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Aspectos éticos e bioéticos na entrevista em pesquisa: impacto na subjetividade

Resumo

Numerosos projetos de pesquisa envolvendo entrevistas transmitem a impressão de que essa é uma forma de abordagem inócua, não apresentando riscos – o que não é verdade. A entrevista, como método de investigação, está sujeita à ética do relacionamento humano. Mediante revisão de literatura e culminando com uma análise crítica, são pontuadas separadamente características da entrevista, do entrevistado e do entrevistador, para depois serem reunidas como parte de um mesmo contexto ao levar a cabo a entrevista propriamente dita. Alguns aspectos dessa interação entrevistador-entrevistado não podem deixar de ser respeitados, escolhendo-se sempre a forma mais adequada de proceder aos questionamentos. Porém, quando parte imprescindível da pesquisa, algumas questões, mesmo delicadas, não podem ser deixadas de lado, e isso exigirá, por parte do entrevistador, irrepreensível posicionamento ético.

Palavras-chave:
Bioética; Entrevista; Ética em pesquisa; Relações pesquisador-sujeito; Vulnerabilidade em saúde

Abstract

Numerous research projects involving interviews give an impression that this is a form of innocuous approach, presenting no risk, which is not true. The interview, as a research method, is subject to an ethic of human relationships. Through a literature review culminating in a critical analysis, the characteristics of the interview, the interviewee and the interviewer are scored separately, to then be gathered as part of the same context when carrying out the interview itself. Some aspects of the interviewer-interviewee interaction cannot fail to be respected, choosing always the most appropriate way to conduct the questioning. Nevertheless, if some issues, however delicate, are an essential part of the research, they cannot be left aside, and this will require an irreproachable ethical position by the interviewer.

Keywords:
Bioethics; Interview; Ethics; research; Researcher-subject relations; Health vulnerability

Resumen

Numerosos proyectos de investigación que implican entrevistas cargan con la impresión de que ésta es una forma de abordaje inofensivo, que no presenta riesgos, lo cual no es cierto. La entrevista como método de investigación está sujeta a una ética de las relaciones humanas. A través de una revisión de la literatura y culminando en un análisis crítico, serán puntuadas separadamente las características de la entrevista, del entrevistado y del entrevistador, para luego ser integradas como parte de un mismo contexto cuando se lleva a cabo la entrevista propiamente dicha. Algunos aspectos de la interacción entrevistador-entrevistado no pueden dejar de ser respetados, eligiéndose siempre la manera más adecuada de proceder a las preguntas. Sin embargo, por constituir una parte esencial de la investigación, algunas preguntas, aunque delicadas, no pueden ser dejadas de lado, y eso requerirá una posición ética irreprochable por parte del investigador.

Palabras clave:
Bioética; Entrevista; Ética en investigación; Relaciones investigador-sujeto; Vulnerabilidad en la salud

Na contínua tarefa de relatoria de comitês de ética em pesquisa (CEP), pesquisadores apresentam a entrevista como parte de sua metodologia em inúmeros protocolos de pesquisa fase III. Ao reportarem o método utilizado e para descrever os possíveis riscos para os participantes da pesquisa, um mesmo texto (ou textos muito similares) aparece de forma corriqueira. Comumente, pesquisadores lançam mão da frase, cujo teor se mostra mais ou menos assim: A pesquisa em questão não apresenta riscos para seus participantes, por se tratar apenas de uma entrevista. Porém, se for respeitado o preconizado no capítulo V da Resolução CNS 466/201211. Brasil. Ministério da Saúde. Conselho Nacional de Saúde. Resolução CNS nº 466, de 12 de dezembro de 2012. Aprova as diretrizes e normas regulamentadoras de pesquisas envolvendo seres humanos. [Internet]. Diário Oficial da União. Brasília; 13 jun 2012 [acesso 12 jun 2015]. Disponível: http://bit.ly/1mTMIS3
http://bit.ly/1mTMIS3...
, uma entrevista, por si só, não poderia ser isenta de riscos:

Toda pesquisa com seres humanos envolve risco em tipos e gradações variados. Quanto maiores e mais evidentes os riscos, maiores devem ser os cuidados para minimizá-los e a proteção oferecida pelo Sistema CEP/Conep aos participantes. Devem ser analisadas possibilidades de danos imediatos ou posteriores, no plano individual ou coletivo. A análise de risco é componente imprescindível à análise ética, dela decorrendo o plano de monitoramento que deve ser oferecido pelo Sistema CEP/Conep em cada caso específico11. Brasil. Ministério da Saúde. Conselho Nacional de Saúde. Resolução CNS nº 466, de 12 de dezembro de 2012. Aprova as diretrizes e normas regulamentadoras de pesquisas envolvendo seres humanos. [Internet]. Diário Oficial da União. Brasília; 13 jun 2012 [acesso 12 jun 2015]. Disponível: http://bit.ly/1mTMIS3
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Fruto de longo tempo de participação de ambas as autoras em comitês de ética em pesquisa, estabeleceu-se certo desconforto referente a uso tão corriqueiro, por parte de pesquisadores, da expressão acima. Permanece a dúvida acerca da razão desse uso: há desconhecimento por parte de pesquisadores de que a entrevista possa causar danos aos participantes da pesquisa, considerando-a instrumento realmente inócuo; ou apenas repetem à exaustão expressão cunhada por seus pares.

Diante dessa angústia – de início pessoal, mas depois compartilhada por outros membros de diversos CEP –, surgiu a ideia de buscar mais informação sobre entrevistas e suas nuances, mediante levantamento bibliográfico acerca do tema, seguido de análise crítica da literatura pertinente. Há, portanto, questões a serem respondidas em entrevistas que podem ser tão contundentes quanto uma agulha, um exame invasivo ou mesmo um ferimento. Invisíveis, é verdade, mas passíveis de impactar a subjetividade do participante.

A entrevista

Conforme Lodi22. Lodi JB. A entrevista: teoria e prática. 7ª ed. São Paulo: Pioneira; 1991., entrevista é um processo de interação entre pessoas e, portanto, sujeita à ética dos relacionamentos humanos. Como forma de interação humana, Mann acrescenta que pode variar desde o mais descontraído “papo” até o mais cuidadosamente pré-codificado e sistematizado conjunto de perguntas e respostas disposto em um programa ou roteiro de entrevista33. Mann PH. Métodos de investigação sociológica. 3ª ed. Rio de Janeiro: Zahar; 1975. p. 99.. Aplicada em grupos de trabalho, a entrevista caracteriza-se como técnica exploratória, que envolve condutas e personalidades dos partícipes.

Ao falar de entrevistas, é preciso estabelecer uma ideia mais definida sobre elas. Sendo técnica exploratória, é necessário lembrar que qualquer entrevista é composta de três partes, sem as quais não pode ser chamada assim. É fundamental haver quem entreviste, alguém que seja entrevistado e definido o conteúdo da entrevista.

Entrevistador

O entrevistador deve estar atento aos próprios sentimentos, preconceitos, valores e expectativas, que podem ser fontes de vieses. Szymanski44. Szymanski H, organizadora. A entrevista na pesquisa em educação: a prática reflexiva. 4ª ed. Brasília: Liber Livro; 2011. menciona que não pode ser alguém escolhido aleatoriamente e tampouco pode entrevistar sem conhecimento mínimo do ambiente sociocultural e institucional do entrevistado; deverá perceber de antemão que está imbuído de papel cultural, atribuído pela sociedade que o cerca. Diante da possibilidade de assumir tal papel, o entrevistador deve se perguntar acerca das características do entrevistado, as quais poderão (ou não) tornar a entrevista uma experiência agradável. De igual forma, também deve reconhecer em si mesmo experiências anteriores que poderão contribuir com sua percepção e se haverá circunstâncias pessoais capazes de influir, negativa ou positivamente, na entrevista a ser realizada.

Em suma, o entrevistador deverá observar previamente as exigências da entrevista, podendo, assim, perceber-se apto ou inapto para a ocasião. Grummit55. Grummit J. Saber entrevistar. Porto: Europa-América; 1992. acrescenta que não há como controlar e planejar a entrevista se não houver ciência de onde se pretende chegar com ela, nem é possível ter clareza se os objetivos foram atingidos se não houver a certeza de quais são. Também é ponto crucial na elaboração perceber o impacto que a entrevista pode ter para o entrevistado – o que tem relação direta com quem entrevista, quem é entrevistado, quando a entrevista ocorre e qual é seu objetivo.

O entrevistador deve saber que as respostas precisam ser comparadas com fontes externas e/ou outros entrevistados. Deve também estar atento às atitudes dos entrevistados, observando se a entrevista decorre em condições adequadas. Cabe ao entrevistador esclarecer conceitos ou termos que surgem ao longo da entrevista, bem como estabelecer seu tempo médio, permanecendo atento a esse fator e, da mesma forma, a elementos sociais, antropológicos, espaciais, entre outros. É ainda seu dever maximizar o fluxo de informações relevantes e manter o melhor relacionamento possível com o entrevistado, deixando-o à vontade, tranquilizando-o acerca da entrevista e evitando, dessa forma, indecisão quanto a participar.

As qualidades necessárias do entrevistador variam de acordo com a complexidade e o grau de informalidade permitido em cada entrevista66. Mann PH. Op. cit.. Algumas pessoas se sairão melhor que outras nessa tarefa, ainda que, com razoável grau de treinamento, muitos se tornam aptos a assumir o papel de entrevistador. Não se pode ignorar a exatidão da entrevista – isto é, a fidelidade dos dados obtidos, já que serão utilizados para posterior análise.

Entrevistado

Potenciais entrevistados trazem consigo um conjunto de condições favoráveis e desfavoráveis para participar da entrevista. Suas experiências anteriores em entrevistas podem ser fatores de auxílio, dependendo de como tenha sido essa participação. A percepção de recompensas – sejam elas de cunho financeiro, altruístas ou outras – também pode interferir, assim como algumas circunstâncias pessoais, permanentes ou temporárias.

A entrevista traz ao entrevistado – independentemente de quem seja – situações tanto de ônus ou custos quanto de bônus ou recompensas, que variam de pessoa para pessoa. Em geral, fazem parte dos ônus: a demanda de tempo para a entrevista; ameaças a sua segurança, no que concerne a circunstâncias, motivos ou questões levantadas pela entrevista; esquecimentos ou “brancos” que poderão suceder; e ainda traumas ou situações constrangedoras e desconfortáveis que a entrevista pode trazer à tona. Quanto aos bônus, a entrevista poderá: suscitar novos relacionamentos; preencher algumas expectativas do entrevistado; expor sua simpatia e alteridade, entre outros fatores22. Lodi JB. A entrevista: teoria e prática. 7ª ed. São Paulo: Pioneira; 1991..

Elementos subjetivos também farão parte da entrevista, sinais aos quais o bom entrevistador deverá estar atento e deles fazer uso como aliados. A comunicação não verbal ao longo da entrevista (sinais de preocupação ou de alívio, expressões faciais em geral, corpo relaxado ou tenso) deve ser considerada, como portadora de detalhes que a comunicação verbal dificilmente transmitirá. Ainda, quanto aos ônus e bônus, quanto ao primeiro, há que se mencionar questões relativas ao uso do tempo, à sensação de segurança pessoal, comportamentos apreendidos em geral e experiências negativas. No que concerne aos bônus, pode haver alguma sensação de reconhecimento pessoal, o sentir-se solidário/colaborativo, o atendimento a expectativas, a necessidade de fazer algo que tenha significado. Cabe ao entrevistador manter o equilíbrio entre ônus e bônus, preferencialmente aumentando este e diminuindo aquele.

Portanto, ao aceitar convite para tomar parte em pesquisa o entrevistado estará aceitando, também, os interesses de quem está fazendo a pesquisa, ao mesmo tempo em que descobre ser dono de um conhecimento importante para o outro77. Szymanski H. Op. cit. p. 13.. Ao escolher-se alguém para atuar como entrevistado, pressupõe-se que seja pessoa representativa do grupo objeto de estudo e forneça imagem geral deste33. Mann PH. Métodos de investigação sociológica. 3ª ed. Rio de Janeiro: Zahar; 1975. p. 99.. A possibilidade de participar em entrevista pode ser interpretada de várias maneiras: oportunidade para falar e ser ouvido, uma avaliação, deferência a sua pessoa, ameaça, aborrecimento ou mesmo invasão de privacidade. Sua interpretação define o sentido e a direção, que se manifesta diretamente conforme a situação é percebida. Esse sentido pode ser o de provocar determinada emoção no entrevistador (piedade, admiração, respeito, medo, solidariedade etc.)44. Szymanski H, organizadora. A entrevista na pesquisa em educação: a prática reflexiva. 4ª ed. Brasília: Liber Livro; 2011., ou mesmo manipular o entrevistador, usando-o para difundir suas ideias e/ou opiniões, mostrando-se tão atento às atitudes dele como este às daquele.

A maior parte dos entrevistados desenvolve mecanismos de defesa, falta de motivação, incapacidade de comunicação (emocional) e problemas da linguagem (diferenças vocabulares). É de fundamental importância respeitar o vocabulário dos entrevistados, com o sentido regional das palavras utilizadas. Outro ponto importante é que, quando há perguntas de cunho emocional, pode haver comprometimento de algumas respostas, o que exigirá certa perícia por parte do entrevistador. Perguntas que envolvem temas como comportamento sexual, religião, fumo, uso de substâncias psicoativas, consumo de álcool e política – isto é, questões para as quais pressupõe-se haver obrigação de posicionamento desse ou daquele modo – podem trazer respostas falseadas, pois o entrevistado poderá responder da forma como achar mais adequada, ao invés de relatar aquilo que realmente pensa ou pratica.

Também é importante atentar para o grau de importância que o entrevistado supõe ter sua participação. Alguém que se vê como especialista de dado tema pode bem entender que foi escolhido por esse fato e se sentir importante com sua contribuição, o que deverá ajudar a compreender melhor o problema por um público maior.

Quanto à possibilidade de a entrevista ser aberta ou fechada, deve-se ter em mente que entrevistas abertas possibilitam uma investigação mais ampla e profunda da personalidade do entrevistado, embora a entrevista fechada permita uma melhor comparação sistemática de dados, além de outras vantagens próprias de todo método padronizado88. Bleger J. Temas de psicologia: entrevista e grupos. São Paulo: Martins Fontes; 2003. p. 3.. Lodi22. Lodi JB. A entrevista: teoria e prática. 7ª ed. São Paulo: Pioneira; 1991. lembra que entrevistados de nível socioeconômico mais modesto ou nível hierárquico menor não se sentem à vontade diante de perguntas abertas, as quais acabam por oferecer também dificuldades técnicas quanto à análise do conteúdo das respostas, por parte do entrevistador.

O entrevistado também traz consigo a influência direta do grupo social a que pertence, que pode ser ainda maior quanto mais envolvido com atividades sociais e/ou culturais do grupo estiver. Em virtude de sua condição de ser humano, o entrevistador conviverá com motivações inconscientes e conscientes, ambivalências e razões objetivas e subjetivas de seu comportamento. Muitos estarão envoltos em preconceitos, opiniões particulares, influências de pessoas, raça, religião e tipos humanos.

Método

Trata-se de pesquisa bibliográfica de cunho exploratório. Na análise crítica da literatura especificamente pertinente a entrevistas em pesquisa, não foi encontrado grande número de publicações referentes ao tema. Diversos autores têm como foco entrevista psicológica, entrevista médica ou mesmo entrevista jornalística. Em alguns pontos, essas entrevistas foram úteis na construção do texto, mas, em sua maior parte, foi necessário começar pela identificação de aspectos em comum, examiná-los e, depois, construir visão mais próxima da realidade de entrevistas em pesquisa, reconhecendo suas peculiaridades e estabelecendo conclusões.

Este artigo pretende tratar da entrevista em pesquisa como técnica generalizada; não há a intenção de apontar, aqui, para a diversidade de formas e/ou experiências de entrevistas, visto que o foco maior é seu impacto na subjetividade. Esse aspecto parece encontrar-se mais fortemente vinculado à perícia do entrevistador e às expectativas do entrevistado do que aos métodos empregados. A prática da entrevista em cada contexto obedece a situações particulares e peculiares, mas compreende, de toda forma, uma fonte capaz de causar inquietação positiva ou negativa nos envolvidos.

Discussão

O ato de entrevistar é, portanto, via de mão dupla, na qual deve haver extremo cuidado para o bom fluir da comunicação, sendo necessária uma atmosfera em que o entrevistado se sinta acolhido, compreendido e seguro, evitando colocar-se na defensiva, o que, certamente, prejudicaria o andamento ou a análise da entrevista. Afinal, todo entrevistador espera por respostas honestas, e uma posição defensiva por parte do entrevistado pode pôr por terra essa possibilidade. Assim, exige-se do entrevistador postura ética e profissional, a fim de não criar relação de autoridade para com o entrevistado.

Em seus múltiplos usos, a entrevista pode ter grande variedade de objetivos. Não se pode esquecer que ela, assim como a observação, a participação e a empatia, faz parte dos chamados métodos de investigação. Trata-se, em essência, de movimento de querer saber, de forma de inquirir que apresenta vantagens em relação ao questionário: gera maior motivação para aquele que está sendo entrevistado; cria maiores oportunidades para compreensão de significados; apresenta maior flexibilidade no que concerne à escolha de palavras e expressões apropriadas; propicia melhor controle da situação e leva à melhor avaliação da validade das respostas, uma vez que estimula a interação entrevistador-entrevistado e as respostas surgem em seu decorrer.

Pode-se definir entrevista como uma situação de encontro de duas ou mais pessoas, as quais frequentemente possuem diferentes disposições afetivas. Uma delas – o entrevistador – se propõe a colher informações para a investigação que está realizando ou pretende realizar; a outra – o entrevistado – pode ter uma gama variável de intenções, podendo mesmo não tê-las de forma explícita33. Mann PH. Métodos de investigação sociológica. 3ª ed. Rio de Janeiro: Zahar; 1975. p. 99..

Para a boa entrevista é fundamental haver boa escolha de objetivos, de tempo, de local e de script. Ainda, conforme Minayo99. Minayo MCS. Pesquisa social: teoria, método e criatividade. 31ª ed. Petrópolis: Vozes; 2012., é necessário que o entrevistador primeiro se apresente, mencione o interesse da pesquisa, mostre a credencial institucional, explique os motivos da pesquisa, justifique a escolha do entrevistado e garanta o anonimato e o sigilo, para, só então, proceder à entrevista propriamente dita. Garret parece compartilhar da mesma opinião, quando diz que:

Para que a entrevista seja bem-sucedida, é necessário, pois, que sejam afastados os receios, tanto do entrevistador, como do entrevistado, e que se encontrem as várias pretensões de ambos. Deve-se estabelecer uma relação entre um e outro, uma afinidade que permita ao entrevistado revelar os fatos essenciais da sua situação e ao entrevistador tornar-se capaz de auxiliá-lo1010. Garret A. A entrevista, seus princípios e métodos. 10ª ed. Rio de Janeiro: Agir; 1991. p. 17..

É preciso ainda, que haja exatidão nos questionamentos, evitando confundir os entrevistados; cada pergunta deverá ter um único significado para todos os entrevistados, não importando quantos estes forem. Também não há razão para inquirir fatos observáveis ou mesmo perguntar por informações que se possa obter de outras fontes33. Mann PH. Métodos de investigação sociológica. 3ª ed. Rio de Janeiro: Zahar; 1975. p. 99.. Cicourel menciona, também, que há que se levar em conta a interpretação subjetiva, (…) os constructos do senso comum empregados na vida cotidiana1111. Cicourel A. Teoria e método em pesquisa de campo. In: Guimarães AZ. Desvendando máscaras sociais. 2ª ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves; 1980. p. 110.. Ao ignorar-se tal fato, acrescenta, tornam-se problemáticas ou sem sentido tanto as perguntas quanto as respostas recebidas1111. Cicourel A. Teoria e método em pesquisa de campo. In: Guimarães AZ. Desvendando máscaras sociais. 2ª ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves; 1980. p. 110..

O mesmo autor lembra ainda que qualquer conhecimento da situação de pesquisa deve, se possível, ser conseguido, incluindo-se literatura e informações de campo. Se o problema a ser investigado o permitir, o pesquisador deve deixar claro que tipos de informações seriam necessárias para cumprir seus objetivos. Desse modo, anotações cuidadosas sobre cada etapa da pesquisa podem revelar discrepâncias ou congruências1212. Cicourel A. Op. cit. p. 118..

Sempre que uma gravação se fizer necessária, deverá ser pedida e obtida permissão do entrevistado e assegurados seu direito não só ao anonimato, acesso às gravações e análise, como ainda ser aberta a possibilidade de ele também fazer as perguntas que desejar1313. Szymanski H. Op. cit. p. 20..

Sabedores de que algumas entrevistas requerem roteiros previamente estabelecidos, é bom lembrar que eles deverão fazer jus ao nome, funcionando sempre como guias, nunca como obstáculos, não devendo prever todas as situações e condições de trabalho de campo. É dentro dessa visão que deve ser elaborado e usado1414. Minayo MCS. O desafio do conhecimento: pesquisa qualitativa em saúde. 12ª ed. São Paulo: Hucitec; 2010. p. 190. com vistas a facilitar a emergência de novos temas durante o trabalho de campo, quiçá provocados por seu questionamento. Nos casos em que o roteiro faça parte da entrevista, ele deve ser esboçado com vistas à apresentação dos resultados de maneira clara e simples.

Como etapa intermediária da pesquisa, o roteiro habilita uma equipe de entrevistadores a dar os mesmos estímulos aos informantes, na mesma ordem predeterminada e registrar suas reações de forma padronizada1515. Mann PH. Op. cit. p. 120.. Deve ser construído com alteridade, a fim de pedir o menor número possível de informações, assegurando-se de que as perguntas têm condição de serem respondidas com honestidade e sem possibilidades de recusa 33. Mann PH. Métodos de investigação sociológica. 3ª ed. Rio de Janeiro: Zahar; 1975. p. 99.. Perceber a alteridade leva a que os responsáveis pela formulação do roteiro coloquem-se no lugar do entrevistado, percebendo como seria responder à entrevista. Assim, poderão elaborar e ajustar um roteiro adequado, que pode ser empregado sem problemas no estudo definitivo.

A entrevista é, conforme Bleger88. Bleger J. Temas de psicologia: entrevista e grupos. São Paulo: Martins Fontes; 2003. p. 3., uma técnica de investigação científica. Segundo Grummit55. Grummit J. Saber entrevistar. Porto: Europa-América; 1992., é também encontro de pessoas, conversa para a qual existe objetivo específico e na qual um dos lados é o responsável pelo cumprimento desse objetivo. Dessa forma, a curiosidade (do entrevistador) deve limitar-se ao necessário, para o benefício do entrevistado1616. Bleger J. Op. cit. p. 37.. O entrevistador não pode ausentar-se de suas responsabilidades, apresentar-se como amigo, travar relações comerciais, tampouco fazer relatos de sua vida entremeados com o processo de entrevista ou pretender outros benefícios que não sejam seus honorários e seu interesse científico ou profissional. Ocultar sua identidade como pesquisador seria o mesmo que agir como um espião33. Mann PH. Métodos de investigação sociológica. 3ª ed. Rio de Janeiro: Zahar; 1975. p. 99.. Do mesmo modo, previne Bleger88. Bleger J. Temas de psicologia: entrevista e grupos. São Paulo: Martins Fontes; 2003. p. 3., a entrevista não deve ser utilizada como gratificação narcisista na qual se representa o mágico com demonstração de onipotência.

Silvares e Gongora afirmam que se destacam como características da entrevista:

Não ser totalmente previsível e, portanto, não completamente planejável como o questionário, por exemplo; mas, mesmo assim, não se trata de conversa comum, por ter sempre objetivos específicos de natureza profissional. Existe sempre o interesse do entrevistador em obter: ou determinadas informações do entrevistado, quando tratar-se de coleta de dados, ou mudanças comportamentais do cliente, quando tratar-se de intervenção. O próprio fato de não ser completamente planejável, torna-a uma atividade complexa a exigir a adoção de métodos que permitam ao entrevistador alcançar seus objetivos1717. Silvares EFM, Gongora MAN. Psicologia clínica comportamental: a inserção da entrevista com adultos e crianças. São Paulo: Edicon; 1998. p. 23..

Por essa característica não totalmente planejável, a entrevista – basicamente uma situação de estímulo-reação – apresenta frequentemente pouca padronização, quer nos estímulos, quer nas reações. Funciona, portanto, como uma corrente de interações. Grummit aponta que nenhuma técnica poderá ser capaz de auxiliar se não for estabelecida alguma espécie de relação com o entrevistado1818. Grummit J. Op. cit. p. 18..

A entrevista produz efeitos em ambos – entrevistado e entrevistador –, pois as técnicas de pesquisa nunca apresentam total neutralidade, mesmo quando soam como uma conversa meramente informal. Importante ainda haver critérios firmemente embasados ao optar por estudos qualitativos ou quantitativos, sem banalizações atribuídas a qualquer deles. Ferreira1919. Ferreira LO. A dimensão ética do dialogo antropológico: aprendendo a conversar com o nativo. In: Fleischer S, Schuch P, organizadoras. Ética e regulamentação na pesquisa antropológica. Brasília: Letras Vivas; 2010. p. 141-58. ressalta que um verdadeiro diálogo requer que as pessoas envolvidas se encontrem alertas para as questões e intenções de seus interlocutores, de forma a permitir que ocorra entendimento mútuo.

Com o fluir desse diálogo, cria-se a compreensão, a qual provém da relação estabelecida em campo1919. Ferreira LO. A dimensão ética do dialogo antropológico: aprendendo a conversar com o nativo. In: Fleischer S, Schuch P, organizadoras. Ética e regulamentação na pesquisa antropológica. Brasília: Letras Vivas; 2010. p. 141-58.. O pesquisador deve estar atento para o fato de que suas relações interpessoais com os entrevistados podem não terminar com a saída do campo: quanto maior tiver sido o tempo de convívio, mais pode demorar para essas relações se dissolverem e mais cuidadoso o pesquisador terá de ser em relação a isso.

Diniz lembra que algumas técnicas de investigação se assemelham a relações cotidianas, pois a entrevista também é um encontro de pessoas com interesses em comum. Ressalta a autora que a boa entrevista se dá quando o pesquisador se engaja genuinamente em uma toca de informações por meio da escuta ativa2020. Diniz D. A pesquisa social e os comitês de ética no Brasil. In: Fleischer S, Schuch P, organizadoras. Op. cit. p. 187.. Completa:

O roteiro de perguntas não é o instrumento que garantirá a validade dos dados, pois a escuta ativa exige uma contínua redescrição das perguntas perante a singularidade de cada pessoa. Isso não significa que as técnicas de entrevista prescindam de roteiros ou de planejamento por parte dos pesquisadores, mas simplesmente que a capacidade de planejamento deve se subordinar ao imponderável de cada encontro entre pesquisador e partícipe2020. Diniz D. A pesquisa social e os comitês de ética no Brasil. In: Fleischer S, Schuch P, organizadoras. Op. cit. p. 187..

Outros pontos, ainda, podem ser fundamentais para o sucesso da entrevista. É importante atentar para o local de realização, que deve sempre oferecer ao entrevistado algum conforto e total privacidade, para que se sinta à vontade para participar e colaborar. Fatores de distração devem ser evitados, a fim de que o entrevistado permaneça atento apenas para a entrevista que transcorre.

A duração da entrevista estará diretamente ligada a seu objetivo e, embora não seja possível determinar com precisão, deverá ser oferecida perspectiva do tempo médio de duração, para que o entrevistado saiba de antemão de quanto tempo deverá dispor. Ter ideia da duração, em alguns casos, também pode ser forma de auxiliar o entrevistado a se organizar em suas respostas.

A confidencialidade estrita dos dados e respostas colhidos na entrevista é outro dos itens que devem ser considerados. O entrevistado frequentemente se sente mais bem acolhido ao tomar conhecimento de que nada do que for dito ou inferido será compartilhado de forma a identificá-lo. Cuidado e atenção relativos a riscos devem estar presentes em todos os momentos, intensificando-se caso a pesquisa envolva necessidade de revelar conteúdos encobertos por interditos culturais e/ou traumas coletivos, familiares ou pessoais, que comprometam a história de vida dos participantes2121. Amorim E, Alves K, Schettino MPF. A ética na pesquisa antropológica no campo pericial. In: Fleischer S, Schuch P, organizadoras. Op. cit. p. 193-216.. Relatos de entrevistadores sobre o envolvimento emocional de entrevistados são frequentes; cabe até o inesperado, quando uma “inocente” questão provoca uma reação emocional imprevista e transformação do conhecimento comunicativo, desencadeada por mudanças de significado nos diferentes âmbitos de comunicação, ou seja, do conteúdo especifico, da situação interpessoal, do discurso como um todo, do social ou do cultural2222. Szymanski H. Op. cit. p. 18..

Considerações finais

A entrevista, utilizada como método de pesquisa com seres humanos e apresentada como parte integrante do protocolo de pesquisa aos CEP, funciona como um mecanismo de controle, a fim de que o pesquisador obtenha – em parte ou no todo – dados de que necessita. Deve apresentar benefícios para o participante da pesquisa, que devem estar mencionados no termo de consentimento livre e esclarecido (TCLE), assim como o tipo de questionamento que será feito e a duração aproximada. Também a confidencialidade dos dados obtidos deve estar clara, tanto para o participante quanto no TCLE.

É sabido que todo comportamento humano ocorre dentro de um contexto social, econômico, histórico e político, que interfere de uma forma ou de outra. Dessa maneira, qualquer que seja a técnica utilizada – entrevistas, observação participante ou outra –, é importante ser utilizada por pesquisadores cientes de sua aplicabilidade e limites de uso. Proceder a uma entrevista sem o devido embasamento teórico ou mesmo desconhecendo o modo adequado de se aproximar do potencial entrevistado fragiliza a pesquisa e quiçá provoca danos irreparáveis a ela. Na ausência de observação prévia da realidade do entrevistado, de adequado emprego da linguagem e de cuidado com o uso das questões apresentadas, o entrevistador pode induzir respostas e, dessa forma, influenciar o resultado. Assim, a entrevista não está isenta de riscos, os quais devem ser claramente especificados no TCLE, juntamente com os benefícios.

Algumas perguntas, mesmo as de caráter mais simples, podem causar algum impacto em determinado entrevistado, dependendo diretamente de sua história de vida. Inquirir sobre o nome a alguém que, ao longo da vida, precisou carregar o peso de um nome desagradável, engraçado ou de difícil entendimento pode gerar desconforto; revelar a idade também não agrada a alguns, bem como o estado civil; perguntas sobre filiação podem gerar constrangimento àqueles cujo(s) genitor(es) não são verdadeiramente conhecido(s); grau de escolaridade intimida com frequência aqueles que têm pouco estudo; e perguntar sobre valores de renda mensal raras vezes agrada a alguém. Outras perguntas também podem ter maior conteúdo emocional, de acordo com a história de vida do entrevistado, e, por mais que precauções sejam tomadas, torna-se praticamente impossível saber de antemão quais seriam elas. Alguns exemplos:

  • Você costuma sair com seus amigos?

  • Você já fez teste para gravidez?

  • Você costuma fazer uso de protetor solar?

  • Você utiliza algum método contraceptivo?

  • Você pretende se submeter a uma cirurgia plástica?

  • Como você definiria seu(s) relacionamento(s)?

  • Qual foi o momento mais importante da sua vida?

  • O que você espera de seu tratamento de saúde?

  • Como você vê os membros de sua família?

  • Por que você escolheu essa profissão?

Algumas perguntas, dependendo da maneira como são formuladas, podem realmente apresentar conotação agressiva e, dessa forma, devem ser inteiramente evitadas. São perguntas tais como:

  • Como foi, para você, receber o diagnóstico positivo para essa doença?

  • Em sua opinião, sua doença afetou a vida familiar?

  • Como você pretende prosseguir sua vida após essa amputação?

Infelizmente, para que seja atingido seu objetivo, algumas entrevistas realmente necessitam de questionamentos desagradáveis. É importante ter em mente que, caso alguma pergunta visivelmente desagradável não possa ser evitada sem que se comprometam os objetivos e características da própria pesquisa, o entrevistador deve assumir de pronto alguns posicionamentos, que incluem necessariamente:

  • Preocupar-se com o outro (alteridade);

  • Garantir condições de privacidade;

  • Garantir condições de conforto;

  • Deixar evidente que compreende a situação;

  • Deixar evidente que se preocupa com o mal-estar causado;

  • Acolher o entrevistado, respeitando-o em sua condição;

  • Interromper a entrevista até que o entrevistado se sinta em condições de prosseguir.

De qualquer modo, é importante auxiliar o entrevistado a crer que cada questionamento levantado tem sua importância e valor. Em conformidade com os preceitos de uma bioética principialista, é preciso também estar atento à dignidade de indivíduos e grupos, vulneráveis ou não; é necessário que danos previsíveis sejam evitados e evitáveis; também deve haver o máximo de benefícios em contraposição ao mínimo de riscos. Por fim, é preciso ter preocupação com a relevância social apresentada pela pesquisa, na expectativa de feedback aos que dela participaram, e ainda que se explique satisfatoriamente a relevância das perguntas em relação aos benefícios que a pesquisa poderá gerar.

Referências

  • 1
    Brasil. Ministério da Saúde. Conselho Nacional de Saúde. Resolução CNS nº 466, de 12 de dezembro de 2012. Aprova as diretrizes e normas regulamentadoras de pesquisas envolvendo seres humanos. [Internet]. Diário Oficial da União. Brasília; 13 jun 2012 [acesso 12 jun 2015]. Disponível: http://bit.ly/1mTMIS3
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  • 2
    Lodi JB. A entrevista: teoria e prática. 7ª ed. São Paulo: Pioneira; 1991.
  • 3
    Mann PH. Métodos de investigação sociológica. 3ª ed. Rio de Janeiro: Zahar; 1975. p. 99.
  • 4
    Szymanski H, organizadora. A entrevista na pesquisa em educação: a prática reflexiva. 4ª ed. Brasília: Liber Livro; 2011.
  • 5
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  • 6
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  • 7
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  • 8
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  • 9
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  • 10
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  • 11
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  • 12
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  • 13
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  • 14
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  • 15
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  • 16
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  • 18
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  • 20
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  • 22
    Szymanski H. Op. cit. p. 18.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    2016

Histórico

  • Recebido
    31 Ago 2015
  • Revisado
    04 Ago 2016
  • Aceito
    12 Ago 2016
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