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A perspectiva da ética das virtudes para o processo de tomada de decisão médica

Resumo

A bioética é vista por muitos médicos como disciplina que deve substanciar decisões e condutas em situações dilemáticas, indicando regras de ação racionais e universais. Nesse cenário, a perspectiva da ética das virtudes propõe substituição da pergunta de “como agir” para “como se constituir”; e, formando o próprio caráter, permitir que a pessoa seja capaz de tomar as decisões da vida, inclusive profissionais, de forma sábia e prudente. Neste ensaio, apresentar-se-á a perspectiva da ética aristotélica, seus autores contemporâneos e as respostas às principais críticas, explicitando vantagens que esse referencial oferece à deliberação médica – suas características valorativa, particularista e teleológica. Mais do que proclamar um paciente autônomo e um profissional que busca regras externamente estabelecidas, a ética das virtudes reconhece que paciente e profissional estão inseridos em comunidades, tradições e culturas, respeitando valores e virtudes, em busca do fim determinado de suas práticas e vidas.

Bioética; Teoria ética; Virtudes; Ética baseada em princípios

Abstract

Many doctors understand bioethics as the discipline that should substantiate decisions and conduct in dilemmatic cases, indicating rational and universal rules of action. In this scenario, the perspective of Virtue Ethics proposes the modification of the question “what to do” to “how to be” and, how to constitute one’s own character in order to take wise and prudent decisions in life, including professional ones. This theoretical essay will present the Aristotelian Ethics perspective, its contemporary authors, the answers to the main criticisms and will underline the advantages this framework offers to medical decision-making processes - its evaluative, particularistic and teleological characteristics. It will lead to a conclusion that more than proclaiming an autonomous patient and a profefssional who seeks externally established rules, Virtue Ethics recognizes that both patient and professional are integrated in communities, traditions and cultures, respecting values and virtues, in the pursuit of a particular purpose for their practices and lives.

Bioethics; Ethical theory; Virtues; Principle-Based ethics

Resumen

La bioética es vista por muchos médicos como la disciplina que debe justificar las decisiones y conductas en casos dilemáticos indicando reglas de acción racionales y universales. En este escenario, la perspectiva de la Ética de las Virtudes propone la modificación de la cuestión de “qué hacer” al “cómo ser” – cómo construir su propio carácter con el objetivo de tomar decisiones sabias y prudentes, incluyendo las profesionales. En este ensayo teórico, se presentará la perspectiva ética aristotélica, algunos autores contemporáneos, las respuestas a las principales críticas, destacando las ventajas que ofrece este marco para las decisiones médicas – sus características evaluativa, particularista y teleológica. Más que proclamar un paciente autónomo y un profesional que busca reglas establecidas externamente, se concluye que la Ética de las Virtudes reconoce que ambos se insertan en comunidades, tradiciones y culturas, con valores y virtudes, en busca de los fines particulares de sus prácticas y vidas.

Bioética; Teoría ética; Virtudes; Ética basada en principios

O estudo formal da bioética como ética aplicada à vida, e especificamente à medicina, iniciou na década de 1970, pautado, sobretudo, pela teoria do principialismo 11. Goldim JR. Bioética complexa: uma abordagem abrangente para o processo de tomada de decisão. Rev Amrigs. 2009;53(1):58-63.. Desde então, acostumados a tal linguagem, poucos profissionais reconhecem a existência de outros referenciais teóricos para essa área de estudo.

Segundo a teoria do principialismo de Childress e Beauchamp 22. Beauchamp TL, Childress JF. Princípios de ética biomédica. São Paulo: Loyola; 2002., decisões práticas cotidianas ou discussões de casos dilemáticos e relações profissionais devem basear-se na observação e no respeito a quatro princípios prima facie (não absolutos): beneficência, não maleficência, autonomia e justiça. Apesar de não haver hierarquia entre eles, e porque a não maleficência (primum non nocere) é intuitiva aos profissionais, tendo se originado do juramento de Hipócrates, a teoria se concentra especialmente nos princípios de respeito pela autonomia e de beneficência, esta última como conceito de fazer o bem ao outro, tanto nas relações como, especialmente, nas condutas profissionais.

Mas o que seriam, exatamente, princípios? Poderíamos tentar defini-los como regras e deveres, normas universais para a orientação das condutas dos seres humanos. Para van Hooft 33. Van Hooft S. Ética da virtude. Petrópolis: Vozes; 2006. (Série Pensamento Moderno), seriam generalizações formuladas por indução de decisões morais passadas de indivíduos exemplares. É importante destacar, então, que princípios vêm de fora, ou seja, são exógenos. A beneficência, como princípio, seria a obrigação moral do médico e dos demais profissionais da saúde de fazer o bem, ou, ainda, de realizar o que é melhor para o paciente. Mas outra possibilidade é “fazer o bem do paciente” não por princípio, mas com a virtude da benevolência. Pensando nas virtudes como internas ao tomador de decisões, a benevolência (referindo-se a característica constitutiva do agente, mais do que a ação ou comportamento) seria, nesse contexto, a disposição que um indivíduo, o profissional de saúde, tem para agir para o bem, para fazer bem ao outro, ao paciente.

Virtude vem do latim virtus, mas é do termo grego areté que emerge o significado de excelência – cumprimento do propósito ou da função a que o indivíduo se destina –, realização da própria essência, referindo-se, finalmente, às capacidades e habilidades que tornam bom o seu possuidor 44. Aquino T. Suma teológica IV. São Paulo: Loyola; 2001.. Segundo Rachels , virtude é um traço característico, manifestado numa ação habitual, que é bom para a pessoa possuir 55. Rachels J. Os elementos da filosofia da moral. 4ª ed. Barueri: Manole; 2006. p. 178.. Na verdade, os conceitos de virtude e princípio não são afastados entre si, estando ambos vinculados a valores que formulamos nos contextos social e cultural. Porque são exatamente essas valorações que nos fazem definir nossas ações e condutas, nossa vida moral, em consonância com regras aceitas na comunidade ou a partir da disposição para agir e constituir-se virtuosamente.

Considerando essa breve apresentação, o objetivo deste trabalho é, antes de diferenciar princípios e virtudes, destacar a possibilidade de outra abordagem da ética, da bioética, que também tem em suas bases noções de bem-fazer e de alteridade, não como obrigação, regra ou dever, mas como habilidade e constituição de caráter particular que é perseguida voluntariamente por um indivíduo para vida pessoal e também para fins práticos em suas atividades profissionais.

Éticas do dever

Ao entendermos a ética como área do conhecimento que lida com condutas, ações e relações entre indivíduos, a bioética, especificamente, para a medicina, pode ser a disciplina que visa substanciar a resposta à pergunta “o que eu devo fazer?” em dada situação 66. Reich WT. Encyclopedia of bioethics. 2ª ed. Nova York: MacMillan; 1995.. Essa é a abordagem da teoria da ética do dever, também chamada “ética deontológica”, como aquela que visa estabelecer regras de ação.

O filósofo Immanuel Kant 77. Kant I. Fundamentação da metafísica dos costumes. São Paulo: Abril Cultural; 1973. (Coleção Os Pensadores). estabeleceu que regras universais deveriam ser seguidas por indivíduos de forma independente de seus desejos ou intenções, e orientar-se ao interesse geral. Para ele, existia um único princípio moral no qual todos os deveres morais se baseavam: o imperativo categórico, cuja máxima é de que as ações dos indivíduos devem ser tomadas considerando que possam tornar-se leis universais, aplicáveis a todos.

É a partir da ética kantiana, mais especificamente de uma proposta deontológica, que se fundamenta a bioética principialista 22. Beauchamp TL, Childress JF. Princípios de ética biomédica. São Paulo: Loyola; 2002.. No entanto, princípios fixos e rígidos, que não admitem exceções ou considerações de casos particulares, limitam o alcance e a profundidade das condutas. Às vezes, inclusive, esses princípios ou regras são de aplicação complexa e revelam-se conflituosos entre si (no caso do principialismo). A outra grande crítica está no extremo racionalismo, que não considera a participação das emoções, necessidades e vontades no processo de tomada de decisões, mesmo que façam parte da natureza humana. Para Kant, a razão tem finalidade em si própria 77. Kant I. Fundamentação da metafísica dos costumes. São Paulo: Abril Cultural; 1973. (Coleção Os Pensadores)..

Outra abordagem de ética da modernidade é o utilitarismo, que visa consequências, não meios. Não é exatamente uma ética do dever, mas também estabelece regras que restringem interesses individuais em prol dos interesses de outros, gerais 88. Rodrigues F. Ética do bem e ética do dever. O que nos faz pensar. 2010;28:247-65.. Nessa teoria, a resposta à pergunta “o que devo fazer?” está na melhor consequência para o maior número de pessoas, o que é referido como maximização do prazer e da utilidade. Havendo indicações de boas consequências, estabelecem-se regras de ação, independentemente da motivação 55. Rachels J. Os elementos da filosofia da moral. 4ª ed. Barueri: Manole; 2006. p. 178.,99. Mill JS. Utilitarianism. 7ª ed. Londres: Longmans; 1879.. O procedimento de decisão prática, porém, de pesar prazeres e dores parece simplista e é criticado como algorítmico de cálculo frio, no qual não há sequer exata definição daquilo que seria o melhor. Assim como no referencial kantiano, as decisões morais para utilitaristas devem ser imparciais e universais.

O utilitarismo falha, portanto, em respeitar os direitos individuais; é a principal crítica na qual se baseou o próprio Kant quando iniciou seu corpo teórico sobre o valor intrínseco de um indivíduo, que deve ser sempre respeitado 55. Rachels J. Os elementos da filosofia da moral. 4ª ed. Barueri: Manole; 2006. p. 178.,88. Rodrigues F. Ética do bem e ética do dever. O que nos faz pensar. 2010;28:247-65.,99. Mill JS. Utilitarianism. 7ª ed. Londres: Longmans; 1879.. O utilitarismo também falha em não agregar valores e preferências, o que é descrito como concepção igualitária e neutra 99. Mill JS. Utilitarianism. 7ª ed. Londres: Longmans; 1879., apesar das adaptações de John Stuart Mill à teoria original de Bentham.

Aristóteles e a ética do bem

Regras que não admitem exceções, análise geral que não considera particularidades, decisões racionais que não passam por ponderação valorativa e ações em prol de indefinida maior felicidade mostram-se insuficientes para lidar com problemas contemporâneos, inclusive em saúde. Talvez, em consideração atemporal, esse conjunto de ações inflexíveis não seja mesmo a melhor maneira de nortear condutas e decisões. O debate moral da atualidade se caracteriza pela pluralidade de valores e princípios, que o tornam incomensurável. Não parece haver uma única corrente de pensamento que tenha status para tornar-se unanimemente aceita e, portanto, resposta exclusiva à pergunta de como agir em dada situação 1010. Maclntyre A. After virtue: a study in moral theory. 3ª ed. Notre Dame: University of Notre Dame; 2007..

Nesse caso, proposta plausível é o retorno à ética de Aristóteles 1111. Aristóteles. Ética a Nicômaco. São Paulo: Nova Cultural; 1996., com conversão da pergunta sobre como agir ou o que fazer em cada situação para a pergunta sobre como se constituir, como formar o próprio caráter e, associado a isso, ser capaz de tomar decisões da vida de forma sábia, prudente. Isso porque a ética aristotélica, ou ética do bem-viver, começa com a questão ampla e inclusiva de como o ser humano deve viver a vida moral (e a não moral), a chamada dietética do bem-viver. Assim, em contraposição às éticas do dever (de fazer o que se convencionou ser o certo), essa abordagem é chamada “ética do bem”, do agir para o bem 88. Rodrigues F. Ética do bem e ética do dever. O que nos faz pensar. 2010;28:247-65., que é a finalidade determinada da vida e das atividades humanas. Por isso, é uma ética teleológica.

Para Aristóteles, o fim último do ser humano, para o qual convergem todas as suas atividades, principalmente aquelas que se referem a sua função na comunidade, está no Bem, na busca da eudaimonia – do grego eu (bem/bom) e daimon (espírito). O termo tem sido traduzido como “felicidade” ou “florescimento”, mas não é relacionado a sentimentos temporais, e sim à noção da plena realização da vida. A eudaimonia traduz também atividades da alma de acordo com formas de excelência ou virtudes. Daí surge outra denominação do referencial ético aristotélico, “ética das virtudes”.

Virtudes são, então, características do agente moral que o levam a agir para o bem, perseguindo determinados fins – fins últimos do ser humano ou de suas práticas. Aristóteles divide virtudes em intelectuais e morais, e explica que sua aquisição, mediante esforço, se dá por instrução e pela sua prática, respectivamente. Finalmente, Aristóteles enfatiza esse esforço em adquirir virtudes ou praticar atos virtuosos, uma vez que a disposição de fazê-lo é manifestação da alma, assim como emoções e faculdades. Nesse caso, a vocação para virtudes morais leva a boas escolhas, aperfeiçoando a parte apetitiva (da vontade) da alma, que a inclina a perseguir determinados fins. E é a virtude moral da prudência (do grego phronesis) que, para ele, tem maior importância.

A prudência, porém, não é associada a neutralidade – distorção de sentido sofrida pela palavra ao longo dos anos 1212. De Aquino T. A prudência: virtude da decisão certa. São Paulo: Martins Fontes; 2005. –, mas propõe análise cuidadosa da circunstância visando ação com melhor resultado. Favorece o cálculo daquilo que há de melhor para o ser humano nas coisas passíveis de serem atingidas pela ação; daí o seu caráter iminentemente prático. Esse cálculo é, sobretudo, acertado, correto e sábio. Prudência é justamente sabedoria prática, percepção da vontade conforme o desejo correto, que culmina na boa escolha.

A escolha correta na medicina é abordada diretamente por Aristóteles em sua “Ética a Nicômaco” 1111. Aristóteles. Ética a Nicômaco. São Paulo: Nova Cultural; 1996.. O adequado depende das considerações de cada caso particular – não há generalizações. Deliberações se dão a respeito dos meios, mas se almejam os fins, que na medicina referem-se à saúde dos pacientes. E como a medicina não apresenta fins em si mesma, Aristóteles não a considera arte, contrariando o dito popular. O filósofo não faz comentários adicionais, mas podemos pensar que medicina é ciência e ética, já que é justamente a ética que lida com condutas em relações interpessoais e com o caráter do agente que toma decisões.

Ética neoaristotélica

Vários são os filósofos da contemporaneidade que resgatam elementos da ética aristotélica, principalmente sua característica teleológica e focada em agentes morais que se constituem virtuosos. Entre eles destacam-se Elizabeth Anscombe 1313. Anscombe GEM. Modern moral philosophy. Philos. 1958;33(124):1-16. – e seu marido Peter Geach –, Philippa Foot 1414. Foot P. Virtues and vices and other essays in moral philosophy. Berkeley: University of California; 1978., Rosalind Hursthouse 1515. Hursthouse R. Virtue ethics. In: Zalta EM, editor. Stanford Encyclopedia of Philosophy. 2012 [acesso 8 maio 2015]. Disponível: http://stanford.io/1Y6Hlkr
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e Alasdair MacIntyre 1010. Maclntyre A. After virtue: a study in moral theory. 3ª ed. Notre Dame: University of Notre Dame; 2007.. Foi Alasdair MacIntyre, filósofo escocês radicado nos Estados Unidos, que descreveu a já discutida incomensurabilidade conceitual de argumentos rivais e o relativismo ético que acompanham a pluralidade de condutas morais possíveis no nosso tempo 1010. Maclntyre A. After virtue: a study in moral theory. 3ª ed. Notre Dame: University of Notre Dame; 2007.. MacIntyre é, sobretudo, crítico do projeto iluminista moderno e do emotivismo, movimento que, segundo ele, transforma juízos valorativos e morais em expressões de preferências, sentimentos e vontades subjetivas, de indivíduos que se constituem à parte das relações sociais. Em oposição a esse individualismo liberal da nossa época, apropria-se da concepção epistemológica de paradigma de Thomas Kuhn 1616. Carvalho HBA. Tradição e racionalidade na filosofia de Alasdair MacIntyre. 2ª ed. Teresina: Edufpi; 2012..

A ciência, na visão historicista kuhniana, evolui quando correntes teóricas com diferentes explicações para um fenômeno aceitam uma delas como melhor, o paradigma. Mas em uma ética em que correntes diferentes expressam preferências individuais, jamais haverá paradigma único, diz MacIntyre, que aposta no retorno a Aristóteles e à dietética do bem-viver, na qual não há separação entre ser e dever. Esse seria o retorno à visão finalista ou teleológica do ser, em suas funções práticas.

MacIntyre defende formação de indivíduos morais implicados em questões práticas específicas de seu tempo e que se responsabilizam por seu próprio desenvolvimento, a partir da construção de narrativa própria e em relação a práticas que têm fins internos. Esse é um segundo ponto de destaque do seu trabalho, concepção narrativa do sujeito, com história própria, cultura e inserção em comunidades. O terceiro refere-se ao aspecto ontológico do ser humano como ser social, um ser que é, antes de tudo, racional, mas também inerentemente dependente e que assume sua independência, na maturidade, sem negar a natureza de suas necessidades recíprocas 1717. MacIntyre A. Dependent rational animals: why human beings need the virtues. Chicago: Open Court; 1999..

A ética das virtudes – vantagens em relação à medicina

A grande vantagem da utilização desse referencial teórico para deliberação médica é sua característica valorativa. Julgamentos de valor são considerações acerca do que é importante, em casos particulares, para decisões acertadas ou prudentes 1818. Dewey J. Teoria da vida moral. São Paulo: Abril Cultural; 1980.. Não parece que haverá regras aplicáveis a todos os casos como melhor e única opção correta, como supõe a ética deontológica. De outro modo, o que se busca em cada situação é determinado fim. Relembrando Aristóteles, o fim último da medicina é a saúde do paciente 1111. Aristóteles. Ética a Nicômaco. São Paulo: Nova Cultural; 1996..

Esse aspecto teleológico da ética das virtudes é, então, outra destacada vantagem que o referencial teórico apresenta ao processo de tomada de decisão médica. O que se busca é o bem do paciente, o bem do outro. Existe diferença, nesse aspecto, em relação à abordagem utilitarista, que se caracteriza por ser consequencialista. No utilitarismo, não se almeja o bem, mas a maximização do prazer e da utilidade 1919. Abba G. História crítica da filosofia moral. São Paulo: Instituto Brasileiro de Filosofia e Ciência Raimundo Lulio; 2011.. Quando se age em prol de maior felicidade para maior número de pessoas, o universal supera o caso particular, e o valor intrínseco do indivíduo ou paciente, com sua história e desejos, talvez mesmo sua dignidade, se perde. Assim, retornamos à questão valorativa.

Se um agente moral avalia uma situação, julgando o que é a melhor decisão, e dispõe-se a agir bem, conforme requerido em cada caso, então uma terceira vantagem da perspectiva da ética das virtudes é a da motivação do profissional 2020. Gardiner P. A virtue ethics approach to moral dilemmas in medicine. J Med Ethics. 2003;29(5):297-302.. Agir bem, para o bem, e constituir-se virtuosamente é disposição interna ao agente moral. Exige consciência da responsabilidade na própria constituição, e essa consciência é vantagem em relação às decisões que seguem regras ou princípios externamente estabelecidos, decisões que não são necessariamente do próprio agente. Um profissional bem formado, que se mantém atualizado em sua técnica, e de caráter bem constituído, virtuoso, tem ainda a vantagem de tomar decisões prudentes em cenários que não permitem muita deliberação, como decisões em tempo real sobre pacientes críticos.

A boa prática e a motivação que a precede também fazem parte da noção de profissionalismo que é importante resgatar 2121. Pellegrino ED. Professionalism, profession and the virtues of the good physician. Mt Sinai J Med. 2002;69(6):378-84.. Profissionalismo que se contrapõe, atualmente, ao chamado “consumerismo na medicina”, em que o respeito à autonomia do paciente passou a ser o valor mais importante da tomada de decisão, levando profissionais a perder independência em relação aos pacientes a quem, em última instância, prestam serviço 2222. Oakley J. A virtue ethics approach. In: Kuhse H, Singer P, organizadores. A companion to bioethics. 2ª ed. New Jersey: Wiley; 2009. DOI: 10.1002/9781444307818.ch10
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. Esse resgate do profissionalismo é consequência do foco em constituição do caráter e motivação do médico, na perspectiva da ética das virtudes. O foco excessivo na autonomia do paciente pode ser interpretado, inclusive, como inconveniente da perspectiva bioética principialista.

Ainda que não haja excessos, o foco de teoria na defesa da autonomia do paciente parece, ainda, visão simplista e quase esquiva, porque não livra o profissional de sua responsabilidade em relação às decisões de cada caso. Essa questão da responsabilidade profissional quanto às decisões versus autonomia dos pacientes é especialmente importante na pediatria, especialidade que trata, em sua maior parte, de indivíduos que ainda não têm status de autônomos. O consenso atual (aceito, inclusive, pela Academia Americana de Pediatria) é, então, o das chamadas “decisões compartilhadas” entre pais e médicos 2323. Kon AA. The shared decision-making continuum. Jama. 2010;304(8):903-4.. E a perspectiva que melhor embasa esse conceito é a ética das virtudes, em vez da clássica perspectiva do principialismo. Afinal, como considerar melhor os interesses de uma criança que tem futuro – e prognóstico de doença – imprevisível? 2424. Antommaria AH, Collura CA, Antiel RM, Lantos JD. Two infants, same prognosis, different parental preferences. Pediatrics. 2015;135(5):918-23. MacIntyre 2525. MacIntyre A. Whose justice? Which rationality? Notre Dame: University of Notre Dame; 1988. entende que o importante não é a autonomia da criança, como pressupõe a moral do Iluminismo – pessoas como agentes morais racionais individuais cujo objetivo é a procura de interesses e preferências próprias. Para ele, somos pessoas como parte de comunidade moral cujo objetivo é a busca compartilhada da boa vida, e crianças são membros dependentes dessas comunidades.

Finalmente, o médico que assume seu papel na tomada de decisão não só avalia os aspectos técnicos, mas também não faz escolhas puramente racionais. A abordagem da ética das virtudes tem a vantagem de ainda ceder lugar para emoções, mesmo com todo o racionalismo que pressupõe 33. Van Hooft S. Ética da virtude. Petrópolis: Vozes; 2006. (Série Pensamento Moderno),2020. Gardiner P. A virtue ethics approach to moral dilemmas in medicine. J Med Ethics. 2003;29(5):297-302.. Emoções são parte das percepções morais e constitutivas dos julgamentos de valor 2020. Gardiner P. A virtue ethics approach to moral dilemmas in medicine. J Med Ethics. 2003;29(5):297-302.,2626. Nussbaum M. Upheavals of thought: the intelligence of emotions. New York: Cambridge University; 2001., e educação moral nas virtudes, segundo Aristóteles, depende de sentimentos como reações a nossas próprias ações.

Ética das virtudes – combatendo críticas

Existem, entretanto, algumas críticas à teoria 1515. Hursthouse R. Virtue ethics. In: Zalta EM, editor. Stanford Encyclopedia of Philosophy. 2012 [acesso 8 maio 2015]. Disponível: http://stanford.io/1Y6Hlkr
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. A primeira vem justamente daqueles que esperam da ética normas e guia de condutas e ações corretas diante de diversas situações, principalmente as conflituosas: se a ética aristotélica não disponibiliza um guia de ações, então, como, na prática, empregá-la? A ação ética poderia ser tomada pela identificação com pessoas virtuosas, ou seja, saber o que determinado indivíduo, que é virtuoso, faria naquela situação. Para combater essa crítica, Elizabeth Anscombe 1313. Anscombe GEM. Modern moral philosophy. Philos. 1958;33(124):1-16. prontamente esclareceu que não há sugestão sobre suposta identificação com indivíduo virtuoso, mas compreensão de como seria agir utilizando uma ou outra virtude, em contraposição aos vícios. O que é virtuoso fazer em dada situação, o que é agir com coragem ou benevolência ou compaixão etc. 1515. Hursthouse R. Virtue ethics. In: Zalta EM, editor. Stanford Encyclopedia of Philosophy. 2012 [acesso 8 maio 2015]. Disponível: http://stanford.io/1Y6Hlkr
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Surge daí a segunda crítica: como exigir que alguém aja virtuosamente? Não seria possível obrigar alguém a querer ser virtuoso, mas seria possível criar regras para serem seguidas. Uma resposta a essa questão parece ser a de que também não é possível fazer alguém seguir regras, agir por princípios e valores contrários à própria disposição ou vontade. Assim, especificamente nesse aspecto, prevalece ainda a teoria das virtudes, ao focar justamente a disposição que um agente moral tem para agir para o bem, uma vez que é nesse bem último que repousa a teoria.

Como destacado, são essa disposição e a compreensão da própria responsabilidade que trazem vantagens à teoria das virtudes 55. Rachels J. Os elementos da filosofia da moral. 4ª ed. Barueri: Manole; 2006. p. 178.. Na fundamentação das teorias éticas existe preocupação em relação ao que leva pessoas a agir (bem), como motivações internas, mais do que aquilo que são obrigadas a fazer por imposições externas ou em respeito a deveres – o que torna ontológico o problema da fundamentação. Nessa perspectiva, o indivíduo é agente moral, e sua motivação o leva a agir em busca do que mais lhe importa 2727. Van Hooft S. Bioethics and caring. J Med Ethics. 1996;22(2):83-9..

No entanto, mesmo que desconsideremos a questão da motivação no âmbito da segunda crítica, ainda assim há vantagens na proposta da ética das virtudes que concebe a possibilidade de educação moral. Relembrando Aristóteles: as virtudes intelectuais podem ser ensinadas, e as morais, adquiridas, pelo hábito das práticas virtuosas 1111. Aristóteles. Ética a Nicômaco. São Paulo: Nova Cultural; 1996.. É importante ressaltar que hábito, aqui, não deve ser interpretado como vício de quem se acomodou ou como repetição sem criatividade e sem a devida avaliação de cada caso. O hábito torna experiente quem vivencia situações semelhantes na escolha correta das virtudes a serem empregadas.

Em relação a virtudes, então, como parte dos fatores que explicam a teoria, podemos contextualizar mais duas críticas. A primeira é o chamado “relativismo cultural” – virtudes valorizadas em cada época e meio podem variar; então, como ou quais aplicar? Essa crítica também afeta outras perspectivas éticas e parece ser problema maior para elas. Princípios, por exemplo, também são históricos e relativos a culturas. Já virtudes, apesar de poderem variar em aplicação, têm conceito que não é mutável ou relativo, assim como seus vícios antagônicos, que jamais são almejados.

A humildade é bom exemplo: considerada virtude em contexto religioso, era vista como vício oposto à magnanimidade para os gregos. No dicionário, esses conceitos são estáveis – a humildade pode ser definida como qualidade de não se projetar, ou agir com simplicidade, enquanto a magnanimidade seria a qualidade de projetar-se e estar à altura de suas atribuições.

A outra crítica diz respeito ao conflito que pode ser estabelecido entre o emprego de diferentes virtudes em uma situação. E esse também parece ser problema compartilhado por outras perspectivas. No principialismo, por exemplo, princípios entram em conflito frequentemente, e por isso mesmo a teoria se embasa na visão de princípios não absolutos, ditos prima facie; isso a difere inclusive da ética kantiana, na qual princípios são absolutos. No entanto, na ética das virtudes, não são as virtudes que explicam a teoria, mas a teleologia, a noção de que o agente moral visa fim determinado e usa a sabedoria prática para realizar atos virtuosos que culminem nesse fim.

Entretanto, a busca de fim único, eudaimonia, envolvendo toda uma comunidade, a polis, gera outra crítica que merece destaque: a de que seria impossível voltar a Aristóteles em uma época de exaltação da individualidade, predominante desde o Iluminismo. É justamente contra esse limite impreciso e escorregadio entre individualismo e emotivismo que é retomada, na crítica de MacIntyre, a perspectiva aristotélica das virtudes. Um embasamento em concepção teleológica da vida parece suplantar a busca individual de satisfação de interesses e vontades.

Considerações finais

A modernidade proclamou o indivíduo autônomo, livre, dotado de direitos igualitários, que busca realizar seus interesses. À ética caberia solucionar conflitos resultantes da relação entre indivíduos. A pergunta que, nesse caso, se impõe é: “como agir?”. Para Aristóteles, os homens, seres sociais e políticos por natureza, têm um telos – cada ser humano se realiza na busca por um fim, nas suas práticas, e inserido em comunidade, com cultura e valores estabelecidos e alcançáveis mediante esforço e vontade. À primeira posição do ser, voluntarista, contrapõe-se, na visão dos neoaristotélicos, concepção narrativa e teleológica.

A medicina, assim como as demais práticas profissionais em geral, como bem expressa Michael Sandel 2828. Sandel MJ. Justiça: o que é fazer a coisa certa. 17ª ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira; 2015., pode beneficiar-se de um novo lugar para a moralidade: não o de ditar regras às quais devemos obedecer, mas o da internalização do nosso projeto de nós mesmos e nossa preocupação com os outros. A ética das virtudes se apresenta, na prática, como proposta à altura dos desafios de conduta e tomada de decisão em medicina. Soluções para casos dilemáticos não estão em regras ou princípios conflitivos, mas é o exercício das virtudes no julgamento das situações e escolhas de meios adequados aos fins estabelecidos que assegura melhores decisões. Para tanto, a responsabilidade do profissional está na formação do próprio caráter, diante das necessidades da profissão, de seus fins na medicina e dos fins da sua vida em geral.

Referências

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    May-Aug 2016

Histórico

  • Recebido
    26 Fev 2016
  • Revisado
    31 Maio 2016
  • Aceito
    3 Jun 2016
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