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Consentimento informado: estratégia para mitigar a vulnerabilidade na assistência hospitalar

Resumo

Este texto trata de identificar vulnerabilidade como característica inerente ao ser humano e apresentar o consentimento informado como estratégia para minimizá-la no contexto da assistência hospitalar. Sujeitos que vivenciam internação hospitalar têm seu padrão de vulnerabilidade ampliado por estarem em ambiente desconhecido, sobre o qual não possuem domínio nem conhecimento; e também por estarem subordinados ao médico, que tem poder para determinar condutas terapêuticas que podem comprometer a existência do paciente e seus projetos de vida. A vulnerabilidade pode ser reduzida por meio do consentimento informado, que prioriza informação, compreensão e possibilidade de deliberação e que respeita a autodeterminação do paciente na escolha do tratamento proposto. Nesse sentido, o consentimento informado é capaz de reduzir o padrão de vulnerabilidade do paciente em ambiente de internação hospitalar.

Vulnerabilidade em saúde; Consentimento livre e esclarecido; Assistência hospitalar; Bioética

Abstract

This text aims at identifying vulnerability as an inherent characteristic of human beings and introducing informed consent as a strategy to minimize it in the context of hospital care. Subjects who experience hospitalization are enclosed in an unknown environment upon which they have no control or knowledge. In addition, they are subordinate to the physician, who possesses the power to determine therapeutic conducts that may compromise their existence and life goals. As a result, their degree of vulnerability is increased. Vulnerability can be reduced through the informed consent that prioritizes information, understanding, possibility of deliberation and respects the patient’s self-determination in the choice of the proposed treatment. Thus, the application of the informed consent process can reduce the patient’s vulnerability pattern in a hospital environment.

Health vulnerability; Informed consent; Hospital care; Bioethics

Resumen

Este texto trata acerca de la identificación de la vulnerabilidad como una característica inherente al ser humano y presenta al consentimiento informado como estrategia para minimizarla en el contexto de la asistencia hospitalaria. Los sujetos que atraviesan una internación hospitalaria tienen su patrón de vulnerabilidad ampliado porque se encuentran en un ambiente desconocido sobre el cual no poseen dominio ni conocimiento; y también porque están subordinados al médico, el cual tiene poder para determinar conductas terapéuticas que pueden comprometer su existencia y sus proyectos de vida. La vulnerabilidad puede reducirse mediante el consentimiento informado que da prioridad a la información, la comprensión, la posibilidad de deliberación y que respeta la autodeterminación del paciente en la elección del tratamiento propuesto. En este sentido, el empleo del proceso de consentimiento informado es capaz de reducir el patrón de vulnerabilidad del paciente en el ambiente de internación hospitalaria.

Vulnerabilidad en salud; Consentimiento informado; Atención hospitalaria; Bioética

A vulnerabilidade é condição inerente a todo ser vivo, uma vez que a vida biológica está sujeita a constante risco de destruição. Porém, seres humanos não têm ameaçados apenas os atributos biológicos, pois a construção social da vida humana, bem como seu projeto existencial, confere à vulnerabilidade outra dimensão. Nesse sentido, surge o caráter antropológico da vulnerabilidade, na medida em que o indivíduo se reconhece vulnerável e entende que partilha essa condição com os demais. Seres humanos que elaboram projetos de vida e escolhem o modo de conduzir a existência também estão vulneráveis a ter suas escolhas afetadas em virtude de tensões sociais e políticas características da vida em sociedade.

Pode-se afirmar que todos os viventes são vulneráveis, ou seja, estão sob risco e ameaça. Se esse risco se concretiza, se a sobrevivência, existência ou projetos de vida são afetados, o vivente passa da situação de vulnerável à condição de vulnerado, pois de algum modo sofreu agressão. Segundo Schramm, parece razoável considerar mais correto distinguir a mera vulnerabilidade da efetiva “vulneração”, vendo a primeira como mera potencialidade e a segunda como uma situação de fato, pois isso tem consequências relevantes no momento da tomada de decisão11. Schramm FR. A saúde é um direito ou um dever? Autocrítica da saúde pública. RBB. 2006;2(2):187-200. p. 192..

Pacientes em situação de internação hospitalar que enfrentam necessidade de se submeter a procedimentos cirúrgicos podem ser considerados vulneráveis nessa situação em particular. Isso acontece em decorrência de múltiplos fatores, como a própria doença, a falta de informações a respeito de seu estado de saúde e das opções de tratamento e a falta de gestão sobre seu próprio corpo e mente. Além disso, a possibilidade de ser considerado incapaz de tomar decisões que dizem respeito a sua própria vida e a receber tratamento que vai de encontro aos seus projetos de vida exacerbam a situação de vulnerabilidade.

O indivíduo hospitalizado para cirurgia está fora de seu ambiente social e cultural, afastado da rede social que lhe inspira confiança e segurança. Além disso, o desconhecimento pode comprometer sua capacidade de opinar sobre questões relacionadas a seu tratamento. Somado a esses fatores, o paciente está submetido aos cuidados de profissionais que não conhecem sua história, suas experiências, seus anseios e projetos de vida. Esses aspectos provocam medo, ansiedade e conflitos na tomada de decisão. A desinformação amplia o grau de incertezas e pode comprometer a qualidade da assistência.

Entendendo isso, Rothrock 22. Rothrock JC. Alexander: cuidados de enfermagem ao paciente cirúrgico. 13ª ed. Rio de Janeiro: Elsevier; 2007. e Smeltzer e colaboradores 33. Smeltzer SC, Bare BG, Hinkle JL, Cheever KH, editores. Brunner & Suddarth: tratado de enfermagem médico-cirúrgica. 12ª ed. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan; 2011. apresentam propostas de cuidado de enfermagem focadas na informação para minimizar a ocorrência dessas situações emocionais que, segundo eles, são reais e estão relacionadas à assistência cirúrgica. Esses autores entendem que o acesso à informação capacita o paciente para enfrentar seus medos e diminui suas fragilidades no contexto assistencial. Sendo assim, o processo de consentimento informado pode abrandar a situação de vulnerabilidade relacionada à internação hospitalar. Isso porque é centrado no fornecimento de informações compreensíveis, que permitam a deliberação do paciente acerca do tratamento que lhe está sendo ofertado.

Cabe ressaltar que tais informações devem ser fornecidas no contexto da relação paciente-profissional de saúde. O objetivo do consentimento informado é garantir respeito à autonomia mediante fornecimento de informações pertinentes ao procedimento – tais como benefícios, riscos, consequências e alternativas terapêuticas. O consentimento informado ideal é apontado por autores como Muñoz e Fortes 44. Muñoz DR, Fortes PAC. O princípio da autonomia e o consentimento livre e esclarecido. In: Costa SIF, Oselka G, Garrafa V, coordenadores. Iniciação à bioética. Brasília: CFM; 1998. p. 53-70., Lepine e colaboradores 55. Lepine MLI, Montoya JPB, Villaronga OP, Leal EH, Echarte JL, Durán JFS. Consentimiento informado: opiniones del personal sanitario de un hospital universitario. Rev Clín Esp. 2007;207(10):483-8., Fernandes e Pithan 66. Fernandes CF, Pithan LH. O consentimento informado na assistência médica e o contrato de adesão: uma perspectiva jurídica e bioética. Rev HCPA & Fac Med UFRGS. 2007;27(2):78-82. e Lorda e Júdez 77. Lorda PS, Júdez JG. Consentimiento informado. Med Clín. 2001;117(3):99-106., entre outros, como processo de deliberação que envolve o indivíduo que necessita ser submetido a procedimentos terapêuticos e/ou diagnósticos e o profissional de saúde responsável por implementá-los. Enquanto processo deliberativo implica na troca de informação precisa, objetiva e clara, indispensável à tomada de decisão consciente dos benefícios, riscos, alternativas terapêuticas e consequências das ações que estão sendo propostas.

Goldim 88. Goldim JR. Consentimento informado. [Internet]. 1997 [acesso 3 fev 2016]. Disponível: http://bit.ly/2lK8iPm
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faz referência ao consentimento informado como elemento característico da prática médica, sendo direito moral dos pacientes e não apenas doutrina legal. Segundo o autor, deve ser composto basicamente por três elementos, que demandam atributos tanto dos profissionais como dos pacientes envolvidos: capacidade do paciente de agir intencionalmente; fornecimento de informação adequada, além de sua compreensão e consentimento. Esses elementos dizem respeito às condições necessárias para que o consentimento pretendido seja considerado válido.

A capacidade de consentir relaciona-se ao fornecimento de informações pertinentes pelo profissional que abranjam explicitação dos riscos, benefícios, alternativas terapêuticas e consequências, e depende da compreensão adequada dessas informações pelo paciente. Deve ser preservada sua voluntariedade para aceitar ou não a proposta e, ao final do processo, espera-se obter decisão fundamentada, sintetizada no ato de consentir propriamente dito. O respeito a essas etapas contribui para conferir ao consentimento informado a validade ética, moral e legal necessária à assistência à saúde 88. Goldim JR. Consentimento informado. [Internet]. 1997 [acesso 3 fev 2016]. Disponível: http://bit.ly/2lK8iPm
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A obtenção do consentimento informado figura então como estratégia que dá subsídios ao indivíduo que necessita de cuidados de saúde para que possa exercer sua autonomia, participando efetivamente das decisões acerca de atividades que interferem no curso de sua existência. Nesse aspecto, a compreensão da informação, que é um dos principais componentes do processo de consentimento informado, é vital. Isso porque, de acordo com Leite, o empoderamento do indivíduo por meio da informação tem papel fundamental no processo de autotransformação da pessoa, na medida em que propicia um ambiente de mudanças com o intuito de oferecer aos indivíduos envolvidos certa autonomia99. Leite RAF. Direito à informação em saúde: análise do conhecimento do paciente acerca de seus direitos [dissertação]. Ribeirão Preto: USP; 2010 [acesso 28 ago 2016]. p. 43. Disponível: http://bit.ly/2lmq61Z
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Desse modo, tratamos aqui de tecer reflexões acerca da existência da vulnerabilidade de pacientes adultos e capazes, cuja saúde está comprometida, internados em instituição hospitalar pública e que demandam cuidados cirúrgicos, no contexto da relação médico-paciente. Igualmente, pondera-se a interferência do processo de consentimento informado no padrão de vulnerabilidade desses indivíduos.

Sobre vulnerabilidade

Para Hossne 1010. Hossne WS. Dos referenciais da bioética: a vulnerabilidade. Bioethikos. 2009;3(1):41-51., percepção e consciência da condição de vulnerabilidade são capazes de produzir no ser humano sentimento de angústia diante de ameaças aos projetos de vida elaborados. A percepção da vulnerabilidade e a consciência da necessidade de se defender provocaram a criação de estratégias de proteção configuradas nas convenções sociais, leis e normas de conduta. Somos vulneráveis até aos ataques da nossa própria espécie, o que, portanto, motivou a elaboração de arcabouço ético com fito de proteger a construção social humana: a ética se impõe, entre outras razões, porque existe vulnerabilidade1111. Hossne WS. Op. cit. p. 42..

Kottow 1212. Kottow M. Vulnerabilidad y protección. In: Tealdi JC, director. Diccionario latinoamericano de bioética. Bogotá: Universidad Nacional de Colombia/Unesco; 2008. p. 340-2. sustenta que existem três níveis de vulnerabilidade humana. Dois estão relacionados à manutenção da vida biológica (e seriam a vulnerabilidade vital e a de subsistência). O terceiro, que denomina “vulnerabilidade existencial”, tem relação com os percalços e condições que podem comprometer ou ameaçar a continuidade dos projetos de vida inerentes à maioria dos seres humanos. O autor refere o estabelecimento e respeito aos direitos humanos básicos como modo de mitigar o que denomina “vulnerabilidade humana fundamental”, de modo que numa sociedade justa tais direitos sejam garantidos igualmente para todos os integrantes 1212. Kottow M. Vulnerabilidad y protección. In: Tealdi JC, director. Diccionario latinoamericano de bioética. Bogotá: Universidad Nacional de Colombia/Unesco; 2008. p. 340-2..

Essa pretensão leva a crer que a concepção de direitos humanos guarda direta relação com o reconhecimento do fato de a vulnerabilidade ser constitutiva do ser humano e que diante dela são necessários mecanismos que resguardem a integridade tanto da existência digna como dos projetos de vida dos indivíduos. É importante destacar que existe sensível diferença entre ser vulnerável, estar vulnerável e a condição de vulnerado. Vulneráveis são todos aqueles que possuem vida biológica – ou, com relação aos seres humanos, projeto de vida – e que são suscetíveis a intempéries ou outras eventualidades.

A diferença entre ser e estar vulnerável diz respeito ao contexto em avaliação, especialmente quando o foco é a vulnerabilidade social – inerente ao ser humano e a outros animais que convivem em grupos sociais. Sendo assim, determinados ambientes ou estado de coisas podem ampliar ou diminuir o padrão de vulnerabilidade. Por exemplo, um homem que chefia uma empresa provavelmente não está em situação de vulnerabilidade em relação ao médico que trabalha na mesma empresa. No entanto, se esse mesmo homem encontrar-se doente e buscar cuidado médico, ele estará em situação de vulnerabilidade, dada a característica de assimetria existente nas relações entre médicos e pacientes 1313. Leite RAF. Op. cit.,1414. Caprara A, Rodrigues J. A relação assimétrica médico-paciente: repensando o vínculo terapêutico. Ciênc Saúde Coletiva. 2004;9(1):139-46.. Por outro lado, a condição de vulnerado diz respeito ao indivíduo que sofreu dano e, em virtude disso, no contexto da vulnerabilidade humana, teve comprometido seu projeto de vida 11. Schramm FR. A saúde é um direito ou um dever? Autocrítica da saúde pública. RBB. 2006;2(2):187-200. p. 192..

Luna 1515. Luna F. Vulnerabilidad: la metáfora de las capas. Jurisprudencia Argentina. 2008;4(1):60-7. esclarece que, embora a vulnerabilidade biológica seja condição inerente ao vivente, não é o mesmo quando se fala de vulnerabilidade humana. Isso porque existem situações capazes de ampliar o padrão de vulnerabilidade de determinados indivíduos, enquanto outros não são afetados. A autora desenvolve a concepção de “capas de vulnerabilidade” para explicar que existem contextos e características sociais e da própria pessoa que, quando sobrepostos, aumentam a vulnerabilidade de determinados indivíduos em um contexto social específico. Assim, vulnerabilidade não seria atributo estanque que se possa conferir a alguém, mas circunstância que deve ser analisada no contexto em que ocorre. Segundo a autora:

Este concepto de vulnerabilidad está estrechamente relacionado a las circunstancias, a la situación que se está analizando y al contexto. No se trata de una categoría, un rótulo o una etiqueta que podemos aplicar. Otra manera de entender esta propuesta, que supone pensar que alguien es vulnerable, es considerar que una situación específica puede convertir o hacer vulnerable a una persona 1616. Luna F. Op. cit. p. 64..

A vulnerabilidade é característica da relação entre vivente e meio, e surge de desequilíbrio nessa relação. Essa característica dinâmica e relacional apontada por Luna 1515. Luna F. Vulnerabilidad: la metáfora de las capas. Jurisprudencia Argentina. 2008;4(1):60-7. e Oviedo e Czeresnia 1717. Oviedo RAM, Czeresnia D. O conceito de vulnerabilidade e seu caráter biossocial. Interface Comun Saúde Educ. [Internet]. 2015 [acesso 4 out 2016];19(53):237-49. Disponível: http://bit.ly/2mkzLnz
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permite inferir que se as condições do meio apresentam ameaças à demanda de sobrevivência do vivente, a consequência será a ampliação de suas fragilidades. Essa construção ampla serve tanto para tecer considerações acerca da vida biológica como para as peculiaridades da vida social. Nesse caso, o vivente, aqui entendido como ser humano, necessitará de cuidados e/ou estratégias de proteção que possibilitem reduzir suas fragilidades e, consequentemente, aproximá-lo de existência livre de danos:

Fragilidades na ordem existencial ou social se referem tanto aos aspectos que questionam as certezas sobre o curso da vida no dia a dia (as trajetórias críticas de um doente, por exemplo) quanto às inter-relações sociais que limitam o potencial de atuação dos indivíduos. Desenhos institucionais e formas de organização social que impedem o asseguramento presente e futuro da existência e da filiação social também limitam o exercício de poder e sustentam situações de vulnerabilidade 1818. Oviedo RAM, Czeresnia D. Op. cit. p. 244..

De acordo com essa assertiva, podemos entender que estruturas institucionais cujas ações são capazes de afetar os direitos fundamentais dos indivíduos – como autonomia, dignidade e integridade corporal – podem igualmente conferir ou ampliar sua vulnerabilidade. Isso ocorre caso tais ações não sejam conduzidas com o necessário cuidado e respeito aos projetos existenciais dos assistidos, sujeitando-os a possível situação de risco. Cabe pontuar que vulnerabilidade não é sinônimo do risco; antes representa suscetibilidade ao risco que se apresenta 1919. Ayres JRCM, Paiva V, França I Jr, Gravato N, Lacerda R, Della Negra M et al. Vulnerability, human rights, and comprehensive health care needs of young people living with HIV/AIDS. Am J Public Health. 2006;96(6):1001-6. DOI: 10.2105/AJPH.2004.060905
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. Bertolozzi e colaboradores 2020. Bertolozzi MR, Nichiata LYI, Takahashi RF, Ciosak SI, Hino P, Val LF et al. Os conceitos de vulnerabilidade e adesão na Saúde Coletiva. Rev Esc Enferm USP. 2009;43(2 Esp):1326-30. afirmam que a vulnerabilidade é determinada por condições cognitivas2121. Bertolozzi MR, Nichiata LYI, Takahashi RF, Ciosak SI, Hino P, Val LF et al. Op. cit. p. 1327., e desse modo o acesso à informação pode interferir no seu padrão.

Para os autores, medidas que contribuam para a participação efetiva do sujeito em seu processo de saúde-doença – como o fornecimento de informações pertinentes, por exemplo – pode mitigar o padrão de vulnerabilidade do paciente 2020. Bertolozzi MR, Nichiata LYI, Takahashi RF, Ciosak SI, Hino P, Val LF et al. Os conceitos de vulnerabilidade e adesão na Saúde Coletiva. Rev Esc Enferm USP. 2009;43(2 Esp):1326-30.. Sendo assim, garantir ao paciente acesso a informações relevantes acerca do tratamento, elucidando suas dúvidas inerentes ao contexto em que se encontra, pode diminuir seu padrão de vulnerabilidade. Isso dá a ele subsídios que lhe permitem participar conscientemente do processo de decisão sobre a terapêutica que será instituída, a qual trará implicações sobre o curso de sua existência.

Consequências do reconhecimento de vulnerabilidade

É importante destacar que se, por um lado, receber a designação de vulnerável pode garantir o alcance da positivação de direitos, por outro pode também contribuir para o surgimento ou fortalecimento da discriminação social, colocando o indivíduo em situação de maior fragilidade e desamparo 1717. Oviedo RAM, Czeresnia D. O conceito de vulnerabilidade e seu caráter biossocial. Interface Comun Saúde Educ. [Internet]. 2015 [acesso 4 out 2016];19(53):237-49. Disponível: http://bit.ly/2mkzLnz
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. Reconhecer a vulnerabilidade dos sujeitos significa colocar em evidência suas fragilidades e traçar metas para ultrapassá-las, garantindo que esses sujeitos possam dar continuidade a seus projetos de vida em condições semelhantes de oportunidade que os demais, dentro de determinada sociedade. Destaque-se que o reconhecimento dos direitos humanos fundamentais e a construção de um arcabouço ético a seu respeito contribuiu para que fragilidades fossem identificadas e cuidadas e, desse modo, o padrão de vulnerabilidade de grupos e/ou indivíduos pudesse ser mitigado 1717. Oviedo RAM, Czeresnia D. O conceito de vulnerabilidade e seu caráter biossocial. Interface Comun Saúde Educ. [Internet]. 2015 [acesso 4 out 2016];19(53):237-49. Disponível: http://bit.ly/2mkzLnz
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Porém, para alcançar esse patamar, é necessário que os direitos humanos sejam reconhecidos em seu princípio de universalidade e indissociabilidade, permitindo assim que integrantes de uma sociedade justa usufruam das mesmas possibilidades de existência e realização de projetos de vida. É notório que os direitos civis e políticos só podem ser plenamente exercidos na vigência dos direitos sociais, econômicos e culturais e vice-versa. Em todas as esferas da vida os direitos se entrelaçam, sendo interdependentes e imprescindíveis para a viabilização e alcance uns dos outros e, portanto, mudam o padrão das vulnerabilidades. Nesse sentido, reconhecer vulnerabilidades é mitigar diferenças de oportunidades de modo que todos tenham possibilidade real de alcançar o sucesso 1010. Hossne WS. Dos referenciais da bioética: a vulnerabilidade. Bioethikos. 2009;3(1):41-51.,2222. Carbonari PC. Direitos humanos: sugestões pedagógicas. Passo Fundo: Instituto Superior de Filosofia Berthier; 2010..

É importante dizer que o reconhecimento de vulnerabilidades de determinados grupos pode servir equivocadamente para estigmatizá-los e apartá-los do convívio adequado no conjunto social a que pertencem. Isso ocorre quando a evidenciação das fragilidades, em vez de garantir proteção, gera discriminação e exclusão social, como se observa em estudos sobre a aids 1919. Ayres JRCM, Paiva V, França I Jr, Gravato N, Lacerda R, Della Negra M et al. Vulnerability, human rights, and comprehensive health care needs of young people living with HIV/AIDS. Am J Public Health. 2006;96(6):1001-6. DOI: 10.2105/AJPH.2004.060905
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. Cabe ressaltar que o conceito de vulnerabilidade ganhou força e visibilidade na área da saúde pública brasileira com o advento da aids, pela associação da forma de disseminação da doença ao conceito de risco.

Classificar determinados indivíduos como integrantes de grupos de risco possibilitou a ocorrência de situações perturbadoras que trazem em seu lastro a segregação e o preconceito em relação aos portadores do vírus. Além disso, o estabelecimento de populações vulneráveis neste contexto levou indivíduos não classificados como “de risco” a consequente exposição ao perigo de contaminação 1919. Ayres JRCM, Paiva V, França I Jr, Gravato N, Lacerda R, Della Negra M et al. Vulnerability, human rights, and comprehensive health care needs of young people living with HIV/AIDS. Am J Public Health. 2006;96(6):1001-6. DOI: 10.2105/AJPH.2004.060905
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,2323. Ayres JRCM, França I Jr, Calazans GJ, Saletti Filho HC. O conceito de vulnerabilidade e as práticas de saúde: novas perspectivas e desafios. In: Czeresnia D, Freitas CM, organizadores. Promoção da saúde: conceitos, reflexões, tendências. Rio de Janeiro: Fiocruz; 2003. p. 117-40.. Na concepção de Luna 1515. Luna F. Vulnerabilidad: la metáfora de las capas. Jurisprudencia Argentina. 2008;4(1):60-7., o conceito de vulnerabilidade não deve servir apenas para classificar indivíduos, conferindo-lhes rótulo permanente. Antes disso, deve servir para indicar que em dadas situações existe a necessidade de olhar sensível que confira alguma proteção e maior consideração aos envolvidos.

Evidenciar as vulnerabilidades que dificultam ou impedem o usufruto dos direitos fundamentais propicia a construção de estratégias de ação que podem contribuir para a equidade social. Identificar sujeitos socialmente vulneráveis deve ter como objetivo oferecer-lhes condições de superação e, a partir disso, promover sua efetiva participação na sociedade, de maneira digna e independente, no exercício pleno da cidadania.

O papel da educação

Para alcançar com sucesso a proposição anteriormente apresentada, a educação é apontada como essencial. Educação formal e informal que priorize o respeito aos direitos humanos, por meio da construção de valores como o respeito ao próximo, à natureza e às normas que regem a sociedade em geral. A atitude cidadã é necessária à emancipação dos direitos humanos 2424. Andrade DAM. A relevância da educação não formal na emancipação dos direitos humanos [monografia]. Curitiba: Universidade Federal do Paraná; 2015 [acesso 3 fev 2016]. p. 39. Disponível: http://bit.ly/2kKA4eY
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. Outro modelo de educação apontado como capaz de empoderar sujeitos, permitindo-lhes a emancipação, é aquele que acontece como ação cultural para a libertação. Esse modelo instrumentaliza os sujeitos para compreender os determinantes sociais e políticos de suas vulnerabilidades, e os capacita para elaborar respostas necessárias à emancipação humana2525. Baquero RVA. Empoderamento: instrumento de emancipação social? Uma discussão conceitual. Rev Debates. 2012;6(1):173-87. p. 184.. Baquero esclarece:

Empoderamento, enquanto categoria, perpassa noções de democracia, direitos humanos e participação, mas não se limita a estas. É mais do que trabalhar em nível conceitual, envolve o agir, implicando processos de reflexão sobre a ação, visando a uma tomada de consciência a respeito de fatores de diferentes ordens – econômica, política e cultural – que conformam a realidade, incidindo sobre o sujeito. Neste sentido, um processo de empoderamento eficaz necessita envolver tanto dimensões individuais quanto coletivas 2626. Baquero RVA. Op. cit. p. 183-4..

A busca da emancipação psicossocial também é apontada por Paiva 2727. Paiva V. Sem mágicas soluções: a prevenção e o cuidado em HIV/aids e o processo de emancipação psicossocial. Interface Comun Saúde Educ. 2002;6(11):25-38. como caminho fundamental para a formação de sujeitos com consciência de sua cidadania e para garantir-lhes acesso ao usufruto de direitos sociais, como bons serviços de assistência. Para o autor, a perspectiva do indivíduo cidadão é de alguém capaz de reconhecer seus direitos e responsabilidades, capaz de agir para alcançar seus direitos e de exigir a criação de novos. Enfim, um sujeito política e socialmente engajado na constante tensão que é alcançar direitos e mantê-los na dinâmica de sociedades desiguais em oportunidades e distribuição de recursos 2727. Paiva V. Sem mágicas soluções: a prevenção e o cuidado em HIV/aids e o processo de emancipação psicossocial. Interface Comun Saúde Educ. 2002;6(11):25-38.. Os caminhos para chegar a essa conformação de sujeito estão condicionados à criação de estratégias como facilitação dos meios de acesso, investimento na capacitação do indivíduo para exercer a cidadania, promoção de educação libertadora e diminuição das desigualdades sociais.

É preciso ressaltar que o acesso à educação é crucial nesse processo, mas o projeto educacional deve valorizar, integrar e respeitar os valores dos sujeitos na construção do conhecimento, para que, assim, possam sair da situação de excluídos e vulneráveis 2727. Paiva V. Sem mágicas soluções: a prevenção e o cuidado em HIV/aids e o processo de emancipação psicossocial. Interface Comun Saúde Educ. 2002;6(11):25-38.. Viabilizar o acesso e a compreensão sobre o contexto da assistência hospitalar no qual o paciente está inserido é um modo de conferir-lhe subsídios para exercer sua autonomia e tomar para si algum controle sobre sua saúde e existência. Nesse sentido, o processo de consentimento informado constitui-se em elemento importante para dar ao indivíduo condições de participação nas decisões sobre a manutenção de sua saúde.

Consentimento informado e vulnerabilidade

Importante considerar que a vulnerabilidade aqui referida é aquela evidenciada por condições sociais adversas, que limitam e afetam diretamente o potencial de atuação dos indivíduos (…), que impedem o asseguramento presente e futuro da existência (…), limitam o exercício de poder (…) [e, desse modo,] sustentam situações de vulnerabilidade. Trata-se da vulnerabilidade existencial e social que leva à impossibilidade de afirmação e exercício da liberdade e autonomia relativa1818. Oviedo RAM, Czeresnia D. Op. cit. p. 244.:

A vulnerabilidade no plano social se refere à existência de relações que limitam a capacidade de atuação das pessoas e que retiram os suportes institucionais de segurança social, ou seja, situações que negam o exercício efetivo de direitos e, portanto, insegurança presente e evanescência de projetos futuros 2828. Oviedo RAM, Czeresnia D. Op. cit. p. 246..

O modelo biomédico predominante nas instituições de saúde é exemplo da situação relatada, pois privilegia a tecnologia e se concentra no caráter biológico das doenças. Isso contribui para desvalorizar a experiência e subjetividade do paciente, minimizando a importância do papel da relação pessoal entre os sujeitos envolvidos. Leva igualmente ao fortalecimento da assimetria na relação entre médicos e pacientes, na qual o profissional assume papel dominante, pois tem o poder tanto da informação e conhecimento quanto da determinação do que vai ser realizado. Isso sublima a capacidade de agência do indivíduo sob seus cuidados, cabendo ao paciente somente o passivo papel de submeter-se 1414. Caprara A, Rodrigues J. A relação assimétrica médico-paciente: repensando o vínculo terapêutico. Ciênc Saúde Coletiva. 2004;9(1):139-46..

Citado por Ayres e colaboradores 2323. Ayres JRCM, França I Jr, Calazans GJ, Saletti Filho HC. O conceito de vulnerabilidade e as práticas de saúde: novas perspectivas e desafios. In: Czeresnia D, Freitas CM, organizadores. Promoção da saúde: conceitos, reflexões, tendências. Rio de Janeiro: Fiocruz; 2003. p. 117-40., Gorovitz descreve as qualidades indissociáveis da vulnerabilidade: multidimensão, gradação e instabilidade. O autor conclui que as pessoas não são vulneráveis, elas estão vulneráveis sempre a algo, em algum grau e forma, e num certo ponto do tempo e espaço2929. Ayres JRCM, França I Jr, Calazans GJ, Saletti Filho HC. Op. cit. p. 138.. Juntando a isso a referência que aqueles autores 2323. Ayres JRCM, França I Jr, Calazans GJ, Saletti Filho HC. O conceito de vulnerabilidade e as práticas de saúde: novas perspectivas e desafios. In: Czeresnia D, Freitas CM, organizadores. Promoção da saúde: conceitos, reflexões, tendências. Rio de Janeiro: Fiocruz; 2003. p. 117-40. e Luna 1515. Luna F. Vulnerabilidad: la metáfora de las capas. Jurisprudencia Argentina. 2008;4(1):60-7. fazem ao caráter relacional da vulnerabilidade, é possível atribuí-la ao indivíduo que demanda cuidados médicos em instituição hospitalar. Uma vez que na concepção ocidental de direitos humanos o princípio da dignidade humana é o foco central, é possível atribuir vulnerabilidade aos sujeitos que estão em posição inferior em uma relação de dominação.

Nesse tipo de relação, o dominador é aquele que possui o poder de suplantar o direito do outro, seja mediante ações efetivas ou pela negação de direitos, como o da participação em assuntos que dizem respeito à existência digna do dominado no contexto em pauta. Para Figueiredo e Noronha 3030. Figueiredo I, Noronha RL. A vulnerabilidade como impeditiva/restritiva do desfrute de direitos. Rev Direitos e Garantias Fundamentais. 2008;(4):129-46. Disponível: http://bit.ly/2mceqxR
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, ao se analisar o processo de determinação dos direitos humanos, sempre dois grupos são identificados em conflito: os mais fortes e os mais fracos. Quando os dominadores vencem, fala-se em hegemonia, e quando o mais fraco vence, em virtude de sua resistência, fala-se em direitos humanos. Nesse sentido, configura-se como vulnerável aquele que de alguma forma tem suplantados ou sonegados seus direitos 3030. Figueiredo I, Noronha RL. A vulnerabilidade como impeditiva/restritiva do desfrute de direitos. Rev Direitos e Garantias Fundamentais. 2008;(4):129-46. Disponível: http://bit.ly/2mceqxR
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Assim, a vulnerabilidade, neste modelo, é dada pela posição que a pessoa ou grupo ocupa em determinada sociedade: pela relação entre a existência de necessidades especiais e o reconhecimento destas situações pelo estado (considerando que, nestas sociedades, é também papel do estado garantir direitos). Assim, este modelo nos permite analisar diferentes grupos através de chaves interpretativas que lhes tornam simétricos, mas não iguais 3131. Figueiredo I, Noronha RL. Op. cit. p. 136..

Fato é que o contexto hospitalar não é local de domínio do paciente. Ali ele se encontra biológica e socialmente fragilizado, afastado do convívio social e familiar em virtude de situação de saúde que lhe impõe restrições físicas, laborais e sociais, fatores que, associados ao desconhecimento sobre sua situação de saúde e tratamento, geram medo e sensação de incapacidade. A própria linguagem biomédica, impregnada de jargões específicos e terminologia científica, dificulta a apreensão completa dos aspectos relacionados ao seu estado de saúde. Além disso, e muitas vezes por causa disso, é notória a assimetria existente na relação médico-paciente.

Os dois atores sociais que participam dessa “conversa” falam linguagens distintas, aspecto muitas vezes não valorizado por aquele a quem é possível aproximar as linguagens – o profissional. Pode-se dizer que a assimetria é até mesmo esperada. Mas o que não pode ser admitido no contexto dessa relação é que o médico use dessa assimetria para suplantar a liberdade de decisão do indivíduo sobre seu próprio corpo, desconsiderando seus projetos de vida com modo de ação que elimine sua autonomia e ignore sua capacidade de agir. Para Goldim 3232. Goldim JR. Princípio do respeito à pessoa ou da autonomia. [Internet]. 1997 [atualizado 14 mar 2004; acesso 10 dez 2016]. Disponível: http://bit.ly/2l6A4SQ
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, não respeitar a autonomia de uma pessoa é violar seu direito fundamental de autodeterminação, é ir contra o princípio do respeito à pessoa que compõe a base da bioética principialista, que busca orientar a conduta ética nas relações entre profissionais e pacientes.

Para Beauchamp e Childress 3333. Beauchamp TL, Childress JF. Princípios de ética biomédica. São Paulo: Loyola; 2013., é fundamental para a autonomia que a pessoa esteja livre de influências controladoras, assim como de fatores limitantes que prejudiquem a sua deliberação. Vale lembrar que o respeito à autonomia no contexto da assistência à saúde está representado pela necessidade de obter consentimento informado do paciente em relação a procedimentos terapêuticos, cirúrgicos e de exames, situações em que ocorrem manipulação e a invasão do corpo físico3333. Beauchamp TL, Childress JF. Princípios de ética biomédica. São Paulo: Loyola; 2013.. Contudo, a simples obtenção de documento de consentimento não garante que o sujeito foi respeitado e/ou teve consideradas as suas fragilidades diante do contexto em pauta.

Para efetivamente representar consideração com a vulnerabilidade do paciente, assim como evidenciar respeito à autonomia, é mandatório que o consentimento informado tenha sido obtido de forma processual, privilegiando informação, compreensão e ausência de coerção sobre aquele que consente. Se o consentimento informado foi dado sob a observância desses aspectos, pode-se dizer que a autonomia foi respeitada, que o padrão de vulnerabilidade do indivíduo naquele contexto foi mitigado. A redução do padrão de vulnerabilidade do paciente acontece porque foram dadas a ele todas as informações pertinentes, assegurando-lhe a compreensão dos benefícios, riscos, alternativas terapêuticas e consequências da intervenção proposta. Com base nesse conteúdo será possível que ele entenda e delibere sobre o melhor caminho a seguir no contexto de assistência em que se encontra.

Sobre a questão da informação, Leite destaca que – quando adequada, ou seja, privilegia o entendimento – confere ao paciente a possibilidade de sair do papel de mero receptor, levando-o à categoria de ator central do processo de apropriação99. Leite RAF. Direito à informação em saúde: análise do conhecimento do paciente acerca de seus direitos [dissertação]. Ribeirão Preto: USP; 2010 [acesso 28 ago 2016]. p. 43. Disponível: http://bit.ly/2lmq61Z
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, permitindo-lhe ser agente ativo e participativo. Isso nos permite inferir que quando o paciente recebe informação pertinente e de modo adequado sobre sua doença e opções de tratamento existentes, seu padrão de vulnerabilidade no contexto de internação hospitalar é reduzido. De acordo com Schramm 3434. Schramm FR. Información y manipulación: ¿como proteger los seres vivos vulnerados? La propuesta de la bioética de la protección. RBB. 2005;1(1):18-27., a qualidade da informação suscita preocupações importantes no campo da bioética, posto que a informação é a parte da mensagem suscetível de manipulação, e como tal pode estar envolvida em conflitos de interesse e/ou estruturas de poder e dominação de uns humanos sobre outros.

Por isso é necessário cuidado para que a informação envolvida na questão do consentimento esteja isenta de características coercitivas ou manipuladoras. O autor destaca ainda que o acesso à informação livre e ampla é vital no contexto da assistência, uma vez que deve ter como objetivo dar subsídios ao indivíduo para que possa se proteger de abusos ou ações que prejudiquem seu livre agir 3434. Schramm FR. Información y manipulación: ¿como proteger los seres vivos vulnerados? La propuesta de la bioética de la protección. RBB. 2005;1(1):18-27.. Contudo, é preciso pontuar que, assim como a atenção à qualidade das informações e seu adequado entendimento são necessários, também a voluntariedade do paciente deve ser respeitada. O consentimento informado só reduz o padrão de vulnerabilidade do indivíduo quando é obtido livre de influências coercitivas, sem uso da persuasão ou da manipulação por parte do profissional.

De acordo com Lorda e Concheiro 3535. Lorda PS, Concheiro LC. El consentimiento informado: teoría y práctica. Med Clín. 1993;100(17):659-63., o consentimento obtido sem que o paciente atue de forma voluntária não é ético nem legalmente aceitável. Os autores ressaltam que na relação médico-paciente o profissional detém maior poder, e isso lhe possibilita agir persuasivamente quando não apresenta alternativas para a proposta terapêutica que oferece. Também lhe possibilita agir coercitivamente quando, ao fornecer as informações, tece ameaças implícitas ou explícitas diante de deliberação de paciente que não acate a proposta oferecida. A manipulação deliberada da informação, dada de modo a fazer o paciente acreditar que a melhor alternativa é a que está sendo oferecida, também compromete a qualidade do consentimento obtido. Para os autores, em todos esses casos a voluntariedade do paciente é anulada, e o consentimento deixa de representar a expressão de escolha autônoma 3535. Lorda PS, Concheiro LC. El consentimiento informado: teoría y práctica. Med Clín. 1993;100(17):659-63..

Segundo Beauchamp e Childress 3333. Beauchamp TL, Childress JF. Princípios de ética biomédica. São Paulo: Loyola; 2013., bem como Ferrer e Álvarez 3636. Ferrer JJ, Álvarez JC. Para fundamentar a bioética: teorias e paradigmas teóricos na bioética contemporânea. São Paulo: Loyola; 2005., a maioria das teorias que postulam a autonomia concorda que existem duas condições essenciais para que uma ação seja autônoma: a liberdade externa – inexistência de forças coercitivas ou controladoras – e a agência – ou liberdade interna, que é a capacidade de agir intencionalmente. Porém, cabe destacar que o fato de ser autônomo não significa que o indivíduo seja respeitado como agente autônomo, pois essa atribuição está condicionada ao reconhecimento do direito da pessoa de ter suas opiniões, de fazer suas próprias escolhas e de agir com base em valores e crenças pessoais3737. Beauchamp TL, Childress JF. Op. cit. p. 142..

Para pessoas inseridas no contexto hospitalar, com peculiaridades tão distintas da realidade social que vivenciam, parece interessante a explicação de autonomia intersubjetiva defendida por Schumacher e colaboradores 3838. Schumacher AA, Puttini RF, Nojimoto T. Vulnerabilidade, reconhecimento e saúde da pessoa idosa: autonomia intersubjetiva e justiça social. Saúde Debate. [Internet]. 2013 [acesso 15 ago 2016];37(97):281-93. Disponível: http://bit.ly/2maWp2v
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. Nessa modalidade, o sujeito, apesar de suas fragilidades, tem reconhecidas suas peculiaridades e percebe-se respeitado e integrado à deliberação das ações que dizem respeito à sua própria vida e interesses particulares. Cabe ressaltar que ações de cuidado que restringem ou impedem a participação do sujeito – por meio da sonegação de informações pertinentes e/ou por considerá-lo incapaz de apreender elementos que o capacitariam à deliberação sobre as melhores opções para a recuperação de sua saúde – eliminam a possibilidade do exercício de qualquer tipo de autonomia.

Isso porque atacam diretamente seu autorrespeito, sua autoconfiança e sua autoestima, levando-o a perceber-se incapaz de decidir e de tomar para si o curso de sua existência. Deixa, assim, que tais decisões sejam tomadas integralmente por aquele que supostamente detém o poder sobre sua existência no ambiente hospitalar, aquele que é senhor de conhecimento inacessível ao paciente, o médico 3838. Schumacher AA, Puttini RF, Nojimoto T. Vulnerabilidade, reconhecimento e saúde da pessoa idosa: autonomia intersubjetiva e justiça social. Saúde Debate. [Internet]. 2013 [acesso 15 ago 2016];37(97):281-93. Disponível: http://bit.ly/2maWp2v
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. Nesse contexto, a obtenção do consentimento informado de acordo com o modo processual preconizado pela bioética principialista é capaz de minimizar a vulnerabilidade do sujeito. Isso porque o fornecimento de informações pertinentes e acessíveis ao seu entendimento o capacita e lhe possibilita participar efetivamente de sua assistência, respeitando sua capacidade de agência, elaboração e deliberação.

O ato de consentir refere-se assim à atitude do paciente. Atitude essa fundamentada em reflexão sobre as possibilidades apresentadas, elaboração acerca dos riscos e consequências que a proposta terapêutica lhe impõe, e decisão sobre o que em sua opinião é o melhor para sua existência, considerando o contexto social e cultural no qual está inserido. A informação que se pretende é aquela que não se limita a elencar protocolos. Ao contrário, amplia-se ao apresentar e discutir com o sujeito as possibilidades de conduta, respeitando suas peculiaridades culturais e projetos existenciais, de modo a assegurar que o ato de consentir não seja resultante de imposição ou coerção.

O processo de obtenção do consentimento informado é indicativo do respeito à autonomia do paciente. O impedimento da autonomia no contexto hospitalar compromete o desempenho do sujeito na determinação de que caminhos serão trilhados para recuperar sua saúde. Assim, independentemente do fato de requerer ou não o direito de ter sua autonomia respeitada, o paciente terá sua situação de vulnerabilidade ampliada nesse contexto caso seja impedido de participar das decisões que dizem respeito ao curso de sua vida enquanto sujeito de procedimentos terapêuticos.

Considerações finais

A situação de doença e a necessidade de internação hospitalar conferem vulnerabilidade ao indivíduo na medida em que geram sentimentos de medo e insegurança relacionados à continuidade da própria existência. Esse fator, associado ao componente de desinformação sobre as consequências da terapêutica e dos procedimentos que serão instituídos, pode comprometer a capacidade de agência desse sujeito, aumentando suas fragilidades. Em contrapartida, o conhecimento acerca das implicações envolvidas no contexto de internação hospitalar subsidia e instrumentaliza o indivíduo, viabilizando o processo de deliberação a respeito da condução de seu tratamento. Em consequência, ele pode atuar de algum modo no controle de sua própria existência, mantendo viáveis seus projetos de vida.

No processo de consentimento informado, o componente da informação é elemento essencial que não se restringe ao fornecimento de dados, mas abrange a garantia de compreensão adequada pelo indivíduo para que possa deliberar sobre o melhor caminho para si e para seu tratamento. Com isso, podemos dizer que o processo adequado de obtenção de consentimento informado contribui para suplantar o leque de fragilidades que o paciente vivencia na assistência hospitalar. Em consequência disso, sua vulnerabilidade nesse ambiente é reduzida.

Desse modo, o processo de consentimento informado é importante elemento para mudar o padrão de vulnerabilidade de indivíduos em situação de internação hospitalar para realização de cirurgias. É preciso ressaltar, porém, a necessidade de que esse consentimento seja obtido de forma processual, mediante fornecimento de informações que deem subsídios relevantes para a reflexão e deliberação do paciente. Assim, sua autonomia será respeitada nesse contexto, e a partir disso ele poderá consentir (ou não) para a realização de procedimentos, configurando assim sua participação efetiva naqueles eventos que obviamente interferirão em seu projeto de vida e em sua construção social.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jan-Apr 2017

Histórico

  • Recebido
    6 Set 2016
  • Revisado
    17 Fev 2017
  • Aceito
    21 Fev 2017
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