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Vivências da morte de pacientes idosos na prática médica e dignidade humana

Resumo

Este estudo objetivou conhecer as vivências da morte de pacientes idosos na prática médica e a dignidade humana em ambiente hospitalar. Aborda o olhar do médico em suas experiências com a morte de pacientes idosos, bem como o comportamento e as reações dos familiares na iminência da morte de seus entes queridos. Trata-se de pesquisa qualitativa, de caráter exploratório e descritivo. Realizaram-se entrevistas semiestruturadas com 11 médicos que atuam há mais de cinco anos em hospital de grande porte do interior do Rio Grande do Sul. Por meio de análise temática de conteúdo, esta pesquisa analisa a categoria “vivências da morte de pacientes idosos na prática médica” e suas subcategorias. Conclui-se que é necessário inserir na formação médica a discussão e o estudo sobre abordagem e enfrentamento da morte, a fim de minimizar dilemas éticos vivenciados pelos profissionais em sua prática cotidiana.

Palavras-chave:
Envelhecimento; Bioética; Cuidados paliativos; Morte

Abstract

This study focuses on the experiences of death of older adults in medical practice, and human dignity in hospital environments. It discusses the medical perspective regarding their experience with death of older adults, as well as the behavior and reactions of the family when their loved ones are on the verge of death. The research was qualitative, exploratory, and descriptive. Researchers conducted semi-structured interviews with eleven doctors, who have worked for over five years in a large hospital in the State of Rio Grande do Sul. Through thematic content analysis, this research analyzed the “experiences of death of older adults in medical practice” and the subcategories related to it. It concludes that it is necessary to include within medical training opportunities for the discussion and study of how to approach and deal with death, in order to minimize ethical dilemmas faced by professionals in their daily practice.

Keywords:
Aging; Bioethics; Palliative care; Death

Resumen

El estudio tuvo como objetivo conocer las vivencias en torno a la muerte de pacientes de edad avanzada en la práctica médica y la dignidad humana en el ambiente hospitalario. Se aborda la perspectiva del médico en sus experiencias con la muerte de pacientes ancianos, así como el comportamiento y las reacciones de los familiares ante la inminencia de la muerte de sus seres queridos. La investigación fue cualitativa y de carácter exploratorio y descriptivo. Se realizaron entrevistas semiestructuradas con 11 médicos, que trabajan desde hace más de cinco años en un hospital de gran porte en Río Grande do Sul, Brasil. A través del análisis temático de contenido, esta investigación analizó la categoría “vivencias en torno a la muerte de pacientes de edad avanzada en la práctica médica” y las subcategorías relacionadas a la misma. Se concluye que es necesaria la inserción en la formación médica de espacios de discusión y estudio sobre el abordaje y el afrontamiento de la muerte, con el fin de minimizar los dilemas éticos que enfrentan los profesionales en su práctica cotidiana.

Palabras clave:
Envejecimiento; Bioética; Cuidados paliativos; Muerte

A finitude das pessoas, de forma natural ou associada a doenças terminais, reporta a novas perspectivas e transformações do conhecimento sobre envelhecimento. No processo de terminalidade do ser humano, profissionais da saúde precisam considerar a qualidade de vida, pois não basta sobreviver: o tempo que resta deve ser desfrutado com dignidade. Para isso é necessário que profissionais que cuidam de alguém em seus últimos momentos desenvolvam habilidades e conhecimento dos sintomas e sinais físicos, e que tenham capacidade de responder às necessidades espirituais e emocionais dos pacientes, atributos da arte de cuidar, que pode ser muito adequada nessa situação11. Burlá C, Py L. Humanizando o final da vida em pacientes idosos: manejo clínico e terminalidade. In: Pessini L, Bertachini L, organizadores. Humanização e cuidados paliativos. 2ª ed. São Paulo: Loyola; 2004. p. 319..

Prolongar o sofrimento de uma vida em fase terminal é questão sensível, implicando decisões delicadas que exigem conhecimento complexo do processo, observação criteriosa das condutas e diálogo honesto na tomada de decisão por parte dos envolvidos. O ensino médico tradicional tende a “treinar” o profissional da saúde para salvar o paciente a qualquer custo, pois o “inimigo a ser vencido” é a morte. Prepara-se o profissional para a vida, e não para a morte. Esse intuito parece relegar a segundo plano a noção de que é preciso que essa sobrevida seja experienciada com dignidade. Se não há mais condutas possíveis que levem à cura, faz-se necessário adotar cuidados paliativos para diminuir o sofrimento nessa importante e derradeira etapa da vida e garantir a dignidade do paciente.

A percepção corrente indica que, quando retrocedemos no tempo e estudamos culturas e povos antigos, temos a impressão de que o homem sempre abominou a morte e, provavelmente, sempre a repeliu22. Kübler-Ross E. Sobre a morte e o morrer. 8ª ed. São Paulo: Martins Fontes; 2005. p. 6.. A ritualização da morte é um caso particular da estratégia do homem contra a natureza; por isso, não foi abandonada, mas, ao contrário, aprisionada em suas cerimônias, transformada em espetáculo: o homem tentou contê-la nos espaços e rituais33. Ariès P. O homem diante da morte. 2ª ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves; 1989. vol. 2, p. 659.. Esses ritos reportam à dificuldade de lidar com a morte, reforçando a noção da importância dos cuidados paliativos na terminalidade da vida.

Assim, o objetivo deste estudo foi conhecer as vivências da morte de pacientes idosos na prática médica e a dignidade humana em ambiente hospitalar.

Método

Trata-se de estudo do tipo exploratório, descritivo e com abordagem qualitativa. A amostra incluiu 11 médicos que atuaram por mais de cinco anos em hospital geral de grande porte em cidade da região serrana do Rio Grande do Sul, nas especialidades de clínica médica e clínica cirúrgica, atendendo idosos tanto internados quanto em seus consultórios.

A coleta de dados realizou-se por meio de entrevista semiestruturada individual, gravada por meio eletrônico de áudio com autorização dos participantes. As falas foram avaliadas por análise de conteúdo temática categorial44. Bardin L. Análise de conteúdo. Lisboa: Edições 70; 2009., adaptada de Minayo55. Minayo MCS. O desafio do conhecimento: pesquisa qualitativa em saúde. 12ª ed. São Paulo: Hucitec; 2010., após sua transcrição/decodificação. A coleta de dados ocorreu entre os meses de abril e setembro de 2011.

Ressalta-se que as entrevistas foram realizadas até a saturação dos dados, que ficou evidente quando falas passaram a se repetir e apresentar acréscimo pouco significativo em vista dos objetivos inicialmente propostos para esta pesquisa66. Turato ER. Tratado da metodologia da pesquisa clínico-qualitativa: construção teórico-epistemológica, discussão comparada e aplicação nas áreas da saúde e humanas. 4ª ed. Petrópolis: Vozes; 2010.. Apesar de todos os participantes terem contribuído para a quantificação dos dados, entendeu-se necessário apresentar somente as falas de cinco dos entrevistados, pois as demais apenas confirmavam o disposto.

As questões do instrumento de coleta de dados versavam sobre: 1) experiência e vivência do profissional médico diante da morte de pacientes idosos internados; 2) condutas e atitudes tomadas na prática médica diante da questão do processo de morte de idosos hospitalizados; e 3) comportamento dos familiares perante a iminência da morte. Todas as questões contribuíram para os resultados obtidos neste artigo.

As entrevistas foram individuais, realizadas após aceitação e assinatura do termo de consentimento livre e esclarecido. Cada entrevistado foi ouvido mediante agendamento prévio, em horário e local indicado por ele, com vistas a interferir o mínimo possível em seu cotidiano. A coleta de dados se deu por meio de questões fechadas, referentes à caracterização dos participantes, e abertas, com questionamentos estruturados para atender aos objetivos do estudo.

A duração da entrevista foi de aproximadamente 30 minutos, gravada em aparelho de MP3, com autorização prévia do participante entrevistado. As entrevistas foram transcritas na íntegra. Para evitar problemas éticos referentes à confidencialidade dos dados de pesquisa, optou-se por caracterizar os participantes como “entrevistado” e identificar cada entrevista por sequência numérica (1, 2, 3 etc.), assegurando seu anonimato.

Após a transcrição das entrevistas, os dados foram considerados a partir de análise temática, desenvolvida em três diferentes fases: análise prévia, em que se organiza o material empírico, sistematizando as ideias iniciais e criando as subcategorias; exploração do material, que define a categoria de análise, na qual foram realizadas operações de busca e catalogação do material empírico; e, por fim, tratamento dos resultados obtidos e sua interpretação, de maneira a serem significativos e válidos para os objetivos da pesquisa.

Resultados e discussão

Caracterização dos participantes

Entre os profissionais médicos entrevistados, sete eram do sexo masculino e quatro do feminino. De acordo com a observação do pesquisador, todos eram de cor branca. Um participante era viúvo, e dez casados. Quanto à religião, dez eram católicos e um, espírita.

A faixa etária dos entrevistados variou entre 39 e 63 anos, com intervalo de 16 a 38 anos de experiência na profissão médica. Todos eram pós-graduados. Seis entrevistados eram formados em faculdades particulares, dois em universidades federais na capital e três em federais no interior. Cinco sofreram perda de familiares com terminalidade prolongada.

Quanto à legislação aplicável à problemática da pesquisa, em especial no que tange às questões éticas relativas ao processo de morte e morrer de seus pacientes, foi questionado seu conhecimento sobre o código de ética médica e sobre o estatuto do idoso. Dois entrevistados conheciam totalmente o código de ética médica atual e nove, parcialmente. Um deles conhecia o estatuto do idoso totalmente, sete conheciam parcialmente e três não conheciam o diploma legal.

Categoria e subcategorias

Neste artigo foi considerada a categoria “Vivências da morte de pacientes idosos na prática médica”, constituída pelas subcategorias: 1) “Idoso e seu processo de morte e morrer”; e 2) “Comportamento de familiares na iminência da morte”. Na subcategoria “Idoso e seu processo de morte e morrer”, exprimiram-se nas falas dos participantes, de maneira bastante enfática, manifestações de medo e incerteza, momentos de preocupação e de revelações, bem como vivências sem temores da terminalidade.

Há um momento na vida do paciente em que a dor cessa, a mente entra num estado de torpor, a necessidade de alimentação torna-se mínima e a consciência do meio ambiente quase desaparece na escuridão. É o período em que os parentes andam para lá e para cá nos corredores dos hospitais, esperando o instante da morte77. Kübler-Ross E. Op.cit. p. 281..

É o momento em que é tarde demais para palavras. Como seres humanos e profissionais, temos capacidade de refletir sobre o caminho da morte, transformando o modo de ver a vida, assim como refletir sobre a vida pode levar a experimentar a morte de modo diverso. Então, e só então, poderemos interpelar a morte desnudada, lavrada, desmaquilhada e dissecá-la na sua pura realidade biológica88. Morin E. Os sete saberes necessários à educação do futuro. 5ª ed. São Paulo: Cortez; 2002. p. 9..

Kübler-Ross77. Kübler-Ross E. Op.cit. p. 281. relata que o imaginário visualiza a morte como fato medonho e pavoroso que é compartilhado pelas pessoas. Todos tentam ignorar a morte ou esquivar-se dela, negando assim a condição de ser mortal. Observa-se essa vivência entre os entrevistados: “Eles não querem morrer (…) A morte é uma incógnita, ninguém sabe o que tem lá” (Entrevista 2). Por sua vez, o envelhecimento populacional e a transição epidemiológica implicam tempo prolongado de terminalidade, o que aumenta a demanda dos serviços de saúde e a necessidade de maior suporte às pessoas e às famílias no processo de morte e morrer, o qual atualmente ocorre, em geral, em hospitais.

A diferença de concepção da morte entre as pessoas em geral e os profissionais da área da saúde é que, para estes, ela está presente no cotidiano. No entanto, quando ocorrem perdas sem a elaboração adequada do luto, a possibilidade de adoecimento cresce. Nessa perspectiva, se não for bem trabalhada a questão do processo de morte e morrer e a finitude da vida, toda doença passa a ser vista como ameaça à vida, um aceno à morte99. Kovács MJ. Morte e existência humana: caminhos de cuidados e possibilidades de intervenção. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan; 2008. p. 222. e, portanto, situação aflitiva. Assim, é preciso discutir o processo de adoecimento e seu prognóstico para que o paciente e seus familiares possam estar esclarecidos, conscientes e fortalecidos em suas posições.

Essas informações contribuirão para o processo de tratamento e a preparação para o fim da vida, pois favorecerão a dignidade e autonomia do paciente até o momento da morte1010. Kovács MJ. Instituições de saúde e a morte: do interdito à comunicação. Psicol ciênc prof. 2011;31(3):482-503.. Nas palavras de Santin e Bettinelli, o princípio da dignidade da pessoa humana estabelece um grau de proteção da pessoa humana frente ao Estado e às demais pessoas humanas ou pessoas jurídicas públicas ou privadas, além de impor a satisfação de condições existenciais básicas a tornar capaz ao ser humano realmente viver e não só sobreviver. Atinge todos os setores da ordem jurídico-política brasileira, sendo dever do Estado editar leis e realizar políticas públicas visando à satisfação das necessidades vitais básicas de seus cidadãos, velando por sua existência digna. Da mesma maneira, é dever da sociedade agir em conjunto para a efetivação concreta de tais leis e políticas públicas1111. Santin JR, Bettinelli LA. A bioética e o cuidado no envelhecimento humano: um olhar a partir do princípio da dignidade humana e dos direitos fundamentais. Rev Ministério Público RS. 2011;(69):141-55. p. 147..

Dessa forma, é preciso observar o princípio da dignidade humana, previsto no artigo 1º, III, da Constituição Federal1212. Brasil. Presidência da República. Constituição da República Federativa do Brasil, de 5 de outubro de 1988. [Internet]. Diário Oficial da União. Brasília; 5 out 1988 [acesso 11 out 2016]. Seção 1. Disponível: http://bit.ly/1dFiRrW
http://bit.ly/1dFiRrW...
, em todas as fases da vida, inclusive na terminal, que demanda maior atenção por parte do Estado e da sociedade. A morte faz parte da vida humana, e o medo da morte é necessário, uma vez que é expressão do instinto de autopreservação, forma de proteção à vida e de superar instintos destrutivos. Não se pode viver sempre sob a esmagadora presença da morte. Nesse sentido, é preciso “educar” para a terminalidade, sendo esta educação entendida como possibilidade de crescimento pessoal integral, envolvendo desenvolvimento subjetivo durante a vida e também na preparação para a morte1010. Kovács MJ. Instituições de saúde e a morte: do interdito à comunicação. Psicol ciênc prof. 2011;31(3):482-503.. Entretanto, essa noção não é constante entre pacientes. Alguns profissionais entrevistados observaram que alguns idosos não temem a morte:

“Quanto à terminalidade vista na minha atividade profissional, principalmente dos pacientes de idade, o mais importante é que os pacientes não temem a terminalidade (…) os velhos compreendem a terminalidade como parte da vida. Eles aceitam e determinam inclusive os momentos que para eles é definitivo” (Entrevista 1).

Observa-se em algumas respostas que os médicos entrevistados relatam que os pacientes verbalizam que, além de não temerem a morte, usando metáforas para reforçar o domínio da situação, definindo até o local onde querem fazer a sua passagem, como na fala abaixo:

“‘Neste momento de terminalidade eu não sou covarde, eu estou enfrentando’ (…) Poucos dias depois relatou um sonho [referindo-se ao relato do paciente em questão] ‘Eu sonhei que eu estava escrevendo um livro’, pedi que capítulo era e ele me disse que era o último capítulo. A metáfora foi fantástica. Alguns dias depois me chamaram porque ele estava mal. Eu fui a sua casa e perguntei onde ele queria ficar. Ele pediu para ser no hospital e ele morreu poucas horas depois [da internação] (Entrevista 1).

No conteúdo das falas, torna-se claro que, segundo os profissionais entrevistados, a maior preocupação manifestada pelos idosos no processo de morte e morrer é com relação aos familiares que ficam, manifestando-se assim:

“Um paciente que subitamente fez um processo de descompensação hepática. Não sabia da doença até o momento e o diagnóstico era uma neoplasia de fígado. No hospital disse: eu precisava desta doença para dizer para minha família que estou falido, nem minha mulher nem meu filho estão sabendo. Eu não tenho mais nada” (Entrevista 1).

Tal como relatado, pacientes igualmente “dizem que já cumpriram a sua missão” (Entrevista 1). Logo, existe a identificação de dois medos do idoso em fase terminal. Um é que os familiares retenham más lembranças caso o vejam morrer em casa. O outro é o medo da morte, que faz o idoso negar seu próprio fim. Ambos estão relacionados ao medo do sofrimento, do desconhecido e da própria extinção1313. Oliveira SCF, Pedrosa MI, Santos MFS. Quem está mais próximo da morte? Percepção dos idosos sobre que faixa etária se associa mais à morte. RBCEH. 2009;6(1):146-52..

Na subcategoria “Comportamento de familiares na iminência da morte” surge nas falas das famílias, relatadas pelos médicos, interfaces no processo da morte. Isso evidencia de modo claro as dificuldades de lidar com a questão da finitude do ente querido, a influência de questões financeiras nesse momento, bem como a existência de familiares omissos nesse processo:

“Eu vejo em relação aos homens, por exemplo. Muitos homens são maus maridos, maus pais de família ou não são como deveriam ser, né? Separam-se da mulher. Mas o que a gente vê que na fase terminal, quem vai dar o apoio, quem suporta, quem vai estar lá é sempre a primeira mulher. Aquela que foi o primeiro amor. A segunda, a terceira mulher não querem nem saber. O cara está lá morrendo, deixa morrer. Dão tchau mesmo e quem carrega o piano é a primeira mulher. Isso é uma coisa que chama minha atenção” (Entrevista 11).

Ainda sobre vivências do processo de morte e morrer, familiares transmitem ao médico que existem pessoas da família que são impositivas, têm poder de decisão e estão preocupadas com os custos desse processo terminal:

“Eu tenho um plano de saúde VIP, como é que não vai poder ficar aqui dentro do hospital?’ [familiar do paciente]. Eles dizem: ‘eu quero deixar o paciente no hospital’. Mas aí tem toda aquela outra burocracia, que tu sabes como é que funciona, né? Então quando começa a ficar difícil, que ele tá complicando, eles [os familiares] querem ‘terceirizar a morte’” (Entrevista 5);

“Eu fui fazer avaliação clínica e o filho [do paciente] me disse assim: ‘não, não. Nós não vamos fazer a cirurgia, nem adianta essa avaliação. (…) Se nós vamos pagar isso aí vai sobrar o que pra nós?’” (Entrevista 9).

Esses aspectos da situação financeira da família, como custos com internação, também precisam ser analisados pelo profissional médico, e muitas vezes são decisivos para a tomada de decisão por algumas famílias. Entretanto, apesar da influência do aspecto econômico nas decisões sobre os procedimentos a que o paciente deve ser submetido, o profissional também precisa lidar com a dificuldade da família em aceitar a finitude do ente querido. A obstinação dos familiares muitas vezes exige que a equipe médica faça todo o possível para impedir o momento derradeiro, mesmo que isso implique, na prática, distanásia.

E, nesse sentido, o prolongamento abusivo da vida, com sofrimento do paciente, é considerado crime de ofensa à integridade física, atentado contra o corpo humano e até mesmo contra a liberdade da pessoa, quer haja quer não haja aumento do sofrimento. E maior é o gravame penal se assim procede contra a vontade do paciente de que não seja feita a distanásia1414. Cardoso AL. Eutanásia e suicídio assistido. In: Ascensão JO, organizador. Estudos de direito da bioética. Coimbra: Almedina; 2005. vol. 1, p. 246.. Um dos entrevistados exemplifica essa questão com a seguinte manifestação, na qual se percebe o intuito familiar de quase nunca “jogar a toalha” diante da terminalidade: “É muito difícil a família dizer ‘sim, vamos deixar descansar’. Muito difícil. Normalmente eles dizem ‘faz tudo o que der’. Isso é o comum 90%” (Entrevista 9).

Assim, o que os profissionais entrevistados observam é que tanto o paciente quanto os familiares nutrem esperança de cura, negando em primeiro momento a possibilidade da morte. O parecer médico do “não há mais nada a fazer” dificilmente é aceito1515. Pereira LL, Dias ACG. O familiar cuidador do paciente terminal: o processo de despedida no contexto hospitalar. Psico. 2007;38(1):55-65. p. 58.. Se a análise das falas permite observar que a família tem dificuldade para enfrentar seu sofrimento e os dilemas inerentes à morte e ao morrer de seu ente querido, pode-se verificar também que a atitude do profissional perante a terminalidade pode ajudar a compreender melhor esse momento:

“Tive uma paciente com câncer de mama (…) que a família se desesperava e quando eu vi que ela estava muito ruim eu os chamei para fora e disse assim: ‘as pessoas têm que nascer, viver e morrer com dignidade, a partir de agora não tem nada para fazer e vocês têm que aceitar isso para o bem dela’. Essa paciente morreu e ninguém chorou e foi uma coisa boa” (Entrevista 2).

Nessa fala observa-se que o entrevistado orienta a aceitação familiar do processo de morte e morrer do ente querido e consegue administrar o sentimento de perda. A situação dos envolvidos, exemplificada nessa subcategoria, corrobora as afirmações anteriores de que, na maioria das vezes, o idoso tem medo da própria extinção e usa metáforas como mecanismo de defesa. Por sua vez, o familiar tem medo de não ver mais seu ente querido, e o médico, que percebe essas vivências na prática, tenta administrá-las de maneira a respeitar a autonomia do paciente e a vontade dos familiares1313. Oliveira SCF, Pedrosa MI, Santos MFS. Quem está mais próximo da morte? Percepção dos idosos sobre que faixa etária se associa mais à morte. RBCEH. 2009;6(1):146-52.. Afinal, é preciso resguardar a dignidade humana tanto na vida quanto na fase terminal dos pacientes.

Considerações finais

Este estudo demonstra que há necessidade de intervenções efetivas diante da questão da finitude humana, buscando desenvolver ações e estratégias de enfrentamento do processo de morte e morrer com dignidade. Além disso, é imperativo o estímulo ao suporte aos profissionais que atuam no cuidado ao idoso, pois se defrontam com a realidade da terminalidade dos pacientes. A morte dos pacientes é fenômeno complexo, com implicações individuais profundas, devendo ser abordada e acompanhada em trabalho interdisciplinar.

A consciência da problemática que envolve o cotidiano do profissional médico em relação aos aspectos do limite da vida/morte é dilema que oferece subsídios para reflexões, podendo gerar discussões para desenvolver estratégias de enfrentamento. Com esta pesquisa, foi possível apreender vivências tanto dos médicos quanto dos familiares no processo de morte e morrer, criando situações inquietantes na vida de cada profissional. Isso propiciou refletir e redirecionar para novo agir, bem como buscar transformação do cuidado nesse momento difícil da vida de cada ser humano.

Dentro dessa perspectiva, é imperativo criar espaços de discussão durante a formação médica sobre vivência e enfrentamento da morte de seus pacientes. Esses espaços/vivências poderão minimizar dilemas éticos enfrentados no cotidiano de trabalho dos futuros profissionais da medicina. Sugerem-se novos estudos para ampliar ainda mais o conhecimento sobre o tema, envolvendo outros segmentos da sociedade.

Referências

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    2016

Histórico

  • Recebido
    16 Jan 2016
  • Revisado
    27 Set 2016
  • Aceito
    10 Out 2016
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