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Editorial

Se os governadores não construírem escolas, em vinte anos faltará dinheiro para construir presídios. (Darcy Ribeiro 11. Franco BM. Vinte anos sem Darcy. [Internet]. Folha de S. Paulo, A2, Opinião, 19 fev 2017. [acesso 20 fev 2017]. Disponível: http://bit.ly/2lSiJ3p
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Com cultura, origens étnicas, estrutura social, religião e regime político distintos, o que Finlândia, Vietnã, Bélgica ou Xangai têm em comum? A resposta é simples: são alguns dos países (ou províncias) que alcançaram mais de 500 pontos na avaliação do Programa Internacional de Avaliação de Estudantes (Pisa) em 2012 22. Empresa Brasileira de Comunicação. Confira o ranking dos países com melhor desempenho no Pisa. [Internet]. Portal EBC; 2013. [acesso 20 fev 2017] Disponível: http://bit.ly/2kUzjjA
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. O fato de a educação ser elemento comum entre lugares com tantas diferenças socioculturais demonstra sua inequívoca importância como fator capaz de promover a efetiva emancipação de um país e de seu povo.

O ranking que compara 72 países demonstra que nos primeiros colocados a educação é levada a sério, considerada fundamental para suplantar o subdesenvolvimento. Além de ser alavanca para a prosperidade econômica, o aumento da escolaridade colabora para a coesão social. A escolaridade permite o diálogo e propicia a reflexão socialmente compartilhada, que são formas positivas de diminuir a desigualdade, promover a inserção social, colaborar com o fim do subemprego e com a diminuição da mais-valia.

O processo de construção do acesso ao conhecimento, experimentado coletivamente nas sociedades que têm a educação como prioridade, cria bases para a manutenção da identidade étnica e social. Também permite entender os embates com os mais perversos aspectos da globalização: as forças fragmentadoras (que forjam e estimulam preconceitos) e as massificadoras (que disseminam e legitimam a intolerância). Ou seja, a educação se revela ferramenta para estimular a emancipação das pessoas e da sociedade.

Na contramão dessa história de luta e superação em direção à prosperidade, que, segundo o Pisa, viceja em diferentes partes do mundo, o Brasil não avançou na última avaliação: Quase metade (44,1%) dos estudantes brasileiros obteve performance abaixo do nível 2 da prova, considerado adequado33. Paiva T. Brasil mantém últimas colocações no Pisa. [Internet]. Carta Educação, 6 dez 2016. Disponível: http://bit.ly/2h3YYng
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. Ainda que o relatório de 2012 descrevesse trajetória de superação de adversidades 44. Brasil. Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira. Relatório Nacional Pisa 2012: resultados brasileiros. [Internet]. [acesso 20 fev 2017] Disponível: http://bit.ly/2iv2Xud
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, a comparação entre países, em termos absolutos, realizada três anos depois, revelou que não foi atingida a meta de melhorar a educação.

No que tange ao conhecimento de leitura e ciências, o Brasil apenas manteve a posição, e em matemática foi identificada ligeira queda. Isso quer dizer que nessas disciplinas, importantes para a formação profissional em qualquer área, mas essenciais ao desempenho da vida social, os jovens de 15 anos avaliados pela Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) não demonstraram sequer preparo elementar. Essa é uma triste notícia cuja repercussão se estenderá pelas próximas décadas.

É verdade que nesse período continuou aumentando o acesso ao ensino pelos segmentos de menor renda, tendência já identificada em 2012. Entretanto, cabe ponderar que, se os resultados dessa ampliação não favorecem a conquista do objetivo precípuo da instituição – que no caso da escola é produzir saber e transmitir conhecimento –, esse feito perde parte significativa de sua utilidade. Não basta que as pessoas tenham frequentado a escola, é indispensável terem aprendido como se apropriar do conhecimento e entendido a importância de usá-lo de forma socialmente significativa para a sobrevivência do planeta e o bem-estar de todos.

Salvo louváveis experiências pontuais, que revelam mais esforço pessoal do que aplicação genérica de política pública, se poderia dizer então que no Brasil foi verificado aumento da escolarização (a entrada e o tempo de permanência de alguns grupos na escola) ao mesmo tempo que houve diminuição da escolaridade (ou seja, reduziram-se o aprendizado e o rendimento). A exigência para ampliar o acesso à escola (em todos os níveis) não foi precedida pelo aumento da quantidade nem pelo aperfeiçoamento da qualidade da formação profissional, restringindo a eficácia da implantação da política de acesso à educação. Sem que existissem instituições e pessoal preparados, foi promovido o ingresso de contingentes de pessoas que, por essas questões, foram em parte lesadas em seu interesse de buscar conhecimento, porque deixaram de receber toda a formação à qual fazem jus e da qual se consideram legitimamente imbuídas 55. Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo. Médicos com nota vermelha. [Internet]. 21 ago 2012 [acesso 20 fev 2017]. Disponível: http://bit.ly/2mfM48D
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,66. Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo. Exame do Cremesp 2015: exame reprova metade dos médicos recém-formados. Participação na prova começa a ser exigida para acesso a residência médica, concurso público e mercado de trabalho. [Internet]. [acesso 20 fev 2017]. Disponível: http://bit.ly/2li4H7I
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O que se verifica atualmente na educação é falta de pessoal, pois o aumento da demanda não foi respondido pelo crescimento da oferta de mão de obra qualificada, que se associa tangencialmente ao fato de o magistério ter deixado de ser, ao longo das últimas décadas, carreira socialmente respeitada. Também é fácil identificar falta de qualificação em muitos daqueles que já atuam no setor, pois algumas vezes os profissionais que ministram disciplinas não têm real preparo para a tarefa, seja porque não há cursos disponíveis ou devido à falta de qualidade dessa formação 77. Visão do Correio. Investir em professores. Correio Braziliense, 22 fev 2017, p. 10.. Assim, perdem profissionais e estudantes, perdem as instituições brasileiras, perdem as futuras gerações, cujo presente está desde já empenhado em projetos infrutíferos.

Além disso, é urgente a necessidade de aperfeiçoar a qualidade do ensino, resgatando a importância do mérito que, associado à noção de qualidade, precisa ser o objetivo do processo educacional. Atualmente, para grande parte da sociedade brasileira, falar em mérito equivale a advogar vantagens e privilégios, social e moralmente indefensáveis. Esse sentido espúrio deve ser afastado; a noção de mérito deve estar associada ao efeito positivo do esforço de superação, ao empenho para fazer cada vez melhor. Devemos trabalhar para que os problemas da educação pública (em todos os níveis) sejam de fato identificados, para que a qualidade almejada seja realmente atingida, para que os estudantes tenham acesso efetivo ao conhecimento, e não apenas a diplomas que na prática se revelam inconsistentes.

Ademais, no que tange ao teor do conhecimento, é preciso pensar que, em todo o mundo, o conhecimento enciclopédico, identificado até o final do século passado como inteligência e erudição, deixou de ser a marca distintiva da intelectualidade. As máquinas são muito mais eficientes em guardar quantidades inimagináveis de informação (em grandezas expressas por potências de 1.000) e, principalmente, em avaliá-las e compará-las a velocidade inalcançável para o ser humano. Agora o que importa é a capacidade de pensar, de articular informações, raciocinar sobre elas, refletir sobre seu significado e elaborar respostas aplicáveis, ainda que também nesse quesito estejamos fadados a perder para as máquinas em futuro próximo.

Mas a avaliação captada pelo Pisa revela-se definitivamente dilemática quando se tem em vista a dimensão ética, ou seja, quando se consideram os valores relacionados ao processo de educar. E quais seriam exatamente os valores que se está transmitindo à população quando se oferece educação deficiente e de baixa qualidade? A quem se pretende enganar? Porque, quando o país é “flagrado” disputando os dez últimos postos, a rabeira entre outros 72, não dá para fingir que a média da qualidade está sendo elevada com o aumento do acesso.

Assim, consideramos necessário avaliar qualidade e quantidade em separado. Facultar o acesso é ótimo, indiscutivelmente, mas é preciso notar que por si só o acesso não assegura os resultados necessários à diminuição da desigualdade, esperada por e para todas as cidadãs e cidadãos. A educação é o principal meio coletivo para alcançar a melhoria da vida e da qualidade de vida, permitindo conquistar situação profissional mais conveniente e maior satisfação no trabalho. É também fim em si mesma, pois intensifica a compreensão da pessoa sobre as relações no mundo, revelando-se ferramenta para sua emancipação.

Quando se considera que educação é processo contínuo, é simples compreender que, para que um projeto educacional dê certo e produza mudanças efetivas na sociedade, deve estender-se no tempo, abarcando gerações consecutivas. É esse processo que permite consolidar a visão de mundo que orienta o próprio projeto de educação, que no caso brasileiro funda-se na Constituição 88. Brasil. Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília: Senado Federal; 1988.. Por isso, é indispensável que o projeto educacional se configure política de Estado, atravessando diferentes governos e transcendendo as distintas ideologias para garantir a todos os brasileiros, em tempo e espaço, este seu direito fundamental.

Nos últimos onze anos temos sublinhado, em vários editoriais, o quanto acreditamos e lutamos por essa perspectiva. O quanto editores e o corpo editorial da Revista Bioética valorizam a educação, considerando-a parte essencial do direito à saúde. Para nós, saúde e educação não podem estar desvinculadas, sendo a primeira reflexo da segunda, seja no que diz respeito à adoção de políticas destinadas a evitar o adoecimento, seja no que se refere à garantia do melhor atendimento, nas perspectivas ética e técnica. Pelo apoio recebido, acreditamos, inclusive, que também os pareceristas ad hoc concordam conosco e consideram o periódico importante para consolidar a bioética como campo transdisciplinar de produção de saberes.

O reconhecimento da qualidade fez que a Revista Bioética fosse a única do país em seu campo de atuação a conquistar indexação em bases de dados internacionais, como Lilacs, SciELO, Redalyc, Latindex, Periódica, Ebsco, Doaj. Tal feito é considerável para uma publicação científica da América Latina, que desafia os cânones do modelo hegemônico de bioética e traz artigos voltados à dimensão social do processo saúde e adoecimento, como consolidado na Declaração Universal sobre Bioética e Direitos Humanos99. Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura. Declaração Universal sobre Bioética e Direitos Humanos. [Internet]. Paris; 2005. [acesso 20 fev 2016]. Disponível: http://bit.ly/1TRJFa9
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E neste ano em que a Revista Bioética comemora seu jubileu de prata, não poderíamos deixar de agradecer àqueles que efetivamente colaboram cotidianamente conosco, dando os pareceres necessários à avaliação de manuscritos. Queremos também convocar mais uma vez todos os nossos colaboradores, efetivos e extraordinários, a prestar sua generosa contribuição ao periódico. Contamos com sua expertise como autores, avaliadores e leitores, para continuar trabalhando em prol da ética aplicada em nosso país.

Considerando que empenho na formação ética dos profissionais das diversas áreas da saúde promoverá políticas públicas capazes de desencorajar desvios éticos, inibir a mercantilização da saúde e afastar aqueles que causam danos à população, talvez possamos reconstruir a expectativa salutar de eliminar as desigualdades de acesso à saúde e educação, e em 50, 100 ou mesmo outros 500 anos viver em uma sociedade pautada por justiça e equidade. Participar dessa conquista vem sendo há 25 anos o principal desafio da Revista Bioética.

No momento atual, parece que o primeiro passo para efetivar esse processo é resgatar a esperança, que anda combalida nos desvãos da cidadania. A perda da expectativa por dias melhores fraturou a sociedade e solapou a tolerância, cuja falta alimenta o caos em que agora mergulha o país. Esperança, tolerância, respeito, dignidade, integridade e justiça são ingredientes que não podem faltar no pacto social, pois seu estímulo é fundamental para enfrentar as adversidades inerentes à superação dos limites históricos e culturais da formação do país e garantir que, enfim, a justiça social prevaleça. Alcançar essa meta é o objetivo da Revista Bioética, e conclamamos nossos colaboradores e leitores a compartilhá-lo.

Os editores

Referências

  • 1
    Franco BM. Vinte anos sem Darcy. [Internet]. Folha de S. Paulo, A2, Opinião, 19 fev 2017. [acesso 20 fev 2017]. Disponível: http://bit.ly/2lSiJ3p
    » http://bit.ly/2lSiJ3p
  • 2
    Empresa Brasileira de Comunicação. Confira o ranking dos países com melhor desempenho no Pisa. [Internet]. Portal EBC; 2013. [acesso 20 fev 2017] Disponível: http://bit.ly/2kUzjjA
    » http://bit.ly/2kUzjjA
  • 3
    Paiva T. Brasil mantém últimas colocações no Pisa. [Internet]. Carta Educação, 6 dez 2016. Disponível: http://bit.ly/2h3YYng
    » http://bit.ly/2h3YYng
  • 4
    Brasil. Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira. Relatório Nacional Pisa 2012: resultados brasileiros. [Internet]. [acesso 20 fev 2017] Disponível: http://bit.ly/2iv2Xud
    » http://bit.ly/2iv2Xud
  • 5
    Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo. Médicos com nota vermelha. [Internet]. 21 ago 2012 [acesso 20 fev 2017]. Disponível: http://bit.ly/2mfM48D
    » http://bit.ly/2mfM48D
  • 6
    Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo. Exame do Cremesp 2015: exame reprova metade dos médicos recém-formados. Participação na prova começa a ser exigida para acesso a residência médica, concurso público e mercado de trabalho. [Internet]. [acesso 20 fev 2017]. Disponível: http://bit.ly/2li4H7I
    » http://bit.ly/2li4H7I
  • 7
    Visão do Correio. Investir em professores. Correio Braziliense, 22 fev 2017, p. 10.
  • 8
    Brasil. Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília: Senado Federal; 1988.
  • 9
    Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura. Declaração Universal sobre Bioética e Direitos Humanos. [Internet]. Paris; 2005. [acesso 20 fev 2016]. Disponível: http://bit.ly/1TRJFa9
    » http://bit.ly/1TRJFa9

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jan-Apr 2017
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