade, gera confusões nas pessoas e reforça a violência estrutural 2. Santos M. Por uma outra globalização do pensamento único à consciência universal. São Paulo: Record; 2009. , 3232 . Bauman Z. Modernidade líquida. Rio de Janeiro: Zahar; 2001. , 3333 . Haroche C. Maneiras de ser, maneiras de sentir do indivíduo hipermoderno. Ágora. 2004;7(2):221-34..

Cabe ressaltar que o desenvolvimento moral do aluno é o meio pelo qual se processa a dimensão ética da formação profissional 5. Finkler M, Calvo MC, Caetano JC, Ramos FRS. Um novo olhar bioético sobre as pesquisas odontológicas brasileiras. Ciênc Saúde Col. 2009;4(4):1.205-14. , 2020 . Minayo MCS. O desafio do conhecimento: pesquisa qualitativa em saúde. São Paulo: Hucitec; 2006.. Educar para a cidadania pressupõe considerar e atuar intencionalmente sobre as diferentes dimensões constituintes da natureza humana: biofisiológica, cognitiva, afetiva e sociocultural 1515 . Araújo VAV. Cognição, afetividade e moralidade. Educ Pesqui. 2000;26(2):137-53.. No entanto, a grande e infeliz verdade é que o professor já não se considera responsável pelo desenvolvimento moral de seus alunos. Provavelmente porque eles chegam ao ensino superior com personalidades praticamente estruturadas. São “filhos” da televisão, da liberação dos costumes, da permissividade dos pais, entre outros fatores 3434 . Rocha CB, Correia GCS. Ética na docência do ensino superior. Educare. 2006;(2):1-8..

Considerações finais

A análise dos dados levantados no estudo permitiu verificar que a maioria dos alunos não conseguiu distinguir com precisão os conceitos de ética e de moral. Além disso, suas representações sobre as questões investigadas denotaram elaborações pouco sistematizadas ou idealizadas em termos conceituais, o que, na prática, dificulta o exercício da odontologia como ética do cuidado para com o outro. Adicionalmente, apesar de se tratar de grupos de estudantes matriculados no início e no final do ciclo profissional, não se constatou entre os concluintes, supostamente mais preparados do ponto de vista teórico e prático, um nível de reflexão mais aprofundado sobre os valores morais socialmente desejáveis para o exercício ético de uma profissão na área da saúde.

Acredita-se que a distinção e a apropriação adequada de conceitos, notadamente os de ética e de moral, no caso dos participantes do estudo, poderão ajudá-los a refletir melhor sobre a adoção de comportamentos morais compatíveis com o adequado exercício profissional na área da saúde, uma vez que estarão suficientemente capacitados para reelaborar e ressignificar seus próprios conceitos e ações. De fato, compreender adequadamente a conceituação teórica de “ética”, por exemplo, poderá resultar na percepção de que não é apropriado relativizar excessivamente a prática profissional a partir de uma percepção particular da moral, sem que isso implique o risco de comprometimento do bem-estar pessoal e coletivo.

Ademais, considerando que o comportamento moral não é inato nos seres humanos, que sua aprendizagem se processa em etapas intrinsecamente associadas ao desenvolvimento da cognição e da afetividade, é desejável que qualquer indivíduo, ao ingressar na universidade, já tenha, pelo período de escolarização e desenvolvimento pregressos, um discurso compatível com a aquisição de uma moral autônoma. No entanto, as relações interpessoais dissimétricas de poder estabelecidas nos diferentes espaços sociais, a exemplo da universidade contemporânea, sinalizam que ainda não se atingiu uma maturidade moral.

Nesse contexto, é imprescindível que docentes e discentes do curso de odontologia da UFPE repensem o processo de formação acadêmica adotado na instituição, considerando tanto a ética pedagógica quanto os diferentes paradigmas conceituais socioeducativos, buscando aprimorá-los para que proporcionem alternativas de trabalho viáveis e humanizadoras. Tal processo revela-se essencial, visto que as sociedades pós-industriais democráticas, imersas na globalização econômica, necessitam, mais do que nunca, de cidadãos éticos, que atuem de forma prudente, responsável e comprometida com os valores humanos.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jan-Apr 2015

Histórico

  • Recebido
    17 Jul 2014
  • Revisado
    12 Jan 2015
  • Aceito
    9 Fev 2015
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