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Transplante renal em Alagoas: olhar bioético sobre a vulnerabilidade de quem precisa

Resumo

Apesar da necessidade crescente, a quantidade de transplantes renais realizados no estado de Alagoas é muito baixa. O objetivo do estudo foi analisar se os gestores contribuíram para o aumento da vulnerabilidade de pacientes que necessitam de transplante renal no estado. A amostra foi composta por gestores da Secretaria Estadual de Saúde; coordenadores da organização de procura de órgãos e tecidos; equipes de transplante; médicos de clínicas de nefrologia; médicos dos serviços de atendimento móvel de urgência; médicos das unidades de terapia intensiva; e o representante da Associação dos Renais Crônicos e Transplantados de Alagoas. Resultou em 14 participantes que apontaram falhas gerenciais nos programas e recursos voltados ao transplante. Concluiu-se que necessitados de transplante renal em Alagoas são mais vulneráveis devido a falhas na gestão pública de saúde.

Bioética; Ética; Filosofia; Transplante de rim

Abstract

Although there is a growing need, the quantity of kidney transplants in the state of Alagoas is very small. The objective of this study was to analyze if the public health managers contributed to the increase of vulnerability of patients who need kidney transplants in Alagoas. The sample consisted of public health managers from the Secretariat of Health in the state of Alagoas; the coordinator of the organization for the procurement of organs and tissues; the transplantation team coordinator; physicians from nephrology clinics, from mobile emergency medical services and from critical care unities; and the representative from the Alagoas Chronic Renal Patients Association. Fourteen research participants pointing failures in the administration of programs and resources for transplantation. The study concludes that those who need kidney transplants in Alagoas are even more vulnerable due to shortcomings in the management of public health.

Bioethics; Ethics; Philosophy; Kidney transplantation

Resumen

A pesar de existir necesidad creciente, la cantidad de trasplantes renales realizados en el estado de Alagoas es muy baja. El objetivo de este estudio fue analizar si los agentes de salud pública han contribuido con el aumento de la vulnerabilidad de pacientes que necesitan trasplante de riñón en Alagoas. La muestra estuvo compuesta por gestores de la Secretaría de Estado de Salud de Alagoas; coordinadores de la organización de búsqueda de órganos y tejidos; miembros de equipos de trasplante; médicos de clínicas de nefrología; médicos de los servicios de atención móvil de urgencias; médicos de las unidades de cuidados intensivos; y un representante de la Asociación de Renales Crónicos y Trasplantados de Alagoas. En total fueron 14 participantes, los cuales apuntaran fallas de gestión en los programas y recursos dedicados al trasplante. Se concluyó que los pacientes necesitados de trasplante renal en Alagoas se encuentran más vulnerables debido a fallas en la gestión pública de salud.

Bioética; Ética; Filosofía; Trasplante de riñón

A doença renal crônica (DRC) decorre de enfermidade progressiva que se estenderá até a perda da função renal. Caso evolua, a doença culmina em incapacidade permanente de manter a normalidade do meio interno do paciente. Havendo falência completa do rim, a alternativa terapêutica é substituir a filtração renal pela diálise peritoneal, hemodiálise ou até mesmo transplante do órgão 11. Brasil. Ministério da Saúde. Diretrizes clínicas para o cuidado ao paciente com doença renal crônica: DRC no Sistema Único de Saúde. [Internet]. Brasília: Ministério da Saúde; 2014 [acesso 8 mar 2015]. Disponível: http://bit.ly/2kgk3te
http://bit.ly/2kgk3te...
. O transplante renal (TR) é “a luz no fim do túnel” para o paciente que dele necessita, a tão esperada melhora da qualidade de vida 22. Salati MI, Hossne WS, Pessini L. Vulnerabilidade referida pelos pacientes renais crônicos: considerações bioéticas. Bioethikos. 2011;5(4):434-42.. Em algumas regiões do Brasil, o transplante renal tornou-se rotina, mas em outras há escassez de oferta e/ou falta na demanda, deixando o paciente em completa situação de vulnerabilidade.

Existem cerca de 3.400 pacientes renais crônicos em Alagoas e 11 clínicas de nefrologia. Em 2013 havia 186 pacientes com necessidade estimada de transplante e desses somente 22 foram transplantados 33. Couttolenc BF, Zucchi P. Gestão de recursos financeiros. [Internet]. São Paulo: USP; 1998. Disponível: http://bit.ly/2jXh5wk
http://bit.ly/2jXh5wk...
. Nos doze anos compreendidos entre 2002 e 2013, o número de transplantes revelou-se irregular, com número decrescente de cirurgias, estando sempre entre as últimas colocações na região, perdendo até para estados com população menor. Alagoas figura como um dos estados brasileiros com mais baixo índice de transplante renal. Em 2013, o Registro Brasileiro de Transplantes 44. Associação Brasileira de Transplante de Órgãos. Dimensionamento dos transplantes no Brasil e em cada estado (2006-2013). Registro Brasileiro de Transplantes. 2013;19(4):1-81. concluiu seu relatório anual sobre Alagoas dizendo o seguinte:

Estado com declínio acentuado no programa de transplantes em todas suas etapas. Enfrenta dificuldades na formação de equipe técnica para implantação da organização de procura de órgãos e tecidos OPO – etapa II, baixa notificação e elevada taxa de recusa familiar (77,7%). Não realiza doação de órgãos e, por consequência, transplantes. Está em descompasso com o crescimento dos programas de transplantes dos estados da região nordeste, como Ceará e Pernambuco. Nem mesmo o transplante de córneas atende à necessidade estimada. Necessita apoio para priorizar a reativação dos programas de doação de órgãos e de transplante de rim e córneas e, como ação subsequente, criação de um programa de transplantes de fígado 44. Associação Brasileira de Transplante de Órgãos. Dimensionamento dos transplantes no Brasil e em cada estado (2006-2013). Registro Brasileiro de Transplantes. 2013;19(4):1-81..

Diante desse quadro, o objetivo deste estudo foi analisar, à luz da bioética, se os gestores da saúde pública contribuíram para aumentar a vulnerabilidade do paciente com DRC que necessita transplante renal em Alagoas.

Método

Este artigo decorreu de estudo qualitativo, realizado por meio de entrevista presencial, aberta e estruturada, cujo objetivo foi analisar, a partir de referenciais bioéticos, os problemas apontados por gestores, promotores de saúde e instituição – sujeito institucional – e portadores da doença – sujeito ético. Cada participante da pesquisa foi questionado quanto a fatores impeditivos que dificultavam a realização do transplante renal em pacientes que tinham nesse procedimento a única possibilidade de solução clínica definitiva para sua doença. Todas as entrevistas foram gravadas e, assim que analisadas, destruídas. Critérios de inclusão abrangeram indivíduos que atuavam como sujeitos institucionais que participavam diretamente da tomada de decisão sobre cuidados com pacientes que necessitavam de transplante renal, bem como o representante dos pacientes portadores de insuficiência renal crônica do estado de Alagoas.

Conforme mostra a Figura 1 Anexo Figura 1. Amostra da pesquisa , inicialmente pretendia-se incluir no estudo como participantes de pesquisa 21 representantes de instituições. Desses, 14 foram efetivados e sete excluídos. O motivo de tal exclusão foi a negativa em responder o questionário por parte de quatro possíveis entrevistados e o pedido para serem excluídos do estudo por parte de três participantes, selecionados para participar do estudo e tendo assinado o termo de consentimento livre e esclarecido (TCLE). Com a exclusão dessas pessoas, deixou-se de entrevistar três coordenadores de unidades de terapia intensiva (UTI), um responsável pela equipe de transplante e três coordenadores médicos de clínica de nefrologia. Os excluídos faziam parte de três hospitais privados que prestam serviços ao Sistema Único de Saúde (SUS).

O estudo foi realizado em serviços públicos e privados de saúde, associação de pacientes renais crônicos e Secretaria de Saúde do Estado de Alagoas. Contou com amostra de 14 participantes, distribuída da seguinte forma: representantes das equipes de pesquisa; coordenadores médicos dos serviços de nefrologia; coordenadores médicos das UTI; coordenadores médicos dos Serviços de Atendimento Móvel de Urgência (Samu); representante da Associação dos Renais Crônicos e Transplantados de Alagoas (Arcal); secretário estadual de saúde; superintendente de atenção à saúde. Teve como variável principal o aumento da vulnerabilidade do paciente com DRC, provocada por falha na gerência de programas e recursos voltados para o transplante renal no estado.

Foram adotadas as seguintes questões norteadoras da busca de informação: 1) quais são os fatores que limitam a realização do transplante?; 2) o que poderia ser feito para resolver o problema?; 3) qual a opinião do entrevistado a respeito dos dados nacionais sobre transplantes no estado de Alagoas? Este último questionamento se refere à citada conclusão sobre transplante no estado divulgada no Registro Brasileiro de Transplante de Órgãos 44. Associação Brasileira de Transplante de Órgãos. Dimensionamento dos transplantes no Brasil e em cada estado (2006-2013). Registro Brasileiro de Transplantes. 2013;19(4):1-81., publicação oficial da Associação Brasileira de Transplante de Órgãos (ABTO). Tendo realizado as entrevistas, interpretamos as respostas levantadas valendo-nos do método de análise de conteúdo de Engers 55. Engers ME. Pesquisa educacional: reflexões sobre a abordagem etnográfica. In: Engers ME, organizadora. Paradigmas e metodologias da pesquisa em educação: notas para uma reflexão. Porto Alegre: EDIPUCRS; 1994. p. 65-74.. Para facilitar o ordenamento das citações e garantir o sigilo, passaremos a identificar o entrevistado pela vogal “E” seguido de um número.

A primeira etapa consistiu na leitura do que foi dito pelos entrevistados. A segunda etapa visou distribuir as respostas de cada entrevistado para cada questão levantada, de tal forma que se pudesse realizar análise vertical da informação agrupada. Na terceira etapa analisou-se em ordem horizontal o que cada entrevistado respondeu para cada questão. A quarta etapa consistiu na síntese do que foi explanado nas etapas anteriores, estabelecendo-se agrupamento dos dados. A quinta e última etapa versou sobre a categorização dos dados para que se pudesse refletir sobre as informações obtidas.

Resultados e discussão

Por ocasião das entrevistas, independentemente do item a ser questionado, havia sempre o aspecto de o sujeito ético encontrar-se em algum grau de vulnerabilidade. Não somente pela condição da doença de que é portador, mas também pela falta, omissão ou esquecimento a que foi exposto por parte daqueles que tinham por obrigação protegê-lo. Essa premissa fica explícita em Hossne 66. Hossne WS. Dos referenciais da Bioética: a vulnerabilidade. Bioethikos. 2009;3(1):41-51. p. 42., quando chama atenção para o fato de que

... o ser humano é sempre vulnerável; ele pode ou não estar em situação de vulnerabilidade. Portanto, ser vulnerável o ser humano é sempre; estar vulnerável pode ser sim ou não. Trata-se de ir de uma situação latente a uma situação manifesta; de uma situação de possibilidade para uma situação de probabilidade, do ser vulnerável ao estar vulnerável. Estas oscilações acompanham todas as situações que envolvem a Bioética 66. Hossne WS. Dos referenciais da Bioética: a vulnerabilidade. Bioethikos. 2009;3(1):41-51. p. 42..

O mesmo autor comenta ainda que a vulnerabilidade pode ser do indivíduo ou do sistema, atingindo assim outros elementos que podem apresentar vários pontos frágeis. Portanto, quando se fala da vulnerabilidade do paciente ou do sujeito de pesquisa, é indispensável refletir sobre a vulnerabilidade que pode atingir os diversos elos do sistema e não apenas a vulnerabilidade do paciente ou do sujeito de pesquisa77. Hossne WS. Op. cit. p. 47..

Reconhecendo o estado de vulnerabilidade do sujeito ético e entendendo que não somente sua enfermidade, mas também fatores gerenciais da saúde pública do estado o influenciam, foi possível observar nos resultados apresentados seis itens que demonstram claramente essa condição: 1) falta de compromisso com a implantação de programa efetivo de transplante no estado, que se perpetua no decorrer do tempo; 2) falha na administração da antiga central de transplantes e atual Organização de Procura de Órgãos (OPO); 3) falta de conhecimento técnico sobre programas de transplantes do Ministério da Saúde; 4) falta de estrutura dedicada ao transplante, tanto do ponto de vista assistencial quanto do ponto de vista diagnóstico; 5) incapacidade operacional da OPO; e 6) dificuldade de acesso aos exames pré-transplantes para pacientes do SUS.

A falta de compromisso com a implantação de programa efetivo de transplante no estado parece confirmada pelos entrevistados: “A Secretaria de Saúde, quanto aos programas de transplante, ainda está aprendendo a andar. Entra governo e sai governo e os gestores da área não têm conhecimento sobre o tema” (E1). De maneira geral, os entrevistados reforçam que não é somente a doença renal crônica que debilita o indivíduo quanto a sua integridade física, mental e espiritual – tirando dele a perspectiva de cura de condição grave e que, por depender essencialmente do outro, viola sua autonomia 77. Hossne WS. Op. cit. p. 47. –, mas também apresenta outra face que não deveria existir: a omissão do Estado 88. Portocarrero ML. Bioética e filosofia: o princípio de autonomia e os desafios da fragilidade. Revista Filosofia de Coimbra. 2013;44:397-416.. O diagnóstico da omissão do poder público revela na frase seguinte sua verdade dolorosa, sentida somente pelos que necessitam de transplante renal: “O problema vem da falha na gestão; faltava compromisso maior das gestões e suas equipes quanto ao assunto” (E2). A afirmação permite perceber que o problema gerencial não se limita somente em pôr (ou não) em prática determinado programa; é preciso saber qual programa, como implantar e quanto haverá de recurso para manutenção de tal proposta.

Além da dificuldade em pôr em ação programas assistenciais dessa magnitude, falta conhecimento sobre como tornar a prática desse programa fonte de recursos para que o estado o mantenha: “Os nossos gestores não sabem quais são, nem como devem ser buscados os recursos destinados aos programas de transplantes” (E3). Ou seja, o paciente se encontra totalmente nas mãos de quem não sabe encaminhar suas necessidades. Falta o “fazer viver” de Foucault 99. Foucault M. Direito de morte e poder sobre a vida. In: Foucault M, organizador. História da sexualidade. São Paulo: Paz e Terra; 2015. p. 145-74. v. 1.,1010. Foucault M. Em defesa da sociedade: curso no Collège de France. São Paulo: Martins Fontes; 2010. p. 201-22., quando relaciona aspectos do biopoder. Haverá mais o “deixar morrer”.

Apesar de não estarmos mais no século XVII, quando o soberano definia quem iria morrer ou viver, em alusão franca a sua onipotência diante da fraqueza de seus súditos, analogamente, o fato de não garantir acesso aos meios necessários para que se possa continuar vivo em condição de dependência de transplante renal exclui daqueles que precisam os direitos garantidos ao longo dos anos quanto ao fazer viver e não deixar morrer 99. Foucault M. Direito de morte e poder sobre a vida. In: Foucault M, organizador. História da sexualidade. São Paulo: Paz e Terra; 2015. p. 145-74. v. 1.,1010. Foucault M. Em defesa da sociedade: curso no Collège de France. São Paulo: Martins Fontes; 2010. p. 201-22.. Ainda mais quando levamos em consideração que recursos existem e são garantidos pelo Estado. Limita-se a assistência aumentando a vulnerabilidade. É o que Hossne 66. Hossne WS. Dos referenciais da Bioética: a vulnerabilidade. Bioethikos. 2009;3(1):41-51. p. 42. comenta quando diz que a vulnerabilidade do sujeito não está somente nele, mas nos outros elementos que compõem a assistência. Estando o sujeito frágil, a vulnerabilidade do meio aumenta também sua vulnerabilidade intrínseca.

E o problema de falha na administração continua a surgir nos relatos como torrente contínua de falhas, erros e omissões. A antiga central de transplantes, então responsável pela busca e captação de órgãos, que não funcionava ou funcionava de forma precarizada, reflete a falta de cuidado que se tinha com o transplante no estado. Sobre essa situação, os entrevistados afirmam: “Há algum tempo houve imposição da Sesau para o não funcionamento da central de transplante” (E4). Explicam que, durante muito tempo, a utilidade da Sesau era apenas a de “cabide de emprego” para aqueles que não queriam ou não sabiam exercer outras atividades. E como consequência dessa irresponsabilidade, a pessoa que necessitava de um rim para continuar vivendo tinha sua vulnerabilidade intensificada.

Esse panorama revela mais uma condição de agravo, que só irá angustiar o sujeito, tornando-o cada vez mais dependente do meio. Fiametti, citando MacIntyre, acrescenta que vulnerabilidade e aflição, e a dependência decorrente, é condição e não, como possibilidade, um estar de vez em quando. Não se está apenas em alguns momentos afligido. Vulnerável, afligido e dependente se é1111. Fiametti E. A ética de virtudes em Alasdair MacIntyre: elementos contributivos para a bioética [tese]. São Paulo: Centro Universitário São Camilo; 2015. p. 109..

É o paciente, o sujeito ético da pesquisa, sendo atingido não pela sua própria vulnerabilidade, mas pela vulnerabilidade que emana de algum outro ponto da assistência. Essa vulnerabilidade pode ser causada pela falta de estrutura de amparo, pela incompetência do sujeito institucional como gestor ou mesmo pelo desvio dos recursos públicos para atender a interesses privados, como acontece quando se destinam postos de trabalho que exigem prestação de serviço qualificada a pessoas que não preenchem tais requisitos 66. Hossne WS. Dos referenciais da Bioética: a vulnerabilidade. Bioethikos. 2009;3(1):41-51. p. 42.. Para garantir assistência é importante bom relacionamento entre sujeito ético e sujeito institucional: o bem viver não se limita às relações interpessoais, mas estende-se à vida das instituições1212. Ricoeur P. O si-mesmo como outro. São Paulo: Martins Fontes; 2014. p. 214..

Durante as entrevistas, muitas falas reportaram a falta de estrutura dedicada ao transplante, tanto do ponto de vista assistencial quanto do ponto de vista diagnóstico. A maioria dos entrevistados foi categórica em afirmar que é fundamental a existência de unidade hospitalar voltada exclusivamente para o transplante, considerando o procedimento muito complexo para se associar a outras necessidades: “Alagoas precisa ter uma unidade hospitalar do SUS voltada exclusivamente para o transplante” (E5).

Para os participantes, essa unidade hospitalar deveria preferencialmente receber equipe de profissionais adequadamente treinados e remunerados, dedicados exclusivamente ao transplante: “Não tem como se ter maiores compromissos com o transplante se os profissionais dividem suas ocupações com outras atividades profissionais” (E5).

Não é fácil, em se tratando da saúde pública do Estado – em que a assistência básica é precarizada e outras situações de agravo à saúde, como hipertensão e diabetes, são negligenciadas –, adotar política assistencial voltada a situações exclusivas, como transplante renal, enquanto outras tantas necessidades se impõem. Porém, com adequadas medidas de saúde pública, voltadas para doenças que exigem atenção de alta complexidade, dentro das limitações financeiras que se impõem, seria algo perfeitamente plausível ter unidades hospitalares destinada à assistência ao paciente renal crônico que necessita de transplante, bastando ordenar medidas voltadas à racionalização de gastos e aplicabilidade dos recursos públicos 33. Couttolenc BF, Zucchi P. Gestão de recursos financeiros. [Internet]. São Paulo: USP; 1998. Disponível: http://bit.ly/2jXh5wk
http://bit.ly/2jXh5wk...
.

À guisa de exemplo é importante citar o caso da Espanha, que se tornou um dos maiores centros de transplante do mundo ao adotar política de maior esclarecimento à população, estruturando equipes dedicadas exclusivamente ao assunto e construindo unidades hospitalares especializadas e exclusivas para tal fim. O transplante virou problema de saúde pública de grande interesse do governo espanhol, e assim foi criado el modelo español de donación y trasplante1313. Matesanz R. El modelo español de donación y trasplante. [Internet]. Madri+D. 23 jun 2009 [acesso 2 jun 2015]. Disponível: http://bit.ly/2jvh3IL
http://bit.ly/2jvh3IL...
,1414. Matesanz R, Domínguez-Gil B, Coll E, de la Rosa G, Marazuela R. Spanish experience as a leading country: what kind of measures were taken? Transpl Int. 2011;24(4):333-43..

Na distribuição de responsabilidades – ou melhor, de irresponsabilidades – fica o jogo de quem é o culpado pela inoperatividade do sistema. Trata-se de um somatório de eventos que culmina com travamento da catraca assistencial ao sujeito ético. Uma dessas travas se dá no funcionamento da OPO. Sobre isso, foram frequentes nas entrevistas frases como: “Não existe uma efetiva busca pelo doador; a OPO é incompetente nesse assunto” (E6).

Em contrapartida, a OPO se defende afirmando que ainda tem bastante dificuldade em receber notificação do potencial doador por parte dos hospitais de urgência. No estado de Alagoas, os dois maiores hospitais de urgência são públicos e geridos pela Secretaria Estadual de Saúde. A dificuldade em obter órgão de doador falecido não é minimizada pela quantidade de transplantes realizados inter vivos. Apesar do maior número de cirurgias realizadas com doadores vivos, o número de transplantes é muito baixo. Em parte isso se deve à dificuldade de os pacientes do SUS realizarem os exames pré-operatórios para poder se submeter a transplante renal: “Tem paciente que chega a esperar cerca de um ano para realizar a arteriografia!” (E7).

Hossne 66. Hossne WS. Dos referenciais da Bioética: a vulnerabilidade. Bioethikos. 2009;3(1):41-51. p. 42. é enfático ao dizer que o indivíduo não é vulnerável sozinho. Há um conjunto de fatores que torna a situação mais difícil e que necessita de maior atenção, não só para que se identifique o que está havendo, como também para que se busquem soluções. Caso contrário, o lado mais vulnerável será também o mais frágil, o sujeito ético. Assim, a vulnerabilidade dos outros elos (de sustentação) implica a vulnerabilidade do próprio elo mais vulnerável. Portanto, é indispensável avaliar, analisar e sanar a vulnerabilidade não só do elo final, mas de todos 66. Hossne WS. Dos referenciais da Bioética: a vulnerabilidade. Bioethikos. 2009;3(1):41-51. p. 42.. Vimos que situações de fragilidade gerencial que dependem do sujeito institucional exacerbam o quadro de vulnerabilidade do sujeito ético, que já se encontra prejudicado pela doença que o limita 1515. Ricoeur P. Autonomia e vulnerabilidade. In: Ricoeur P, organizador. O justo. São Paulo: Martins Fontes; 2014. p. 79-100. v. 2.. Encontrar as razões que tornam o indivíduo vulnerável para preveni-las contribuirá decisivamente para melhorar a saúde do paciente. Reconhecer a vulnerabilidade como elemento decisivo da integridade do indivíduo, sem afastar o papel da autonomia, equidade, prudência, alteridade e, sobretudo, solidariedade, torna-a referencial extremamente importante na bioética, verdadeiro marcador daquele que está exposto 66. Hossne WS. Dos referenciais da Bioética: a vulnerabilidade. Bioethikos. 2009;3(1):41-51. p. 42.,1616. Hossne WS. Bioética: princípios ou referenciais?. O Mundo da Saúde. 2006;30(4):673-6.

17. Arán M, Peixoto CA Jr. Vulnerabilidade e vida nua: bioética e biopolítica na atualidade. Rev Saúde Pública. 2007;41(5):849-57.

18. Kottow MH. Vulnerability: What kind of principle is it? Med Health Care Philos. 2004;7(3):281-7.
-1919. Oviedo RAM, Czeresnia D. O conceito de vulnerabilidade e seu caráter biossocial. Interface Comun Saúde Educ. 2015;19(53):237-49..

Considerações finais

De acordo com o anteriormente descrito, há vulnerabilidade crescente de pessoas com doença renal e que necessitam de transplante em Alagoas, como evidenciado nas falas dos entrevistados. Ainda valendo-nos do conceito de biopoder de Foucault 99. Foucault M. Direito de morte e poder sobre a vida. In: Foucault M, organizador. História da sexualidade. São Paulo: Paz e Terra; 2015. p. 145-74. v. 1.,1010. Foucault M. Em defesa da sociedade: curso no Collège de France. São Paulo: Martins Fontes; 2010. p. 201-22., perceber-se o quão vulnerável se encontram essas pessoas. É fato o não reconhecimento como problema de saúde pública de uma doença crônica e insidiosa que aflige a população por parte do Estado, que se omitiu quanto à sua responsabilidade em instituir medidas globais de proteção ao sujeito ético que precisa. E mais, ainda segundo a visão biopolítica desse autor 99. Foucault M. Direito de morte e poder sobre a vida. In: Foucault M, organizador. História da sexualidade. São Paulo: Paz e Terra; 2015. p. 145-74. v. 1.,1010. Foucault M. Em defesa da sociedade: curso no Collège de France. São Paulo: Martins Fontes; 2010. p. 201-22., podemos acrescentar que faltou diminuir a morbidade e “encompridar a vida”. Foi também possível correlacionar o arcabouço teórico formulado pelo professor Hossne com as opiniões dos entrevistados quanto ao referencial bioético da vulnerabilidade com o estado de vulnerabilidade dos necessitados por transplante renal no estado de Alagoas.

Referências

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Anexo Figura 1. Amostra da pesquisa

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jan-Apr 2017

Histórico

  • Recebido
    3 Ago 2016
  • Revisado
    9 Dez 2016
  • Aceito
    22 Dez 2016
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