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Percepção de enfermeiras intensivistas de hospital regional sobre distanásia, eutanásia e ortotanásia

Resumo

Este estudo analisa a percepção de enfermeiras intensivistas de hospital regional sobre os conceitos distanásia, eutanásia e ortotanásia e possíveis implicações bioéticas no cuidado do doente terminal. Realizou-se pesquisa exploratória e descritiva, de natureza qualitativa, aplicando questionários a oito enfermeiras que atuam em duas unidades de terapia intensiva. Identificaram-se os temas que emergiram das respostas, que foram então analisados com base na literatura. Os resultados evidenciaram que as enfermeiras sabiam conceituar distanásia, eutanásia e ortotanásia; contudo não conseguiam efetivar um cuidado direcionado pelos princípios da ortotanásia, além de demostrarem dificuldade em definir os quatro princípios bioéticos que devem direcionar os cuidados. Conclui-se que, apesar das enfermeiras compreenderem os três conceitos de terminalidade e reconhecerem sua importância em relação ao cuidado, não foi possível depreender, das respostas analisadas, que na sua prática cotidiana os princípios da ortotanásia estejam efetivamente presentes, o que pode influenciar negativamente a qualidade da assistência.

Palavras-chave:
Cuidados paliativos; Cuidados de enfermagem; Bioética; Unidades de terapia intensiva

Abstract

The objective of this study was to analyze the perception of intensive care nurses on the concepts of dysthanasia, euthanasia and orthothanasia and the possible bioethical implications for care. An exploratory and descriptive study of a qualitative nature was carried out through questionnaires applied to eight nurses working in Intensive Care Units. The themes that emerged from the responses were identified and analyzed based on literature. The results showed that nurses understood the concepts of dysthanasia, euthanasia and orthothanasia correctly, but could not carry out practical care based on the principles of orthothanasia, and demonstrated difficulty in defining the four bioethical principles that should direct care. It was concluded that although nurses understood these three concepts relating to terminal illness and recognized their importance for the provision of care, from the responses analyzed it could not be inferred that the principles of orthothanasia were actually present in routine care, which can negatively influence the quality of such care.

Keywords:
Palliative care; Nursing care; Bioethics; Intensive care units

Resumen

El objetivo de este estudio es analizar la percepción de enfermeras intensivistas sobre los conceptos de la distanasia, eutanasia y ortotanasia, y las posibles implicaciones bioéticas en el cuidado de paciente terminal. Se llevó a cabo un estudio exploratorio y descriptivo de naturaleza cualitativa, a través del uso de cuestionarios con ocho enfermeras que trabajan en dos Unidades de Cuidados Intensivos. Se identificaron los temas que surgieron de las respuestas y los analizaron a partir de la literatura. Los resultados mostraron que las enfermeras sabían conceptualizar la distanasia, eutanasia y ortotanasia correctamente, pero no pueden llevar a la práctica un cuidado dirigido por los principios de la ortotanasia, además demostraron dificultad en definir los cuatro principios bioéticos que deben conducir los cuidados. Se concluye que, a pesar de que las enfermeras entienden los tres conceptos acerca de un paciente terminal y reconocen su importancia en el cuidado, no fue posible deducir de las respuestas analizadas que en su práctica diaria los principios de la ortotanasia estén realmente presentes, lo cual puede de cierta forma influir negativamente en la calidad de la atención.

Palabras clave:
Cuidados paliativos; Atención de enfermería; Bioética; Unidades de cuidados intensivos

Os avanços tecnológicos alcançados a partir da segunda metade do século XX, associados ao desenvolvimento da terapêutica, fizeram que muitas doenças até então consideradas letais se transformassem em condições crônicas, abrindo-se também a possibilidade de postergar a longevidade. No entanto, apesar dos esforços de pesquisadores e do conhecimento acumulado, a morte continua uma certeza que ameaça o ideal de cura e preservação da vida11. Silva RS, Pereira A, Mussi FC. Comfort for a good death: perspective nursing staff's of intensive care. Esc Anna Nery. 2015;19(1):40-6..

Diante desse desenvolvimento e, consequentemente, dos dilemas imbricados na relação entre avanços tecnológicos e vida humana, surge o questionamento: “de que vida se está falando?”. A partir dessa pergunta verifica-se a necessidade de discutir os impasses éticos e legais nos cuidados à pessoa em processo de terminalidade no contexto das unidades de terapia intensiva (UTI), considerando, especialmente, os cuidados prestados por enfermeiros. Esses profissionais convivem a maior parte do tempo com os pacientes internados nas UTI, prestando-lhes cuidados e/ou supervisionando os procedimentos indicados. Como muitos pacientes dessas unidades estão fora da possibilidade de cura, depreende-se que, por vezes, as práticas do cuidado acabam direcionadas a possíveis processos distanásicos, pautados no tratamento fútil, muitas vezes desnecessário, e com pouco uso de medidas pautadas na limitação do esforço terapêutico, bem como a adequação de medidas para o alívio do sofrimento, de modo a proporcionar uma morte digna.

Nesse contexto, mais que necessário, é imperativo que se discutam as questões ligadas à bioética em relação às práticas de cuidar, uma vez que esse campo de estudos aborda, de forma constante, questões que envolvem os limites entre o começo e o fim da vida humana. Busca-se, assim, estimular a reflexão sobre o significado dos avanços biotecnológicos e subsidiar profissionais da equipe de saúde na tomada de decisões22. Pessini L, Hosne WS. Bioética no futuro e o futuro da bioética. Bioethikos. 2012;6(2):123-4..

É possível reconhecer que as ações dos enfermeiros, como integrantes da equipe de saúde, alinham-se aos quatro pilares da bioética principialista: beneficência, não maleficência, autonomia e justiça, com o desígnio de preservar os direitos do paciente enquanto pessoa em condições de vulnerabilidade, proporcionando a garantia de ações pautadas no cuidado sensível, digno e seguro33. Silva RS, Amaral JB, Malagutti W. Enfermagem em cuidados paliativos: cuidando para uma boa morte. São Paulo: Martinari; 2013. p. 77-93.. Associada às discussões sobre os avanços tecnológicos e aos dilemas bioéticos dos cuidados às pessoas fora de possibilidade de cura, surgiram novos conceitos que definem esses impasses em termos de como o processo de morrer é enfrentado pelos profissionais de saúde. Dentre esses conceitos, a eutanásia é o mais frequentemente noticiado pela mídia e tem suscitado discussão mais ampla nas publicações científicas.

O termo “eutanásia” tem origem etimológica no grego: eu (boa) e thanatos (morte), apresentada por Francis Bacon como nobre dever médico que consistia em aliviar o sofrimento nos cuidados à pessoa em processo de terminalidade44. Floriani CA. Moderno movimento hospice: kalotanásia e o revivalismo estético da boa morte. Rev. bioét. (Impr.). 2013;21(3):397-404.,55. Corvino JDF. Eutanásia: um novo paradigma. Rev. SJRJ. 2013;20(37):53-73.. Entretanto, a partir do século XX cristalizou-se a conotação marcadamente negativa do conceito, desvirtuando sua definição de “boa morte” e aplicando nova definição semântica, que diz respeito a prática cuja finalidade é a morte provocada por profissional de saúde55. Corvino JDF. Eutanásia: um novo paradigma. Rev. SJRJ. 2013;20(37):53-73..

A mudança é tão marcante, que o Código de Ética dos Profissionais de Enfermagem, em seu art. 29, diz que é proibido aos profissionais da enfermagem promover a eutanásia ou participar em prática destinada a antecipar a morte do cliente66. Brasil. Conselho Federal de Enfermagem. Resolução nº 311, de 8 de fevereiro de 2007. Aprova a reformulação do código de ética dos profissionais de enfermagem e dá outras providências. [Internet]. Diário Oficial da União. Seção 1. Brasília; 17 fev 2007 [acesso 23 set 2016]. Disponível: http://bit.ly/2crqftC.
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. No campo da bioética, discute-se que se pode obter a prática da “boa morte” a partir de recursos de adequação terapêutica, sem abreviação da vida.

Por conseguinte, ao oposto da nova definição de eutanásia, surge o conceito de distanásia, ainda pouco conhecido, mas bastante utilizado por profissionais da área da saúde. Ao contrário do que ocorre com seu antônimo, define-se distanásia como morte lenta, acompanhada de muito sofrimento. O conceito é usado como sinônimo de tratamento fútil ou obstinação terapêutica, apesar de ser prática altamente presente nas instituições de saúde, notadamente nas UTI77. Pessini L. Distanásia: por que prolongar o sofrimento? Ciência Hoje. 2013;301:61-3.,88. Santos DA, Almeida ERP, Silva FF, Andrade LHC, Azevêdo LA, Neves NMBC. Reflexões bioéticas sobre a eutanásia a partir de caso paradigmático. Rev. bioét. (Impr.). 2014;22(2):367-72..

No intuito de propor reflexão intermediária, surge o conceito de ortotanásia como a via mediadora, considerada por paliativistas como a possibilidade de assistência mais adequada a pacientes com doença terminal, que apresentam intenso sofrimento físico e psíquico, ajustando-se à linha de práticas de cuidado mais humanitárias88. Santos DA, Almeida ERP, Silva FF, Andrade LHC, Azevêdo LA, Neves NMBC. Reflexões bioéticas sobre a eutanásia a partir de caso paradigmático. Rev. bioét. (Impr.). 2014;22(2):367-72.. A prática coaduna-se com as de cuidados que levam em consideração o curso natural da vida e a morte como parte da existência, buscando alívio do sofrimento, mediante adoção de cuidados paliativos e evitando procedimentos desnecessários que apenas prolongam o sofrimento do paciente e da família, constituindo o limite dos esforços terapêuticos99. Moritz RD. Ortotanásia: o direito à morte no tempo certo. Ciência Hoje. 2013;301:64-5..

Aliado ao conceito de ortotanásia, em prol do cuidado direcionado à adequação terapêutica com a finalidade de minimizar o sofrimento da pessoa no processo de morrer, intensifica-se o movimento pelos cuidados paliativos, com o desenvolvimento de práticas de cuidado ativo e total a pessoa cuja doença não é responsiva a tratamento de cura. Esse movimento tem a finalidade de proporcionar a melhor qualidade de vida possível para pacientes e familiares, com controle da dor, de outros sintomas e de problemas psicossociais e espirituais. Os cuidados paliativos vão além do conceito de ortotanásia e se baseiam em princípios filosóficos que visam ao alívio de sintomas e desconfortos, preservando a qualidade de vida até o fim, de modo que a morte ocorra de forma natural, jamais deliberada, com atenção à família como parte da unidade de cuidados e extensão dos cuidados após a morte, no processo de luto11. Silva RS, Pereira A, Mussi FC. Comfort for a good death: perspective nursing staff's of intensive care. Esc Anna Nery. 2015;19(1):40-6..

A prática dos cuidados paliativos preconiza a atuação de equipe interdisciplinar, e a participação do enfermeiro nesse processo é essencial. Nesse sentido, é preciso pensar na atuação da equipe de enfermagem sob a ótica da interdisciplinaridade, de modo que, norteado pelos princípios bioéticos, o enfermeiro possa ajudar a pessoa em seu processo de morrer, tendo como fio condutor do cuidado a preservação da dignidade e o alívio do sofrimento1010. Boemer MR. Sobre cuidados paliativos. Rev Esc Enferm USP. 2009;43(3):500-1..

É possível ao enfermeiro identificar situações em que não se respeitem os princípios bioéticos e os direitos do paciente, sendo razoável proporcionar as intervenções necessárias para garantir cuidado humano e digno. Daí se observa a importância de que esse profissional conheça os conceitos de eutanásia, distanásia e ortotanásia, e dos princípios da bioética para o alcance do cuidado ativo e total, conforme preconiza a Organização Mundial de Saúde (OMS) ao definir os princípios filosóficos dos cuidados paliativos1111. World Health Organization. National cancer control programs: polices and management guidelines. 2ª ed. Genebra: WHO; 2002..

Muitas são as publicações sobre cuidados paliativos; no entanto, com relação às questões bioéticas, aos cuidados paliativos e aos cuidados de enfermagem, observa-se relativa escassez, o que justifica a realização deste estudo, considerando que todos os profissionais de enfermagem, conforme preceitua o Código de Ética66. Brasil. Conselho Federal de Enfermagem. Resolução nº 311, de 8 de fevereiro de 2007. Aprova a reformulação do código de ética dos profissionais de enfermagem e dá outras providências. [Internet]. Diário Oficial da União. Seção 1. Brasília; 17 fev 2007 [acesso 23 set 2016]. Disponível: http://bit.ly/2crqftC.
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, são corresponsáveis pela busca e pela adoção de medidas respeitosas, éticas e responsáveis para o cuidado humano e digno da pessoa em processo de terminalidade e de sua família.

Partindo-se do pressuposto de que enfermeiros intensivistas convivem, em seu cotidiano, com pacientes críticos potencialmente curáveis, mas também com pacientes que apresentam diagnóstico de doenças fora de possibilidades de cura, e que esses profissionais, algumas vezes, desconhecem que os cuidados prestados em muitas situações são processos distanásicos – o que tem contribuído para a prática da obstinação terapêutica –, o objetivo deste estudo foi analisar a percepção de enfermeiras intensivistas sobre os conceitos de distanásia, eutanásia e ortotanásia e suas possíveis implicações bioéticas no cuidado. Pretendese, ainda, contribuir na avaliação dos processos de capacitação permanente ofertados a esses profissionais, considerando particularmente a prática de cuidados paliativos nas UTI.

Método

Trata-se de pesquisa exploratória e descritiva, com abordagem qualitativa1212. Gil AC. Como elaborar projetos de pesquisa. 5ª ed. São Paulo: Atlas; 2010., da qual participaram oito enfermeiras – sete assistenciais e uma residente de enfermagem – que atuavam em duas UTI de hospital público da região do Vale do São Francisco. Selecionaram-se aquelas que atuam em UTI há mais de seis meses. Durante o período da coleta de dados, as duas unidades contavam com quadro de quinze enfermeiras (doze assistenciais, duas coordenadoras e uma residente) e capacidade para vinte leitos. O perfil dos pacientes atendidos são portadores de doenças crônicas, pacientes cirúrgicos graves e/ou com complicações hemodinâmicas.

A coleta de dados ocorreu no período de setembro de 2014 a fevereiro de 2015, com a aplicação de questionários com a caracterização dos participantes, abordando as seguintes variáveis: idade, sexo, tempo de graduação e de atuação em terapia intensiva, se possui especialização e o vínculo na UTI (enfermeira assistencial, coordenadora ou residente). Também consistia de oito questões subjetivas sobre o conhecimento acerca dos conceitos de eutanásia, distanásia e ortotanásia; dos quatro princípios bioéticos (do principialismo) e suas implicações no cuidado (Anexo Anexo Instrumento de coleta de dados Iniciais: ____ Idade: ____ Sexo: F ( ) M ( ) Tempo de graduada: _____ Tempo de atuação em UTI: _____ Tem especialização? S ( ) N ( ) Quais? ________________________________ Vínculo: ( ) Enfermeira coordenadora ( ) Enfermeira assistencial ( ) Enfermeira residente Você conhece os conceitos de distanásia, eutanásia e ortotanásia? S ( ) N ( ) Caso sim, defina-os: ________________________________________________________________________________________ Esses processos ocorrem em sua prática diária? S ( ) N ( ) Caso sim, quais? ___________________________________________________________________________ Você acredita que o(a) enfermeiro(a) pode contribuir por saber esses conceitos e sua adequada aplicabilidade? S ( ) N ( ) De que modo? ________________________________________________________________________________________ O que norteia suas ações como enfermeira diante de alguma situação distanásica? ________________________________________________________________________________________ Que princípios bioéticos você conhece? ______________________________________________________ Qual é a importância do conhecimento desses conceitos em sua assistência cotidiana? ________________________________________________________________________________________ Você acredita que o(a) enfermeiro(a), a família e o próprio paciente deveriam participar dos processos de tomada de decisão no que diz respeito a seu tratamento? S ( ) N ( ) Caso sim, como? ________________________________________________________________________________________ Qual(is) é(são) o(s) fundamento(s) de seu modo de ação profissional? ________________________________________________________________________________________ ). Vale ressaltar que o questionário utilizado foi validado e já aplicado em outra pesquisa1313. Biondo CA, Silva MJP, Dal Secco LM. Dysthanasia, euthanasia, orthothanasia: the perceptions of nurses working in intensive care units and care implications. Rev Latino-am Enfermagem. 2009;17(5);613-9., sendo disponibilizado pelas autoras para reaplicação nesse cenário. As profissionais preencheram o questionário durante o plantão e, em seguida, devolveram-no ao pesquisador, não sendo permitido levá-lo para responder posteriormente.

Todas as participantes do estudo, após os devidos esclarecimentos quanto à natureza do objetivo da pesquisa, aceitaram voluntariamente participar do estudo e, em seguida, assinaram o termo de consentimento livre e esclarecido.

Analisaram-se qualitativamente os dados obtidos, utilizando-se as respostas aos questionários e a técnica de análise de conteúdo1414. Brasil. Conselho Nacional de Saúde. Resolução nº 466, de 12 de dezembro de 2012. Diretrizes e normas regulamentadoras de pesquisas envolvendo seres humanos. [Internet]. 2012 [acesso 15 jan 2016]. Disponível: http://bit.ly/1mTMIS3
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. Identificaram-se os temas que emergiram das respostas, que, em seguida, receberam a devida análise, com subsídio da literatura relacionada ao objeto de pesquisa, de modo a atingir a proposta de investigação. Seguiram-se as questões: conhecimento acerca da distanásia, eutanásia e ortotanásia; ocorrência desses processos na prática diária das enfermeiras; aplicabilidade ou não dos conceitos em sua prática diária; ações norteadoras diante de situações distanásicas; conhecimento dos princípios bioéticos e sua relevância para a assistência.

Para manter o anonimato das participantes, utilizou-se como código, para cada participante, a letra “P”, seguida por algarismo (P1, P2, P3 etc.), conforme a sequência de devolução dos questionários devidamente preenchidos. O Comitê de Ética em Pesquisa apreciou e aprovou o projeto, e o estudo seguiu os preceitos definidos pelo Conselho Nacional de Saúde na Resolução CNS 466/2012 1515. Bardin L. Análise de conteúdo. 3ª ed. Lisboa: Edições 70; 2011..

Buscando melhor estratégia de apresentação das respostas sobre os conceitos de eutanásia, ortotanásia e distanásia, construiu-se um quadro sinóptico, de modo a otimizar a apresentação visual das respostas. Desse agrupamento, geraram-se informações que foram discutidas de acordo com a literatura. Considera-se seu uso, neste estudo, fundamental para a construção da análise, visto que, com base nas respostas coletadas, caracterizaram-se as participantes do estudo, bem como se realizaram a interpretação e a análise dos achados.

As limitações do estudo centram-se na dificuldade de adesão das profissionais para responder ao questionário: elas se justificavam afirmando ser este extenso e, com isso, solicitavam levá-lo para casa, alegando falta de tempo, no serviço, para respondê-lo. Com a preocupação de que se realizassem consultas a referências sobre o assunto, enfatizou-se que as questões deveriam ser respondidas em momento oportuno, não sendo permitido que levassem para casa. Isso acabou por reduzir o número de participantes do estudo.

Resultados

Quanto à caracterização das participantes do estudo, a média de idade é de 27,5 anos, com tempo de formação entre um e sete anos, e de atuação em UTI, de seis meses a quatro anos. Das participantes, seis possuem especialização lato sensu, sendo três na área de terapia intensiva e as demais, em outras áreas, como nefrologia, centro cirúrgico e saúde pública. Duas delas possuem apenas graduação.

Todas as participantes responderam positivamente quanto a ter conhecimento sobre os conceitos de eutanásia, ortotanásia e distanásia, conforme os fragmentos das falas transcritos no Quadro 1.

Quadro 1
Respostas das participantes do estudo sobre os conceitos de eutanásia, ortotanásia e distanásia

Em relação à questão sobre a ocorrência desses processos, as respostas das participantes foram unânimes em afirmar que a eutanásia não existe em sua prática diária, até mesmo por ser considerada ato criminoso de acordo com a legislação brasileira. Todavia, existem práticas de cuidados que tendem tanto para a futilidade terapêutica quanto para o cuidado a partir de medidas para limitação do esforço terapêutico, com vistas ao alívio do sofrimento.

Ao serem questionadas, todas as enfermeiras concordam que contribuem na prestação de cuidados em prol de uma morte digna e reconhecem a influência do conhecimento dos conceitos de eutanásia, distanásia e ortotanásia, assim como a aplicação destes para a promoção da morte com dignidade. Duas participantes apontam a comunicação como elemento preponderante para a adequada aplicabilidade dos cuidados; outras três responderam que a adequada inter-relação do trabalho em equipe e multidisciplinar é fator que favorece o cuidado de qualidade; para as outras três, o cuidado deve pautar-se em práticas que evitem eutanásia e distanásia, de modo a promover a ortotanásia.

A pergunta sobre o que norteia as ações da enfermeira quando depara com práticas distanásicas, quatro entrevistadas responderam que suas atitudes contrárias a essas práticas baseiamse nos princípios bioéticos e na religiosidade; duas afirmaram que se baseiam nos desejos e emoções dos pacientes; para as demais, a base de suas convicções estaria no respeito à dignidade humana.

Ao serem questionadas sobre os princípios bioéticos, todas responderam que os conhecem; no entanto, apenas cinco participantes os relacionaram corretamente. As outras três enfermeiras não responderam corretamente a questão, citando outros princípios, como equidade, ou apresentaram resposta incompleta.

A pergunta relacionada à relevância de a enfermeira conhecer esses conceitos, todas concordam com a necessidade de aplicação dos quatro princípios bioéticos, com vista à preservação da dignidade da pessoa e de sua família. Três reforçaram que esse conhecimento contribui para melhorar a prática dos cuidados com o paciente em fase terminal.

Todas concordaram quanto à importância da participação do paciente, da família e do enfermeiro no processo de tomada de decisão em relação ao tratamento. Contudo, apenas três consideraram o princípio bioético da autonomia do paciente como elemento essencial para esse processo; as demais afirmaram que a decisão deve ser da equipe multiprofissional.

A última pergunta trouxe o questionamento sobre o que fundamenta seu modo de ação profissional. Todas responderam que, para o bom desenvolvimento do trabalho, é necessário estarem atentas aos princípios bioéticos, em particular o respeito à individualidade do paciente, considerando o respeito à autonomia como eixo norteador de suas ações profissionais.

Discussão

Quanto à definição do conceito de eutanásia, observaram-se respostas que convergiam para o conceito primitivo, o de eutanásia significando “boa morte”, como nas respostas das enfermeiras P5, P6 e P7, descritas no Quadro 1. Já as demais manifestaram a compreensão da eutanásia como prática ilegal, cujo significado é a antecipação da morte de forma provocada.

Estabelecendo correlação com as variáveis, formação em pós-graduação e tempo de experiência em UTI, entre as enfermeiras P5, P6 e P7, duas têm pós-graduação como intensivistas, enquanto a outra possui maior tempo de atuação em UTI (mais de três anos na área). Essa associação nos leva a pensar que são fatores que propiciam maior reflexão e aprofundamento em relação ao conceito de eutanásia, em sua essência etimológica, demonstrando conhecimento que se encontra além do conceito atual de eutanásia como morte provocada.

A definição das demais participantes corres ponde ao empregado pelo ordenamento jurídico-deontológico nacional, que respalda o Código de Ética dos Profissionais de Enfermagem66. Brasil. Conselho Federal de Enfermagem. Resolução nº 311, de 8 de fevereiro de 2007. Aprova a reformulação do código de ética dos profissionais de enfermagem e dá outras providências. [Internet]. Diário Oficial da União. Seção 1. Brasília; 17 fev 2007 [acesso 23 set 2016]. Disponível: http://bit.ly/2crqftC.
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: ato proibido, relacionado a promover ou participar em prática destinada a antecipar a morte do cliente77. Pessini L. Distanásia: por que prolongar o sofrimento? Ciência Hoje. 2013;301:61-3.. Logo, para essas enfermeiras, entendese a eutanásia como ilegal, assumindo a atual definição de ato criminoso, de acordo com a legislação brasileira. Vale ressaltar que se pode correlacionar o conceito primitivo de eutanásia como “boa morte” ao dos cuidados paliativos, quando se busca proporcionar o cuidado pautado em princípios que integram técnica, tecnologia e humanização, de modo a promover qualidade de vida a doentes terminais, com alívio da dor e do sofrimento, sem abreviar a vida, e evitando a futilidade e obstinação terapêuticas.

A participante P7 define eutanásia como “morte assistida”, o que nos permite pensar que ela tenha associando essa ideia à de suicídio assistido. No entanto, para alguns autores55. Corvino JDF. Eutanásia: um novo paradigma. Rev. SJRJ. 2013;20(37):53-73., existem diferenças entre esses conceitos, sendo a eutanásia tratada como ato no qual o profissional põe termo à vida de pessoa acometida por doença incurável, ao passo que o suicídio assistido ocorre quando a pessoa solicita a ajuda de outra para, de fato, provocar sua morte, caso não seja capaz de executar essa ação.

Os dados evidenciados nesta pesquisa estão de acordo com os resultados de outro estudo, no qual os achados apontam a ideia de eutanásia que se aproxima ao sentido dado pela nova definição, também veiculada nos meios de comunicação e do conhecimento da população em geral1616. Silva RS, Campos AER, Pereira A. Cuidando do paciente no processo de morte na unidade de terapia intensiva. Rev Esc Enferm USP. 2011;45(3):738-44..

Quanto à definição de distanásia, as respostas são bastante convergentes e tendem à definição correta, centrando-se na promoção de medidas terapêuticas consideradas fúteis e inúteis, prestadas a pacientes terminais, resultando em morte lenta e prolongada, acompanhada de sofrimento, dor e agonia. As pesquisas sobre o conceito revelam que, de fato, é prática questionada e discutida há anos, quanto à falta de propósito no tratamento dispensado a pacientes não recuperáveis, com uso indiscriminado do arsenal terapêutico avançado, promovendo sustentação indefinida do suporte vital1717. Pessini L. Conceito de distanásia: das origens ao atual debate norte-americano. In: Pessini L. Distanásia: até quando prolongar a vida? São Paulo: Loyola; 2001. p. 141-61.. A constatação da dor e sofrimento associados a essa situação tem gerado discussões e implica dilema bioético que também interfere na prestação dos cuidados empreendidos pela equipe de enfermagem.

Esse dilema passa pela questão do tempo em que se pode ou se deve tomar uma decisão quanto à continuidade do tratamento sem provocar sofrimentos adicionais ao paciente1717. Pessini L. Conceito de distanásia: das origens ao atual debate norte-americano. In: Pessini L. Distanásia: até quando prolongar a vida? São Paulo: Loyola; 2001. p. 141-61.,1818. Felix ZC, Costa SFG, Alves AMPM, Andrade CG, Duarte MCS, Brito FM. Eutanásia, distanásia e ortotanásia: revisão integrativa da literatura. Cien Saude Colet. 2013;18(9):2733-46.. Neste estudo, as enfermeiras veem essa questão como geradora de conflito bioético, pois reconhecem a necessidade de intensa discussão entre equipe médica e de enfermagem para tomada de decisão quanto ao plano assistencial a ser proposto a paciente em situação de terminalidade.

Essa discussão deve se valer do princípio da autonomia, pautado em diálogo esclarecedor que permita ao paciente recusar tratamento com conhecimento e liberdade, entendendo que é possível evitar o conflito moral quando se respeita a autonomia do paciente, mesmo que este não esteja comunicativo no momento da tomada de decisão. Também é importante considerar os recursos bioéticos, a exemplo das diretivas antecipadas de vontade, como estratégia que visa auxiliar a tomada de decisão – pela equipe multiprofissional, paciente e seus familiares –, de modo a atender ao melhor interesse do paciente.

Em pesquisa semelhante1313. Biondo CA, Silva MJP, Dal Secco LM. Dysthanasia, euthanasia, orthothanasia: the perceptions of nurses working in intensive care units and care implications. Rev Latino-am Enfermagem. 2009;17(5);613-9., realizada com 27 enfermeiras, 15 delas (55,5%) entendem a prática da distanásia como prolongamento artificial da vida e sem benefícios, e 3 participantes (11,1%), como morte lenta e acompanhada de sofrimento. As demais não souberam conceituar distanásia. Neste estudo, as participantes foram unânimes em responder que distanásia é o prolongamento artificial da vida sem benefícios; e três chamam atenção de que esse prolongamento se caracteriza pela adoção de medidas fúteis e/ou inúteis para a qualidade de vida do paciente.

A participante P4 define distanásia como situação cujo prognóstico é de doença incurável, irreversível, optando-se pelo prolongamento dessa condição. Isso evidencia a prática de excessivas medidas terapêuticas, que acabam por impor sofrimento e dor à pessoa com doença irreversível e terminalmente enferma, culminando num cenário gerador de conflitos éticos no que se refere à excessiva utilização da tecnologia como terapêutica em pacientes para os quais a morte é inevitável1717. Pessini L. Conceito de distanásia: das origens ao atual debate norte-americano. In: Pessini L. Distanásia: até quando prolongar a vida? São Paulo: Loyola; 2001. p. 141-61..

Por fim, ortotanásia é conceito utilizado para designar e representar o que se defende atualmente como morte digna, sem adição de medidas que abreviem a vida e sem instituir medidas que aumentem o sofrimento desnecessário, mas com a promoção de medidas de conforto para que a morte ocorra em seu tempo certo, o mais natural possível1313. Biondo CA, Silva MJP, Dal Secco LM. Dysthanasia, euthanasia, orthothanasia: the perceptions of nurses working in intensive care units and care implications. Rev Latino-am Enfermagem. 2009;17(5);613-9.,1818. Felix ZC, Costa SFG, Alves AMPM, Andrade CG, Duarte MCS, Brito FM. Eutanásia, distanásia e ortotanásia: revisão integrativa da literatura. Cien Saude Colet. 2013;18(9):2733-46.,1919. Bisogno SBC, Quintana AM, Camargo VP. Entre a vida enferma e a morte sadia: a ortotanásia na vivência de enfermeiros em unidade de terapia intensiva. REME Rev. Min. Enferm. 2010;14(3):327-34.. Essa perspectiva também se evidenciou nas respostas das enfermeiras deste estudo. A maioria delas converge para o conceito de ortotanásia como sinônimo de morte natural e como processo relacionado à fase final do ciclo da vida.

Todavia, essa definição não é a única. Chamam atenção as respostas das enfermeiras P4, P6 e P8, traduzem o conceito como sinônimo de cuidados paliativos. A participante P4, por sua vez, enfatiza a necessidade do respeito à autonomia do paciente diante de seu direito de aceitar a morte e decidir por não querer investir em tratamentos desproporcionais. Já a enfermeira P7 traz definição um tanto distorcida, remetendo à conotação de abandono, ao afirmar que ortotanásia é deixar a morte acontecer sem nenhuma interferência.

Pesquisa que teve por objetivo conhecer a percepção de enfermeiras sobre a prática da ortotanásia em contexto hospitalar1919. Bisogno SBC, Quintana AM, Camargo VP. Entre a vida enferma e a morte sadia: a ortotanásia na vivência de enfermeiros em unidade de terapia intensiva. REME Rev. Min. Enferm. 2010;14(3):327-34. verificou que esta é considerada conceito novo. De acordo com as enfermeiras, é a possibilidade viável de tratar a morte como processo irremediável e constante, de forma a contrapor-se ao prolongamento do sofrimento humano. Essa interpretação corrobora as respostas das oito enfermeiras que responderam ao questionário deste estudo.

Esses dados reforçam que as participantes consideram que as ações das enfermeiras devem ser fundamentadas pela promoção de cuidados, com vistas aos princípios da ortotanásia como a arte de morrer com dignidade e humanidade, de modo a integrar ética, estética, ciência e habilidades técnicas2020. Pessini L, Barchifontaine CP. Eutanásia: Por que abreviar a vida? In: Problemas atuais de bioética. 10ª ed. São Paulo: Loyola; 2012. p. 371-406.. No entanto, embora as enfermeiras tenham conceituado ortotanásia com base na fundamentação teórica, observa-se, no aprofundamento da análise, que, apesar de coerente, o conceito não é empregado de maneira adequada em sua prática no âmbito das UTI. É importante salientar que a ortotanásia objetiva a busca por promoção de cuidados, para permitir a morte com alívio do sofrimento2121. Silva FS, Pachemshy LR, Rodrigues IG. Percepção de enfermeiros intensivistas sobre distanásia em unidade de terapia intensiva. Rev Bras Ter Intensiva. 2009;21(2):148-54..

Apesar de algumas enfermeiras considerarem a ortotanásia como sinônimo de “cuidados paliativos”, o conceito mais adequado é o de morte natural e desejável, sem prolongamento artificial da vida, que ocasionaria sofrimento e alteraria o processo natural do morrer99. Moritz RD. Ortotanásia: o direito à morte no tempo certo. Ciência Hoje. 2013;301:64-5.. Por conseguinte, os cuidados paliativos ampliam esse conceito para os cuidados totais de quem se encontra em estado terminal e de sua família. Contudo, não ficou evidente, nas respostas das participantes deste estudo, a preocupação de inserir a família no processo decisório, bem como de que exista, de fato, discussão em defesa da prática dos cuidados paliativos.

Portanto, existe conhecimento teórico, mas que – infelizmente – não é aplicado na prática. Em outros estudos1616. Silva RS, Campos AER, Pereira A. Cuidando do paciente no processo de morte na unidade de terapia intensiva. Rev Esc Enferm USP. 2011;45(3):738-44. também se evidenciou que enfermeiras, em seu cotidiano, reconhecem que suas práticas de cuidados no âmbito das UTI se pautam em medidas distanásicas, reflexo da grande valorização do arsenal terapêutico destinado a manter artificialmente a vida. As expectativas desproporcionais em relação à eficácia das práticas médicas, bem como o temor dos pacientes e seus familiares diante da terminalidade, exigem dos profissionais raciocínio mais adequado, que considere ética e humanização, visando ao maior conforto possível do paciente. Caso contrário, serão maiores as chances de se incorrer em medidas distanásicas que promovam sofrimento e afastem o paciente da ortotanásia.

Por fim, quando questionadas sobre a adoção dessas práticas (eutanásia, ortotanásia e distanásia) em seu cotidiano, as participantes foram unânimes em responder que a ortotanásia é recorrente no contexto das duas UTI estudadas. Entretanto, seis enfermeiras apontaram que, apesar de praticarem a ortotanásia, é muito comum identificarem processos distanásicos. Todas negaram a existência da prática da eutanásia.

Outro estudo2222. Menezes MB, Selli L, Alves JS. Dysthanasia: nursing professionals’ perception. Rev Latino-am Enfermagem. 2009;17(4):443-8. também aponta que enfermeiras identificam a distanásia no seu dia a dia como morte sofrida, com muita dor, introduzindo tratamento agressivo que só prolonga o processo de morrer. Contudo, revela que é também prática das enfermeiras combater os processos distanásicos e proporcionar a ortotanásia, sempre priorizando o conforto e o alívio da dor, em prol de melhor qualidade de vida nos dias que restam ao paciente. Essa condição nos possibilita inferir que isso também acontece no ambiente onde se desenvolveu esta pesquisa.

Passando para as questões subsequentes – a pergunta sobre a contribuição das enfermeiras nos cuidados para a morte digna, e se esta sofre influência do conhecimento que têm sobre eutanásia, ortotanásia e distanásia –, verificou-se reconhecimento unânime de que procuram prestar esse auxílio pelo bem do paciente, sob influência de seus conhecimentos prévios. Essa interferência passa por atuação pautada numa adequada inter-relação da equipe multidisciplinar, configurando-se como processo de comunicação harmônico e dinâmico, com o intuito de evitar a eutanásia, bem como os processos distanásicos, para promover a ortotanásia.

A comunicação, verbal ou não verbal, é essencial para que profissionais de enfermagem interpretem as informações e sinais transmitidos pelo paciente, repassem aos demais cuidadores e interajam adequadamente com o enfermo e sua família. Porém, dada à delicadeza da situação e a possibilidade de o próprio paciente sentir e expressar emoções e desejos contraditórios, grande parcela das participantes sente-se despreparada para exercer com segurança sua habilidade comunicativa, tornando a terapêutica dificultosa, em aspecto considerado estrutural para o adequado exercício dos cuidados paliativos, para pacientes, familiares e equipe33. Silva RS, Amaral JB, Malagutti W. Enfermagem em cuidados paliativos: cuidando para uma boa morte. São Paulo: Martinari; 2013. p. 77-93.. Embora a comunicação verbal e não verbal faça parte do arsenal de capacidades humanas inatas, nem sempre se revela habilidade fácil de exercitar.

O pleno exercício das habilidades comunicativas demanda troca de informações entre emissor e receptor. Depreende-se que o processo não é facilitado em situações de difícil nomeação tanto para profissionais quanto para pacientes, em circunstâncias que admitem mais de uma interpretação, por causa da natural dicotomia entre o desejo de viver e o medo de morrer, e que acontece sob a responsabilidade assumida pelo profissional de tentar realizar o melhor para o outro, com base em sua consciência moral e nas normas deontológicas que fundamentam o exercício de sua atividade de trabalho. Em conjunto, essas circunstâncias podem dificultar a prática profissional da enfermagem de cuidados paliativos, transmitindo a sensação de desamparo e fracasso às profissionais.

Diante desse quadro subjetivo, porém impactante, profissionais intensivistas buscam orientações que facilitem a atividade laboral cotidiana. Quanto ao que norteia sua prática, as enfermeiras responderam que os princípios bioéticos são instrumentos balizadores, em particular o princípio da autonomia, respeitando os desejos do paciente, a fim de prestar cuidado humano na busca por promover a ortotanásia, apesar de se observarem contradições com as respostas anteriores, o que se pode atribuir à análise apresentada anteriormente.

A literatura aponta que é responsabilidade e dever da equipe de enfermagem atentar para os direitos dos pacientes e os princípios bioéticos, garantindo-lhes assistência que supra todas as suas necessidades e lhes proporcione conforto. Por isso, é importante que enfermeiras tenham conhecimentos das práticas distanásicas, para não praticá-las, em prol de cuidado adequado que não viole os princípios éticos de sua profissão. Evita-se, assim, empreender cuidados que prolonguem o sofrimento2323. Coêlho AFVCMB, Costa AKG, Lima MG. Da ética principialista para a bioética de intervenção: sua utilização na área da saúde. Rev Tempus Actas Saúde Col. 2013;7(4):239-53.. Essa é uma situação ainda difícil de gerenciar, pois o trabalho pautado na interdisciplinaridade é bastante incipiente, especialmente porque a tomada de decisões pelas enfermeiras se mostra pouca ativa, sendo restrita ao médico2222. Menezes MB, Selli L, Alves JS. Dysthanasia: nursing professionals’ perception. Rev Latino-am Enfermagem. 2009;17(4):443-8.. Para tanto, é importante ressaltar que, nos cuidados paliativos, preconiza-se a atuação dos demais membros da equipe multidisciplinar, propiciando cuidado interdisciplinar que não envolve apenas a participação da enfermeira e do médico.

Sabe-se que a bioética principialista define como elementos norteadores os quatro princípios (autonomia, justiça, beneficência e não maleficência) e orienta sua aplicação prática para o cuidado com dignidade, tanto do enfermo quanto de sua família. Contudo, observou-se a dificuldade de três participantes em reconhecer e descrever quais são esses princípios: não souberam citá-los nem defini-los. Essa situação faz pensar na subvalorização da formação bioética e nas discussões sobre seu papel na prática profissional em saúde, o que pode influenciar no pleno exercício ético e profissional das equipes. Vale chamar atenção para o fato de que, apesar de a ética ser tema transversal na formação da enfermeira, ainda existem profissionais que confundem ou desconhecem os princípios bioéticos norteadores de sua prática profissional.

A bioética tem sido incorporada à construção históricosocial da enfermagem, o que garante novos alicerces para enfrentar desafios cotidianos em interligar cuidado ético e cuidado técnico, integrando princípios e competências em contexto de cuidado e responsabilização pelo respeito ao ser humano, na promoção da saúde e alívio do sofrimento1616. Silva RS, Campos AER, Pereira A. Cuidando do paciente no processo de morte na unidade de terapia intensiva. Rev Esc Enferm USP. 2011;45(3):738-44.. Por isso, é necessário que se valorize a bioética como importante campo de reflexão sobre a vida e, considerando sua inclusão no contexto profissional, que seja possível sua utilização como ferramenta capaz de alimentar o diálogo e o respeito, tornando-a pluralista e menos complexa22. Pessini L, Hosne WS. Bioética no futuro e o futuro da bioética. Bioethikos. 2012;6(2):123-4., em particular quando se trata do princípio da autonomia.

Pela análise das respostas das participantes, percebese que existe necessidade de melhor uso dos princípios bioéticos, para evitar processos distanásicos e alcançar a prática da ortotanásia, com respeito à individualidade no planejamento dos cuidados, com reconhecimento à autonomia e dignidade humana. Como se evidenciou em outro estudo2424. Santana JCB, Rigueira ANM, Dutra BS. Distanásia: reflexões sobre até quando prolongar a vida em uma Unidade de Terapia Intensiva na percepção dos enfermeiros. Bioethikos. 2010;4(4):402-11., as enfermeiras ressaltam a importância do emprego de cuidados paliativos nas UTI e discutem a necessidade da presença de familiares, de medidas de conforto, de respeito à autonomia do paciente, para o cuidado humanizado. Os dados levantados permitem deduzir, ainda, a necessidade de que todos os profissionais envolvidos na prática clínica incluam, em seu trabalho, a avaliação ética, de modo a assegurar ao paciente uma morte digna2525. Camargo JCM, Tercero MPM, Lopez MPN, Maeso MJE, Fernandez-Infantes SP, Valverde PC et al. Limits of therapeutic effort: Professional opinions. Enferm Intensiva. 2012;23(3):104-14..

Quanto à tomada de decisões, as respostas das enfermeiras possibilitam inferir que sua participação e a do paciente e sua família são de extrema importância, mediante processo de comunicação eficaz, para garantir a autonomia do paciente. Desse modo, faz-se necessária a inserção da enfermeira no processo decisório da equipe de cuidados paliativos, sob a ótica da interdisciplinaridade, visto que o cuidado é inerente à profissão, desde sua concepção por Florence Nightingale. Assim, utilizam-se essas diretrizes para ajudar o paciente em estado terminal, assim como sua família no processo de luto, tendo como fio condutor o cuidado e a preservação da dignidade 1010. Boemer MR. Sobre cuidados paliativos. Rev Esc Enferm USP. 2009;43(3):500-1..

Considerações finais

Conclui-se que, apesar de as enfermeiras compreenderem os conceitos de eutanásia, ortotanásia e distanásia, e reconhecerem sua importância para o cuidado tanto do paciente terminal quanto de sua família, não foi possível depreender das respostas analisadas que, na prática cotidiana das profissionais, os princípios da ortotanásia estejam efetivamente presentes. Isso pode, de certa forma, influenciar negativamente na qualidade de assistência, em particular no que diz respeito à aplicabilidade dos princípios bioéticos e à inclusão e participação da família no processo.

Evidenciou-se que se entende o conceito de ortotanásia como sinônimo de “cuidados paliativos”. Entretanto, como apresentado nas discussões, os cuidados paliativos estão além da simples aceitação da morte no tempo certo, mas requerem medidas de cuidado, para aliviar o sofrimento, e a inclusão da família como unidade de cuidado, de modo que ela também receba atenção por parte da equipe interdisciplinar de saúde.

Ainda é marcante a prática assistencial que apresenta indícios da futilidade e obstinação terapêutica. Todavia, esperase que as enfermeiras passem a refletir sobre suas situações na prática cotidiana, para evitar terapêutica fútil e empreender cuidado que favoreça a dignidade do doente terminal, minimizando o sofrimento tanto dele quanto de sua família, em prol de um processo de luto mais humano.

  • Aprovação CEP-Uneb 344.168

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Anexo Instrumento de coleta de dados

Iniciais: ____ Idade: ____ Sexo: F ( ) M ( )

Tempo de graduada: _____ Tempo de atuação em UTI: _____

Tem especialização? S ( ) N ( )

Quais? ________________________________

Vínculo:

( ) Enfermeira coordenadora

( ) Enfermeira assistencial

( ) Enfermeira residente

  1. Você conhece os conceitos de distanásia, eutanásia e ortotanásia? S ( ) N ( )

    Caso sim, defina-os:

    ________________________________________________________________________________________

  2. Esses processos ocorrem em sua prática diária? S ( ) N ( )

    Caso sim, quais? ___________________________________________________________________________

  3. Você acredita que o(a) enfermeiro(a) pode contribuir por saber esses conceitos e sua adequada aplicabilidade? S ( ) N ( )

    De que modo?

    ________________________________________________________________________________________

  4. O que norteia suas ações como enfermeira diante de alguma situação distanásica?

    ________________________________________________________________________________________

  5. Que princípios bioéticos você conhece? ______________________________________________________

  6. Qual é a importância do conhecimento desses conceitos em sua assistência cotidiana?

    ________________________________________________________________________________________

  7. Você acredita que o(a) enfermeiro(a), a família e o próprio paciente deveriam participar dos processos de tomada de decisão no que diz respeito a seu tratamento? S ( ) N ( )

    Caso sim, como?

    ________________________________________________________________________________________

  8. Qual(is) é(são) o(s) fundamento(s) de seu modo de ação profissional?

    ________________________________________________________________________________________

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Sep-Dec 2016

Histórico

  • Recebido
    10 Fev 2016
  • Revisado
    20 Set 2016
  • Aceito
    22 Set 2016
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