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Comunicação e consentimento na pesquisa e na clínica: análise conceitual

Resumo

Os dispositivos da comunicação e do consentimento fazem parte das ferramentas da prática em pesquisa e da prática clínica, e têm, portanto, importante dimensão moral em bioética. Isso se deve ao fato de serem estruturados pela dialética entre a conflituosidade inerente ao ethos e as tentativas de estabelecer convergências nele. Essas convergências podem se apresentar como modalidades de tentativa de harmonia entre as partes (como sugerido por Maliandi), ou, mais simplesmente, como maneira de os agentes morais obterem permissão (como sugerido por Engelhardt) do uso dos corpos dos pacientes morais. O artigo propõe análise conceitual desses dispositivos, por considerá-la condição necessária para abordar a moralidade das práticas de pesquisa envolvendo seres humanos e a prática clínica, que se dão entre agentes e pacientes morais.

Comunicação; Consentimento livre e esclarecido; Conflito de interesses

Abstract

The devices of communication and consent are important tools in research and clinical practice. They therefore have an important moral dimension in bioethics, as they are structured by the dialectic between the conflict inherent to the ethos and attempts to establish convergences within the same. These convergences can appear as modalities of attempts at harmony between the parties involved (as suggested by Maliandi), or, more simply, as a way for moral agents to obtain permission (as suggested by Engelhardt) to use the bodies of moral patients. This article proposes a conceptual analysis of such devices, considering such an analysis a necessary condition to approach the morality of research practices involving human beings and clinical practice, involving moral agents and moral patients.

Communication; Informed consent; Conflict of interest

Resumen

Los dispositivos de comunicación y consentimiento son parte de las herramientas prácticas en la investigación y la práctica clínica, y tienen, por tanto, una dimensión moral importante en bioética. Esto porque son estructurados por la dialéctica entre la conflictiva inherente al ethos y los intentos por establecer convergencias. Tales convergencias pueden ser modalidades de un intento por buscar la armonía entre las partes (como sugiere Maliandi), o, más simplemente, una forma de que los agentes morales obtengan permiso (según lo sugerido por Engelhardt) para usar los cuerpos de los pacientes morales. El artículo propone un análisis conceptual de este tipo de dispositivos, pues se considera que es una condición necesaria para abordar la moralidad de las prácticas de investigación involucrando seres humanos y de las prácticas clínicas que se producen entre los agentes y los pacientes morales.

Comunicación; Consentimiento informado; Conflicto de intereses

Atualmente, tanto a prática de pesquisa que utiliza seres humanos como objetos de pesquisa quanto a prática clínica que pretende curar e/ou cuidar de pacientes podem ser vistas como tipos de inter-relações entre atores sociais que se estabelecem graças à “comunicação” e ao “consentimento”. De fato, esses tipos de prática envolvem conjunto de atores que, de acordo com a linguagem adotada pela bioética, podem ser distintos em dois subconjuntos: os “agentes morais” (representados inter alia por pesquisadores, médicos e outros agentes de saúde) e “pacientes morais” (representados aqui por sujeitos objetos de pesquisa científica, chamados também de “participantes”, e por destinatários dos atos de cura e/ou de cuidado dos agentes). A estrutura que se estabelece entre agentes e pacientes morais nos leva a interrogar sobre

… o sentido dos atos, as finalidades, as circunstâncias, as consequências (…) levando em conta ao mesmo tempo a situação concreta, em sua singularidade e complexidade, (…) [sendo que,] em tal perspectiva, a ética é chamada a ser constantemente uma ética da interrogação e uma ética do diálogo e da discussão. Interrogação porque as situações frequentemente são inéditas e porque as respostas não são evidentes. Discussão porque a novidade e a complexidade das questões exigem a contribuição de várias inteligências 11. Durand G. Introdução geral à bioética: história, conceitos e instrumentos. São Paulo: Loyola; 2003. p. 88-9..

Em particular, do ponto de vista da bioética, agentes e pacientes morais podem ser vistos como atores que se relacionam entre si no ethos, entendido como fenômeno da moralidade a ser estudado pela ética, por sua vez entendida como tematização do ethos, o que inclui todo esforço para esclarecê-lo. Isso torna a ética tematização de si mesma, isto é, a integração da ética no ethos, o que enriquece e complexifica o próprio ethos22. Maliandi R. Ética: conceptos y problemas. Buenos Aires: Biblos; 1991. p. 11.. Ou seja, a ética se estrutura e reestrutura devido a conglomerado de problemas representados pelas relações conflitivas constitutivas do ethos, mas também graças às tentativas de construir convergências.

Essas convergências podem ser entendidas como busca de um equilíbrio entre as funções contrapostas da razão, e têm o objetivo de evitar, resolver ou, pelo menos, regular os conflitos, partindo do reconhecimento de um a priori da conflituosidade e da vigência de uma pluralidade de princípios entendida como fundamento capaz de maximizar a harmonia entre eles33. Maliandi R. Ética: dilemas y convergencias: cuestiones éticas de la identidad, la globalización y la tecnología. Buenos Aires: Biblos; 2006. p. 11-4.. Nesse sentido, a comunicação e o consentimento parecem constituir ferramentas racionais necessárias e adequadas para tentar dar conta dos conflitos em pauta, que podem ser de interesses, mas também de valores e sistemas de valores usados para “evitar”, “resolver” ou “regular” a conflituosidade.

Entretanto, os termos “comunicação” e “consentimento” possuem vários sentidos, o que torna as discussões nem sempre muito objetivas. De fato, temos um significado de “comunicação” que é meramente instrumental e quantificável: o de transmissão de informação44. Blackburn S. Dicionário Oxford de filosofia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar; 1997. p. 66., que torna “comunicação” sinônimo de “informação”. Mas essa operação conceitual pode ser vista como inapropriada, pois essa identificação dos dois termos constitui na realidade um tipo de subsunção do significado de “comunicação” àquele de “informação”, operação que de fato quantifica e esquece o significado mais extenso de “comunicação”, entendida como tipo de “relação social”.

Esse significado mais extenso do termo pode ser visto como referido a pelo menos três tipos de relação: 1) relação de demanda ou pedido de uma pessoa (ou grupo de pessoas) que requer informação de outra pessoa (ou de outro grupo de pessoas); 2) relação entre o emissor de uma mensagem e seu receptor (e que remete à sinonímia “comunicação” – “informação”); 3) relação de “injunção”, que pode ser vista como indício de relação assimétrica em que uma das pessoas [tem] um papel ativo e outra um papel passivo, isto é, relação em que o emissor de uma mensagem fornece ao receptor indicação que se refere a esta relação social55. Prieto LJ. Études de linguistique et de sémiologie générales. Genève: Librairie Droz; 1975. p. 125--41.. Essa relação poderá ser também vista, em determinadas circunstâncias, como relação instrumental (no caso da pesquisa) e relação “paternalista” de poder (no caso da clínica).

Para tentar esclarecer os dois tipos de dispositivos representados por “comunicação” e “consentimento” será realizada, a seguir, análise linguística dos dois conceitos, tentando esclarecer seus significados. Isso porque, como visto, a comunicação pode ser reduzida a transmissão de informação, sendo que, neste caso, o dispositivo chamado “consentimento” pode ser visto como ente problemático. O que de fato ocorreu quando, no Brasil, se deram as discussões sobre ética em pesquisa que levaram a implantar o sistema CEP/Conep para avaliar a prática de pesquisa envolvendo seres humanos. Efetivamente, no processo que levou à criação desse sistema evidenciou-se o problema da tradução do termo inglês informed consent, que em português se tornou “consentimento livre e informado” ou, como preferiam alguns, “consentimento livre e esclarecido”, de acordo com a tradução do francês livre et éclairé66. Clotet J. O consentimento informado: uma questão do interesse de todos. Jornal Medicina. [Internet]. Bioética, out-nov 2000. [acesso 30 nov 2016]. Disponível: http://bit.ly/2lZ62Bb
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Conceitos de comunicação e de consentimento

Os termos “comunicação” e “consentimento”, derivados das palavras latinas communicatio (com o significado de “estar em relação com”) e consentire (com o significado de “estar de acordo com”), têm relação lógica entre si, pois a comunicação pode ser considerada condição necessária para consentir. Mas essa relação remete também ao conceito em comum de “sentido”, visto que para consentir devo conhecer o significado envolvido e compartilhado, o que pode ser visto como resultante de um “agir comunicativo”. De acordo com Habermas, o agir comunicativo deve ser entendido como pressuposto de qualquer tipo de ação e faz parte de uma “nova teoria crítica da sociedade”. Deve ser também distinto do mero “agir instrumental”, entendido como agir teleológico, mas cujos fins dependem da comunicação e que remete a possível acordo normativo entre os atores da ação 77. Habermas J. Theorie des kommunikativen Handelns. Frankfurt am Main: Suhrkamp; 1981..

Ou seja, para o autor, o agir instrumental é forma de saber empírico, organizado com a ajuda de técnicas e considerado racional na medida em que permite realizar objetivos graças às técnicas adequadas a esses objetivos. De maneira distinta, o agir comunicativo é uma forma de interação social entre pelo menos dois sujeitos capazes de compartilhar linguagens e envolvidos em uma ação que possui dimensão normativa. Em suma, trata-se de sujeitos que estabelecem uma relação interpessoal e que visam à compreensão recíproca, que é o objetivo da comunicação. Na teoria da linguagem, o conceito de comunicação se refere ao fato de seres humanos se falarem e tentarem se compreender, o que

…faz diretamente referência ao caráter social da linguagem [que] caracteriza todos os comportamentos de troca que se observa nas espécies organizadas em sociedades, [sendo que] para explicar este fenômeno de comunicação deve-se deixar o plano individual para passar àquele da sociedade, [pois] o objetivo essencial da linguagem é o de assegurar a comunicação das ideias, dos desejos e das emoções ao interior do grupo, [mas sabendo também que o grupo] dispõe de outros modos de comunicação não verbal [e que a] palavra assume outros papéis que não parecem diretamente ligados à comunicação, [tais como] a função de representação [que] consiste em criar substitutos ou representantes da realidade que o sujeito conhece, substitutos cuja organização constitui aquilo que chamamos [de] pensamento 88. Bronckart JP. Théories du langage: une introduction critique. Bruxelles: Pierre Mardaga; 1977. p. 7-122..

Concretamente, o “agir comunicativo” e o “agir instrumental” são dois tipos de práticas que podem se referir à pesquisa científica e à relação entre médico e paciente (e entre qualquer profissional de saúde e os destinatários de suas ações). Nessas situações, ambos os tipos de “agir” aparecem como estando juntos, mas podem entrar em contradição quando o objetivo do agir comunicativo estiver subsumido àquele do agir instrumental. Nessa circunstância, as práticas em questão se tornam objeto da bioética, que as analisará confrontando-as com algum paradigma valorativo.

É o caso do Princípio da Qualidade de Vida, defendido prevalentemente nas sociedades ditas “seculares”, nas quais existem territórios ainda não explorados e que se referem em particular ao “uso dos corpos”. Esse uso pode ser visto como conceito que substitui o tradicional conceito de ação, pois o conceito de “uso” remete não a sujeitos, mas a “formas de vida”, nas quais se entrelaçam “ser” e “viver” 99. Agamben G. L’ uso dei corpi. Vicenza: Neri Pozza; 2014.. Em particular, o termo “uso” implica operação que, em princípio, só pode ser realizada com o consentimento das pessoas, enquanto sujeitos objetos de pesquisa ou enquanto pacientes ou destinatários.

Mais especificamente, “comunicar” e “consentir” são duas ferramentas que podem ser aplicadas a dispositivos referentes às experiências de qualquer tipo de pesquisa científica feita por pesquisadores com seres humanos que se tornam objetos da pesquisa. O mesmo ocorre com o tipo de relação que se estabelece, na prática clínica, entre médico e paciente (e, de forma geral, na prática sanitária, entre prestador e usuário dos serviços de saúde). Ou seja, ambos os conceitos se referem a práticas entendidas como inter-relações que se constroem entre pessoas ou entre grupos de pessoas ou “comunidades”.

No entanto, os dois conceitos podem ser distintos em pelo menos dois campos, que podem ser vistos como contraditórios entre si devido a conflitos de interesses e/ou a opiniões divergentes e mutuamente excludentes dos envolvidos. Ou, então, podem entrar em acordo, compartilhando sentido, objetivos e justificativas de determinada prática (como pesquisa e prática clínica e sanitária), estabelecendo, assim, alguma forma de “harmonia”.

Comunicação, consentimento e dificuldades para a bioética

Do ponto de vista da bioética, pode-se dizer que, na contemporaneidade, os fenômenos da “comunicação” e do “consentimento” devem enfrentar o problema dos assim chamados “estranhos morais” 1010. Engelhardt HT Jr. The foundations of bioethics. 2ª ed. New York: Oxford University Press; 1996., devido à conflituosidade existente entre partes, aparentemente insolúvel. De fato, para Engelhardt, não existiria mais a possibilidade de vislumbrar no horizonte nenhuma solução para nossas controvérsias, visto que

as guerras culturais que fragmentam as reflexões bioéticas em campos sectários de contenda estão fundadas em uma diversidade moral insolúvel, [e isso devido não somente à falta de] um consenso moral em defesa de uma moralidade comum que é tida como a base sustentadora [de] uma bioética canônica e da política de saúde que ela defende, [mas também devido a] um desejo de negar o desafio da diversidade moral à governança e à estabilidade política [visto que] não pode haver nenhum consenso moral substantivo 1111. Engelhardt HT Jr. Bioética global: o colapso do consenso. São Paulo: Paulinas; 2012. p. 20-2..

Mesmo admitindo as enormes dificuldades de resolver conflitos de interesse e de opinião, não podemos esquecer que – como já vimos – a conflituosidade faz parte do próprio ethos. Ou seja, os conflitos analisados pela bioética se referem a inter-relações complexas entre atores envolvidos em controvérsias. Atores que, como indicado, podem ser distinguidos em “agentes” e “pacientes” morais, mas que podem ser vistos também como “emitentes” e “destinatários” das ações comunicativas que se dão entre os envolvidos, e que podem ser vistos, em particular, como “estranhos morais”.

Entretanto, Engelhardt admite também a existência de “amigos morais”, que compartilhariam uma moral comum – contrariamente aos “estranhos morais” – capaz de resolver controvérsias morais graças a argumentos consistentes e compartilháveis por uma “comunidade moral”, ou fazendo referência a alguma autoridade moral reconhecida pelos contendentes. Como escreve o próprio autor, é dentro de comunidades morais particulares, e não de sociedades de larga escala, [que] vivemos e encontramos o verdadeiro significado da vida e a orientação moral concreta, [comunidades nas quais] somos mergulhados em uma matriz plena de conteúdo moral1212. Engelhardt HT Jr. Op. cit. 1996. p. 74..

Por outro lado, referindo-se às sociedades de larga escala, bem mais amplas que as comunidades morais e tidas como sendo essencialmente seculares, Engelhardt propõe introduzir o princípio de permissão. Isso porque o considera o princípio moral crucial para a bioética secular, pois obter permissão das pessoas é central para a bioética secular porque não há outra fonte da qual derivar a autoridade moral secular. Em suma, para o autor, diante de um pluralismo moral irredutível – como aquele existente no mundo contemporâneo –, a autoridade é derivada das pessoas1313. Engelhardt HT Jr. Fundamentos da bioética cristã ortodoxa. São Paulo: Loyola; 2003. p. 441.. De fato:

Uma bioética secular universal capaz de conectar pessoas que não partilham uma concepção moral particular só pode extrair sua autoridade do consentimento dos indivíduos. É entre os indivíduos que ocorrem as controvérsias morais. Como estranhos morais, são eles que podem, por meio de acordos, criar um domínio de autoridade moral comum. [Em suma,] o princípio de permissão terá centralidade não em virtude de ser valorizado, mas porque a permissão das pessoas é a única fonte possível de autoridade secular, [sendo que] a bioética de tal sociedade dará prioridade a práticas tais como o consentimento informado, o direito de recusar tratamentos, o desenvolvimento de contratos para os serviços de assistência à saúde e o direito de decidir o que fazer consigo mesmo e de consentir que outros o façam conforme acordado mutuamente 1414. Engelhardt HT Jr. Op. cit. 2003. p. 82..

Mas, nesse ponto, surge inevitavelmente a pergunta se, para a bioética secular, entre os dois universos constituídos pelos “amigos” e os “estranhos” morais, existiria a possibilidade de algum tipo de relação que não seja aquela de oposição e de mútua exclusão. Como discutido, pode-se sustentar que o elemento perturbador e desorientador, tanto na teoria como na práxis da bioética [refere-se] a uma forma de inter-relação, com uma infinidade de variantes, que determinam a complexidade característica [no] âmbito social1515. Maliandi R, Thüer O. Teoría y praxis de los principios bioéticos. Buenos Aires: Biblos; 2008. p. 8-9.. Mas deve-se considerar também que junto com os conflitos há fatores anticonflituosos que se manifestam em tudo aquilo que tende à ordem, à organização, à sistematização [e que se referem à] “harmonia” [entre] “conflituosidade” [e] “convergência”, [pois] a harmonia inibe a conflituosidade e vice-versa, [sendo que] os conflitos estabelecem relações no modo da divergência e a harmonia o faz no modo da convergência1515. Maliandi R, Thüer O. Teoría y praxis de los principios bioéticos. Buenos Aires: Biblos; 2008. p. 8-9..

Poderíamos, portanto, dizer que existe dialética (ou relação complexa) entre conflituosidade e convergência. A problemática da comunicação e do consentimento pode ser vista, em particular, como capaz de se tornar dispositivo apto a criar ferramentas para obter tal “harmonia”, desde que se empreenda análise conceitual dessas duas palavras. Esta análise constitui uma condição necessária para abordar a conflituosidade da relação entre agentes e pacientes morais, que é aqui o caso da relação entre pesquisador e pesquisado e da relação entre médico (ou prestador de serviços em saúde) e paciente ou usuário. De fato, em ambas as experiências pode-se destacar o tipo de práticas (ou de “uso dos corpos”) que possui significados de “partilhar”, “compartir” e “participar”.

Em outros termos, consideramos que, graças a essa análise conceitual, é permitido estabelecer uma espécie de “ponte” conceitual (para utilizar uma metáfora de Potter) compartilhada pelas experiências vivenciadas por participantes de pesquisa científica – feita em princípio para o bem-estar dos humanos “pesquisados” – e por pacientes ou usuários (ou destinatários) em suas relações com agentes que atuam no campo da saúde humana – e que visam, em princípio, o bem-estar de indivíduos e populações que são objeto da cura e dos cuidados por eles oferecidos.

Comunicação e consentimento: da análise linguística ao uso em filosofia

De acordo com a etimologia, “comunicação” e “consentimento” possuem os seguintes significados:

Comunicação  do substantivo latino communicatio (“ação de comunicar, de partilhar, de dividir”), derivado do verbo communico (“pôr em comum, dividir, partilhar, ter relações com”) 1616. Houaiss A, Villar MS, Franco FMM. Dicionário Houaiss da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva; 2001. Comunicação; p. 781-2.;

Consentimento  do verbo latino consentire (“dividir determinado sentimento com”, “ser de igual opinião, sentimento ou conduta”, “decidir de comum acordo”, “sentir ao mesmo tempo”, “simpatizar com”) 1717. Houaiss A, Villar MS, Franco FMM. Op. cit. Consentimento; p. 807..

Vejamos, com mais detalhes, cada termo separadamente.

Comunicação

A “ciência da linguagem”, chamada linguística, pode ser entendida de acordo com a abordagem psicolinguística, que inscreve essa ciência no quadro teórico interacionista proposto pela epistemologia de Piaget. Segundo essa teoria, todo conhecimento, inclusive a linguagem, se constrói pelo diálogo permanente entre o sujeito e o objeto, o que implica dar um estatuto ao sujeito, mas também aos objetos e ao mundo ambiente1818. Bronckart JP. Op. cit. p. 279.. A partir dessa abordagem, toda operação de linguagem pode ser vista como constituída por pelo menos quatro parâmetros ou noções:

  • realidade objetiva, que constitui o conteúdo e o referente situacional do enunciado, e seria representada aqui pelas práticas de investigação e da clínica;

  • sujeito falante, com seus instrumentos de conhecimento, representado pelo investigador e o médico (ou sanitarista);

  • modelo linguístico (isto é, a língua em vigor no grupo social), aqui o tipo de linguagens utilizadas pelos emissores, representados pelo investigador e o médico (ou sanitarista) acompanhante;

  • enunciados, que o sujeito deve tratar, isto é, produzir, compreender, memorizar etc.1919. Bronckart JP. Op. cit. p. 280..

A comunicação é, portanto, atividade cognitiva que pode ser vista como pertencente à psicolinguística, que por sua vez aborda a comunicação como dispositivo com aspectos que são, em princípio, e ao mesmo tempo, de tipo cognitivo e afetivo, ou – se preferirmos – de tipo simbólico e imaginário. Mas, de fato, na era da realidade virtual e das tecnologias da informação, o dispositivo da comunicação parece ser cada vez mais reduzido (ou subsumido) à informação armazenada. Ou seja, a comunicação é entendida como mera atividade de transmissão de significados, que podem em princípio ser calculados (por exemplo, em bits) e que podem, portanto, “circular” de um polo a outro, mas em única direção, sem qualquer reciprocidade entre “emissor” e “receptor”.

Tal redução, via de regra, não acontece no caso do dispositivo da comunicação, no qual existe sempre alguma forma de reciprocidade entre polos e entre atores envolvidos. Em suma, se o dispositivo da informação é em princípio unidirecional – o que o torna facilmente calculável –, o dispositivo da comunicação é pelo menos bidirecional, pois implica sempre espaços de recepção e de resposta, o que pode ter o resultado de levar a uma negociação entre partes em conflito. Em particular, a comunicação pode implicar um pedido de permissão (como sugerido por Engelhardt, embora o aplique só às comunidades e não à sociedade como um todo), na qual pode se dar a produção compartilhada de sentido. Ou pode também ser vista como o lugar onde se dão assimetrias comunicativas e onde os participantes ressemantizam seus conteúdos, de acordo com seus interesses e valores.

Em filosofia, mas também em sociologia (como vimos na proposta filosófico-social do agir comunicativo de Habermas), o termo “comunicação” é utilizado para indicar o caráter específico das relações humanas entendidas como relações de participação recíproca ou de compreensão2020. Abbagnano N. Dizionario di filosofia. Milano: TEA; 1998. Comunicazione; p. 143-4.. É, em particular, sinônimo de “coerência” ou de “vida com os outros”, e designa o conjunto de modos específicos em que a coexistência humana pode atuar e nos quais certa possibilidade de participação e de compreensão seja salva2020. Abbagnano N. Dizionario di filosofia. Milano: TEA; 1998. Comunicazione; p. 143-4..

De fato, segundo o filósofo Abbagnano, humanos formam comunidades porque podem reciprocamente participar dos seus modos de ser, sendo que a “comunicação”, entendida como característica específica das relações humanas, delimitaria a esfera dessas relações ao campo em que certo grau de livre participação pode estar presente2121. Abbagnano N. Op. cit. p. 144..

Em suma, a relevância da comunicação assumida na filosofia contemporânea se deve: 1) ao reconhecimento que as relações inter-humanas implicam a alteridade entre os seres humanos; e 2) ao reconhecimento que tais relações não se acrescentam em um segundo momento à realidade já constituída das pessoas, mas entram em sua constituição2121. Abbagnano N. Op. cit. p. 144..

Consentimento

A palavra “consentimento” vem do verbo consentir, que deriva do verbo latim consentire (com o significado de “estar de acordo com2222. Bloch O, Wartburg W. Dictionnaire étymologique de la langue française. Paris: PUF; 1968. Consentir; p. 152.). Para Lalande, o termo indicaria o ato de vontade, pelo qual se decide não se opor a uma determinada ação cuja iniciativa é tomada por outrem2323. Lalande A. Vocabulaire technique et critique de la philosophie. Paris: PUF; 1972. Consentement; p. 177.. Possui significado menos forte que aquele de “aprovação”, cujo sentido positivo de julgamento favorável de apreciação o torna termo que teria inevitável conotação ética, ao passo que “consentir” marca, na ordem do pensamento como naquela da ação, uma nuance de reserva2323. Lalande A. Vocabulaire technique et critique de la philosophie. Paris: PUF; 1972. Consentement; p. 177.. Em particular, o termo “consentimento” – referido ao paciente (ou usuário) e ao sujeito, colaborador e objeto de pesquisa científica – indica o ato que autoriza o médico a realizar um tratamento determinado que ele explicou, previamente, ao doente, [visto que], para o doente, dar o seu consentimento a um tratamento médico é, com conhecimento de causa, fazer a escolha de, por um lado, aceitar empreender esse tratamento particular (princípio de autodeterminação) e, por outro, autorizar a realização desse tratamento no seu próprio corpo (princípio de respeito pela integridade física), [e tendo em conta que] esse tratamento pode ter um caráter terapêutico ou experimental2424. Parizeau MH. Consentimento. In: Hottois G, Missa J-N, organizadores. Nova enciclopédia da bioética. Lisboa: Piaget; 2004. p. 175-9. p. 175..

No caso específico da relação médico-paciente, o problema ético subjacente à questão do consentimento reside na tensão entre o princípio de autonomia do doente e o princípio de beneficência do médico2525. Parizeau MH. Op. cit. p. 176.. Isso remete ao debate sobre comportamento paternalista na relação tradicionalmente estabelecida pelo médico com seu paciente graças a seu saber-fazer enquanto profissional de saúde, mas que se tornou objeto de severas críticas pela bioética (pelo menos em sua vertente dita “secular”). Dessa forma, a regra ética do consentimento abre-se a uma nova dinâmica da relação doente-médico, que favorece a autonomia do doente e sua participação na decisão médica2626. Parizeau MH. Op. cit. p. 177..

Já no que concerne à pesquisa e experimentação com sujeitos humanos, devemos lembrar os casos dos excessos (ou atos criminais) relatados pelo Código de Nüremberg2727. Tribunal Internacional de Nüremberg; 1947. Código de Nüremberg: trials of war criminal before the Nüremberg Military Tribunals. [Internet]. Control Council Law. 1949 [acesso 23 jan 2017];10(2):181-2. Disponível: http://bit.ly/2kWgaK3
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, de 1947. Essas ocorrências levaram à necessidade de se obter consentimento dos sujeitos pesquisados como maneira de evitar tais “excessos” e prejuízos aos participantes da pesquisa. No entanto, devemos lembrar também que, nesse caso, o problema ético pode ser visto como diferente daquele referido à relação médico-paciente. Isso porque, na experimentação com seres humanos, o dilema ético subjacente à questão do consentimento reside na tensão entre o princípio de autonomia do sujeito e o princípio de utilidade da investigação2828. Parizeau MH. Op. cit. p. 178..

Em particular, o princípio de utilidade, formulado inicialmente por J. S. Mill, citado por Blackburn, se refere à crença de que a concepção de vida implícita na maior parte do planejamento político e econômico moderno, na medida em que supõe que a felicidade pode ser medida em termos econômicos2929. Blackburn S. Op. cit. Utilitarismo; p. 397., implicaria priorizar o maior bem para o maior número de humanos, o que não é necessariamente o caso da inter-relação entre médico e paciente. Segundo Blackburn, nas palavras de Mill, as ações são corretas proporcionalmente à sua tendência para promover a felicidade, erradas se tendem a promover o que é contrário à felicidade2929. Blackburn S. Op. cit. Utilitarismo; p. 397..

Em suma, a regra do consentimento, quer diga respeito à terapia quer à experimentação, baseia-se no princípio de autonomia, sendo que, em ambos os casos, pacientes e sujeitos de pesquisa podem exercer suas capacidades de ajuizar e de escolher3030. Parizeau MH. Op. cit. p. 179.. É necessário ter ciência, porém, de que a aplicação da regra do consentimento nem sempre é fácil, tendo em conta a variedade de situações clínicas encontradas, inclusive no campo da pesquisa com seres humanos 3030. Parizeau MH. Op. cit. p. 179..

Para não concluir: a questão do “uso dos corpos”

Nas práticas de pesquisa com seres humanos e nas práticas clínicas ocorrem relações que, de fato, dizem respeito a sensações, sentimentos, pensamentos e julgamentos que têm a ver com a bioética. Podemos entender esse conceito aqui como ética aplicada que, inclusive, se ocupa dos modos de viver, nos quais se dá, em particular, alguma forma de uso dos corpos. Entende-se esse termo “uso” – de acordo com proposta de Giorgio Agamben – como categoria política fundamental, que substituiria, atualmente, aquela de “ação” 3131. Agamben G. Op. cit. p. 247.. Mas a expressão uso dos corpos pode se referir à possível redução da vida da pessoa humana, objeto de pesquisa ou de tratamento, a mero meio para outros fins (que não sejam aqueles da pesquisa). Isso situa o uso do corpo [em] zona de indiferença entre (…) o corpo próprio e o corpo alheio [e] entre o instrumento artificial e o corpo vivente, fazendo que o uso do corpo se situe no limiar indizível entre zoé e bios [e] entre a physis e o nómos3232. Agamben G. Op. cit. p. 46..

De fato, o “uso” do corpo de outrem, tanto na pesquisa como na relação médico-paciente, pode ser visto como forma específica de relação sujeito-objeto – tão marcada na concepção moderna da utilização de algo por parte de alguém3333. Agamben G. Op. cit. p. 51.. Ali o sujeito não sobressai da ação, mas é, ele mesmo, o lugar de seu acontecer, [tornando-se “meio” que] se situa [em] zona de indeterminação entre sujeito e objeto (o agente é de alguma maneira também objeto e lugar da ação) e entre ativo e passivo (o agente recebe uma afeição de seu próprio agir). [Essa dialética determina, assim,] limiar singular entre sujeito e objeto e entre agente e paciente, [pois] o processo não transita de um sujeito ativo para um objeto separado de sua ação, mas envolve em si o sujeito, na medida em que este se implica no objeto e ‘se dá’ a ele3434. Agamben G. Op. cit. p. 53..

Em suma, o “uso dos corpos” implica espaço de “indeterminação” que afeta agentes e pacientes morais, acarretando tanto o “uso de si” como o “uso do outro”, o que pode ser visto como campo de estudo em que atua uma dialética entre assujeitamento e libertação. Mutatis mutandi, o “uso” dos corpos tem a ver também com saúde pública, na qual são as populações a constituir o objeto ao qual se aplicam as ferramentas da biopolítica constituídas pelas políticas sanitárias.

Referências

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  • 11
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  • 12
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  • 13
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  • 14
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  • 15
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  • 16
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  • 17
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  • 18
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  • 19
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  • 20
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  • 21
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  • 26
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  • 27
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  • 28
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  • 29
    Blackburn S. Op. cit. Utilitarismo; p. 397.
  • 30
    Parizeau MH. Op. cit. p. 179.
  • 31
    Agamben G. Op. cit. p. 247.
  • 32
    Agamben G. Op. cit. p. 46.
  • 33
    Agamben G. Op. cit. p. 51.
  • 34
    Agamben G. Op. cit. p. 53.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jan-Apr 2017

Histórico

  • Recebido
    19 Dez 2016
  • Revisado
    15 Dez 2017
  • Aceito
    22 Dez 2017
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