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Percepção da “morte digna” por estudantes e médicos

Resumo

A morte é a cessação definitiva da vida no corpo. Os avanços técnico-científicos da medicina conseguiram prolongá-la. O objetivo do presente estudo foi conhecer a percepção de estudantes e profissionais da medicina acerca da “morte digna”. Levantaram-se as diferenças entre os grupos e seus correlatos, valendo-se de variáveis demográficas. Participaram 398 respondentes, distribuídos equitativamente entre estudantes e médicos da cidade de Porto Velho, dos quais 57,8% eram do gênero masculino, com média etária de 34,5 anos. Os participantes responderam à chamada “escala de percepção de morte digna” (EPMD) e questões demográficas. Os resultados indicaram que os médicos preferiram morrer no hospital (74%) e os estudantes, em casa (74%); esses últimos tiveram maior média na EPMD (M = 5,6; DP = 0,6). Apesar das limitações, este estudo favorece a reflexão sobre práticas futuras, inerentes à concepção de morte digna por integrantes da saúde, auxiliando a relação médico-paciente.

Morte-Valor da vida; Percepção; Medicina; Médicos; Estudantes

Abstract

Death is the definitive end of life in the body. The technological advances of medicine have made it possible to prolong the process of dying. This study aimed to discover the perception of medical students and medical professionals about a good death, and analyzed the differences between the groups and their correlates based on demographic variables. A total of 398 people, equally divided among medical students and doctors, participated in the study. Most of the participants were male (57.8%), with a mean age of 34.5. They responded to the GDPS (Good Death Perception Scale) and demographic questions. Results indicated that doctors preferred to die in a hospital (74%) and students at home (74%). The latter obtained a higher mean GDPS score (M = 5.6, SD = 0.6). Despite its limitations, this study allows the consideration of future practices inherent to the conception of a good death by health professionals, improving the doctor-patient relationship.

Death-Value of life; Perception; Medicine; Doctors; Students

Resumen

La muerte es la cesación definitiva de la vida en el cuerpo. Los avances técnico-científicos de la medicina lograron posponerla. El objetivo del presente estudio fue conocer la percepción de estudiantes y profesionales de la medicina con respecto a la muerte digna. Se registraron las diferencias entre los grupos y sus correlatos con variables demográficas. Participaron 398 personas divididas equitativamente entre estudiantes y médicos de la ciudad de Porto Velho (RO). Del total, 57,8% eran de género masculino, con a edad promedio de 34,5 años. Estos respondieron la EPMD (Escala de Percepción de Muerte Digna) y preguntas demográficas. Los resultados indicaron que los médicos prefieren morir en el hospital (74%) y los estudiantes en sus casas (74%); éstos presentaron una media mayor en la EPMD (M = 5,6; DP = 0,6). A pesar de las limitaciones, este estudio propone pensar prácticas futuras inherentes a la concepción de muerte digna de parte de los profesionales de la salud, colaborando en la relación médico-paciente.

Muerte-Valor de la vida; Percepción; Medicina; Médicos; Estudiantes

A morte é realidade cotidiana no trabalho diário de profissionais de saúde, especialmente quando se compara esse segmento à população geral 11. Kovács MJ. Morte e desenvolvimento humano. São Paulo: Casa do Psicólogo; 1992.. Por lidarem cotidianamente com processos relacionados a saúde, doença e morte, esses profissionais estão mais propensos a agravos psíquicos e somáticos 22. Nascimento AMD, Roazzi A. A estrutura da representação social da morte na interface com as religiosidades em equipes multiprofissionais de saúde. Psicol Reflex Crit. [Internet]. 2007 [acesso 28 maio 2015];20(3): 435-43. Disponível: http://www.scielo.br/pdf/prc/v20n3/a11v20n3.pdf
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, e a rotina ocupacional, a qualidade do ambiente de trabalho, bem como a proximidade com a dor e a morte, são fatores que explicam alguns problemas de saúde dessa população. No entanto, a forma de classificar e reportar-se à morte sofreu modificações no transcurso do tempo, do mesmo modo que o perfil dos trabalhadores da saúde, sobretudo os médicos 33. Kovács MJ. Educação para a morte. O homem diante da morte: ensaios de compreensão do trabalho de Philippe Ariès. São Paulo: Casa do Psicólogo; 2008..

Historicamente, nos séculos V e VI, a morte permeava o cotidiano, sendo percebida de maneira prosaica, sem dramaticidade ou temor 44. Aquino TAA, Alves ACD, Aguiar AA, Refosco RF. Sentido da vida e conceito de morte em estudantes universitários: um estudo correlacional. Interação Psicol. [Internet]. 2010 [acesso 28 maio 2015];14(2):233-43. Disponível: http://bit.ly/1QRXdD6
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. Na época medieval, era um fenômeno doméstico e romantizado 55. Ariès P. História da morte no Ocidente. Rio de Janeiro: Francisco Alves; 1977., que se restringia ao círculo de familiares, amigos e vizinhos, além da presença do sacerdote. Nesse contexto, o médico não costumava ser chamado nem mesmo para confirmar a morte, visto que esse ato era considerado uma incivilidade.

Foi nesse período que a literatura médica deu início à investigação sobre o tema, o qual passou a ter referências biológicas 33. Kovács MJ. Educação para a morte. O homem diante da morte: ensaios de compreensão do trabalho de Philippe Ariès. São Paulo: Casa do Psicólogo; 2008., muito embora a resignação e a noção de fatalidade insofismável da morte fizessem que a sensação de medo a ela ligada fosse praticamente ausente. Essa perspectiva, que perdurou até o século XVIII 66. Aquino TAA, Serafim TDB, Daniel H, Silva M, Barbosa EL, Araújo E et al. Visões de morte, ansiedade e sentido da vida: um estudo correlacional. Psicol Argum. [Internet]. out-dez 2010 [acesso 28 maio 2015];28(63):289-302. Disponível: http://www2.pucpr.br/reol/index.php/PA?dd1=3919&dd99=pdf
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, daria lugar, no século seguinte, a uma percepção da morte como evento que desperta temor 44. Aquino TAA, Alves ACD, Aguiar AA, Refosco RF. Sentido da vida e conceito de morte em estudantes universitários: um estudo correlacional. Interação Psicol. [Internet]. 2010 [acesso 28 maio 2015];14(2):233-43. Disponível: http://bit.ly/1QRXdD6
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No começo do século XX, a evolução da medicina e do sanitarismo promoveu a redução da taxa de mortalidade e o prolongamento da expectativa do tempo de vida. Nesse contexto, a morte vivenciada em casa e na presença da família foi paulatinamente deixando de ser aceitável 77. Luper S. A filosofia da morte. São Paulo: Madras; 2010.. A própria medicina, com suas medidas de prevenção e controle social da doença, exerceu papel crucial nesse fenômeno, ao afastar a morte do âmbito doméstico e assim ocultá-lo com a finalidade de proteger a rotina hospitalar da crise que representava a iminência do falecimento 88. Ariès P. O homem perante a morte. Lisboa: Europa-América; 2000.,99. Menezes RA. Reflexões em torno da morte e o morrer. In: Santos FS, Incontri D, organizadores. A arte de morrer: visões plurais. 2ª ed. São Paulo: Comenius; 2009. p. 229-36..

Neste início de século, observa-se a crescente tendência de simplificação dos rituais relacionados à morte, como funerais mais discretos e rápidos, notório aumento do número de cremações e período menor de superação do luto. Na assistência hospitalar, a perspectiva contemporânea da morte demandou conhecimentos mais técnicos sobre o fenômeno, especialmente para os profissionais da saúde, que passaram a conviver com a ideia da “boa morte”, ou morte digna. Essa proposta ganha a cada dia mais espaço na área da saúde, estimulando os hospitais a adquirir meios que possibilitem mais conforto e cuidados a seus pacientes terminais 33. Kovács MJ. Educação para a morte. O homem diante da morte: ensaios de compreensão do trabalho de Philippe Ariès. São Paulo: Casa do Psicólogo; 2008.. É nesse cenário que o presente estudo se fundamenta, para conhecer a percepção de estudantes e profissionais de medicina acerca da morte digna. Especificamente, pretende-se verificar em que medida variáveis demográficas estão correlacionadas com essa percepção.

A morte digna

O avanço tecnológico da medicina, além de trazer benefícios à saúde das pessoas, facilitou o controle do processo de morte, com a manutenção do funcionamento de órgãos de forma artificial, mesmo nos casos sem perspectiva de cura. O lugar da morte foi deslocado; ou seja, se antes ocorria quase sempre em casa, junto a familiares e amigos, hoje praticamente está circunscrita ao ambiente hospitalar, em que o paciente não raro se encontra sozinho 1010. Medeiros MM. Concepções historiográficas sobre a morte e o morrer: comparações entre a ars moriendi medieval e o mundo contemporâneo. Outros Tempos (Dossiê Religião e Religiosidade). [Internet]. 2008 [acesso 11 jun 2015];6(5):152-72. Disponível: http://www.outrostempos.uema.br/OJS/index.php/outros_tempos_uema/article/view/211/150
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,1111. Howell DA, Roman E, Cox H, Smith AG, Patmore R, Garry AC et al. Destined to die in hospital? Systemic review and meta-analysis of place of death in haematological malignancy. BMC Palliat Care. [Internet]. 2010 [acesso 11 jun 2015];9(9):1-8. DOI: 10.1186/1472-684X-9-9.

Em consequência desse deslocamento, os cuidados paliativos e a humanização dos processos interventivos hospitalares ganham cada vez mais relevância. Os cuidados paliativos consistem no gerenciamento dos sintomas e no suporte psicossocial do paciente, a fim de potencializar a qualidade do atendimento e diminuir a frequência do uso de serviços médicos. Contudo, esse tipo de tratamento costuma ser empregado tardiamente, no curso avançado da doença, sobretudo em pacientes já internados em unidades hospitalares. Por essa razão, tais cuidados revelam-se muitas vezes ineficazes para elevar a qualidade dos tratamentos prestados 1212. Temel JS, Greer JA, Muzikansky A, Gallagher ER, Admane S, Jackson VAJ, et al. Early palliative care for patients with metastasis non-small-cell lung cancer. N Engl J Med. [Internet]. 2010 [acesso 27 fev 2016];363(8):733-42. Disponível: http://www.nejm.org/doi/pdf/10.1056/NEJMoa1000678
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Os avanços científico e tecnológico na área médica também alcançaram o hospital, que, de instituição destinada a asilar e prestar assistência aos pobres às portas da morte, passou a lócus privilegiado desses avanços, contando com profissionais aptos a lidar com os aspectos biológicos da vida e a realizar procedimentos envolvendo as mais sofisticadas tecnologias. Contudo, apesar de tais progressos, esses profissionais ainda apresentam certa limitação no que diz respeito a sua relação com o paciente terminal 1313. Melo HP. O direito a morrer com dignidade. Lex Medicinae: Revista Portuguesa de Direito da Saúde. 2006;3(6):69-73..

A realização de intervenções terapêuticas autorizadas unicamente por familiares, sem conhecimento do paciente, implica a perda de sua dignidade, visto que o doente, impedido de fazer suas próprias escolhas, deixou de exercer sua autonomia 1414. Borges RCB. Eutanásia, ortotanásia e distanásia: breves considerações a partir do biodireito brasileiro. Migalhas. [Internet]. 4 abr 2005 [acesso 12 jun 2015]. Disponível: http://bit.ly/1RP09Aw
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. Cada indivíduo idealiza a forma como gostaria de morrer; mas, em alguns casos, como o de pessoas com doenças de prognóstico reservado ou em fase terminal, essa questão se torna central em razão da morte iminente. Em situações como essa, é importante que o doente participe do seu processo de morrer, expressando o que considera essencial para a sua qualidade de vida, porque, embora esteja em fase terminal e próximo da morte, ele permanece vivo 1515. Kovács MJ. Autonomia e o direito de morrer com dignidade. Bioética. [Internet]. 1998 [acesso 12 jun 2015];6(1):[s.p.]. Disponível: http://bit.ly/1pGSmM8
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Não é fácil aceitar a morte. Morrer não é apenas um evento de interesse médico ou científico, mas essencialmente um acontecimento de dimensão pessoal, cultural e religiosa. Nesse sentido, o médico precisa aprender a lidar com a situação, começando por pensar a respeito. De fato, um dos casos que mais afligem o profissional de saúde, haja vista seu despreparo para trabalhar a questão, é quando seu paciente lhe revela o desejo de morrer. A sensação de angústia pode acentuar-se caso o médico seja solicitado a apressar a morte do paciente, a fim de aliviar seu sofrimento, especialmente naquelas sociedades em que essa conduta é tida como criminosa e contrária à ética profissional. Nessas ocasiões, os médicos reagem de várias maneiras, entre elas considerar que o paciente está depressivo e não atender ao seu pedido 1616. Taboada PR. El derecho a morir con dignidad. Acta Bioeth. [Internet]. 2000 [acesso 12 jun 2015];6(1):89-101. Disponível: http://www.scielo.cl/pdf/abioeth/v6n1/art07.pdf
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Eutanásia, distanásia e ortotanásia

A eutanásia, também chamada de “boa morte”, ocorre quando o paciente, sabendo que sua doença é incurável ou que não tem mais condições de viver com dignidade, solicita ao médico e esse aceita que lhe abrevie a vida antecipadamente, para evitar o prolongamento de seu padecer físico e psicológico 1717. Cesarin AS. Breves considerações sobre eutanásia e ortotanásia e o respeito ao princípio da dignidade no momento da morte. Anuário da Produção Acadêmica Docente. 2008;12:30-47.. A prática consiste em tirar a vida de um ser humano por razões humanitárias, aliviando-o do sofrimento e da dor. As discussões sobre essa conduta costumam provocar intensas polêmicas, uma vez que envolvem direitos individuais e aspectos legais, reunindo num mesmo embate o paciente, seus familiares, a equipe de atendimento e até mesmo a instituição de saúde 1616. Taboada PR. El derecho a morir con dignidad. Acta Bioeth. [Internet]. 2000 [acesso 12 jun 2015];6(1):89-101. Disponível: http://www.scielo.cl/pdf/abioeth/v6n1/art07.pdf
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No ordenamento jurídico brasileiro, a eutanásia não é lícita como ato oriundo de terceiro, o qual põe, deliberadamente, fim à vida de alguém com a intenção de acabar com uma situação considerada insuportável. Não é consentida e, embora não seja absoluto, o direito à vida é um bem jurídico em regra indisponível para terceiros. Por conseguinte, mesmo quando solicitado pelo paciente, esse ato configura-se crime de homicídio, previsto no Código Penal 1818. Brasil. Lei nº 7.209, de 11 de julho de 1984. Altera dispositivos do Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940, Código Penal, e dá outras providências. Diário Oficial da União. Brasília, v. 348, nº 9, p. 10217, 13 de jul 1984. Seção 1. Parte geral, Título 1, Da aplicação da lei penal..

Cabe destacar que, no direito penal brasileiro, para que um ato se caracterize como crime é necessária a concorrência de três fatores: tipicidade, ilicitude e culpabilidade. Na eutanásia, o consentimento do paciente não retira a ilicitude da conduta médica, razão pela qual não a desqualifica como homicídio, já que essa anuência não é prevista em lei como causa de exclusão da tipicidade da conduta. É culpável o médico que poderia ter agido de outro modo, evitando a conduta ilícita 1919. Dodge REF. Eutanásia – aspectos jurídicos. Bioética. [Internet]. 1999 [acesso 24 jun 2015];7(2):[s.p.]. Disponível: http://revistabioetica.cfm.org.br/index.php/revista_bioetica/article/view/299/438
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A medicina evoluiu e, com isso, conseguiu prolongar artificialmente a vida humana. Contudo, é necessário contar com critérios e normas suficientemente claros e consensuais para orientar os médicos a lidar com essa situação 2020. Nunes R. Proposta sobre suspensão e abstenção de tratamento em doentes terminais. Rev. bioét. (Impr.) [Internet]. 2009 [acesso 24 jun 2015];17(1):29-39. Disponível: http://www.revistabioetica.cfm.org.br/index.php/revista_bioetica/article/viewFile/77/81
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. É fundamental que saibam distinguir entre a eutanásia stricto sensu e a suspensão de meios ditos extraordinários, fúteis e desproporcionais de tratamento. Tais situações trazem dilemas éticos, e, nas sociedades ocidentais, o uso desses recursos desproporcionais é considerado ato médico inadequado, ou distanásia. Quando o paciente capaz em fase terminal deseja suspender o tratamento, o médico deve respeitar sua vontade, desde que esteja em causa a suspensão de tratamento inútil e desproporcional 2121. Nunes R, Melo HP. Testamento vital. Coimbra: Almedina; 2011.. Materializa-se, assim, o princípio da autonomia individual, pilar da bioética contemporânea 2222. Morais IM. Autonomia pessoal e morte. Rev. bioét. (Impr.). 2010;18(2):289-309..

Distanásia significa “má morte”, ou seja, o prolongamento exagerado da vida de um paciente em estado crítico. Esse termo pode ser empregado como sinônimo de tratamento inútil e designa a atitude médica que, em nome de “salvar a vida” do paciente terminal, acaba por submetê-lo a sofrimento excessivo. Com esse procedimento não se prolonga a vida, mas o processo de morrer 2323. Dallari DA. Bioética e direitos humanos. In: Costa SIF, Oselka G, Garrafa V, coordenadores. Iniciação à bioética. Brasília: CFM; 1998. p. 231-41.. Na Europa, fala-se de “obstinação terapêutica”; nos Estados Unidos, de “futilidade médica” (medical futility). Popularmente, a questão pode ser apresentada nos seguintes termos: Até que ponto se deve prolongar o processo do morrer quando não há mais esperança de reverter o quadro? 2424. Diniz D, Costa S. Morrer com dignidade: um direito fundamental. Brasília: Letras Livres; 2004. (Série Anis, nº 34).

Surgida com a crescente medicalização da saúde e o uso exagerado das tecnologias médicas, a distanásia está sob constante debate bioético em razão do impacto que causa na qualidade de vida do paciente, bem como de seus familiares e cuidadores. Essa prática não considera o bem-estar ou preferências individuais 2424. Diniz D, Costa S. Morrer com dignidade: um direito fundamental. Brasília: Letras Livres; 2004. (Série Anis, nº 34).. Significa, fundamentalmente, morte lenta, acompanhada de ansiedade e muito sofrimento. Contudo, essa “obstinação terapêutica” ou “terapia agressiva” é rejeitada pela maioria dos especialistas em ética e bioética, por ser contrária à dignidade da pessoa 1616. Taboada PR. El derecho a morir con dignidad. Acta Bioeth. [Internet]. 2000 [acesso 12 jun 2015];6(1):89-101. Disponível: http://www.scielo.cl/pdf/abioeth/v6n1/art07.pdf
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A Constituição da República Federativa do Brasil, de 1988, assegura que a dignidade da pessoa humana é um dos fundamentos do Estado atual. Portanto, aí se inclui também o direito de morrer com dignidade, que deve ser garantido aos pacientes sem quaisquer chances de cura. Uma das maneiras de lhe conferir esse direito é por meio da ortotanásia, que significa “morte correta”, no seu tempo certo, não submetendo o paciente a tratamentos desumanos e degradantes, destinados somente a prolongar seu processo de morte 2525. Bomtempo TV. A ortotanásia e o direto de morrer com dignidade: uma análise constitucional. Revista Internacional de Direito e Cidadania. [Internet]. 2011 [acesso 24 jun 2015];9:169-82. Disponível: http://reid.org.br/arquivos/00000236-14-09-bomtempo.pdf
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Portanto, a ortotanásia tem o sentido de morte no seu devido tempo, sem extensão desproporcional do processo de morrer. Difere da eutanásia, pois é sensível ao processo de humanização da morte e alívio das dores, não incorrendo em prolongamentos abusivos mediante a aplicação de meios desproporcionais, que apenas impõem sofrimentos adicionais 2323. Dallari DA. Bioética e direitos humanos. In: Costa SIF, Oselka G, Garrafa V, coordenadores. Iniciação à bioética. Brasília: CFM; 1998. p. 231-41.. A propósito, um estudo investigou pacientes terminais, familiares e equipe médica sobre o que significa morte boa 2626. Hirai K, Miyashita M, Morita T, Sanjo M, Uchitomi Y. Good death in Japanese cancer care: a qualitative study. J Pain Symptom Manage. [Internet]. 2006 [acesso 24 jun 2015];31(2):140-7. DOI: 10.1016/j.jpainsymman.2005.06.012. Conclui-se que, para a maioria dos participantes, ela era entendida como a capacidade de ter 1) controle da dor e dos sintomas; 2) boa relação com a família e bem-estar ambiental; e 3) boa relação com a equipe médica. Outra pesquisa constatou que familiares de pacientes em fase terminal internados em UTI percebem que os cuidados no fim da vida incluem dignidade, apoio, respeito, paz e controle do paciente, e são elementos importantes para definir uma boa morte no contexto hospitalar 2727. Mularski RA, Heine CE, Osborne ML, Ganzini L. Curtis JR. Quality of dying in the ICU: ratings by family members. Chest. [Internet] 2005 [acesso 24 jun 2015];128(1):280-7. DOI: 10.1378/chest.128.1.280. Já um estudo realizado com enfermeiros de UTI verificou que esses profissionais consideram importante a presença do familiar na fase final do processo de morrer, bem como a disponibilização de apoio espiritual, quando possível, respeitando-se, assim, as necessidades do paciente 2828. Santana JCB, Dutra BS, Baldansi L, Freitas RHF, Martins TCOD, Moura IC. Ortotanásia: significado do morrer com dignidade na percepção dos enfermeiros do curso de especialização em unidade de terapia intensiva. Revista Bioethikos. [Internet]. 2010 [acesso 24 jun 2015];4(3):324-31. Disponível: http://www.saocamilo-sp.br/pdf/bioethikos/78/Art09.pdf
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. E o que pensam a respeito estudantes de medicina e médicos no Brasil? Sua percepção poderia ser influenciada por suas características demográficas? Esses foram os aspectos motivadores do presente estudo, que procurou conhecer como essas pessoas se posicionam diante da questão da morte digna ou boa.

Método

Participantes

O estudo contou com 398 respondentes, divididos equitativamente em estudantes e profissionais de medicina. Do total, 57,8% foram do gênero masculino, com média etária de 34,5 anos (DP = 12,9; amplitude de 19 a 75 anos). Especificamente, os estudantes eram em sua maioria do gênero masculino (52,3%), com média etária de 25,47 anos (DP = 4,5); no caso dos médicos, 63% eram do gênero masculino, com média etária de 43,2 anos (DP = 12,3).

Instrumentos

Os participantes responderam ao instrumento denominado “escala de percepção de morte digna” (EPMD), composto por 24 itens distribuídos em 6 fatores: 1) manutenção da esperança e do prazer; 2) boa relação com a equipe profissional de saúde; 3) controle físico e cognitivo; 4) não ser um fardo para os demais; 5) boas relações com a família; 6) controle do futuro. Essa versão resultou de pesquisa com estudantes e profissionais de medicina pertencentes à população geral de Rondônia, que foi submetida tanto a análises exploratórias como a análises confirmatórias, atestando sua adequação métrica, isto é, a validade fatorial e a consistência interna 2929. Wanssa MCD, Morais IM, Gouveia VV, Miyashita M, Nunes R. Briefed version of the good death inventory (GDI-B): evidences of its validity and reliability in Brazil [no prelo]; 2012.. Os participantes precisavam indicar em que medida o teor expresso em cada item era necessário ou desnecessário para garantir uma morte digna, mediante escolha de um número na escala de resposta de 7 pontos, que variava de 1 (totalmente desnecessário) a 7 (totalmente necessário) (anexo Anexo Versão reduzida da escala de percepção de morte digna (EPMD) ).

Outro instrumento utilizado foi o questionário demográfico, com perguntas de caráter sociodemográfico para caracterizar a amostra por gênero, idade, estado civil, se sofre de alguma doença, local de residência e onde gostaria de morrer, em casa ou no hospital.

Procedimento

Este estudo trata de uma pesquisa correlacional. Entre os estudantes de medicina, a coleta de dados foi realizada em contexto coletivo, em sala de aula ou em hospital da rede pública de Porto Velho, porém com participação individual. No primeiro caso, obtiveram-se as autorizações dos coordenadores dos cursos de medicina das instituições públicas e privadas. Especificamente, duas pesquisadoras se apresentaram, solicitando a colaboração voluntária dos presentes e indicando que não seria necessário identificar-se, dado o caráter anônimo e confidencial da pesquisa.

As mesmas pesquisadoras se apresentaram ao diretor clínico de um hospital infantil e ao chefe de serviço de clínica médica de um hospital geral, solicitando seu consentimento para a participação dos estudantes que ali faziam treinamento acadêmico. Também foi informado sobre a participação voluntária, esclarecendo que não seria necessária identificação dos participantes.

No que se refere à amostra de médicos, sua seleção foi feita com base na lista de médicos registrados no Conselho Regional de Medicina de Rondônia. De posse de seus respectivos endereços, procurou-se manter contato prévio para agendar o dia para o preenchimento do instrumento. Na oportunidade, os profissionais foram informados de que, embora não se oferecessem benefícios imediatos aos participantes, a pesquisa possibilitaria conhecer melhor as preferências de médicos e suas condutas profissionais cotidianas.

O estudo foi submetido ao Comitê de Ética em Pesquisa Envolvendo Seres Humanos das Faculdades Integradas Aparício Carvalho (Fimca), em Porto Velho. Nesse sentido, todos os procedimentos éticos cumpriram os padrões estabelecidos pela Resolução 466/2012 3030. Brasil. Ministério da Saúde, Conselho Nacional de Saúde. Normas e diretrizes para pesquisa envolvendo seres humanos. [Internet]. CNS; 2012 [acesso 8 mar 2016]. Disponível:http://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/cns/2013/res0466_12_12_2012.html
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do Conselho Nacional de Saúde, que trata das normas de pesquisa envolvendo seres humanos. Nesse sentido, os potenciais participantes da pesquisa foram devidamente esclarecidos sobre o caráter voluntário, anônimo e confidencial da pesquisa, e aqueles que aceitaram colaborar assinaram o termo de consentimento livre e esclarecido. Cada participante tinha a opção de entregar no ato o instrumento preenchido, ou fazê-lo posteriormente, agendando horário para a devolução. Em média, foram necessários 15 minutos para concluir a participação no estudo.

Análise dos dados

O programa PASW 18 foi empregado para tabulação e análise dos dados. Utilizaram-se estatísticas descritivas (distribuição de frequência, medidas de tendência central e dispersão), correlações e diferenças entre médias (teste t).

Resultados

Para facilitar a compreensão do leitor, decidiu-se estruturar a apresentação dos resultados em tópicos principais. Inicialmente é oferecida uma descrição geral do perfil dos participantes do estudo. Posteriormente, procura-se mostrar os correlatos da morte digna, diferenciando médicos e estudantes. Por fim, apresentam-se comparações de médias de profissionais e estudantes de medicina nos fatores da morte digna.

Caracterização dos participantes

Dos estudantes que participaram da pesquisa, 82% eram solteiros, 36,2% moravam com os pais e 86,4% disseram estar desempregados. A quase totalidade morava na zona urbana (99,5%). O estado de saúde foi considerado por eles como excelente ou bom (93,5%), e somente 1,5% assinalou possuir algum agravo à saúde. Quando questionados a respeito do local onde preferiam morrer, 74% afirmaram optar por falecer em casa.

Com relação aos médicos, 65,3% indicaram estar em uma união estável e 7,1% estavam divorciados ou viúvos. A maioria informou estar morando em zona urbana (97,5%), e 67% assinalaram morar apenas com cônjuge ou cônjuge e filhos. Boa parte deles declarou que seu estado de saúde era excelente ou bom (85,4%). Quanto à situação funcional, 92,5% relataram estar empregados. Ao serem solicitados a responder sobre o melhor local para morrer, 74,3% deles escolheram o hospital.

Correlatos

Procurou-se conhecer as correlações dos fatores da EPMD com o conjunto de variáveis demográficas consideradas. Para ter conhecimento da consistência dessas correlações, os cálculos foram efetuados tomando separadamente os dois grupos amostrais tidos em conta. A Tabela 1 resume os principais achados.

O fator 1 refere-se à manutenção da esperança e do prazer e destaca os aspectos positivos da vida, o sentido de esperança atribuído e a sensação de que vale a pena viver. O fator 2, denominado boa relação com a equipe profissional de saúde, expressa a preocupação com as relações interpessoais, especificamente com as pessoas que são os principais cuidadores no contexto da enfermidade. O fator 3, controle físico e cognitivo, mensura a importância de ser independente nas atividades (por exemplo, na alimentação e cuidados pessoais), o medo de demonstrar fraqueza e a capacidade de decisão. O fator 4, referente a não ser um fardo para os demais, retrata o temor de ser dependente de equipamentos e/ou de outras pessoas. O fator 5, correspondente a boas relações com a família, avalia a importância do apoio familiar, o conforto e desfrute do convívio com os parentes. Por fim, o fator 6, chamado controle do futuro, trata do conhecimento do tempo que resta de vida, de estar preparado para morrer e, principalmente, a disposição de despedida das pessoas queridas.

No que diz respeito aos médicos, pôde-se verificar que nenhuma variável correlacionou-se com o fator manutenção da esperança e do prazer. Todavia, o fator boa relação com a equipe profissional foi associado ao estado de saúde (r = 0,14; p < 0,05). O controle físico e cognitivo correlacionou-se com o local onde morrer (r = 0,15; p < 0,05). Não ser um fardo esteve correlacionado negativamente com o local onde morrer (r = -0,20; p < 0,001), possuir trabalho (r = 0,13; p < 0,05; 1 = Sim e 2 = Não). Verificou-se correlação entre o fator controle do futuro e possuir trabalho (r = 0,13; p < 0,05; 1 = Ativo e 2 = Desempregado).

Tratando-se dos estudantes de medicina, o estado de saúde (1 = Excelente a 5 = Péssimo) apresentou correlação com a manutenção da esperança e do prazer (r = 0,21; p < 0,001), a boa relação com a equipe profissional de saúde (r = 0,20; p < 0,001) e as boas relações com a família (r = -0,13; p < 0,03).

Diferenças entre médicos e estudantes

Foram realizados testes t independentes, para verificar se existiam diferenças entres estudantes e médicos nos fatores da EPMD e nas variáveis demográficas. Constataram-se diferenças estatisticamente significativas nos escores de cinco dos seis fatores de morte digna, e os estudantes invariavelmente apresentaram maiores escores que os médicos, respectivamente, como se indicam:

  • Manutenção da esperança e prazer: M = 6,5 e 6,1; t (395) = 5,48; p < 0,001

  • Boa relação com a equipe profissional da saúde: M = 6,1 e 5,5; t (394) = 6,49; p < 0,001

  • Controle físico e cognitivo: M = 5,4 e 4,9; t (395) = 4,76; p < 0,001

  • Boas relações com a família: M = 6,3 e 6,1; t (395) = 2,95; p < 0,05

  • Controle do futuro: M = 4,9 e 4,6; t (395) = 2,27; p < 0,05

O único fator que não apresentou diferença foi não ser um fardo para os demais: t (395) = 0,53; p > 0,05. Nessa direção, os estudantes apresentaram maior média na pontuação total da EPMD (M = 5,7; DP = 0,61) do que os médicos: M = 5,3; DP = 0,61; t (395) = 5,57; p < 0,001.

Discussão

A partir dos resultados, comprovou-se que a maioria dos médicos, cerca de 75%, prefere morrer no hospital, praticamente a mesma proporção de estudantes que optam por falecer em casa. O contato com a morte durante o exercício profissional talvez justifique essa diferença, uma vez que a morte pode ter-se naturalizado, isto é, ter passado a ser algo cotidiano, tratado tecnicamente, o que caracteriza o “calejamento” emocional dos profissionais.

A mudança do local de morrer, passando da residência ao hospital, aconteceu por diversos fatores históricos e sociais 1010. Medeiros MM. Concepções historiográficas sobre a morte e o morrer: comparações entre a ars moriendi medieval e o mundo contemporâneo. Outros Tempos (Dossiê Religião e Religiosidade). [Internet]. 2008 [acesso 11 jun 2015];6(5):152-72. Disponível: http://www.outrostempos.uema.br/OJS/index.php/outros_tempos_uema/article/view/211/150
http://www.outrostempos.uema.br/OJS/inde...
. Apesar de os estudantes da área de saúde possuírem formação teórica acerca da morte 44. Aquino TAA, Alves ACD, Aguiar AA, Refosco RF. Sentido da vida e conceito de morte em estudantes universitários: um estudo correlacional. Interação Psicol. [Internet]. 2010 [acesso 28 maio 2015];14(2):233-43. Disponível: http://bit.ly/1QRXdD6
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, a vivência diária desse fenômeno provavelmente é responsável por modificar sua percepção. No caso dos médicos, a opção majoritária por morrer em hospital deve-se ao fato de estarem cotidianamente inseridos nesse ambiente em que os saberes técnicos e científicos mostram sua utilidade e eficácia, e por vezes representa a única possibilidade de lidar com a morte. Além disso, a familiaridade com o ambiente e com outros profissionais que nele atuam pode reforçar a confiança. Confirmando as afirmações anteriores, os médicos apresentaram correlações negativas entre o local onde preferem morrer e os fatores controle físico e cognitivo e não ser um fardo para os demais, o que não ocorreu com os estudantes.

Ademais, os correlatos indicam a importância que os profissionais de medicina atribuem ao controle da morte, destacando sua preocupação em não ser um fardo para os outros. Esse último achado precisa ser ponderado, já que o médico, por conviver com o processo de adoecimento, vivencia situações em que o paciente pode gerar uma carga para a família, mesmo involuntariamente. Desse modo, tal experiência pode influenciar diretamente a preocupação desses profissionais em não ser um fardo para seus familiares. Essa percepção também pode se dar em virtude de o grupo de médicos apresentar maior média de idade que o grupo dos estudantes e, consequentemente, mais experiência de vida tanto no âmbito pessoal quanto profissional, fator que possivelmente interfere na maneira de lidar com a questão.

É preciso assinalar, ainda, que alguns outros fatores psicossociais podem influenciar a preferência por falecer em casa. Por exemplo, a presença ou ausência de dificuldades financeiras, o apego ao ambiente familiar e o possível medo do ambiente hospitalar favorecem essa escolha 3131. Baider L, Surbone A. Patients’ choices of the place of their death: a complex, culturally and socially charged issue. Onkologie. [Internet]. 2007 [acesso 24 jun 2015];30(3):94-5. DOI: 10.1159/000099371. É possível que os valores humanos também se apresentem como fator explicativo. Pessoas que priorizam valores sociais optam por morrer perto dos amigos e familiares; são indivíduos voltados para a interação, a convivência com os outros e a observância das normas sociais. Em contraste, aquelas que priorizam valores pessoais, isto é, as que são mais voltadas para si, para suas realizações, desejos e metas individuais, escolhem o hospital como melhor lugar para morrer 3232. Morais IM. A escolha do lugar onde morrer por estudantes e médicos: valores humanos e percepção de morte digna [tese]. [Internet]. Porto: Faculdade de Medicina, Universidade do Porto; 2012 [acesso 5 mar 2016]. Disponível: http://bit.ly/1Ut6jIY
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.

Por fim, ressalte-se que a literatura acerca da percepção da morte considera, sobretudo, os pacientes 1414. Borges RCB. Eutanásia, ortotanásia e distanásia: breves considerações a partir do biodireito brasileiro. Migalhas. [Internet]. 4 abr 2005 [acesso 12 jun 2015]. Disponível: http://bit.ly/1RP09Aw
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, sendo escassos os trabalhos com enfoque nos profissionais de saúde. Este estudo procurou preencher tal lacuna, contribuindo para lançar alguma luz sobre a percepção da morte por parte de formandos e profissionais de medicina. A esse respeito, os resultados previamente apresentados possibilitam pensar novos estudos, focados, por exemplo, nas diferenças entre os gêneros acerca da percepção da morte digna, avaliando o impacto do tempo de formação e sua possível relação com indicações médicas feitas aos pacientes e com a aceitação dos profissionais das escolhas dos pacientes quando não coincidem com as que os médicos fariam.

Considerações finais

O objetivo do presente estudo foi conhecer os correlatos demográficos da percepção da morte digna, considerando profissionais e estudantes de medicina. Diante dos resultados, confia-se que esse objetivo tenha sido alcançado. No entanto, como em todo empreendimento científico, o estudo não está isento de limitações, tais como: 1) a amostra foi não probabilística (por conveniência); 2) houve homogeneidade da amostra no que se refere ao alcance geográfico da pesquisa, pois não se contou com participantes de todas as regiões geopolíticas do Brasil; 3) foram empregadas unicamente medidas de autorrelato (lápis e papel), de modo que as respostas dos participantes podem estar enviesadas pela desejabilidade social; 4) não levou em consideração a diferença entre instituições privadas e públicas. É preciso ressaltar, contudo, que esses fatores não comprometem os achados da pesquisa, e que seus resultados têm ao menos um valor heurístico, possibilitando conhecer a forma como pessoas comprometidas em promover a saúde “reagem” diante da morte, e principalmente como concebem a morte digna.

Cabe investigar em que medida a escolha do local onde se deseja morrer pode ser explicado por tendências individualistas e coletivistas, sobretudo quando consideradas suas dimensões horizontal e vertical. Quiçá “não ser um fardo para os demais” seja um pensamento típico de individualistas verticais, focados no êxito, no sucesso na vida, enquanto que a escolha do lar, junto com a família, represente uma escolha mais típica para coletivistas horizontais, que priorizam as relações familiares. Essas são, seguramente, questões que precisarão ser contempladas na prática profissional e na formação desses profissionais de saúde, uma vez que poderão auxiliar o processo relacional estabelecido entre o médico e o paciente e seus familiares, principalmente por fazê-los reconhecer que o outro pode não ter a mesma compreensão da morte que eles, tão acostumados a enfrentar esse dilema do final da vida.

Tabela 1
Correlação dos fatores da EPMD com variáveis demográficas

Anexo Versão reduzida da escala de percepção de morte digna (EPMD)

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  • Aprovação CEP Fimca CAAE 0014.0.382.000-10

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jan-Apr 2016

Histórico

  • Recebido
    13 Fev 2015
  • Revisado
    19 Fev 2016
  • Aceito
    2 Mar 2016
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