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Planejamento familiar: do que estamos falando?

Resumo

Abordamos a temática do planejamento familiar no contexto da bioética, considerando suas diversas perspectivas. Compreendemos que algumas expressões implicam uma visão mais ampla da problemática estudada, enquanto outras refletem uma concepção fragmentada da realidade, e que disso decorrem algumas dificuldades de avançar nessa importante área da saúde no Brasil. Defendemos que a expressão “planejamento da parentalidade” representa uma agenda mais aberta, própria de uma sociedade pluralista, por compreender que em nossos dias tornou-se necessário pensar filhos que nasçam desejados e pais que estejam preparados. Isso implica lidar com conflitos inerentes a esse duplo enfoque: o melhor interesse da mãe e da criança. Discutimos sobre a congruência desses interesses, por acreditar que usualmente a mãe quer o melhor para seu filho e que nenhuma sociedade deseja o aborto por si mesmo. Assim, concluímos identificando oito pontos indicativos de um planejamento da parentalidade mais responsável e condizente com o interesse mútuo.

Planejamento familiar; Sexualidade; Bioética

Abstract

The present study addresses the issue of family planning in the context of bioethics, considering its different perspectives. We understand that some expressions apply a broader view of the problem studied, while others reflect a fragmented view of reality, and that as a result some difficulties arise in advancing this important area of health in Brazil. We propose that the term “planning of parenting” represents a more open agenda, intrinsic to a pluralistic society, by understanding that today it has become necessary to think of children who are wanted and parents who are prepared. This involves dealing with conflicts inherent to this dual approach: the best interests of the child and the mother. We discussed the congruence of these interests based on the belief that usually the mother wants the best for her children, and that no society wants abortion in itself. Therefore, we conclude by identifying eight points that are indicative of responsible planning of parenting and which is consistent with the common interest.

Family planning (public health); Sexuality; Bioethics

Resumen

Abordamos el tema de la planificación familiar, en el contexto de la bioética, teniendo en cuenta sus diferentes perspectivas. Entendemos que algunas expresiones implican una visión más amplia del problema estudiado, mientras que otros reflejan una visión fragmentada de la realidad, de esto se derivan algunas dificultades para avanzar en esta importante área de la salud en Brasil. Proponemos que el término “planificación de la paternidad” representa una agenda más abierta, propia de una sociedad pluralista, para comprender que en nuestros días se hace necesario pensar en hijos que nazcan deseados y padres que estén preparados. Esto implica lidiar con los conflictos inherentes a este doble enfoque: el mayor bien de la madre y del niño. Discutimos acerca de la congruencia de estos bienes por la creencia de que, en general, la madre quiere lo mejor para su hijo y que ninguna sociedad desea el aborto en sí, por lo tanto, se concluye identificando ocho puntos indicativos de una planificación de paternidad responsable y coherente con el interés común.

Planificación familiar; Sexualidad; Bioética

Conforme avançamos no estudo do planejamento familiar num contexto bioético 11. Sanches MA, Krum JC, Rigoni MF, Sato ES, Santos RB. Planejamento da parentalidade no contexto da bioética: busca de uma nova abordagem para pesquisa. Curitiba: PUCPress; 2015., percebemos que o tema assume conotações diversas, dependendo do ambiente em que se estuda a questão e dos atores que a explicitam. Por isso queremos abordá-la na busca de esclarecimentos das expressões usadas, com o propósito de somar esforços para a melhor compreensão dessa área tão sensível, complexa e relevante para a sociedade. Sem desvalorizar os avanços já conquistados nas últimas décadas no Brasil e cientes de que o planejamento familiar é atualmente foco do Programa de Saúde da Família (PSF), concordamos que as limitações de sua aplicação podem ter consequências importantes para o desenvolvimento familiar22. Santos JC, Freitas PM. Planejamento familiar na perspectiva do desenvolvimento. Ciênc Saúde Colet. 2011;16(3):1813-20, p. 1814..

Numa abordagem interdisciplinar, a temática se abre e pode ser analisada de diversas perspectivas: é possível falar de planejamento do casamento, da família; planejar ter filhos; planejar ser pai e mãe; pensar a sexualidade; planejar a gravidez, ou ainda planejamento populacional. Certamente são todos temas correlacionados, com ênfase e nuance diferentes, mas o que queremos defender, neste artigo, é que algumas expressões implicam uma visão mais ampla da problemática estudada, enquanto outras refletem uma concepção fragmentada da realidade, de forma que daí decorrem algumas dificuldades de avançar nessa área tão importante da saúde no Brasil.

Como este trabalho se dá no contexto da bioética, é importante ressaltar que, embora possam ser inúmeros os conflitos éticos relacionados com planejamento familiar, o fundamental é considerar a possibilidade ou não da efetivação desse planejamento. Isso porque um melhor planejamento familiar, por menor que seja o avanço, traz enormes benefícios aos dois polos da parentalidade: a) evitando a concepção de crianças não desejadas e/ou propiciando o nascimento de criança em ambientes mais preparados; b) promovendo condições para que as pessoas realizem com responsabilidade seus projetos parentais de maneira responsável, com destaque para a melhoria das condições de saúde da mulher, ao evitar gravidezes indesejadas e/ou programá-las em situações pessoais, sanitárias e sociais mais adequadas.

Planejar o casamento

Pode parecer estranho a alguns que iniciemos a abordagem da temática estudada com o tema do “casamento” – termo mais usado no contexto das ciências sociais – ou “matrimônio”. Começamos propondo uma definição: casamento é a união efetiva e real de duas pessoas, um contrato social e jurídico com regras bem definidas pelos contextos sociais e culturais em questão. Assim, percebemos que quem planeja um casamento está normalmente planejando, como parte dele: a família, ter filhos, ser pais, ser cônjuge, a sexualidade e a reprodução. Talvez por isso as sociedades tradicionais valorizam tanto o casamento, pois muitos dos elementos relacionados com família e parentalidade são partes integrantes da maioria dos casamentos planejados. Até nossos dias, quando alguém diz que vai casar, usualmente está descortinando à sua frente muitas dessas questões.

No entanto, estudos sobre as estruturas de parentesco dão pouca atenção ao tema da parentalidade, aos filhos e à reprodução. O foco está no casamento e suas regras. Teses clássicas, hoje questionadas por sua visão androcêntrica, apresentam o casamento como aliança e a mulher como elemento de troca com os doadores e tomadores de mulher33. Lévis-Strauss C. As estruturas elementares do parentesco. 7ª ed. Petrópolis: Vozes; 2012. p. 31., porém não seriam os filhos, igualmente, elementos “ausentes, mas presentes” como motivadores dessas trocas? A referência aos filhos está presente quando se fala da matri ou patrilinearidade, mas sem clara alusão à sua importância. É como se os filhos simplesmente ocorressem nesse processo, sem serem pensados, desejados, esperados. Como se sua presença ou ausência não alterasse em nada toda a estrutura de parentesco em questão. Ou talvez o imperativo da reprodução seja tão forte que se compreende não necessário explicitá-lo bem.

O sexo ocupa espaço importante no casamento, a ponto de ser um dos seus elementos definidores, segundo Murdock, citado por Vidal: Matrimônio é um conjunto de costumes sociais institucionalizados em torno de um casal de adultos sexualmente associados44. Vidal M. El matrimonio: entre el ideal cristiano y la fragilidad humana. Teología moral y pastoral. Bilbao: Besclée de Brouwer; 2003. p. 93.. No entanto, nas sociedades tradicionais, e também nas sociedades ocidentais, o casamento apresenta uma importância não erótica, mas econômica 3. Isso é característico de sociedades nas quais a satisfação das necessidades econômicas repousa inteiramente sobre a sociedade conjugal e sobre a divisão de trabalho entre os sexos55. Vidal M. El matrimonio: entre el ideal cristiano y la fragilidad humana. Teología moral y pastoral. Bilbao: Besclée de Brouwer; 2003 p. 92.. Assim, o planejamento do casamento inclui pensar as relações familiares, o estabelecimento de alianças que tecem o tecido social, as questões econômicas envolvidas e a conjugalidade do casal. Nesse contexto, ficar solteiro é uma das piores calamidades em muitas sociedades 66. Vidal M. El matrimonio: entre el ideal cristiano y la fragilidad humana. Teología moral y pastoral. Bilbao: Besclée de Brouwer; 2003.

Autores que desenvolveram a noção de ciclo de vida da família observam que de modo geral, em nossa sociedade, a passagem da primeira etapa [jovens solteiros] para a segunda [o novo casal] tende a ser demarcada por um ritual de casamento, comumente um casamento civil e/ou religioso77. Lopes RCS, Menezes C, Santos GP, Piccinini CA. Ritual de casamento e planejamento do primeiro filho. Psicologia em Estudo. 2006;11(1):55-61, p. 55.. No casamento, portanto, marcam-se os novos papéis a serem assumidos e, com eles, o início de um novo núcleo familiar, a passagem para a adultez e a potencial transição para a parentalidade88. Lopes RCS, Menezes C, Santos GP, Piccinini CA. Ritual de casamento e planejamento do primeiro filho. Psicologia em Estudo. 2006;11(1):55-61, p. 56..

Poderíamos dizer que, ao se planejar um casamento – inclusive nos relacionamentos homoafetivos –, já existe um planejamento familiar implícito, visto que a presença de ritual de casamento nos casais significa uma escolha implícita do(a) futuro(a) pai(mãe) dos próprios filhos99. Lopes RCS, Menezes C, Santos GP, Piccinini CA. Ritual de casamento e planejamento do primeiro filho. Psicologia em Estudo. 2006;11(1):55-61, p. 60.. Mas, sem dúvida, é muito amplo o panorama de preocupações no momento do matrimônio, por isso há necessidade de definir uma terminologia mais específica, ou melhor, de enfatizar o planejamento familiar propriamente dito. Entendemos, portanto, que não é suficiente, nem possível, condicionar as especificidades do planejamento familiar ao contexto do planejamento do matrimônio.

Por outro lado, nas nossas sociedades, é possível a dissociação entre “casar” e “ter filhos”. Isso nos dois sentidos, pois há casais que planejam não ter filhos e há pessoas que planejam filhos fora do casamento. Desse modo, o que nas sociedades tradicionais se constituía em nexo desejável e quase obrigatório, hoje se tornou duas realidades quase independentes, como afirmam Lopes e colaboradores: (…) no passado os casais tinham maior consciência da iminência da parentalidade, uma vez que a gravidez ocorria logo após o casamento e o início da vida sexual. Entretanto, atualmente, em função do controle de natalidade, muitos casais têm a possibilidade de desassociar a parentalidade e o início da atividade sexual do casamento88. Lopes RCS, Menezes C, Santos GP, Piccinini CA. Ritual de casamento e planejamento do primeiro filho. Psicologia em Estudo. 2006;11(1):55-61, p. 56..

Casar e ter filhos não são mais realidades necessariamente correlacionadas, mesmo que assim permaneçam no referencial simbólico de alguns grupos na atualidade. Desse modo, precisamos compreender o papel dos rituais relacionados ao matrimônio e sua relevância na constituição da família e no exercício da sexualidade, mas é necessário ressalvar que planejar um casamento não implica, compulsoriamente, planejar “ter filhos”, “ser pais”, “engravidar”.

Planejar a família

Embora seja difícil definir família, por causa da diversidade de modelos encontrados nas diferentes sociedades, podemos compreendê-la como grupo social que exerce, no mínimo, as funções sexuais, procriativas, educativas e econômicas. Sendo assim, ter filhos, exercer a função procriativa, é algo a ser planejado, o que em nossos dias pode inclusive ser pensado na forma negativa: não ter filhos.

Como criação humana mutável, família corresponde a uma multiplicidade de modelos que variam em graduação acentuada, podendo seu desenho apresentar semelhanças com inúmeras sociedades sem que, com isso, se padronize um figurino a ser seguido. Depende de cada cultura o esboço do modelo. As circunstâncias diversificam-se e, com elas, as famílias também 1010. Quintas F. A mulher e a família no final do século XX. 2ª ed. Recife: Massangana; 2005.. Nas sociedades ocidentais, observa-se que alguns fenômenos vêm modificando a estrutura tradicional das famílias:

  • Aumento da proporção de domicílios formados por “não famílias” não apenas entre os idosos (viúvos), mas também entre adultos jovens, que expressariam novo “individualismo”;

  • Redução do tamanho das famílias;

  • Fragilização dos laços matrimoniais, com o crescimento das separações e dos divórcios;

  • Incremento da proporção de casais maduros sem filhos;

  • Multiplicação de arranjos que fogem ao padrão da típica família nuclear, sobretudo aqueles formados por apenas um dos pais, com destaque para as famílias chefiadas por mulheres sem cônjuge 1111. Carvalho IMM, Almeida PH. Família e proteção social. São Paulo em Perspectiva. 2003;17(2):109-22..

Essas modificações evidenciam a diversidade do modelo, o que não implica que a família seja instituição desnecessária, ou em via de extinção nas sociedades contemporâneas, haja vista que uma leitura mais acurada [da instituição] deixa patente sua plasticidade e sua enorme capacidade de mudança e de adaptação às transformações econômicas, sociais e culturais mais amplas1212. Carvalho IMM, Almeida PH. Família e proteção social. São Paulo em Perspectiva. 2003;17(2): p. 112.. Efetivamente, a família, não importa a configuração que assuma, continuará a existir, pois é o que pode assegurar à criança, aos novos sujeitos que se apresentam ao mundo, o direito ao amor, ao acolhimento no mundo humano e à palavra1313. Amazonas MCLA, Braga MGR. Reflexões acerca das novas formas de parentalidade e suas possíveis vicissitudes culturais e subjetivas. Ágora: Estudos em Teoria Psicanalítica. 2006;9(2):177-91. p. 179..

Compreendemos, portanto, que a chamada “crise da família” consiste mais em uma crise de determinados modelos de família, remetendo à dificuldade de convivência dos defensores dos modelos dominantes com modelos emergentes. E, quando pensamos na criação das condições para que a família promova o bem de seus membros, sem dúvida, não basta o modelo institucional. Não existe uma forma de organização familiar ideal que poderia garantir as condições necessárias para a constituição do sujeito1414. Teperman D. Família, parentalidade e época: articulações possíveis. In: Moreira LVC, Rabinovich EP, organizadores. Família e parentalidade: olhares da psicologia e da história. Curitiba: Juruá; 2011. p. 157-68. p. 157..

Na perspectiva de autores como Santos e Freitas, que trabalham com o ciclo de vida familiar, planejar família seria algo mais complexo, pois implicaria pensar todo o ciclo da família, ciclo esse que, segundo eles, foi dividido por Duval em oito estágios referentes aos caminhos percorridos pelos membros da família, como casamento, nascimento e educação dos filhos, saída dos filhos do lar, aposentadoria e morte1515. Santos JC, Freitas PM. Planejamento familiar na perspectiva do desenvolvimento. Ciênc Saúde Colet. 2011;16(3):1813-20 p. 1816.. Assim, o que deve ser planejado?, indagam os autores. Por essa ótica mais ampla, não basta apenas o foco em ter filhos, porque planejar a família não se reduz a planejar filhos.

Se o “planejamento familiar” está voltado exclusivamente para “planejar filhos”, não é de estranhar que as nossas famílias passem a ter dificuldade em acolher os idosos, afinal eles não fizeram parte do planejamento. É como se eles constituíssem uma parte real da família, mas que não foi planejada. A rigor, constituir e planejar família é abrir-se para uma rede de relações bastante ampla, da qual a prole é apenas uma das possibilidades.

Assim, podemos concordar que o planejamento familiar é um método de prevenção e de intervenção na saúde da família, portanto deve considerar a unidade familiar e não apenas a mulher. A fase do ciclo de vida da família deve ser avaliada, bem como suas crenças, valores e tradições. O planejamento deve ser conduzido na forma de programa, passo a passo, com tarefas para tornar o processo ativo para os usuários 1616. Santos JC, Freitas PM. Planejamento familiar na perspectiva do desenvolvimento. Ciênc Saúde Colet. 2011;16(3):1813-20 p. 1818..

No contexto deste artigo, portanto, indicamos que “planejamento familiar” não é a melhor expressão para designar a complexidade dos temas aqui estudados, já que nas sociedades ocidentais a família, mesmo na condição de legitimadora social da sexualidade, pode, a rigor, estar dissociada de “casamento”, de “ter filhos”, de “gravidez” e de “ser pais”. E, assim, a temática expressa apenas o planejamento na sua forma negativa: “não ter filhos”, “não engravidar”, “não ser pais”. Certamente, quando o “planejamento familiar” é enfático em seu aspecto negativo, se aproxima muito do que se entende por “controle de natalidade”, com muitas questões éticas a serem avaliadas.

Planejar ter filhos

Podemos dizer que ter filhos é parte da dinâmica natural humana quando atende à necessidade de preservação e continuidade da espécie e dos elementos que compõem a realidade familiar nos diversos contextos sociais. Portanto, é inerente ao planejar filhos pensar o seu número e as condições para sua educação e cuidado adequados. Podemos dizer que muito do que se escreve, e mesmo se legisla sob o título de “Planejamento familiar”, refere-se ao planejamento em ter ou não filhos, ou seja, ainda é uma visão focada apenas na saúde da mulher e no controle do número de filhos1717. Santos JC, Freitas PM. Planejamento familiar na perspectiva do desenvolvimento. Ciênc Saúde Colet. 2011;16(3):1813-20 p. 1815..

Gerar filhos, “crescei e multiplicai”, permanece, consciente ou inconscientemente, na cultura ocidental como mandato divino. Certamente, a valorização da reprodução constitui um elemento cultural anterior à própria tradição bíblica e presente em várias outras sociedades, porquanto em muitos povos “casar e ter filho” significa uma honra, sendo uma vergonha morrer sem posteridade1818. Lévis-Strauss C. As estruturas elementares do parentesco. 7ª ed. Petrópolis: Vozes; 2012. p. 78..

No passado, se uma família não tivesse filhos, buscavam-se modos de resolver o problema. Na Roma antiga adotava-se, com a finalidade de controle patrimonial, ou buscavam-se “mães substitutas”, quando uma esposa estéril concedia a seu marido ter filho com outra mulher para depois criá-lo como se dela fosse 1919. McLaren A. Historia de los anti-conceptivos. Madrid: Minerva; 1993. p. 63., prática presente em muitos povos.

Se “ter filhos” é usualmente visto como desejável, não significa que as pessoas de hoje, ou de antigamente, concordassem que ter muitos filhos é desejável. A obra de Angus McLaren 1919. McLaren A. Historia de los anti-conceptivos. Madrid: Minerva; 1993. p. 63.retrata exatamente a história dos povos, desde a Antiguidade até os nossos dias, no esforço de poder controlar o número de filhos. Algo que só se conseguiu de modo mais eficaz, no segundo quartel do século XX, a partir do conhecimento mais preciso do processo reprodutivo humano, com os estudos de Knaus e Ogino em 1929 2020. Brasil. Ministério da Saúde. Assistência em planejamento familiar. 4ª ed. Brasília: Ministério da Saúde; 2002. p. 17-8..

Gregory Pincus descobriu, em 1951, que a progesterona inibia a ovulação e deu iniciou à pesquisa para produção de hormônios femininos sintéticos. John Rock foi o primeiro a experimentar, ainda na mesma década, as novas drogas em mulheres. Em 1960, o Food and Drug Administration (FDA) aprovou um anovulatório sintético, a chamada “pílula anticoncepcional”. Desse modo, a descoberta da pílula, aliada ao desenvolvimento de vários outros métodos contraceptivos, agora de eficácia comprovada, embora não absoluta, marcou possibilidade ímpar na história da família: planejar ter filhos. A adesão aos novos métodos fora imediata, como indica McLaren: Ao iniciar a década de 1980, cerca de 90% de casais na maioria dos países do Ocidente usavam anticoncepcionais. Uma pesquisa internacional com usuários revelou que 33% deles haviam sido esterilizados, 20% empregavam anticoncepcional oral, uns 15%, o DIU e uns 10%, preservativos2121. McLaren A. Historia de los anti-conceptivos. Madrid: Minerva; 1993. p. 292..

Por outro lado, planejar “ter filhos” também sofreu impacto das novas tecnologias reprodutivas. A reprodução humana assistida tem tido desenvolvimento rápido e progressivo, com propostas inovadoras crescentes desde o final da década de 1970. Assim, nas nossas sociedades, não só as possibilidades contraceptivas, mas também as novas tecnologias reprodutivas impactam o planejamento de “ter filhos ou não”, com alternativas múltiplas, associadas ao não aos outros aspectos do planejamento familiar aqui abordado.

Usualmente, ter filho implica constituir família, ainda que seja uma família monoparental. Porém, mesmo assim, há a possibilidade de alguém ter filho e encaminhá-lo para adoção ou gestar o filho para um terceiro, como no caso da gravidez sub-rogada. Normalmente, “ter filho” também implicaria ato sexual, gravidez e “ser pais”, mas essas realidades não estão mais necessariamente associadas, porquanto, no âmbito da reprodução assistida, por exemplo, “ter filhos” pode estar dissociado tanto do ato sexual quanto da gravidez.

A reflexão ética acerca de ter filhos considera a legítima autonomia das pessoas que o decidem, mas certamente não pode deixar de levantar a questão relativa ao interesse dos filhos a serem gerados. Isso remete a problemática estudada à questão seguinte: a parentalidade.

Planejar ser pai e mãe

Como vimos, “ter filho” significa, na maioria das vezes, ser mãe ou pai, mas também cada vez mais se compreende que esse não é um processo automático. Comentando a perspectiva de Lacan, Teperman afirma que o nascimento de um filho não determina automaticamente a constituição das funções parentais, estas requerem um processo delicado de reordenamento simbólico2222. Teperman D. Família, parentalidade e época: articulações possíveis. In: Moreira LVC, Rabinovich EP, organizadores. Família e parentalidade: olhares da psicologia e da história. Curitiba: Juruá; 2011. p. 159.. Por isso, propomos que “ser pai e ser mãe” – por reprodução natural, reprodução assistida ou adoção – significa colocar-se numa condição geradora e compartilhadora de alteridade. Fazem parte dessa condição: estabelecer relações definitivas e irrevogáveis com o (a) filho(a); ser o elemento fundante na construção da identidade do(a) filho(a); assumir cuidados e funções provedoras relacionados com a integridade e sobrevida do(a) filho(a); desempenhar papéis ligados à inserção social e cultural do(a) filho(a).

Tornar-se pai e mãe, assumir a parentalidade, é criar relações de amor irrevogáveis com os filhos, numa postura generosa e não competitiva com eles. É esperado que os progenitores/cuidadores facilitem o desenvolvimento dos seus descendentes ao nível físico, psicológico e social. Ao conjunto de tarefas necessárias para este efeito deu-se o nome de parentalidade2323. Barroso RG, Machado C. Definições, dimensões e determinantes da parentalidade. Psychologica. 2010;52(1):211-29. p. 211..

O significado da parentalidade ou sua forma de desempenhar papéis relacionados com a inserção social e cultural do(a) filho(a) depende certamente de fatores históricos e culturais, mas também sofre impacto do discurso e das práticas científicas 2424. Moreira MHC, Araújo JNG. Planejamento familiar: autonomia ou encargo feminino? Psicol Estud. 2004;9(3):389-98.. Porém alguns autores defendem que as dimensões e tarefas estruturais surgidas na relação pais-filhos tendem a permanecer semelhantes2525. Barroso RG, Machado C. Definições, dimensões e determinantes da parentalidade. Psychologica. 2010;52(1):211-29. p. 212.. Isso porque, embora o modo de assumir a parentalidade possa ser distinto culturalmente, estarão sempre em jogo as relações pais/mães-filhos/filhas.

Nos nossos dias, essa diversidade deve contemplar novas maneiras de viver a parentalidade, como a homoparentalidade, por exemplo. Isso significa que há novas estruturas parentais em curso. Ainda que aqui e ali encontremos reações, freios, desigualdades de ritmo, esse é um processo, provavelmente, irreversível. Podemos nos posicionar a favor ou de modo discriminatório. No entanto, das posições adotadas dependerá o futuro das nossas crianças2626. Amazonas MCLA, Braga MGR. Reflexões acerca das novas formas de parentalidade e suas possíveis vicissitudes culturais e subjetivas. Ágora: Estudos em Teoria Psicanalítica. 2006;9(2):177-91. p. 178..

Aqui surge um aspecto que consideramos central: a necessidade do “planejamento da parentalidade” implica dar ênfase ao bem da prole. E, assim, “planejar ter filhos” não é suficiente: é necessário planejar “ser pai/mãe”. É pensando no bem das crianças que poderemos encontrar as motivações para superar discriminações diante dos diversos modelos de parentalidade. É pensando nas crianças que Amazonas e Braga afirmam: É exatamente por isso que devemos incluí-las no “um de nós” (humanos), abolindo a discriminação quanto às “mínimas diferenças”, reconhecendo que elas existem, aceitando-as tais como são e dando-lhes os mesmos direitos2727. Amazonas MCLA, Braga MGR. Reflexões acerca das novas formas de parentalidade e suas possíveis vicissitudes culturais e subjetivas. Ágora: Estudos em Teoria Psicanalítica. 2006;9(2):177-91. p. 182..

Compreendemos, portanto, que “planejamento da parentalidade” expressa melhor a natureza complexa dos temas aqui trabalhados, pois planejar a parentalidade inclui “família”, com suas diversas configurações, inclui “ter filho” e inclui “planejar uma gravidez”, exceto nos casos de se assumir a parentalidade por adoção ou por reprodução assistida heteróloga. A importância de abraçar essa perspectiva está na ênfase dada ao bem dos filhos. Evidentemente que o planejamento da parentalidade também inclui a autonomia das pessoas, uma vez que ele nasce da opção pessoal de todos os envolvidos.

Nesse aspecto, é preciso observar que “planejar uma não parentalidade”, a legítima opção por não ter filhos, não apresenta os problemas éticos implicados no “não planejar a parentalidade”, que significa alguém ter filhos sem a clara decisão de querer ser pais, e sem se preparar para recebê-los.

Planejar a gravidez

O planejamento da gravidez torna o planejamento da maternidade efetivamente diferente do planejamento da paternidade. É o momento em que a mulher assume o papel central, pois a gravidez é, evidentemente, uma condição humana integral que só a mulher pode vivenciar com plenitude. E, como toda condição humana, ela é rica de possibilidades, desde estar numa posição privilegiada de gerar e compartilhar vida – quando essa é parte do projeto livre e pessoal da mulher, projeto que pode ser enriquecido se compartilhado harmonicamente com outros – até numa situação de tortura extrema, quando a gravidez foi imposta, sem consentimento e com violência.

Desse modo, planejar a gravidez é a parte mais concreta e sensível dos muitos elementos que compõem a agenda do planejamento familiar. No âmbito da saúde, a gravidez sempre despertou atenção especial, porquanto, embora usualmente transcorra como uma etapa saudável da vida da mulher, é, sem dúvida, um momento de maiores riscos e problemas. Já é antiga essa percepção de riscos presentes durante a gravidez, prova disso é que MacLaren cita a afirmação de Sorano, médico grego que trabalhava em Roma: Tanto a menstruação quanto a gravidez são úteis para a propagação da espécie humana, porém certamente não são saudáveis para a mãe2828. McLaren A. Historia de los anti-conceptivos. Madrid: Minerva; 1993. p. 64.. Por isso, torna-se indispensável que um projeto de parentalidade avalie também as questões dos riscos relacionados com a maternidade.

Quanto se trata de planejar, talvez possamos dizer que há gravidez explicitamente planejada e aquela em que o planejamento está implícito, ou seja, quando é fruto de relacionamentos saudáveis e estáveis, caracterizada pela alegria do seu anúncio. Mas as questões de planejamento se tornam dramáticas quando se considera o número de gravidezes não desejadas. É interessante notar que a “gravidez não desejada” abre uma gama de possibilidades e situações. Considerando a saúde psíquica da mulher, é relevante contemplar se essa gravidez não desejada é fruto de: a) relacionamentos consensuais e prazerosos; b) relacionamentos institucionalizados, mas não prazerosos; c) violência sexual.

Do ponto de vista da saúde física da mulher, certamente são outros os elementos que contam, quando a ausência de planejamento, usualmente acompanhada da ausência de cuidados materno-infantis, torna a gravidez um grande fator de mortalidade materna, compreendida, segundo Marston e Cleland, como a morte de uma mulher em gestação ou em até de 42 dias após o término da gravidez2929. Marston C, Cleland J. The effects of contraception on obstetric outcomes. [Internet]. Geneva: World Health Organization, Department of Reproductive Health and Research; 2004 [acesso 2 fev 2016]. p. 7. Disponível: http://apps.who.int/iris/bitstream/10665/42949/1/9241592257.pdf
http://apps.who.int/iris/bitstream/10665...
. Os riscos durante a gravidez precisam ser devidamente avaliados, pois muitos deles podem estar presentes mesmo quando a gestação é fruto de relacionamentos saudáveis. É tido como certo que a saúde materna e infantil é afetada adversamente quando as gravidezes são muito precoces, muito tardias, muito numerosas, e muito perto uma da outra2929. Marston C, Cleland J. The effects of contraception on obstetric outcomes. [Internet]. Geneva: World Health Organization, Department of Reproductive Health and Research; 2004 [acesso 2 fev 2016]. p. 7. Disponível: http://apps.who.int/iris/bitstream/10665/42949/1/9241592257.pdf
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No Brasil, autores como Citeli, citado por Moreira e Araújo, avaliam que (…) o fracasso das políticas públicas voltadas para a saúde reprodutiva, em geral, e para a anticoncepção em particular, (…) não pode ser obscurecido, pois as brasileiras ainda continuam lidando com a reprodução em um cenário caracterizado (…) pelo uso irregular e desprovido de assistência adequada de anticoncepcionais orais, pelo recurso exagerado à esterilização e ao aborto clandestino, pela baixa disponibilidade de métodos anticoncepcionais nos serviços públicos, ao lado das taxas de mortalidade materna3030. Moreira MHC, Araújo JNG. Planejamento familiar: autonomia ou encargo feminino? Psicol Estud. 2004;9(3):389-98. p. 397..

Os dados estatísticos são complexos, porém mostram que o índice de mortalidade materna varia conforme as regiões do mundo: maior na África que na América Latina, e muito menor na Europa, por exemplo. Desse modo, uma gravidez na África tem 35 vezes mais probabilidade de matar uma mulher do que se ocorresse na Europa. O fato de a mortalidade materna nos países ricos ser tão baixa indica que a maioria das mortes maternas nos países pobres pode ser evitada não apenas pelo aumento da riqueza, mas principalmente pela melhoria dos serviços de pré-natal, parto e pós-parto 2929. Marston C, Cleland J. The effects of contraception on obstetric outcomes. [Internet]. Geneva: World Health Organization, Department of Reproductive Health and Research; 2004 [acesso 2 fev 2016]. p. 7. Disponível: http://apps.who.int/iris/bitstream/10665/42949/1/9241592257.pdf
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Do ponto de vista da bioética, compreende-se que o planejamento da gravidez, embora possa estar dissociado de outros elementos que compõem a temática do planejamento da parentalidade, precisa ser valorizado, porque, se uma gravidez planejada pode não incorporar todos os elementos necessários para o acolhimento da criança, que dirá a gravidez não planejada, que apresenta maior potencial de risco para a vida da criança e da mãe. O adequado planejamento da gravidez pode levar os envolvidos a diversas posições que precisam ser respeitadas: buscar uma gravidez natural; utilizar tecnologias reprodutivas legitimamente constituídas; adiar a gravidez; não engravidar.

Planejar sexualidade e reprodução

A abordagem do tema do planejamento familiar também remete à sexualidade. A relação entre sexualidade e reprodução vem sendo muito discutida nos últimos tempos, e nesse debate concordamos que essa relação precisa ser situada e avaliada. Assim, propomos algumas indagações sobre esse assunto tão delicado: abordar a questão da reprodução humana à parte da sexualidade não significaria deixar de lado um dos principais pontos para a sua devida avaliação? Será que precisamos insistir no vínculo entre sexualidade e reprodução o tempo todo?

A força procriativa, aliás, é própria da sexualidade, e as famílias lidam atentamente com essa realidade no cotidiano. Mesmo a reprodução assistida – que permite a procriação sem o ato sexual – é um serviço de saúde que trata sobretudo os casos de impossibilidade de reprodução natural, por meio de relacionamentos sexuais. Desse modo, é necessário relacionar reprodução com sexualidade, ainda que nos nossos dias a sexualidade muitas vezes possa estar totalmente dissociada da reprodução, o que também implica planejamento. É verdade que a não reprodução encontra-se no horizonte das possibilidades reprodutivas dos indivíduos e dos casais. Entretanto, se o filho deve ser uma opção, sua ausência também deve ser3131. Vargas EP, Russo JA, Heilborn ML. Sexualidade e reprodução: usos e valores relativos ao desejo de filhos entre casais de camadas médias no Rio de Janeiro, Brasil. Cad Saúde Pública. 2010;26(1):153-62. p. 160..

Planejar é um exercício de racionalidade humana, de trazer muitos elementos para o palco da análise, avaliar cada um deles e decidir com base em determinados pressupostos. Diante isso, há uma pergunta intrigante a ser feita: pode o ser humano de fato “planejar” a própria reprodução? Essa pergunta é relevante, haja vista a vinculação da reprodução à sexualidade. Podemos planejar “plenamente” a sexualidade? Talvez aqui estejamos nos aproximando do aspecto mais complexo e mais frágil desse amplo edifício que é o “planejamento familiar”.

A sexualidade pode ser compreendida como a mais radical expressão e manifestação da identidade de alguém; dinamismo revelador da própria intimidade e simultaneamente busca do outro. Vivenciada numa conjugalidade saudável, é ao mesmo tempo posse do outro e entrega de si mesmo. Na literatura ocidental, a sexualidade é apresentada como Eros e Ágape, como busca da própria felicidade e da felicidade do parceiro.

O planejamento da sexualidade, por difícil que seja, pode e necessita ser proposto. Por isso podemos pensar numa ética da sexualidade ou em aspectos mínimos para uma sexualidade saudável no contexto do planejamento familiar: o consentimento do/a parceiro/a e as questões relacionadas com a parentalidade. Evidentemente que a sexualidade é doentia se existe imposição do ato sexual a um dos parceiros, e se torna irresponsável se desempenhada sem a devida atenção à sua força procriativa. Do ponto de vista ético, a liberdade sexual está fundamentada no princípio da autonomia, o que significa dizer, no direito de escolher livremente uma opção sem pressões paternalistas ou autoritárias e com o limite de que a opção escolhida não afete a terceiros3232. Cano MCA. Sexualidad y bioética. Revista Cubana Medicina General Integral. [Internet]. 2005 [acesso 11 fev 2016];21(1-2):[s.p.]. Disponível: http://scielo.sld.cu/pdf/mgi/v21n1-2/mgi151-205.pdf
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Os direitos reprodutivos referem-se, resumidamente, ao direito de decidir de maneira livre e responsável sobre o número, o espaçamento e a oportunidade de ter filhos, bem como ao direito de acesso à informação e aos meios para a tomada dessa decisão. Já os direitos sexuais dizem respeito ao direito de exercer a sexualidade e a reprodução livre de discriminação, coerção ou violência. Certamente, cabe às pessoas decidir sobre ter ou não filhos; no entanto, do ponto de vista ético, o direito de ter filhos também passa pela reflexão sobre a busca do melhor interesse da criança, uma vez que o filho é um dos elementos constitutivos do projeto de parentalidade.

O desejável planejamento da parentalidade abrange vários aspectos, mas não podemos menosprezar a sexualidade, porquanto sua força envolve a globalidade da pessoa. Assim, essa temática requer uma atenção específica de quem atua na área de planejamento familiar, tendo em vista que a falta de uma educação sexual extensiva é responsável por inúmeras situações adversas nessa área. A educação sexual, no contexto do planejamento familiar, pode propiciar os meios adequados para aqueles que não querem ter filhos, mas desejam manter uma vida sexual ativa.

Planejar a população de uma região

É conhecida a frase do filósofo de que o ser humano é, por sua natureza, um animal político3333. Aristóteles. Política. 5ª ed. São Paulo: Martin Claret; 2008.. Diante disso, mesmo que argumentemos haver boas razões para a preservação da liberdade na esfera procriativa, assegurando aos pais ampla discrição para determinar como agir em prol do melhor interesse de seus filhos, devemos reconhecer que a maneira como se traz uma criança ao mundo é sempre um assunto de interesse social3434. Ryan MA. Ethics and economics of assisted reproduction. Washington: Georgetown University Press; 2001. p. 25.. Desse modo, cabe também aos governantes pensar políticas voltadas para o setor. Na esfera política, entretanto, é preciso atentar para a distinção entre políticas de planejamento familiar e políticas de controle de natalidade.

O Ministério da Saúde, em seu manual “Assistência em planejamento familiar”, publicado em 2002, define elementos importantes para a execução dessas políticas: A atuação dos profissionais de saúde, no que se refere ao Planejamento Familiar, deve estar pautada no Artigo 226, Parágrafo 7, da Constituição da República Federativa do Brasil, portanto, no princípio da paternidade responsável e no direito de livre escolha dos indivíduos e/ou casais3131. Vargas EP, Russo JA, Heilborn ML. Sexualidade e reprodução: usos e valores relativos ao desejo de filhos entre casais de camadas médias no Rio de Janeiro, Brasil. Cad Saúde Pública. 2010;26(1):153-62. p. 160.. O manual de fato leva em conta o direito de decisão dos indivíduos e/ou casais, ao apresentar igualmente os diversos “métodos de anticoncepção”, acrescentando que os serviços devem garantir o acesso aos meios para evitar ou propiciar a gravidez, o acompanhamento clínico ginecológico e ações educativas para que as escolhas sejam conscientes3535. Brasil. Ministério da Saúde, Secretaria de Políticas de Saúde, Área Técnica de Saúde da Mulher. Assistência em planejamento familiar: manual técnico. [Internet]. 4ª ed. Brasília: Ministério da Saúde; 2002 [acesso 10 mar 2011]. p. 7. (Série A. Normas e Manuais Técnicos, nº 40). Disponível: http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/0102assistencia1.pdf
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No entanto, essa proposta não pode ser desvirtuada por uma prática que enfatize a contracepção, permitindo o desenvolvimento de uma política controladora, na qual a mulher exerce um papel muito mais de objeto do que de sujeito da sua história sexual e reprodutiva3636. Moura ERF, Silva RM, Galvão MTG. Dinâmica do atendimento em planejamento familiar no Programa Saúde da Família no Brasil. Cad Saúde Pública. 2007;23(4):961-70. p. 962.. Quando isso ocorre, deixamos de falar da legítima ação do Estado na área do planejamento familiar e passamos à questionável posição do poder público de promover “controle de natalidade”. Podemos dizer que no Brasil as políticas públicas não têm o “controle de natalidade” como objetivo, e o que de fato ocorre é o “planejamento familiar” ineficiente, como afirmam pesquisadores da área: Nossos resultados confirmam que a atenção ao planejamento familiar no Brasil continua a ser marcada pela indisponibilidade de métodos anticoncepcionais nos serviços públicos de saúde, e pela capacitação desigual e insuficiente dos profissionais para atuarem nessa área3737. Osis MJD, Faúndes A, Makuch MY, Mello MBM, Sousa, MH, Araújo MJO. Atenção ao planejamento familiar no Brasil hoje: reflexões sobre os resultados de uma pesquisa. Cad Saúde Pública. 2006;22(11):2481-90, p. 2487..

Para outros autores, o foco do planejamento familiar passou a contemplar elementos da saúde da mulher, mas ainda há o foco principal no controle da natalidade22. Santos JC, Freitas PM. Planejamento familiar na perspectiva do desenvolvimento. Ciênc Saúde Colet. 2011;16(3):1813-20, p. 1814.. Como já dissemos, a ênfase no controle da natalidade pode desvirtuar todo o planejamento familiar. Julgamos que desvios como esse poderiam ser corrigidos se a problemática estivesse voltada para um planejamento da parentalidade que incentivasse a parentalidade responsável.

Considerações finais

Os temas aqui abordados são todos correlacionados, e a utilização de uma ou outra expressão representa uma ênfase para a qual chamamos a atenção.

Há grupos religiosos que apresentariam a temática no âmbito do matrimônio, o qual, como vimos, contempla boa parte das questões envolvidas no planejamento familiar. No entanto, muitos autores 3838. Lévi-Strauss, C. As estruturas elementares de parentesco. 7ª ed. Petrópolis: Vozes; 2012. p. 524.

39. Quintas F. A mulher e a família no final do século XX. Recife: Massangana; 2005. p. 33-6.
-4040. Malinowski B. Sexo e repressão na sociedade selvagem. Petrópolis: Vozes; 2013. p. 160. têm sustentado que a estrutura do casamento tradicional traz consigo vieses patriarcais, em que o exercício da sexualidade, dada sua institucionalização, nem sempre é de fato livre. Além disso, não há garantia de que os filhos gerados no matrimônio sejam efetivamente acolhidos.

Por outro lado, os organismos internacionais, bem como as políticas públicas para o setor no Brasil, têm proposto o tema do planejamento familiar como questão claramente voltada para os direitos reprodutivos, a liberdade de escolha reprodutiva, com ênfase nos métodos de anticoncepção e nos cuidados com a saúde da mulher, elementos que consideramos indispensáveis. No entanto, essa perspectiva quase se cala a respeito do “melhor interesse da criança”.

Destaca-se também a diferença entre controle de natalidade e planejamento da parentalidade: um pretende diminuir o número de nascimentos, valendo-se de meios que não são consensuais nem mesmo em uma sociedade secular; o outro pretende criar melhores condições para o nascimento dos filhos e, responsavelmente, evitar conceber filhos não planejados.

Compreendemos que a expressão “planejamento da parentalidade” pode trazer uma agenda aberta, própria de uma sociedade pluralista, mas com algumas ênfases que se tornaram necessárias nos nossos dias: filhos que nasçam desejados, pais preparados. Isso requer lidar com os conflitos inerentes a este duplo enfoque: o melhor interesse da mãe e da criança. Acreditamos na possibilidade desse enfoque duplo, por entender que usualmente a mãe quer o melhor para seu(sua) filho(a), e quando isso não ocorre é porque ela foi levada a uma situação de exploração e vulnerabilidade, na qual muitas vezes a própria gravidez lhe foi imposta por inúmeros tipos de violência.

Para concluir, julgamos que o planejamento da parentalidade responsável depende das seguintes condições: 1) a gravidez é planejada cuidadosamente; 2) consciência de que o nascimento de um filho implica instituir família; 3) avaliação adequada das questões de riscos relacionados com a maternidade; 4) a decisão de ter filhos é compartilhada, se há parceiros no projeto; 5) avaliação das condições econômicas para cuidar dos filhos; 6) o cuidado dos filhos é preocupação prévia; 7) a criança é concebida sem violência; 8) o anúncio de uma gravidez se dá em clima de alegria. Todos esses fatores exigem o exercício responsável da sexualidade, uma vez que a ênfase do questionamento ético na nossa sociedade não está voltada para os que não desejam ter filhos, mas para os que geram filhos sem se preparar para serem pais.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jan-Apr 2016

Histórico

  • Recebido
    27 Ago 2015
  • Revisado
    29 Dez 2015
  • Aceito
    19 Jan 2016
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