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Autonomia, consentimento e vulnerabilidade do participante de pesquisa clínica

Resumo

Esta revisão bibliográfica tem como objetivo discutir os conceitos de autonomia, consentimento e vulnerabilidade do participante de pesquisa clínica por meio de abordagem qualitativa. Discute-se ainda a relação da autonomia versus paternalismo; a vulnerabilidade e o double standard; e a prática do imperialismo moral em países periféricos. Ponderam-se os pontos mencionados sob o prisma da bioética latino-americana. Por fim, é apontada como nova perspectiva a reestruturação da legislação e dos comitês de ética em pesquisa.

Autonomia pessoal; Consentimento livre e esclarecido; Vulnerabilidade em saúde; Sujeitos da pesquisa; Pesquisa-humanos

Abstract

The present study is a bibliographic review that aimed to discuss the concepts of autonomy, consent and vulnerability of clinical research participants by the qualitative approach. It also discussed autonomy versus paternalism, vulnerability and the double standard, and the practice of moral imperialism in peripheral countries. Reflections are offered on the points mentioned above in the light of Latin American Bioethics. Finally, the restructuring of legislation and of Research Ethics Committees represents a new perspective.

Personal autonomy; Informed consent; Health vulnerability; Research subjects; Research-Humans

Resumen

Este estudio de revisión bibliográfica tiene como objetivo discutir los conceptos de autonomía, consentimiento y vulnerabilidad del participante de investigación clínica, por medio de un enfoque cualitativo. Se discute también al respecto de la autonomía versus el paternalismo, la vulnerabilidad y el double standard, y la práctica del imperialismo moral en países periféricos. Se hace una reflexión sobre los puntos mencionados bajo el prisma de la bioética latinoamericana. Finalmente, se señalan como nuevas perspectivas la reestructuración de la legislación y de los comités de ética en investigación.

Autonomía personal; Consentimiento informado; Vulnerabilidad en salud; Sujetos de investigación; Investigación-Humanos

Valiosa conquista na histórica da bioética foi o respeito pela autonomia dos participantes de pesquisas, que expressam sua decisão em participar de experimentos por meio do consentimento informado. Mas a autonomia pode ser reduzida devido a influências internas ou externas, traduzindo-se em vulnerabilidade 11. Rogers W, Ballantyne A. Populações especiais: vulnerabilidade e proteção. R Eletr de Com Inf Inov Saúde [Internet]. 2008 [acesso 7 nov 2014];2(1 Suppl):31-41. Disponível: http://bit.ly/2jlt9Et
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. Autonomia e vulnerabilidade se associam, pois é importante reconhecer quando há situação de vulnerabilidade para que se possa assegurar o direito à autonomia de um indivíduo, respeitando sua dignidade 22. Morais IM. Vulnerabilidade do doente versus autonomia individual. Rev Bras Saúde Matern Infant. 2010;10(2 Suppl):s331-6. e garantindo meios favoráveis para adequado consentimento ao participar de procedimentos.

Este trabalho tem como objetivo discutir os conceitos de autonomia, consentimento e vulnerabilidade do participante de pesquisa clínica por meio de revisão bibliográfica com abordagem qualitativa. Levando-se em conta os conceitos de autonomia e paternalismo, vulnerabilidade e double standard, bem como a definição de imperialismo moral em países periféricos. Os problemas foram analisados sob o prisma da bioética latino-americana, que é apontada como nova perspectiva para a reestruturação da legislação e dos comitês de ética em pesquisa.

Autonomia, consentimento e vulnerabilidade

Autonomia

A autonomia está relacionada à liberdade de escolha, e corresponde à capacidade de o indivíduo decidir sobre si mesmo com base nas alternativas que lhes são apresentadas, livre de coações internas e externas 33. Muñoz DR, Fortes PAC. O princípio da autonomia e o consentimento livre e esclarecido. In: Costa SIF, Oselka G, Garrafa V, coordenadores. Iniciação à bioética. Brasília: CFM; 1998. p. 53-70.. Quando autônomo, no âmbito deste trabalho, o ser humano deve escolher de forma subjetiva, levando em consideração seus próprios princípios, valores, crenças e percepções. Logo, o respeito pela autonomia inclui considerar todos os fatores que interferem na capacidade de decisão do indivíduo.

Mas a autonomia não é algo natural ao ser humano; desenvolve-se a partir das contribuições biológicas, psíquicas e socioculturais do meio em que vive. Temporária ou permanentemente, o indivíduo pode ter sua autonomia reduzida, a depender: da faixa etária, como crianças; do estado psicológico, como pessoas que sofrem de transtornos mentais; do estado físico, como pacientes em coma, entre outras circunstâncias 33. Muñoz DR, Fortes PAC. O princípio da autonomia e o consentimento livre e esclarecido. In: Costa SIF, Oselka G, Garrafa V, coordenadores. Iniciação à bioética. Brasília: CFM; 1998. p. 53-70..

A Declaração Universal sobre Bioética e Direitos Humanos (DUBDH) 44. Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura. Declaração universal sobre bioética e direitos humanos [Internet]. Brasília: Unesco; 2005 [acesso 20 nov 2014]. Disponível: http://bit.ly/2kgv9lt
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reconhece em seu artigo 5º que autonomia não é absoluta, e pode haver situações em que se encontra ausente. Ainda que uma pessoa seja considerada autônoma, em determinadas ocasiões pode acabar agindo sem autonomia. Alterações mentais, emocionais e físicas podem comprometer a autonomia do sujeito, reduzindo sua capacidade racional 33. Muñoz DR, Fortes PAC. O princípio da autonomia e o consentimento livre e esclarecido. In: Costa SIF, Oselka G, Garrafa V, coordenadores. Iniciação à bioética. Brasília: CFM; 1998. p. 53-70.. No entanto, ressalta-se que mesmo pessoas afetadas por problemas mentais, ou aquelas que estão confinadas em locais de tutela, não devem ser consideradas automaticamente sem capacidade de decidir. Embora um indivíduo seja declarado inapto para compreender determinadas situações e tomar certas decisões, há ocasiões em que está apto a fazer escolhas sobre sua própria vida.

Consentimento

A aplicação prática da autonomia é o consentimento, que é a permissão voluntária e consciente para se realizar procedimento, tratamento ou experimento, baseada em informações previamente esclarecidas. O princípio do consentimento representou importante avanço na história da bioética, visto que com base nele se pretende coibir estudos feitos sem a permissão de seus participantes. Para que seja efetivo, o consentimento deve ocorrer por meio de processo voluntário, baseado em informações claras, fornecidas em linguagem acessível ao público-alvo. O objetivo do termo de consentimento é fundamentar a escolha do participante.

A DUBDH considera, entretanto, que existem indivíduos sem capacidade para consentir, e no artigo 7º 44. Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura. Declaração universal sobre bioética e direitos humanos [Internet]. Brasília: Unesco; 2005 [acesso 20 nov 2014]. Disponível: http://bit.ly/2kgv9lt
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adverte que proteção especial deve ser dada a eles, sendo que sua recusa em participar de uma pesquisa deve ser respeitada. Salienta-se que existe diferença entre ter capacidade cognitiva plena para defender seus interesses e dar seu consentimento e ter capacidade reduzida. Existem pessoas com capacidade de dar consentimento livre e esclarecido reduzida, em função de capacidade cognitiva restrita, como pessoas com deficiências mentais. Geralmente, solicita-se consentimento do responsável pela pessoa, e também seu próprio consentimento, quando aplicável.

A capacidade reduzida pode decorrer de déficit cognitivo ou de fatores socioculturais, como baixa escolaridade ou analfabetismo 11. Rogers W, Ballantyne A. Populações especiais: vulnerabilidade e proteção. R Eletr de Com Inf Inov Saúde [Internet]. 2008 [acesso 7 nov 2014];2(1 Suppl):31-41. Disponível: http://bit.ly/2jlt9Et
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, por exemplo, que também implicam em atenção especial para assegurar o êxito no processo de consentimento livre e esclarecido. Destaca-se que, além da baixa escolaridade, a falta de familiaridade com termos técnicos de pesquisas pode dificultar a obtenção adequada do consentimento livre e esclarecido. Exemplo disso são as palavras “placebo” e “randomização”, que não têm tradução direta em alguns idiomas 11. Rogers W, Ballantyne A. Populações especiais: vulnerabilidade e proteção. R Eletr de Com Inf Inov Saúde [Internet]. 2008 [acesso 7 nov 2014];2(1 Suppl):31-41. Disponível: http://bit.ly/2jlt9Et
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. Nesse caso, são necessários esforços por parte dos pesquisadores para utilizar comunicação adequada, facilitando para que o consentimento livre e esclarecido seja pleno.

Vulnerabilidade

A incapacidade de tomar a melhor decisão a fim de proteger os próprios interesses é definida como vulnerabilidade. É possível classificá-la basicamente como vulnerabilidade extrínseca ou intrínseca. A primeira é causada por questões externas, como problemas sociais e culturais, carência de recursos econômicos e baixa escolaridade. A segunda decorre de características internas do indivíduo, como transtornos mentais, déficits intelectuais ou outras doenças, além da faixa etária, que engloba crianças e idosos 11. Rogers W, Ballantyne A. Populações especiais: vulnerabilidade e proteção. R Eletr de Com Inf Inov Saúde [Internet]. 2008 [acesso 7 nov 2014];2(1 Suppl):31-41. Disponível: http://bit.ly/2jlt9Et
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Podem ocorrer individual ou simultaneamente e suscitam discussões éticas sobre participação em pesquisas. Isso porque não é ético tirar proveito da vulnerabilidade de uma pessoa, impedindo-a de decidir por si e incluindo-a em procedimento pela vontade de outrem, ou, ainda, permitindo que tome decisões com base em informações que não lhe foram transmitidas de forma clara. Pelo contrário, para a bioética, o indivíduo vulnerável deve ser protegido.

A DUBDH 44. Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura. Declaração universal sobre bioética e direitos humanos [Internet]. Brasília: Unesco; 2005 [acesso 20 nov 2014]. Disponível: http://bit.ly/2kgv9lt
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indica, em seu artigo 8º, que se deve respeitar e proteger a vulnerabilidade humana e integridade individual. Porém, ao longo da história, ocorreram diversas situações em que se constatou desrespeito pela vulnerabilidade, colocando o conhecimento científico acima dos valores humanos. Além dos conhecidos experimentos realizados nos campos de concentração nazistas, durante a Segunda Guerra Mundial, posteriormente várias outras atrocidades foram cometidas com seres humanos, ainda que já houvesse reflexões éticas sobre a participação humana em pesquisas.

Exemplo disso foi uma experiência desenvolvida na Suécia, na década de 1940, com deficientes mentais. O objetivo era descobrir se as causas da cárie nos dentes estavam relacionadas ao aumento do consumo de açúcar. Para isso, seria necessário adotar dieta exageradamente doce e observar sua influência sobre os dentes. Como não conseguiriam voluntários, os pesquisadores recorreram a uma clínica psiquiátrica na cidade de Lund. O estudo foi desenvolvido pelo Serviço Nacional de Odontologia do país e patrocinado por empresas de doces, que defendiam que os doces não contribuíam para o surgimento de cáries. Entretanto, o resultado mostrou o contrário, e os participantes tiveram todos os dentes estragados. Destaca-se que nesse estudo não houve, obviamente, consentimento dos participantes nem de seus responsáveis 55. Amorim AG. Bioética e odontologia: um perfil dos problemas éticos vividos por cirurgiões- -dentistas [dissertação]. Natal: Universidade Federal do Rio Grande do Norte; 2005 [acesso 20 nov 2014]. Disponível: http://bit.ly/2jc5bOm
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.

Outro exemplo de estudo com populações vulneráveis ocorreu na década de 1990, na África, para verificar a transmissão vertical do vírus da imunodeficiência adquirida (HIV). A pesquisa consistia em testar tratamento de curta duração com medicamento já utilizado em países desenvolvidos, mas com maior tempo de administração, e o estudo era controlado por placebo 66. Selgelid M. Padrões de tratamento e ensaios clínicos [Internet]. In: Diniz D, Guilhem D, Schuklenk U, organizadores. Ética na pesquisa: experiência de treinamento em países sul-africanos. Brasília: Letras Livres; 2005 [acesso 20 nov 2014]. p.105-28. Disponível: http://bit.ly/2j0OsKl
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. As críticas vieram em artigo publicado em 1997 por Lurie e Wolf 77. Lurie P, Wolfe SM. Unethical trials of interventions to reduce perinatal transmission of the human immunodeficiency virus in developing countries. N Engl J Med. 1997;337:853-6., dois pesquisadores estadunidenses vinculados ao Public Citizen’s Health Research Group, de Washington (EUA), que denunciaram esse tipo de ensaio, fundamentando-se no fato de que os estudos extrapolaram na questão do placebo e violaram o consentimento esclarecido, aproveitando-se da vulnerabilidade de populações pobres e desinformadas 77. Lurie P, Wolfe SM. Unethical trials of interventions to reduce perinatal transmission of the human immunodeficiency virus in developing countries. N Engl J Med. 1997;337:853-6.,88. Garrafa V, Prado MM. Alterações na Declaração de Helsinki: a história continua. Rev. bioét. (Impr.). 2007;15(1):11-25..

De acordo com a regulação internacional, como a Declaração de Helsinki, o uso do placebo é permitido quando não existe intervenção comprovada ou quando, por razões metodológicas convincentes e cientificamente sólidas, seu uso é necessário para determinar a eficácia ou segurança de uma intervenção 99. Sousa MSA, Franco MAG, Massud Filho J. A nova declaração de Helsinque e o uso de placebo em estudos clínicos no Brasil: a polêmica continua. [Internet]. Rev Med (São Paulo). 2012 [acesso 30 ago 2016];91(3):178-88. Disponível: http://bit.ly/2j0Ohig
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,1010. Associação Médica Mundial. Declaração de Helsinque da Associação Médica Mundial (WMA) [Internet]. Fortaleza; 2013 [acesso 30 ago 2016]. Disponível: http://bit.ly/2kgnPpS
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. O Brasil, no entanto, não é mais signatário da Declaração de Helsinki1111. Brasil. Conselho Nacional de Saúde, Comissão Nacional de Ética em Pesquisa. Análise técnica da Comissão Nacional de Ética em Pesquisa sobre o Projeto de Lei nº 200/2015 [Internet]. Brasília, 2015 [acesso 30 ago 2016]. Disponível: http://bit.ly/2jlvWgM
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e segue as determinações da Resolução 466/2012 1212. Brasil. Conselho Nacional de Saúde. Resolução nº 466, de 12 de dezembro de 2012. Aprova as diretrizes e normas regulamentadoras de pesquisas envolvendo seres humanos. Diário Oficial da União. Brasília, nº 12, p.59, 13 jun 2013. Seção 1. do Conselho Nacional de Saúde (CNS), a qual rege pesquisas em seres humanos. No país, um novo método terapêutico deve ser testado comparando-o com os melhores métodos profiláticos, diagnósticos e terapêuticos atuais. Cabe o uso de placebo quando não existem tais métodos comprovados. Além disso, o participante da pesquisa deve ser esclarecido sobre a possibilidade de sua inclusão no grupo placebo e o que isso significa 1212. Brasil. Conselho Nacional de Saúde. Resolução nº 466, de 12 de dezembro de 2012. Aprova as diretrizes e normas regulamentadoras de pesquisas envolvendo seres humanos. Diário Oficial da União. Brasília, nº 12, p.59, 13 jun 2013. Seção 1..

Problematizando conceitos

Autonomia versus paternalismo

O paternalismo coloca em colisão dois princípios bioéticos: beneficência e autonomia. Se, por um lado, um profissional aprende em sua formação que deve sempre promover a saúde daquele sob seus cuidados, por outro, o paciente deve ter sua autonomia respeitada 1313. Silva JAC. Autonomia versus paternalismo médico: perfil bioético dos egressos do laboratório de cirurgia experimental do curso de medicina da UEPA [tese]. Porto: Universidade do Porto; 2013 [acesso 20 nov 2014]. Disponível: http://bit.ly/2jlHYXB
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. Pode-se apontar o paternalismo como uma das formas de diminuir a autonomia do paciente. Na atuação paternalista, com a finalidade de proporcionar benefícios ou evitar danos, um profissional decide por e sobre seu paciente, sem que este participe da decisão 1414. Munhoz LB. O princípio da autonomia progressiva e a criança como paciente [dissertação]. Brasília: Universidade de Brasília; 2014 [acesso 22 nov 2014]. Disponível: http://bit.ly/2kf1O6E
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. Existem vários tipos de paternalismo. Para Beauchamp e Childress, citados por Munhoz 1414. Munhoz LB. O princípio da autonomia progressiva e a criança como paciente [dissertação]. Brasília: Universidade de Brasília; 2014 [acesso 22 nov 2014]. Disponível: http://bit.ly/2kf1O6E
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, existe paternalismo forte quando o profissional decide sobre seu paciente, ainda que este seja capaz de decidir sobre si de forma autônoma. Há também paternalismo fraco, quando profissionais decidem sobre pacientes que não têm condições de decidirem sobre si, bem como aqueles com autonomia temporária ou permanentemente comprometida 1414. Munhoz LB. O princípio da autonomia progressiva e a criança como paciente [dissertação]. Brasília: Universidade de Brasília; 2014 [acesso 22 nov 2014]. Disponível: http://bit.ly/2kf1O6E
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Wulff, Pedersen e Rosenberg, citados por Segre, Silva e Schramm 1515. Segre M, Silva FL, Schramm FR. O contexto histórico, semântico e filosófico do princípio de autonomia. Bioética. 1998;6(1):15-23., também estabelecem outras classificações de paternalismo. Entre elas estão o paternalismo genuíno, em que é constatada, de fato, ausência ou limitação significativa da capacidade autônoma do paciente; o paternalismo autorizado, no qual há consentimento implícito ou explícito do paciente; e paternalismo não autorizado, no qual não ocorre qualquer consentimento por parte do paciente 1515. Segre M, Silva FL, Schramm FR. O contexto histórico, semântico e filosófico do princípio de autonomia. Bioética. 1998;6(1):15-23.. De um lado, defende-se que devem ser considerados os contextos sociais, culturais, religiosos, emocionais dos pacientes, cabendo aos profissionais orientá-los para que possam decidir sobre a melhor opção. Por outro, existem aqueles que argumentam a favor do paternalismo, justificando que doenças acarretam redução da autonomia do paciente, sendo aceitável que o profissional atue com paternalismo não autorizado, pois seu intuito é sempre promover o bem-estar do paciente 1414. Munhoz LB. O princípio da autonomia progressiva e a criança como paciente [dissertação]. Brasília: Universidade de Brasília; 2014 [acesso 22 nov 2014]. Disponível: http://bit.ly/2kf1O6E
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Embora se considere que o paternalismo fere a autonomia do indivíduo, pode-se justificar sua aplicação no meio médico, em especial, com base no princípio da beneficência. Para Pellegrino, citado por Rocha 1616. Rocha DM. A filosofia da medicina de Edmund Pellegrino e os dilemas bioéticos relacionados ao suicídio assistido. Rev. bioét. (Impr.). 2013;21(1):75-83., quando se trata de ética médica, a beneficência deve ser considerada como o primeiro princípio, tendo em vista que o fim dessa profissão é o paciente e seus interesses. Em sua obra “For the patient’s good”, publicada em parceria com Thomasma, Pellegrino afirma que a beneficência é o princípio que media o conflito entre paternalismo e autonomia 1717. Pellegrino ED, Thomasma DC. For the patient’s good. New York: Oxford University Press;1988.. Defende também que a ação do profissional deve visar os melhores interesses do paciente, considerando que o paciente tem suas percepções, preferências, valores, metas, o que reflete em respeito pela sua autonomia 1616. Rocha DM. A filosofia da medicina de Edmund Pellegrino e os dilemas bioéticos relacionados ao suicídio assistido. Rev. bioét. (Impr.). 2013;21(1):75-83.. Já Engelhardt, autor do livro “Fundamentos da bioética”, citado por Schmidt e Tittanegro, considera a autonomia como princípio máximo, pois pode servir de base para unir os estranhos morais, que é o pluralismo moral da sociedade, porque o respeito ao indivíduo é a única visão comum entre todos os grupos1818. Schmidt AV, Tittanegro GR. A autonomia principialista comparada a autonomia do libertarismo. Revista Pistis Praxis: Teologia e Pastoral. 2009;1(1):173-98. p. 175..

Vulnerabilidade e double standard

Outra prática que afeta a autonomia de indivíduos que vivenciam condições de vulnerabilidade sem necessariamente trazer-lhes benefícios é definida como double standard, a adoção de duplos padrões éticos para desenvolver pesquisas em países centrais e periféricos. Com sede em países ricos e patrocinados pela indústria farmacêutica, geralmente os ensaios multicêntricos procuram países periféricos, como os do continente africano, para aplicar suas pesquisas. O motivo é que nesses locais a legislação costuma ser mais branda, ao contrário dos países-sede, em que essas pesquisas certamente não seriam aprovadas, em razão das normas e regulamentos mais rígidos e voltados para a proteção dos cidadãos 1919. Oliveira PPS. O imperialismo moral nas pesquisas biomédicas multicêntricas: o duplo standard e a violação dos direitos humanos [monografia]. Brasília: Centro Universitário de Brasília; 2012..

O alvo dessas pesquisas, na maioria das vezes, são pessoas de baixa renda e em outras situações de escassez. Ou seja, em grande parte, a aplicação da pesquisa clínica está relacionada ao que se define como vulnerabilidade social, determinada pela falta de recursos, de acesso a informação, saúde, políticas públicas 2020. Garrafa V, Lorenzo C. Helsinki 2008: redução de proteção e maximização de interesses privados. Rev Assoc Med Bras. 2009;55(5):514-8.. Podem estar associadas também questões de gênero, etnia e faixa etária. Costuma-se dizer que o principal vetor da vulneração é a pobreza, mas é importante ressaltar que, em alguns casos, a pobreza tem gênero, cor e outras características 2121. Nascimento WF. Por uma vida descolonizada: diálogos entre a bioética de intervenção e os estudos sobre a colonialidade [tese]. Brasília: Universidade de Brasília; 2010 [acesso 22 nov 2014]. Disponível: http://bit.ly/2jPbsR3
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. É o que pode ser constatado também no caso Tuskegee 2222. Goldim JR. O caso Tuskegee: quando a ciência se torna eticamente inadequada [Internet]. Porto Alegre: Núcleo Interinstitucional de Bioética HCPA/UFRGS; 1999 [acesso 09 fev 2017]. Disponível: https://www.ufrgs.br/bioetica/tueke2.htm
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e no estudo sobre transmissão de HIV com mulheres grávidas na África 66. Selgelid M. Padrões de tratamento e ensaios clínicos [Internet]. In: Diniz D, Guilhem D, Schuklenk U, organizadores. Ética na pesquisa: experiência de treinamento em países sul-africanos. Brasília: Letras Livres; 2005 [acesso 20 nov 2014]. p.105-28. Disponível: http://bit.ly/2j0OsKl
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Em decorrência dessa prática, surge o questionamento: justifica-se o uso de padrões éticos distintos para pesquisas realizadas em diversos países, em razão das disparidades econômicas, sociais e culturais das várias nações do mundo? Essa indagação ficou conhecida como “a questão do duplo standard”, havendo opiniões contra, mas também algumas a favor 2020. Garrafa V, Lorenzo C. Helsinki 2008: redução de proteção e maximização de interesses privados. Rev Assoc Med Bras. 2009;55(5):514-8.. Os argumentos em defesa do double standard não consideram como desvio ético, por exemplo, o uso do placebo nos ensaios clínicos em países pobres. Isso mesmo que haja tratamentos comprovadamente válidos e eficientes para as doenças sobre as quais estão sendo feitos os estudos, desde que não estejam acessíveis para a população de onde são recrutados os participantes. Os defensores argumentam que, com ensaios clínicos, ao menos uma chance de tratamento estaria sendo dada àqueles que fossem randomizados para o grupo-teste, e que isso não elevaria os riscos daqueles que fizessem parte do grupo-controle 2020. Garrafa V, Lorenzo C. Helsinki 2008: redução de proteção e maximização de interesses privados. Rev Assoc Med Bras. 2009;55(5):514-8..

Ou seja, em países pobres, onde a maioria da população carece de serviços e tratamentos básicos de saúde, a participação em ensaios com placebo seria uma oportunidade, pois aqueles que não participassem não teriam sequer a probabilidade de acesso a medicação 2323. Guilhem D. Resenha: Double standards in medical research in developing countries. Cad Saúde Pública [Internet]. 2005 [acesso 3 dez 2014];21(1):334-6. Disponível: http://bit.ly/2jMSFFq
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. Outro ponto, segundo os defensores, é que esses ensaios poderiam trazer benefícios indiretos ou secundários, como assistência médica aos participantes. Além disso, estariam abastecendo instituições de saúde desses países com equipamentos e também contribuindo para a formação de recursos humanos 2020. Garrafa V, Lorenzo C. Helsinki 2008: redução de proteção e maximização de interesses privados. Rev Assoc Med Bras. 2009;55(5):514-8..

O double standard, apesar de defendido por uns, é contestado por outros. Vários autores fazem críticas a seu uso em pesquisas clínicas, como Ruth Macklin, citada por Guilhem 2323. Guilhem D. Resenha: Double standards in medical research in developing countries. Cad Saúde Pública [Internet]. 2005 [acesso 3 dez 2014];21(1):334-6. Disponível: http://bit.ly/2jMSFFq
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. Em sua obra “Moral problems in medicine”, de 1976, ela questiona a condução de pesquisas em países de terceiro mundo, em vez de serem realizadas nos Estados Unidos ou na Europa. Critica também a modificação ou flexibilização dos parâmetros éticos das pesquisas propostas por países industrializados, mas realizadas em países pobres. E afirma que o double standard é eticamente inaceitável 2323. Guilhem D. Resenha: Double standards in medical research in developing countries. Cad Saúde Pública [Internet]. 2005 [acesso 3 dez 2014];21(1):334-6. Disponível: http://bit.ly/2jMSFFq
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O recrutamento de participantes apenas nesses países também poderia levar a um viés em relação à validade externa, pois a diversidade é ponto importante para a generalização dos resultados. Fatores físicos, fisiológicos e genéticos podem afetar a resposta ao tratamento. Sendo assim, a inclusão de participantes de vários países é fundamental para a representação populacional 2424. Dainesi SM, Goldbaum M. Pesquisa clínica como estratégia de desenvolvimento em saúde. Rev Assoc Med Bras [Internet]. 2012 [acesso 17 out 2016];58(1):2-6. Disponível: http://bit.ly/2kf491A
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,2525. Beech BM, Goodman M, editores. Race and research: perspectives on minority participation in health studies [Internet]. Washington: American Public Health Association; 2004 [acesso 17 out 2016]. Disponível: http://bit.ly/2jP64NS
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. Ademais, o uso do placebo em ensaios clínicos está relacionado ao estado de vulnerabilidade econômica e social dos países e sua população, e, consequentemente, à escassez ou limitação de acesso a medicamentos básicos 2323. Guilhem D. Resenha: Double standards in medical research in developing countries. Cad Saúde Pública [Internet]. 2005 [acesso 3 dez 2014];21(1):334-6. Disponível: http://bit.ly/2jMSFFq
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. Mas a dificuldade de acesso a medicamentos não deve ser considerada desigualdade natural, e sim exclusão social presente nos países pobres em decorrência de condições políticas e econômicas, das quais os países ricos, que hoje são patrocinadores das pesquisas, têm sua fração de responsabilidade histórica 2020. Garrafa V, Lorenzo C. Helsinki 2008: redução de proteção e maximização de interesses privados. Rev Assoc Med Bras. 2009;55(5):514-8..

Portanto, o problema de acesso a medicamentos não deve ser visto como modelo local de tratamento para que se justifique eticamente a diminuição da proteção à integridade física e de compartilhamento de benefícios aos participantes da pesquisa 2020. Garrafa V, Lorenzo C. Helsinki 2008: redução de proteção e maximização de interesses privados. Rev Assoc Med Bras. 2009;55(5):514-8.. Além disso, nos países pobres, as adversidades dos sistemas de saúde pública na distribuição de medicamentos decorrem, em parte, dos preços estipulados pela indústria farmacêutica e das defesas que exercem sobre suas patentes 2020. Garrafa V, Lorenzo C. Helsinki 2008: redução de proteção e maximização de interesses privados. Rev Assoc Med Bras. 2009;55(5):514-8.. Nessas condições, os custos reduzidos das pesquisas e a permissão do double standard na verdade incentivam a indústria farmacêutica a sustentar altos preços, de forma que sempre haverá grupos populacionais sem acesso a medicamentos, justificando, assim, a realização de ensaios clínicos com execuções mais rápidas e custos mais baixos 2020. Garrafa V, Lorenzo C. Helsinki 2008: redução de proteção e maximização de interesses privados. Rev Assoc Med Bras. 2009;55(5):514-8..

Sob uma perspectiva mais filosófica, não é eticamente aceitável que a racionalidade instrumental que visa um fim metodológico e/ou econômico possa se tornar valor superior à responsabilidade dos profissionais de saúde, sendo eles pesquisadores ou não, diante de doenças que já dispõem de tratamento 2020. Garrafa V, Lorenzo C. Helsinki 2008: redução de proteção e maximização de interesses privados. Rev Assoc Med Bras. 2009;55(5):514-8.. É necessário levar em conta que enquanto cálculos estatísticos de morbidade e mortalidade, riscos, danos e resultados de pesquisa são apenas dados numéricos impessoais, o sofrimento causado por uma doença que pode ser evitável ou tratável e o efeito colateral causado por uma droga em teste são uma realidade física, social, mental e psíquica vivenciada por alguém, em seu corpo e em sua vida 2020. Garrafa V, Lorenzo C. Helsinki 2008: redução de proteção e maximização de interesses privados. Rev Assoc Med Bras. 2009;55(5):514-8..

Dessa forma, se a metodologia de uma pesquisa é considerada antiética por países desenvolvidos, de forma igual deve-se considerá-la quando proposta para países pobres 2323. Guilhem D. Resenha: Double standards in medical research in developing countries. Cad Saúde Pública [Internet]. 2005 [acesso 3 dez 2014];21(1):334-6. Disponível: http://bit.ly/2jMSFFq
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. Pesquisadores e patrocinadores têm obrigação moral com os participantes da pesquisa não apenas durante a execução, mas também após o término. Deve haver compromisso formal entre eles, de forma que os participantes que se beneficiaram da medicação no decorrer da pesquisa devem continuar recebendo-a até que fique disponível ou acessível por meio dos serviços de saúde do país. As comunidades e países que contribuíram para o desenvolvimento do medicamento devem ser beneficiados com ele 2323. Guilhem D. Resenha: Double standards in medical research in developing countries. Cad Saúde Pública [Internet]. 2005 [acesso 3 dez 2014];21(1):334-6. Disponível: http://bit.ly/2jMSFFq
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,2626. Fernandes CF. Direito de acesso e dever de fornecimento de medicamentos pós-pesquisa clínica: uma avaliação jurídica e bioética [dissertação]. São Leopoldo: Universidade do Vale do Rio dos Sinos; 2011.. Do ponto de vista ético, ao final do estudo deve ser fornecido ao participante o medicamento que o beneficiou durante a pesquisa, visto que ele contribuiu para o conhecimento e correu riscos, e o não fornecimento do medicamento poderá violar sua saúde e integridade física.

A ideia de que participantes de pesquisas em países periféricos arquem com as consequências e assumam todos os riscos sem que gozem dos benefícios decorrentes do estudo é injusta 2323. Guilhem D. Resenha: Double standards in medical research in developing countries. Cad Saúde Pública [Internet]. 2005 [acesso 3 dez 2014];21(1):334-6. Disponível: http://bit.ly/2jMSFFq
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. Há argumentos que julgam o double standard como forma de violar direitos humanos, por ferir vários princípios descritos na DUBDH. A prática do double standard não leva em consideração a vulnerabilidade da população-alvo do estudo nem de seus participantes, que muitas vezes são, de fato, vulnerados, não estando assim em sua plena capacidade de autonomia. Logo, o processo de consentimento é realizado de forma errônea.

O double standard muitas vezes também fere o princípio de benefício e dano, porque em muitos ensaios clínicos desenvolvidos em países pobres os participantes, ao final do estudo, não se beneficiam das descobertas, carregando consigo apenas os riscos e danos decorrentes da sua participação. Isso leva, portanto, também à violação dos princípios da igualdade, justiça e equidade, pois esses três elementos versam o bem-estar da população de forma equilibrada entre os povos.

Vulnerabilidade, países periféricos e imperialismo moral

Além de dar margem ao double standard, a situação de pobreza, relacionada ao baixo grau de instrução e somada a outros fatores, como a pouca capacidade de execução de pesquisa de alguns países, faz emergir o problema do imperialismo moral. Exemplo da influência indireta de imperialismo moral são as ações educativas, promovidas nos países pobres, que por meio de seminários e treinamentos têm o intuito de converter pesquisadores e integrantes de comitês de ética e órgãos governamentais em transmissores das ideias dos países ricos em seus territórios 2727. Garrafa V, Lorenzo C. Moral imperialism and multi-centric clinical trials in peripheral countries. Cad Saúde Pública [Internet]. 2008 [acesso 22 nov 2014];24(10):2219-26. Disponível: http://bit.ly/2iQKsRC
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. Alguns países já tentaram inclusive propor emendas à Declaração de Helsinki, principal documento normativo internacional sobre ética em pesquisa, visando flexibilizar as regras sobre responsabilidades dos patrocinadores e dos grupos multinacionais de pesquisas 2020. Garrafa V, Lorenzo C. Helsinki 2008: redução de proteção e maximização de interesses privados. Rev Assoc Med Bras. 2009;55(5):514-8.,2727. Garrafa V, Lorenzo C. Moral imperialism and multi-centric clinical trials in peripheral countries. Cad Saúde Pública [Internet]. 2008 [acesso 22 nov 2014];24(10):2219-26. Disponível: http://bit.ly/2iQKsRC
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Na Declaração de Helsinki de 2008, versão da qual o Brasil não é signatário, houve modificações importantes, em especial sobre o uso do placebo e o acesso aos benefícios pós-estudo. Na versão anterior constava que a pesquisa clínica somente seria justificada se houvesse probabilidade de a população com a qual a pesquisa fosse desenvolvida se beneficiasse dos resultados. Além disso, o uso do placebo como controle era aceitável somente quando não houvesse tratamento para o problema a ser estudado, e, ao final do estudo, os participantes deveriam se beneficiar dos melhores métodos ali identificados 2020. Garrafa V, Lorenzo C. Helsinki 2008: redução de proteção e maximização de interesses privados. Rev Assoc Med Bras. 2009;55(5):514-8..

Após diversas reuniões com vários países que propuseram emendas à Declaração, na versão de 2008 o documento foi reformulado e renumerado. Na nova redação consta que, ao final do estudo, os participantes devem ter acesso às intervenções identificadas como benéficas ou a outros cuidados ou benefícios apropriados, dando margem para os pesquisadores oferecerem benefícios secundários, que não são fruto direto do estudo 2020. Garrafa V, Lorenzo C. Helsinki 2008: redução de proteção e maximização de interesses privados. Rev Assoc Med Bras. 2009;55(5):514-8.. O uso do placebo seria permitido quando fosse necessário testar a segurança e eficácia das intervenções, desde que os participantes que o receberam ou deixaram de contar com algum tipo de tratamento não estivessem sujeitos a qualquer risco de dano grave ou irreversível, tornando insegura a defesa dos interesses dos participantes 2020. Garrafa V, Lorenzo C. Helsinki 2008: redução de proteção e maximização de interesses privados. Rev Assoc Med Bras. 2009;55(5):514-8..

Essas alterações contribuem para maximizar interesses da indústria farmacêutica que detém poder indiscutível, classificando-se entre as quatro atividades mais lucrativas do mundo 2020. Garrafa V, Lorenzo C. Helsinki 2008: redução de proteção e maximização de interesses privados. Rev Assoc Med Bras. 2009;55(5):514-8.. E o mais importante é que comprometem a proteção dos participantes de pesquisa, que geralmente fazem parte de comunidades socialmente vulneráveis localizadas em países periféricos. Os países pobres são, obviamente, mais frágeis, e pressões políticas e econômicas para a aceitação desses padrões só tendem a aumentar a diferença entre nações ricas e pobres, em termos de desenvolvimento, proteção e promoção de saúde. O Brasil, no entanto, adota postura diferente da Declaração. Conforme determina a Resolução CNS 466/2012, o uso do placebo é proibido quando há medicamento eficaz para comparação, sendo permitido apenas quando não houver método comprovado 1212. Brasil. Conselho Nacional de Saúde. Resolução nº 466, de 12 de dezembro de 2012. Aprova as diretrizes e normas regulamentadoras de pesquisas envolvendo seres humanos. Diário Oficial da União. Brasília, nº 12, p.59, 13 jun 2013. Seção 1.,2828. Fregnani JHTG, Carvalho AL, Paranhos FRL, Viana LS, Serrano SV, Cárcano F et al. Eticidade do uso de placebo em pesquisa clínica: proposta de algoritmos decisórios. Rev. bioét. (Impr.). 2015;23(3):456-67..

A bioética latino-americana na análise dos problemas

Nos países pobres, onde o acesso a vários tipos de serviços é precário, a regulamentação ética costuma ser falha, o que acarreta na permissão de pesquisas que certamente não seriam aceitas em países desenvolvidos que dispõem de normas mais rígidas. Além de a legislação se encontrar em fase inicial nos países periféricos, a situação de vida nesses locais – onde há pouco acesso a tratamentos de saúde, medicamentos e saneamento básico – aumenta a vulnerabilidade da população.

Entretanto, trata-se de condição universal a que todos estão sujeitos. Isso significa que, enquanto seres mortais, todos somos passíveis de ser atingidos pelo processo da vulneração, em que a vulnerabilidade deixa de ser possível condição, e o indivíduo deixa de ser vulnerável e passa a ser vulnerado 2929. Schramm FR. Bioética da proteção: ferramenta válida para enfrentar problemas morais na era da globalização. Rev. bioét. (Impr.). 2008;16(1):11-23.. A autonomia do indivíduo é fragilizada durante esse processo, e medidas especiais precisam ser tomadas para que seja assegurada sua proteção, um dos principais objetivos da bioética.

Questões persistentes que decorrem das extremas desigualdades econômico-sociais presentes nos países do Hemisfério Sul fizeram surgir uma corrente definida como “bioética de intervenção”. Essa corrente propõe aliança concreta com o lado historicamente mais frágil da sociedade e enfatiza a necessidade de politização dos problemas morais advindos da condição vulnerada da maioria das populações da América Latina e do Hemisfério Sul 3030. Garrafa V, Porto D. Bioética, poder e injustiça: por uma ética de intervenção. O Mundo da Saúde. 2002;26(1):6-15.,3131. Porto D, Garrafa V. Bioética de intervenção: considerações sobre a economia de mercado. Bioética [Internet]. 2005 [acesso 29 abr 2016];13(1):111-23. Disponível: http://bit.ly/2jcuvDV
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. A bioética de intervenção defende a priorização de políticas e tomadas de decisão que privilegiem o maior número de pessoas pelo maior tempo, e que resultem nas melhores consequências e na busca de soluções viáveis e práticas para conflitos identificados com o próprio contexto em que acontecem 3030. Garrafa V, Porto D. Bioética, poder e injustiça: por uma ética de intervenção. O Mundo da Saúde. 2002;26(1):6-15.

31. Porto D, Garrafa V. Bioética de intervenção: considerações sobre a economia de mercado. Bioética [Internet]. 2005 [acesso 29 abr 2016];13(1):111-23. Disponível: http://bit.ly/2jcuvDV
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-3232. Garrafa V. Da bioética de princípios a uma bioética interventiva. Bioética. 2005;13(1):125-34..

Outra corrente é a denominada “bioética de proteção” 2929. Schramm FR. Bioética da proteção: ferramenta válida para enfrentar problemas morais na era da globalização. Rev. bioét. (Impr.). 2008;16(1):11-23., que se dedica à população dos vulnerados, aqueles que não são apenas expostos a condições de vulnerabilidade, mas são também “feridos” pela situação. Ou seja, aqueles que não são plenamente autônomos, visto que não contam com recursos mínimos necessários para exercer sua plena autonomia 3333. Schramm FR. A bioética dos vulnerados: todos os vulneráveis merecem proteção? [Internet]. São Paulo: Centro de Bioética do Cremesp; [s. d.] [acesso 21 nov 2014]. Disponível: http://bit.ly/2jMO3PI
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. O objetivo da bioética de proteção é promover e ensejar políticas públicas capazes de dar suporte necessário para que o próprio indivíduo, apesar de sua condição de vulnerabilidade, seja capaz de otimizar suas capacidades e potenciais para que possa fazer escolhas de forma competente 2929. Schramm FR. Bioética da proteção: ferramenta válida para enfrentar problemas morais na era da globalização. Rev. bioét. (Impr.). 2008;16(1):11-23.. Seu alvo é a população de vulnerados e suscetíveis, pois visa dar amparo àqueles que, de fato, não são capazes de enfrentar situações adversas a partir dos próprios meios.

No entanto, a bioética de proteção não se aplica àqueles que, embora em situação de vulnerabilidade, conseguem enfrentar as adversidades com seus próprios meios 2929. Schramm FR. Bioética da proteção: ferramenta válida para enfrentar problemas morais na era da globalização. Rev. bioét. (Impr.). 2008;16(1):11-23., pois perderia seu sentido emancipatório, tornando-se paternalista 3434. Silva HB. Beneficência e paternalismo médico. Rev Bras Saúde Matern Infant. 2010;10(2 Suppl):419-25.. A presença dos direitos humanos nessas propostas teóricas é fundamental para dar visibilidade à dignidade humana, bem como respeito à autonomia e à vulnerabilidade e cumprimento do processo de consentimento livre e esclarecido, principalmente em regiões onde há acentuada desigualdade social.

Novas perspectivas sob o prisma bioético

É necessário que os problemas que emergem de pesquisas biomédicas realizadas em países pobres e patrocinadas por empresas sediadas em países ricos sejam confrontados na área dos direitos humanos. Vale invocar sistemas de monitoramento desses direitos, regionais e da Organização das Nações Unidas, para que violações por parte da indústria farmacêutica sejam denunciadas 3535. Oliveira AAS, Pagani LPF, Rocha HC. A pesquisa biomédica multicêntrica: as obrigações e a responsabilização da indústria farmacêutica em matéria de direitos humanos. Revista Redbioética/Unesco. 2011;2(4):10-25.. A ocorrência de double standard na relação entre Estados acarreta na violação de direitos humanos em dimensão global, devendo ser tratada como tal e amparada por normas internacionais apropriadas, que, de fato, protejam a dignidade da pessoa humana e daqueles que participam de pesquisas científicas 1919. Oliveira PPS. O imperialismo moral nas pesquisas biomédicas multicêntricas: o duplo standard e a violação dos direitos humanos [monografia]. Brasília: Centro Universitário de Brasília; 2012..

É possível acreditar que exista um caminho pelo qual investigações internacionais ocorram de forma a respeitar e proteger a dignidade humana dos participantes. Para isso, é necessário que a percepção dos direitos humanos se sobreponha aos documentos existentes, e que seja realmente contemplada pelos países e empresas que dispõem de poder econômico para a coordenação de pesquisas 2323. Guilhem D. Resenha: Double standards in medical research in developing countries. Cad Saúde Pública [Internet]. 2005 [acesso 3 dez 2014];21(1):334-6. Disponível: http://bit.ly/2jMSFFq
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. Para que a análise baseada nos direitos humanos seja adotada na condução de pesquisas, sejam elas clínicas, epidemiológicas ou até mesmo sociais, é necessário que seja percebida como condição essencial para possibilitar implementação de programas que supram carências na área de saúde provenientes das diferentes comunidades no mundo. Seguindo essa lógica, países que participarem dos estudos compartilhariam de forma justa e equitativa a distribuição do conhecimento obtido pelas pesquisas 2323. Guilhem D. Resenha: Double standards in medical research in developing countries. Cad Saúde Pública [Internet]. 2005 [acesso 3 dez 2014];21(1):334-6. Disponível: http://bit.ly/2jMSFFq
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Sabe-se que o desenvolvimento de pesquisas biomédicas internacionais é indispensável para o progresso científico. No entanto, também é fundamental que as normas criadas no âmbito internacional para regular os procedimentos dessas pesquisas sigam evoluindo no mesmo sentido, de modo adaptado aos contextos e particularidades locais, visando proteger os participantes das pesquisas 2020. Garrafa V, Lorenzo C. Helsinki 2008: redução de proteção e maximização de interesses privados. Rev Assoc Med Bras. 2009;55(5):514-8.. A elaboração de normas adequadas demanda aumento do rigor e das exigências técnicas e éticas, de modo a balancear deficiências que existem no meio e que por si são capazes de intensificar os riscos já existentes ou de causar riscos adicionais 2020. Garrafa V, Lorenzo C. Helsinki 2008: redução de proteção e maximização de interesses privados. Rev Assoc Med Bras. 2009;55(5):514-8..

É importante que se tenham regras e parâmetros internacionais para guiar o delineamento das pesquisas científicas desenvolvidas em cada país. Contudo, devem ser contempladas as peculiaridades de cada nação, para que as propostas de ensaios clínicos, como operações sociais globalizadas, sejam praticadas de forma a respeitar os direitos humanos 2020. Garrafa V, Lorenzo C. Helsinki 2008: redução de proteção e maximização de interesses privados. Rev Assoc Med Bras. 2009;55(5):514-8.. O adequado seria que países em situação de desenvolvimento elaborassem seus sistemas de apreciação ética de forma autônoma, e que esses regulamentos nacionais fossem redigidos de acordo com contextos locais. Deveriam ser criados também instrumentos para fomentar independência, controle social e transparência, que seriam utilizados democraticamente 2020. Garrafa V, Lorenzo C. Helsinki 2008: redução de proteção e maximização de interesses privados. Rev Assoc Med Bras. 2009;55(5):514-8..

No Brasil, por exemplo, protocolos que envolvem colaboração internacional devem apresentar parecer de aprovação do estudo no país de origem, e justificativa quando não está prevista realização da pesquisa em seu território 3636. Brasil. Conselho Nacional de Saúde. Resolução nº 292, de 8 de julho de 1999. Norma complementar à Resolução CNS nº 196/96, referente à área específica sobre pesquisas em seres humanos, coordenadas do exterior ou com participação estrangeira e as que envolvam remessa de material biológico para o exterior. Diário Oficial da União. Brasília, nº 177, p. 33, 15 set 1999. Seção 2.. A criação de sistemas de regulação e controle social de pesquisas em países periféricos é de suma importância para que o atual quadro passe por mudanças expressivas em benefício das populações tidas como mais vulneráveis 3737. Garrafa V, Lorenzo C. Imperialismo moral e ensaios clínicos multicêntricos em países periféricos. Cad Saúde Pública. 2008;24(10):2219-26.. A construção desses sistemas é importante para evitar imperialismo moral e coibir pesquisas com características abusivas e de exploração, além de incentivar pesquisas internacionais com caráter cooperativo. Esses sistemas devem englobar dois planos básicos 3737. Garrafa V, Lorenzo C. Imperialismo moral e ensaios clínicos multicêntricos em países periféricos. Cad Saúde Pública. 2008;24(10):2219-26.:

  • Formulação propriamente dita, que engloba elaboração de normas adaptadas aos contextos econômicos, sociais e culturais dos países, fundamentadas em três pontos de proteção para a bioética, sendo eles a adequada obtenção de consentimento, maximização de benefícios e minimização de riscos;

  • Programa sociopolítico associado à elaboração de ferramentas normativas de regulação, exercido por meio de leis e normas éticas de pesquisa envolvendo seres humanos, e mediação de debates democráticos para controle social, representados por comitês de ética em pesquisa institucionais, regionais e nacionais.

Nesse contexto, comitês de ética são instâncias fundamentais para proteger os participantes de pesquisa. Devido à sua importância, fatores relacionados à sua estrutura e funções devem ser considerados:

  • Composição e capacitação dos membros do comitê, pois é essencial que seja composto por pessoas com diferentes formações, incluindo experiências nas áreas de metodologia científica e bioética. É ideal também a presença de representantes da comunidade, para que haja pluralismo de ideias;

  • Independência dos membros em relação aos pesquisadores que submetem protocolos para apreciação, de modo que relacionamentos não possam afetar o processo de análise ética;

  • Capacidade para analisar conflitos de interesse que possam surgir da realização de pesquisas;

  • Habilidade para verificar se os objetivos traçados no projeto de fato se relacionam às demandas de determinada comunidade;

  • Ponderação dos riscos e benefícios, de modo a proteger os participantes, visando coibir sua exploração;

  • Estabelecimento prévio de acordos, de forma a apontar e estimular aqueles que sejam mais benéficos e favoráveis aos participantes e países envolvidos após a finalização das pesquisas 2323. Guilhem D. Resenha: Double standards in medical research in developing countries. Cad Saúde Pública [Internet]. 2005 [acesso 3 dez 2014];21(1):334-6. Disponível: http://bit.ly/2jMSFFq
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Poderiam ser também incluídos nas análises dos comitês de ética itens que permitissem verificar se estão presentes componentes de vulneração ou averiguar se foram tomados os devidos cuidados para evitá-la. Esses componentes podem estar associados a classe social, gênero, elementos raciais, orientação sexual, faixa etária ou localização geopolítica 3838. Nascimento WF, Martorell LB. A Bioética de intervenção em contextos descoloniais. Rev. bioét. (Impr.). 2013;21(3):423-3.. Além da organização de comitês de ética que avaliem a eticidade das pesquisas, é necessário também discutir o processo de formação de profissionais, principalmente na área da saúde. É necessário que essa formação abranja pensamento crítico ético e conscientização do futuro profissional em relação à realidade da população, que o aprendizado seja voltado para os problemas da população assistida, e que o profissional possa agir e interagir como transformador da realidade 1313. Silva JAC. Autonomia versus paternalismo médico: perfil bioético dos egressos do laboratório de cirurgia experimental do curso de medicina da UEPA [tese]. Porto: Universidade do Porto; 2013 [acesso 20 nov 2014]. Disponível: http://bit.ly/2jlHYXB
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A proteção dos vulneráveis, principalmente daqueles inseridos em países pobres, onde as pessoas carecem de acesso a serviços básicos de saúde e educação, sempre foi preocupação da bioética. Nesses locais, a população praticamente não entende o que significa participar de uma pesquisa, desconhecendo as diferenças entre tratamento médico e ensaio clínico 2323. Guilhem D. Resenha: Double standards in medical research in developing countries. Cad Saúde Pública [Internet]. 2005 [acesso 3 dez 2014];21(1):334-6. Disponível: http://bit.ly/2jMSFFq
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, bem como seus riscos. Em consequência, o termo de consentimento livre e esclarecido é uma das principais salvaguardas para proteger os participantes. A necessidade do consentimento informado decorre de ser respaldo legal para quaisquer intervenções envolvendo seres humanos. Com base nele é que o participante tem acesso às informações necessárias para compreender a pesquisa, sua justificativa, seus objetivos, sua metodologia e garantias, assim como seus próprios direitos 2323. Guilhem D. Resenha: Double standards in medical research in developing countries. Cad Saúde Pública [Internet]. 2005 [acesso 3 dez 2014];21(1):334-6. Disponível: http://bit.ly/2jMSFFq
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Outro ponto importante é que o participante da pesquisa tenha o tempo necessário para ler o termo e refletir sobre o texto, e tenha liberdade de consultar não apenas o investigador e sua equipe, mas também seus familiares e outras pessoas de sua confiança, para que possa se sentir seguro ao tomar decisões. Nesse processo, a atuação do pesquisador deve ser neutra, imparcial, para não influenciar ou induzir o convidado a participar da pesquisa. Além disso, a metodologia de um estudo traduz a eticidade da pesquisa. Ao obter o adequado consentimento dos participantes, respeitando-os em sua autonomia e dignidade, a pesquisa reconhece sua vulnerabilidade e indica que devem ser protegidos.

Considerações finais

É de suma importância a produção de conhecimento por meio de estudos científicos. Eles trazem valiosas conquistas, novas descobertas que produzem medicamentos e tratamentos, contribuindo para melhorar a qualidade de vida e aumentar a expectativa de vida da população. No entanto, é necessário refletir sobre os resultados obtidos por meio de procedimentos com metodologias antiéticas, como os experimentos nazistas que ocorreram durante a Segunda Guerra Mundial. Esses procedimentos não seguiam quaisquer princípios éticos, conforme relatado na literatura, como no livro “The nazi doctors and the Nuremberg code”, dos autores George Annas e Michael Grodin, que fala a respeito do julgamento dos médicos nazistas 3939. Annas G, Grodin MA. The nazi doctors and the Nuremberg Code: human rights in human experimentations. New York: Oxford University Press; 1992..

A produção de conhecimento é válida, mas a forma de produzi-lo deve atender aos parâmetros éticos para se evitar abusos. Para o desenvolvimento da ciência é necessário respeitar limites para que não haja danos. É preciso balancear riscos e benefícios por meio da análise ética, assegurando a proteção dos participantes. Em hipótese alguma o conhecimento deve ser posto em patamar acima dos valores humanos, pois o indivíduo deve ser um fim por si mesmo, e não um meio. Ainda que existam documentos normativos internacionais sobre ética em pesquisa, algumas práticas no campo científico persistem, como o double standard e o imperialismo moral, por exemplo, violando vários princípios dos direitos humanos, como autonomia, consentimento, benefício e dignidade. Isso ocorre porque a percepção bioética é recente, encontrando-se ainda em estágio inicial.

É necessário que a concepção de direitos humanos se sobreponha aos documentos normativos. Além disso, é preciso que essa ideia seja contemplada pelos países desenvolvidos, que detêm o poder econômico, coordenam pesquisas e sediam as principais empresas da indústria farmacêutica. A bioética é, portanto, ferramenta de diálogo internacional.

A cooperação entre nações, as políticas de desenvolvimento que visem combater a pobreza e as desigualdades sociais, e a adequada formação de profissionais, de forma a contemplar os direitos humanos, são essenciais para responder às demandas éticas. Em relação a esse imperativo ético, conclui-se que numa pesquisa se deve primar pelo respeito à dignidade humana mesmo quando a autonomia da pessoa estiver reduzida pela vulnerabilidade, comprometendo o processo de consentimento.

Como visto, o comprometimento da autonomia pode decorrer de fatores intrínsecos (distúrbios mentais) e extrínsecos (pobreza, analfabetismo). A fragilidade dos primeiros torna-os difíceis de serem mudados, mas os fatores externos são passíveis de mudanças. As estratégias adotadas pelas políticas públicas devem ser voltadas para a diminuição desses fatores, para que se consiga mudar essa realidade, quando for possível. Igualmente, isso minimizaria as dificuldades de compreensão quando as desigualdades forem internas aos indivíduos. Enquanto a medicina se ocupa de estudar e moldar aspectos internos, a política deve se voltar para os problemas externos, ambas com base em princípios de direitos humanos. E a bioética atua nesse cenário como mediadora.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jan-Apr 2017

Histórico

  • Recebido
    25 Set 2015
  • Revisado
    19 Jul 2016
  • Aceito
    21 Out 2016
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