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Conceitos de vulnerabilidade humana e integridade individual para a bioética

Resumo

Este artigo consiste em revisão bibliográfica dos significados e conceitos de vulnerabilidade e integridade nos documentos internacionais mais significativos para a bioética. Também é objetivo deste artigo apresentar as categorias de classificação de vulnerabilidades mais utilizadas. Avanços tecnológicos e a multiplicação de pesquisas clínicas no século XX suscitaram novas formas de vulnerabilidade e deixaram mais evidentes aquelas causadas por determinantes sociais, políticos e ambientais, isto é, a vulnerabilidade social. A bioética de intervenção é proposta que pode ser utilizada por países periféricos para enfrentar o problema dos excluídos sociais mediante prudência, prevenção, precaução e proteção. A bioética latino-americana foi importante para ampliar a compreensão sobre conflitos morais em saúde e gerar politização, possibilitando a construção de uma bioética global, na qual a vulnerabilidade pode ser trabalhada agregando diferentes perspectivas para enfrentar problemas comuns.

Bioética; Relativismo ético; Ética baseada em princípios; Vulnerabilidade em saúde; Vulnerabilidade social

Abstract

This article consists of a literature review of the meanings and concepts of vulnerability and integrity contained in the most significant international documents on bioethics, and aims to describe the categories most commonly used to classify vulnerabilities. Technological advances and the increase in clinical research studies in the 20th century have given rise to new forms of vulnerability, and have emphasized the vulnerabilities caused by social, political and environmental determinants, or in other words, social vulnerability. The intervention bioethics can be used by peripheral countries to address the problem of social exclusion through the use of prudence, prevention, precaution and protection. Latin American bioethics have been important for the expansion and politicization of moral conflicts in health care, allowing the construction of a global bioethics, in which vulnerability can be tackled by adding different perspectives to solve common problems.

Bioethics; Ethical relativism; Principle-based ethics; Health vulnerability; Social vulnerability.

Resumen

Este artículo consiste en una revisión bibliográfica de los significados y conceptos de vulnerabilidad e integridad en los documentos internacionales más importantes para la bioética. También este artículo tiene como objetivo presentar las categorías de clasificación de vulnerabilidad más utilizadas. Los avances tecnológicos y la multiplicacion de la investigacion clínica en el siglo XX plantearon nuevas formas de vulnerabilidad e hicieron más evidentes las vulnerabilidades causadas por determinantes sociales, políticos y ambientales, o sea, la vulnerabilidad social. La bioética de intervención es una propuesta que puede ser utilizada por los países periféricos para enfrentar el problema de la exclusión social por medio de la prudencia, la prevención, la precaución y la protección. La bioética de América Latina fue importante para ampliar la comprensión de los conflictos morales en salud y generar politización, lo cual posibilita la construcción de una bioética global, en la cual la vulnerabilidad puede trabajarse agregando diferentes perspectivas para enfrentar problemas comunes.

Bioética; Relativismo ético; Ética basada en principios; Vulnerabilidad en salud; Vulnerabilidad social

O desenvolvimento científico tem provocado inúmeras mudanças nas relações sociais, suscitando dilemas éticos de todas as grandezas, especialmente no que diz respeito ao agravamento das disparidades socioeconômicas nos países periféricos. Quando levados em consideração os diversos contextos socioculturais em que a bioética é discutida e aplicada, o tema da vulnerabilidade se torna desafio ainda maior. Diante desse cenário, o artigo 8º da Declaração Universal sobre Bioética e Direitos Humanos (DUBDH) dispõe:

A vulnerabilidade humana deve ser levada em consideração na aplicação e no avanço do conhecimento científico, das práticas médicas e de tecnologias associadas. Indivíduos e grupos de vulnerabilidade específica devem ser protegidos e a integridade individual de cada um deve ser respeitada 11. Organização das Nações Unidas para Educação, Ciência e a Cultura. Declaração universal sobre bioética e direitos humanos [Internet]. Genebra: Unesco; 2005 [acesso 30 set 2015]. Disponível: http://bit.ly/2kgv9lt
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“Vulnerabilidade” é termo de origem latina que deriva de vulnerabilis, que significa “algo que causa lesão” 22. Houaiss A, Villar MS. Dicionário Houaiss da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva; 2009. Vulnerabilidade; p. 1961.. É, nesse contexto, a susceptibilidade para ser lesionado, ferido. No vocabulário filosófico é condição humana inerente à sua existência em sua finitude e fragilidade, de tal maneira que não pode ser superada ou eliminada. Ao se reconhecerem como vulneráveis, as pessoas compreendem a vulnerabilidade do outro, assim como a necessidade do cuidado, da responsabilidade e da solidariedade, e não a exploração dessa condição por outrem 33. Neves MP. Article 8: respect de la vulnérabilité humaine et de l’intégrité personnelle. In: Organização das Nações Unidas para Educação, Ciência e a Cultura. La déclaration universelle sur la bioéthique et les droits de l`homme: histoire, principes et application. Paris: Unesco; 2009. p. 167-77..

O termo “integridade” também tem origem latina, das raízes tanto do adjetivo integer, que significa “não tocado, integral” quanto do substantivo integritas, que significa “totalidade, integridade”. O substantivo “integridade” evoca o estado em que todas as partes são mantidas, além da qualidade do que não é alterado, gerando, assim, igualmente o adjetivo “íntegro” 33. Neves MP. Article 8: respect de la vulnérabilité humaine et de l’intégrité personnelle. In: Organização das Nações Unidas para Educação, Ciência e a Cultura. La déclaration universelle sur la bioéthique et les droits de l`homme: histoire, principes et application. Paris: Unesco; 2009. p. 167-77..

Na Declaração de Helsinki 44. World Medical Association. Declaration of Helsinki: ethical principles for medical research involving human subjects [Internet]. Jama. 2013 [acesso 15 abr 2017];310(20):2191-4. Disponível: http://bit.ly/2pnJ1K7
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, a integridade aparece como atributo de inviolabilidade do sujeito de pesquisa que não pode ser desrespeitado. O pesquisador deve, então, tomar todas as precauções para proteger o participante da pesquisa de possíveis danos físicos, mentais e sociais. No quadro biomédico, a integridade se apresenta como direito negativo do qual todas as pessoas são titulares, quer dizer, refere-se a não interferência de um na esfera privada do outro. Na DUBDH, a integridade diz respeito à totalidade do indivíduo, aos aspectos fundamentais da vida humana que devem ser respeitados. Portanto, não está relacionada a virtude, honestidade, caráter moral ou bom comportamento de alguém 55. Respect for human vulnerability and personal integrity (Article 8). In: Organização das Nações Unidas para Educação, Ciência e a Cultura. Bioethics core curriculum: section 1: syllabus ethics education programme. Genebra: Unesco; 2008. p. 37-40..

O artigo 8º da DUBDH foi estrategicamente disposto após os artigos 6º e 7º, que tratam respectivamente do consentimento e de indivíduos sem capacidade para consentir, no intuito de abranger situações em que esses dois princípios mostram-se insuficientes 66. Organização das Nações Unidas para Educação, Ciência e a Cultura. Declaração universal sobre bioética e direitos humanos [Internet]. Brasília: Unesco; 1998 [acesso 2 out 2015]. Disponível: http://bit.ly/1TRJFa9
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. Indivíduos sem capacidade para consentir são aqueles que a princípio são autônomos e têm capacidade para consentir, mas que estão sob influência de fatores que impedem sua independência com relação a qualquer tipo de controle 77. Almeida JLT. Respeito à autonomia do paciente e consentimento livre e esclarecido: uma abordagem principialista da relação médico-paciente [tese]. Rio de Janeiro: Fundação Oswaldo Cruz; 1999..

Este artigo objetiva analisar os diferentes significados dos conceitos de vulnerabilidade e integridade nos documentos internacionais mais significativos para a bioética, especialmente a partir de avanços tecnológicos e multiplicações de pesquisas clínicas no século XX. Também é objetivo deste artigo apresentar as categorias mais utilizadas de classificação das vulnerabilidades.

Histórico

A integridade foi associada a proteção corporal diante de dano de terceiro no artigo 5º da Declaração Universal de Direitos Humanos 66. Organização das Nações Unidas para Educação, Ciência e a Cultura. Declaração universal sobre bioética e direitos humanos [Internet]. Brasília: Unesco; 1998 [acesso 2 out 2015]. Disponível: http://bit.ly/1TRJFa9
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, que diz que ninguém será submetido à tortura nem a tratamento ou castigo cruel, desumano ou degradante 88. Tealdi JC. Integridad. In: Tealdi JC, director. Diccionario latinoamericano de bioética. Bogotá: Unesco; 2008. p. 333-4.. O artigo 7º do Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos (PIDCP) enuncia: ninguém poderá ser submetido à tortura, nem a penas ou tratamento cruéis, desumanos ou degradantes. Será proibido sobretudo submeter uma pessoa, sem seu livre consentimento, a experiências médicas ou científicas 99. Brasil. Decreto nº 592, de 6 de julho de 1992. Pacto internacional sobre direitos civis e políticos [Internet]. Diário Oficial da União. Brasília; 7 jul 1992 [acesso 2 out 2015]. Disponível: http://bit.ly/1hlaXRZ
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. Já o Pacto San José da Costa Rica adotou visão mais ampla em seu artigo 5º: toda pessoa tem o direito de que se respeite sua integridade física, psíquica e moral 1010. Organização dos Estados Americanos. Convenção americana sobre direitos humanos (Pacto de San José da Costa Rica) [Internet]. Brasília: Presidência da República; [acesso 2 out 2015]. Disponível: http://bit.ly/QpuP0v
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A vulnerabilidade foi introduzida no âmbito da pesquisa com humanos como característica atribuída a certas categorias da população consideradas mais expostas e menos capazes de se defender contra abusos e maus-tratos realizados por outros. A história evidenciou a necessidade dessa proteção, pois o número de ensaios clínicos empreendidos apresentou enorme crescimento na primeira metade do século XX, implicando grupos de pessoas não protegidas ou institucionalizadas. Órfãos, prisioneiros, idosos e, posteriormente, grupos étnicos considerados inferiores, como judeus e chineses, foram comprometidos. As minorias étnicas, os socialmente desfavorecidos e as mulheres foram também conotados como vulneráveis 33. Neves MP. Article 8: respect de la vulnérabilité humaine et de l’intégrité personnelle. In: Organização das Nações Unidas para Educação, Ciência e a Cultura. La déclaration universelle sur la bioéthique et les droits de l`homme: histoire, principes et application. Paris: Unesco; 2009. p. 167-77..

O Relatório Belmont, de 1978, que trazia princípios éticos e diretrizes sobre proteção de sujeitos humanos, tratava a vulnerabilidade dos indivíduos de forma particular e relativa (de caráter voluntário) e a da população relacionada à avaliação de riscos e benefícios 1111. United States of America. National Commission for the Protection of Human Subjects of Biomedical and Behavioral Research. Belmont report: ethical principles and guidelines for the protection of human subjects of research [Internet]. 2005 [acesso 2 out 2015]. Disponível: http://bit.ly/2oeRpu
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. Beauchamp e Childress, em “Principles of biomedical ethics” 1212. Beauchamp TL, Childress JF. Principles of biomedical ethics. 7ª ed. Nova York: Oxford University Press; 2012., reforçaram a importância da proteção de pessoas ou grupos por meio da exigência ampla e rigorosa do consentimento informado. Isso implicava o cumprimento do princípio da autonomia, compreendida como capacidade de autodeterminação, rejeitando o protecionismo paternalista 1212. Beauchamp TL, Childress JF. Principles of biomedical ethics. 7ª ed. Nova York: Oxford University Press; 2012..

A vulnerabilidade não estava presente na versão original da Declaração de Helsinki 44. World Medical Association. Declaration of Helsinki: ethical principles for medical research involving human subjects [Internet]. Jama. 2013 [acesso 15 abr 2017];310(20):2191-4. Disponível: http://bit.ly/2pnJ1K7
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de 1964. Somente em 1996 aparece para classificar sujeitos de investigação em termos particulares e relativos, enunciando a necessidade da sua adequada proteção. A Declaração Universal sobre o Genoma Humano e os Direitos Humanos 1313. Organização das Nações Unidas para Educação, Ciência e a Cultura. Declaração universal sobre o genoma humano e os direitos humanos [Internet]. Paris: Unesco; 1997 [acesso 2 out 2015]. Disponível: http://bit.ly/2oNe3x4
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e a Declaração Internacional sobre os Dados Genéticos Humanos 1414. Organização das Nações Unidas para Educação, Ciência e a Cultura. Declaração internacional sobre os dados genéticos humanos [Internet]. Paris: Unesco; 2003 [acesso 2 out 2015]. Disponível: http://bit.ly/2oDqgUt
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fazem referência à integridade no sentido deontológico. Ou seja, as declarações descrevem grupos vulneráveis, indivíduos e famílias como merecedores de especial atenção a partir do desenvolvimento da responsabilidade, virtude ou moral do pesquisador diante das questões suscitadas devido a implicações éticas e sociais das pesquisas genéticas. A sociedade deve exigir o cumprimento da moralidade e da eticidade por parte dos diferentes atores, garantindo a integralidade, ou seja, agir corretamente no desempenho da pesquisa 1313. Organização das Nações Unidas para Educação, Ciência e a Cultura. Declaração universal sobre o genoma humano e os direitos humanos [Internet]. Paris: Unesco; 1997 [acesso 2 out 2015]. Disponível: http://bit.ly/2oNe3x4
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,1414. Organização das Nações Unidas para Educação, Ciência e a Cultura. Declaração internacional sobre os dados genéticos humanos [Internet]. Paris: Unesco; 2003 [acesso 2 out 2015]. Disponível: http://bit.ly/2oDqgUt
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Em 1998, na Declaração de Barcelona 1515. União Europeia. Declaración de Barcelona y Asociación Euromediterránea [Internet]. Barcelona: EU; 1998 [acesso 2 out 2015]. Disponível: http://bit.ly/2oAwSBt
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, que tinha quatro princípios fundamentais (autonomia, dignidade, integridade e vulnerabilidade) para uma política europeia conjunta em matéria de bioética e biodireito, a vulnerabilidade foi apresentada como objeto a ser desenvolvido pela bioética e princípio a ser respeitado 1515. União Europeia. Declaración de Barcelona y Asociación Euromediterránea [Internet]. Barcelona: EU; 1998 [acesso 2 out 2015]. Disponível: http://bit.ly/2oAwSBt
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. As Diretrizes Éticas Internacionais para Pesquisas Biomédicas Envolvendo Seres Humanos 1616. Council for International Organizations of Medical Sciences. Word Health Organization. International ethical guidelines for biomedical research involving human subjects [Internet]. Genebra: Cioms; 2002 [acesso 7 mar 2017]. Disponível: http://bit.ly/1m3gbXb
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, do Conselho de Organizações Internacionais de Ciências Médicas em colaboração com a Organização Mundial de Saúde, também faz referência à vulnerabilidade. Descrevem-na como categoria de indivíduos, sujeitos, pessoas, grupos, populações ou comunidades incapazes de proteger seus próprios interesses, restringindo-se ao campo da experimentação humana 1616. Council for International Organizations of Medical Sciences. Word Health Organization. International ethical guidelines for biomedical research involving human subjects [Internet]. Genebra: Cioms; 2002 [acesso 7 mar 2017]. Disponível: http://bit.ly/1m3gbXb
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Inicialmente, o artigo 8º da DUBDH não fazia parte dos projetos preliminares do Comitê Internacional de Bioética e só foi aceito na última sessão da reunião intergovernamental das câmaras técnicas. A DUBDH vê integridade como a unidade de uma pessoa compreendida na pluralidade de suas dimensões (física, psicológica, social e espiritual) que não podem ser feridas. O dever do respeito pela integridade individual afirma a obrigação de se considerar a vulnerabilidade inerente a todos os seres humanos, como também de priorizar indivíduos e grupos vulneráveis 33. Neves MP. Article 8: respect de la vulnérabilité humaine et de l’intégrité personnelle. In: Organização das Nações Unidas para Educação, Ciência e a Cultura. La déclaration universelle sur la bioéthique et les droits de l`homme: histoire, principes et application. Paris: Unesco; 2009. p. 167-77.. A compreensão do paciente acerca de sua própria vida, de sua doença, de seus interesses e de suas escolhas devem ser respeitadas.

O artigo 24 da DUBDH, ao tratar da cooperação internacional entre os Estados, adverte que especial atenção deve ser dada a indivíduos, famílias, grupos e comunidades que se tornaram vulneráveis por doença, incapacidade ou outras condições, sejam elas individuais, sociais ou ambientais. A Declaração também enfatiza necessidades específicas de países em desenvolvimento e comunidades indígenas para a cooperação internacional 11. Organização das Nações Unidas para Educação, Ciência e a Cultura. Declaração universal sobre bioética e direitos humanos [Internet]. Genebra: Unesco; 2005 [acesso 30 set 2015]. Disponível: http://bit.ly/2kgv9lt
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O relatório do Comitê Internacional de Bioética da Organização das Nações Unidas para Educação, Ciência e a Cultura (Unesco) 1717. Organização das Nações Unidas para Educação, Ciência e a Cultura. International Bioethics Committee. Report of IBC on the principle of respect for human vulnerability and personal integrity. Paris: Unesco; 2013., publicado em 2013, reconheceu duas categorias fundamentais de vulnerabilidades específicas: a especial e a social. A primeira pode ser temporária ou permanente, causada por incapacidades, doenças ou limitações dos estágios da vida. A segunda, por determinantes políticos e ambientais, aparece por intermédio da cultura, da economia, das relações de poder ou desastres naturais 1717. Organização das Nações Unidas para Educação, Ciência e a Cultura. International Bioethics Committee. Report of IBC on the principle of respect for human vulnerability and personal integrity. Paris: Unesco; 2013..

Referenciais teóricos

O conceito de vulnerabilidade não é algo evidente para a bioética. Aplica-se o conceito à condição existencial de indivíduos e grupos populacionais em determinadas circunstâncias de desamparo. Ao citar Rendtorff e Kemp, Solbakk 1818. Solbakk JH. Vulnerabilidad: ¿un principio fútil o útil en la ética de la asistencia sanitaria? Rev Redbioética/Unesco. 2011;1(3):89-101. discorre sobre a complexidade do princípio do respeito à vulnerabilidade apontando tanto suas concepções amplas quanto as restritas. As concepções amplas referem-se ao reconhecimento do princípio como a base de toda a ética, considerando-o como o mais importante da bioética por expressar ontologicamente a finitude da condição humana. Ou seja, vulnerabilidade como aspecto inerente ao ser humano.

Por ser capaz de aproximar estranhos morais em uma sociedade plural, o conceito deve ser visto como princípio biopolítico medular do Estado de bem-estar moderno. A crítica dessa concepção demasiadamente genérica é o esgotamento de sua força moral. Em contrapartida, as concepções restritas podem ser baseadas no consentimento ou no dano. Geram o problema de não abarcar todo o terreno da vulnerabilidade na investigação médica e na prática clínica, além de criar estereótipos, não havendo distinção entre quais pessoas do grupo devem e quais não devem ter as características especiais levadas em consideração 1818. Solbakk JH. Vulnerabilidad: ¿un principio fútil o útil en la ética de la asistencia sanitaria? Rev Redbioética/Unesco. 2011;1(3):89-101..

Contudo, Schramm 1919. Schramm FR. A saúde é um direito ou um dever? Autocrítica da saúde pública. Rev Bras Bioética. 2006;2(2):187-200. e Kottow 2020. Kottow M. Vulnerabilidad y protección. In: Tealdi JC, director. Diccionario latinoamericano de bioética. Bogotá: Unesco; 2008. p. 340-2. diferenciam os conceitos de vulnerável e vulnerado. O primeiro assinala característica universal de qualquer organismo, vista como potencialidade, fragilidade, e não estado de dano. Essa vulnerabilidade é diminuída respeitando os direitos humanos básicos em ordem social justa. Requer ações negativas por parte do Estado, visando a proteção equitativa dos indivíduos contra danos para impedir que sua vulnerabilidade seja transformada em lesão à sua integridade 1919. Schramm FR. A saúde é um direito ou um dever? Autocrítica da saúde pública. Rev Bras Bioética. 2006;2(2):187-200.,2020. Kottow M. Vulnerabilidad y protección. In: Tealdi JC, director. Diccionario latinoamericano de bioética. Bogotá: Unesco; 2008. p. 340-2..

Vulnerado se refere à situação de fato, de dano atual que tem consequências relevantes no momento da tomada de decisão. Em vista dos danos sofridos, as vulnerações requerem cuidados especiais por instituições sociais organizadas. Ou seja, é necessário que a sociedade instale serviços terapêuticos e de proteção, como serviços sanitários, assistenciais, educacionais etc., para diminuir e remover danos a fim de empoderar os desfavorecidos. Requer do Estado ações afirmativas e reparadoras que interfiram na autonomia, integridade e dignidade dos vulnerados 1919. Schramm FR. A saúde é um direito ou um dever? Autocrítica da saúde pública. Rev Bras Bioética. 2006;2(2):187-200.,2020. Kottow M. Vulnerabilidad y protección. In: Tealdi JC, director. Diccionario latinoamericano de bioética. Bogotá: Unesco; 2008. p. 340-2..

Neves 2121. Neves MP. Sentidos da vulnerabilidade: característica, condição, princípio. Rev Bras Bioética. 2006;2(2):157-72. identificou noções diferentes de vulnerabilidade utilizadas na bioética em função adjetiva, substantiva e principialista. A noção mais estrita se refere à função adjetiva. Apresenta-se em plano descritivo, denotando expressão de valores que qualifica certos grupos e pessoas. Destarte, é caraterística particular e relativa, contingente e provisória, de utilização restrita ao plano da experimentação humana 2222. Neves MP. Sentidos da vulnerabilidade: característica, condição, princípio. Rev Bras Bioética. 2006;2(2): p. 163.. Já a função substantiva faz referência a perspectiva antropológica da ética fundamentada por Lévinas e Jonas, citados por Neves 2121. Neves MP. Sentidos da vulnerabilidade: característica, condição, princípio. Rev Bras Bioética. 2006;2(2):157-72.. Descrevem a vulnerabilidade como realidade comum aos seres humanos (constitutiva do humano) e ao todo existente (não é específica do homem), impondo reflexão ética ao plano animal, ambiental e vegetal, reconhecendo o princípio como a base de toda a ética.

Daí a importância do artigo 17 da DUBDH para a proteção do meio ambiente, da biosfera e da biodiversidade no acesso e uso de recursos que comprometam as condições de vida em nosso planeta 11. Organização das Nações Unidas para Educação, Ciência e a Cultura. Declaração universal sobre bioética e direitos humanos [Internet]. Genebra: Unesco; 2005 [acesso 30 set 2015]. Disponível: http://bit.ly/2kgv9lt
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. Entretanto, a dimensão ética continua antropocêntrica tanto pela dificuldade de se instituir o valor moral da natureza quanto pelo poder que tem o homem para destruir o todo existente, enfatizando o dever moral do homem de zelar pelo respeito à vulnerabilidade e integridade. A articulação das funções anteriores trouxe a noção de vulnerabilidade como princípio. Formula a obrigação da ação moral, que:

Excede a lógica preponderante da reivindicação dos direitos que assistem às pessoas e anuncia a lógica da solicitude dos deveres que a todas competem, visando a complementaridade entre uma consolidada ética dos direitos, firmada na liberdade do indivíduo e desenvolvida pelo reforço da autonomia, e uma urgente ética dos deveres, firmada na responsabilidade do outro e desenvolvida pelo reforço da solidariedade 2323. Neves MP. Sentidos da vulnerabilidade: característica, condição, princípio. Rev Bras Bioética. 2006;2(2): p. 171..

Assim sendo, de característica condicional e temporária, a vulnerabilidade se tornou condição universal, permanente. De fator de diferenciação, quando não de discriminação entre populações e indivíduos, tornou-se fator de igualdade. De consideração privilegiada no domínio da experimentação com humanos, ganhou constante atenção no âmbito da assistência clínica e de políticas de saúde. Da exigência da autonomia e da prática do consentimento esclarecido, passou a exigir responsabilidade e solidariedade 33. Neves MP. Article 8: respect de la vulnérabilité humaine et de l’intégrité personnelle. In: Organização das Nações Unidas para Educação, Ciência e a Cultura. La déclaration universelle sur la bioéthique et les droits de l`homme: histoire, principes et application. Paris: Unesco; 2009. p. 167-77..

Desse modo, a DUBDH se tornou o primeiro passo em nível mundial de criação de conceito de vulnerabilidade moralmente sustentável. O respeito à vulnerabilidade aparece como proposta para a bioética global, em que existe pouco consenso diante do pluralismo moral nas maiorias das democracias atuais 1818. Solbakk JH. Vulnerabilidad: ¿un principio fútil o útil en la ética de la asistencia sanitaria? Rev Redbioética/Unesco. 2011;1(3):89-101.. Cunha e Garrafa 2424. Cunha T, Garrafa V. Vulnerability: a key principle for global bioethics?. Camb Q Healthc Ethics. 2016;25(2):197-208., analisando conceitos de vulnerabilidade por meio de cinco perspectivas regionais (Estados Unidos, Europa, América Latina, África e Ásia) sobre bioética, concluíram que vulnerabilidade é princípio fundamental para a bioética global.

Deve, contudo, ser fundada sobre processo contínuo de diálogo entre diferentes perspectivas regionais de bioética, com base no compromisso mútuo de superar condições que tornam certos indivíduos e grupos em todo o planeta mais suscetíveis a ferimentos que outros. Observou-se que as abordagens, apesar de distintas, não se contradizem, podendo ser complementares umas às outras. Ao mencionar condições individuais, sociais ou ambientais que tornam indivíduos, grupos ou pessoas vulneráveis, a DUBDH direciona o foco da discussão bioética para o vínculo entre vulnerabilidade e relações de poder, tendo em vista os avanços tecnológicos no contexto da modernidade.

Anjos 2525. Anjos MF. A vulnerabilidade como parceira da autonomia. Rev Bras Bioética. 2006;2(2):173-86. assinala que as relações assimétricas de poder se sobressaem quando a vulnerabilidade é ocultada. Isso porque, ao se ocultar a vulnerabilidade, ocultam-se também suas causas sociais, daí a grande valorização da autonomia como expressão do poder. Contudo, sabe-se que poder não é o mesmo que autonomia. Assim:

A tentativa de ocultar as causas da vulnerabilidade leva a fazer da autonomia um discurso de responsabilização das vítimas por suas próprias feridas. Em escala política, vemos este discurso da autonomia entregar grupos sociais e nações inteiras às suas próprias condições de pobreza e sendo responsabilizados por ela 2626. Anjos MF. A vulnerabilidade como parceira da autonomia. Rev Bras Bioética. 2006;2(2): p. 182..

O autor ainda exemplifica três cenários da relação entre vulnerabilidade e poder. O primeiro cenário aborda as dificuldades ou o não reconhecimento dos limites das vulnerabilidades devido aos fascinantes desdobramentos da ciência, o que nos torna uma “sociedade de riscos”. O segundo cenário chama atenção para a concentração de poder (tanto de consumo quanto de produção), estruturando uma sociedade sem reflexão ética que legitima a iniquidade. E, por fim, a fragilidade e a vulnerabilidade do poder são vistas nas guerras, no terrorismo, nas disputas econômicas e políticas entre nações e na estruturação das iniquidades sociais 2525. Anjos MF. A vulnerabilidade como parceira da autonomia. Rev Bras Bioética. 2006;2(2):173-86..

Schramm 1919. Schramm FR. A saúde é um direito ou um dever? Autocrítica da saúde pública. Rev Bras Bioética. 2006;2(2):187-200. aborda os conflitos morais da bioética vivenciados nas práticas sanitárias públicas. Paradoxalmente, essas práticas podem levar tanto a formas de inclusão quanto de exclusão pelo exercício da biopolítica (nova forma de exercício do poder, chamado biopoder). A biopolítica controla indicadores epidemiológicos, endemias, epidemias, acontecimentos que incidem sobre a segurança e o funcionamento das sociedades, aspectos ambientais, políticas de assistência e bem-estar social, entre outros. Assim, o autor descreve as duas faces da biopolítica: a protetora e a discriminadora.

A primeira se revela quando o “imperativo sanitário” da saúde pública se baseia na prevenção de “comportamentos de risco” e promoção de atitudes mais saudáveis. Essas atitudes protetoras fomentam o paternalismo e o autoritarismo, reduzindo as possibilidades de atuação legítima dos cidadãos ao limitar sua autonomia. A segunda diz respeito à nova forma de discriminação dos portadores de doenças genéticas ou pessoas com hábitos considerados prejudiciais à sua saúde pessoal (ingestão de bebida alcoólica, tabagismo, sedentarismo etc.).

Entretanto, essa suposta garantia de saúde e bem-estar do corpo social é justificada pela “sociedade de riscos”, que, na realidade, mascara o regime da produção e exploração capitalista. A economia política no mundo globalizado impõe estratégias de intervenção sobre todo o corpo social, apoiando-se em critérios de efetividade, de maximização econômica e financeira 2727. Schramm FR. A saúde é um direito ou um dever? Autocrítica da saúde pública. Rev Bras Bioética. 2006;2(2): p. 197.. Diante do exposto, a ameaça está em fundamentar o biopoder por meio de evidências que são apresentadas como únicas ou superiores, provindas do imperialismo moral de países centrais que se apropriam de recursos naturais e humanos de países periféricos.

Segundo Garrafa e Lorenzo 2828. Garrafa V, Lorenzo C. Moral imperialism and multi-centric clinical trials in peripheral countries. Cad Saúde Pública. 2008;24(10):2219-26., o imperialismo moral é a intenção de impor, por meio de diferentes formas de coerção, padrões morais de determinadas culturas, regiões geopolíticas e países a outras culturas, regiões ou países. Indústrias farmacêuticas, por exemplo, testam seus medicamentos em populações vulneradas por pobreza em países periféricos a fim de maximizar lucros no tratamento e comercialização desses insumos em países centrais, que possuem maior poder aquisitivo e onde as enfermidades estudadas são prevalentes e relevantes.

As últimas mudanças realizadas em 2008 na Declaração de Helsinki 44. World Medical Association. Declaration of Helsinki: ethical principles for medical research involving human subjects [Internet]. Jama. 2013 [acesso 15 abr 2017];310(20):2191-4. Disponível: http://bit.ly/2pnJ1K7
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revelam o imperialismo moral das nações desenvolvidas na adoção de critérios éticos diversos (ou double standards) no âmbito da pesquisa clínica quando comparados a nações em desenvolvimento. As mudanças tratam de questões como a garantia de acesso aos melhores métodos de tratamento disponíveis, o que possibilita o uso do double standard, assim como a não obrigatoriedade da responsabilização dos patrocinadores pelos sujeitos de pesquisa após o término dos estudos.

A Declaração relativiza a vulnerabilidade dos povos e países periféricos, justificando o emprego de metodologias diferenciadas de pesquisa clínica que podem depender das circunstâncias sanitárias dos países. Ou seja, diminuem as exigências dos padrões éticos internacionalmente aceitos na realização de estudos clínicos e, consequentemente, os custos com pesquisas, alegando urgência de cura 2929. Diniz D, Corrêa M. Declaração de Helsinki: relativismo e vulnerabilidade. Cad Saúde Pública. 2001;17(3):679-88.,3030. Garrafa V, Prado MM. Mudanças na declaração de Helsinki: fundamentalismo econômico, imperialismo ético e controle social. Cad Saúde Pública. 2001 [acesso 8 dez 2015];17(6):1489-96. Disponível: http://bit.ly/2ogkvcH
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Assim, populações de países periféricos se encontram em situações de vulnerabilidade, não necessariamente por fatores biológicos, mas econômicos, pois pobreza e iniquidades em países de baixa renda os tornam atrativos para a realização de pesquisas. É a chamada “vulnerabilidade social” que interfere negativamente na autodeterminação dos sujeitos ou povos 3131. Lorenzo CF. Los instrumentos normativos en ética de la investigación en seres humanos en América Latina: análisis de su potencial eficacia. In: Keyeux G, Penschaszadeh V, Saada E, coordinadores. Ética de la investigación en los seres humanos y políticas de salud pública. Bogotá: Unesco; 2006. p. 167-90.. Neste sentido, Garrafa afirma:

A vulnerabilidade social tem relação com a estrutura de vida cotidiana das pessoas. Entre as situações geradoras de vulnerabilidade social em pesquisas nos países periféricos, podem ser citadas: a baixa capacidade de pesquisa no país; disparidades socioeconômicas na população; baixo nível de instrução das pessoas; inacessibilidade a serviços de saúde e vulnerabilidades específicas relacionadas com o gênero feminino e com as questões raciais e étnicas, entre outras 3232. Garrafa V. Ampliação e politização do conceito internacional de bioética. Rev. bioét. (Impr.). 2012;20(1):9-20. p. 14..

A bioética de intervenção (BI) vem estabelecendo conceitos necessários para a orientar ações concretas no enfrentamento dessa questão. Ela assume compromisso de dispensar especial atenção ao indivíduo vulnerável e desempoderado 3333. Cruz MR, Trindade ES. Bioética de intervenção: uma proposta epistemológica e uma necessidade para sociedades com grupos sociais vulneráveis. Rev Bras Bioética. 2006;2(4):483-500. p. 497., visando a diminuição das desigualdades sociais por meio de práticas interventivas duras no campo social 3434. Porto D, Garrafa V. Bioética de intervenção: considerações sobre a economia de mercado. Bioética. 2005;13(1):111-23.,3535. Garrafa V, Porto D. Bioética de intervención. In: Tealdi JC, director. Diccionario latinoamericano de bioética. Bogotá: Unesco/Universidad Nacional de Colombia; 2008. p. 161-4..

Essas práticas também se comprometem com a coisa pública e com o equilíbrio ambiental pelo exercício dos quatro “P”: prudência diante dos avanços; prevenção de possíveis danos e iatrogenias; precaução diante do desconhecido; e proteção dos excluídos sociais, dos mais frágeis e desassistidos 3636. Garrafa V. Da bioética de princípios a uma bioética interventiva. Bioética. 2005;13(1):125-34.. O reconhecimento da própria vulnerabilidade é ponto de partida para uma construção maior 3737. Anjos MF. A vulnerabilidade como parceira da autonomia. Rev Bras Bioética. 2006;2(2): p. 184., possibilitando a superação das próprias fragilidades 2525. Anjos MF. A vulnerabilidade como parceira da autonomia. Rev Bras Bioética. 2006;2(2):173-86..

Com isso, a BI oferece alternativa pensada pelos e para os países com particularidades históricas, culturais e sociais que manifestam realidades contrastantes advindas do progresso científico observadas com os problemas persistentes e emergentes da bioética.

Discussão

O Estado de bem-estar social adota abordagem utilitarista que visa priorizar a maioria da população. Entretanto, isso não quer dizer que se deve excluir as minorias; ao contrário, exige-se justiça distributiva no sentido de possibilitar o acesso equitativo a oportunidades a seus cidadãos, desenvolvendo suas capacidades. Nesse contexto, igualdade, justiça e equidade assumem valores fundamentais para promover políticas públicas voltadas para a justiça social.

Daniels e Sabin 3838. Daniels N, Sabin J. Limits to healthcare: fair procedures, democratic deliberation, and the legitimacy problem for insurers. Philos Public Aff. 1997;26(4):303-50., aplicando a teoria da justiça distributiva de John Rawls à área da saúde, explicam por que motivo moral devemos executar o princípio da proteção de igualdade de oportunidades. Segundo os autores, nossa saúde é afetada pelos determinantes sociais. Assim, doenças e incapacidades prejudicam o funcionamento normal dos indivíduos, restringindo seu leque de oportunidades. Isso causa impactos negativos porque a saúde preserva as habilidades das pessoas para serem cidadãos participativos na vida social, política e econômica da sociedade.

Fica evidente que esse complexo problema requer a implementação de medidas sociopolíticas, em especial das ações afirmativas, priorizando oportunidades para aqueles que não as têm ou têm poucas por serem excluídos socialmente dos benefícios advindos do desenvolvimento mundial. O contexto de exploração e os danos causados pela violação da integridade justificam o tratamento diferenciado e positivo dos setores prejudicados pela vulnerabilidade, proibindo, assim, as barreiras discriminatórias para corrigir os efeitos das desigualdades. Isso inclui, para além da assistência em saúde, a provisão de educação pública e outras intervenções para gerar oportunidades desde a infância precoce 3838. Daniels N, Sabin J. Limits to healthcare: fair procedures, democratic deliberation, and the legitimacy problem for insurers. Philos Public Aff. 1997;26(4):303-50..

Ações afirmativas visam garantir a justiça social de forma democrática. Daí a importância do artigo 14 da DUBDH, que trata do princípio da responsabilidade social e saúde. Corresponde a um dos aspectos da responsabilidade – pessoal, política e social – para atuar na promoção da saúde, considerada como direito fundamental de todo ser humano, por meio de diversas ações partilhadas com todos os setores. É o reconhecimento de que os estados de saúde dos indivíduos são resultado de projeto social que depende do empenho de todos, de acordo com suas possibilidades 11. Organização das Nações Unidas para Educação, Ciência e a Cultura. Declaração universal sobre bioética e direitos humanos [Internet]. Genebra: Unesco; 2005 [acesso 30 set 2015]. Disponível: http://bit.ly/2kgv9lt
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,3838. Daniels N, Sabin J. Limits to healthcare: fair procedures, democratic deliberation, and the legitimacy problem for insurers. Philos Public Aff. 1997;26(4):303-50..

O controle social sobre qualquer atividade de interesse público e coletivo deve ser processo democrático comprometido e participativo, passando pela legitimação das autoridades nas escolhas dos padrões éticos de controle e julgamento. Tomando como exemplo pesquisas clínicas, é essencial estabelecer diálogo com o público na formulação de normas éticas adaptadas aos contextos locais. Além disso, é fundamental desenvolver comitês de ética capacitados à análise de pesquisas no intuito de filtrar estudos que sejam relevantes para a população testada, minimizar riscos, tratar danos aos participantes e maximizar e distribuir os benefícios da pesquisa 3030. Garrafa V, Prado MM. Mudanças na declaração de Helsinki: fundamentalismo econômico, imperialismo ético e controle social. Cad Saúde Pública. 2001 [acesso 8 dez 2015];17(6):1489-96. Disponível: http://bit.ly/2ogkvcH
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,3838. Daniels N, Sabin J. Limits to healthcare: fair procedures, democratic deliberation, and the legitimacy problem for insurers. Philos Public Aff. 1997;26(4):303-50..

A versatilidade do conceito de vulnerabilidade é capaz de proclamar o princípio em nível universal, reconhecendo formas de vulnerabilidade que possam ser superadas por meio de medidas específicas de proteção e formas que são inalteradas, ou seja, inerentes, prevenidas por ações baseadas em direitos e dignidade humana que ofereçam proteção equitativa por parte do Estado 33. Neves MP. Article 8: respect de la vulnérabilité humaine et de l’intégrité personnelle. In: Organização das Nações Unidas para Educação, Ciência e a Cultura. La déclaration universelle sur la bioéthique et les droits de l`homme: histoire, principes et application. Paris: Unesco; 2009. p. 167-77.,1919. Schramm FR. A saúde é um direito ou um dever? Autocrítica da saúde pública. Rev Bras Bioética. 2006;2(2):187-200..

Quanto mais um indivíduo é respeitado, menor será sua vulnerabilidade. Isso porque se reconhecem direitos humanos e a necessidade de garantir a dignidade inerente à pessoa, por meio da não violação da sua integridade, seja física, psíquica ou moral, e por meio da não exploração da sua vulnerabilidade, seja a intrínseca a todo ser humano ou causada por condições individuais, sociais ou ambientais.

A bioética latino-americana teve papel de destaque nos últimos anos pela ampliação e politização dos conflitos morais que são abordados internacionalmente nesse campo de conhecimento. Sobressaiu-se por trabalhar reflexões e ações que permitem adaptar princípios às realidades e complexidades dos diversos cenários para além de questões biomédicas e biotecnológicas a partir do respeito e reconhecimento do pluralismo moral 3232. Garrafa V. Ampliação e politização do conceito internacional de bioética. Rev. bioét. (Impr.). 2012;20(1):9-20. p. 14.. A diminuição das injustiças sociais é fundamental para desenvolver nações.

Considerações finais

Os avanços tecnológicos reiteram a importância da bioética como instrumento para garantir direitos fundamentais e prevenir ou interromper abusos praticados contra populações ou sujeitos vulneráveis. Certas pessoas são mais suscetíveis à vulneração que outras, o que implica em proteções adaptadas às suas necessidades específicas. Devem ser protegidas contra danos ou riscos de participar de pesquisas simplesmente por serem mais “acessíveis” em razão de suas enfermidades/debilidades ou condições econômicas inferiores.

Verifica-se íntima relação da vulnerabilidade com a justiça, exigindo-se mais critérios e restrições éticas para o desenvolvimento de pesquisas clínicas envolvendo sujeitos vulneráveis. A aplicação da justiça também se faz presente na elaboração de políticas públicas e na assistência sanitária por meio de ações afirmativas capazes de promover justiça social e oportunidades de acesso a todos de modo equitativo.

É imprescindível reconhecer que a vulnerabilidade não pode ser completamente eliminada, pois não é somente circunstancial. O fato de se exercer autonomia por meio do consentimento livre e esclarecido não suprime a vulnerabilidade, pois sempre há o risco de ser explorada. Por exemplo, há possibilidade de fraudes, apresentações “maquiadas” sobre os benefícios dos resultados, medicalizações exageradas como resposta a todo e qualquer tipo de sofrimento, agravadas pela publicidade de seus patrocinadores.

Pelas razões descritas, a autonomia não deve ser entendida de modo restrito a partir da abordagem principialista norte-americana (capacidade de agir livremente segundo seus valores e crenças), mas também a partir de criações efetivas de condições que tornem a pessoa capaz de agir de maneira autônoma. Ou seja, alguém liberto e empoderado que compreenda as relações de poder que influenciam sua autodeterminação e que, a partir dessa compreensão, possa agir sobre fatores determinantes de sua saúde, reduzindo sua situação de vulnerabilidade.

A vulnerabilidade é conceito com diferentes perspectivas regionais, o que permite diálogo para uma bioética global na busca de novas abordagens que incluam essas perspectivas com o compromisso de enfrentar problemas bioéticos atuais e futuros. A responsabilidade dos profissionais de saúde com a saúde pública é significativa para combater a vulnerabilidade sanitária e preservar ou restaurar a integridade dos pacientes. Tal dever se manifesta, sobretudo, na promoção dos interesses dos pacientes para reforçar seus direitos fundamentais (baseados na dignidade humana e direitos humanos) e respeitar suas opções e sua história de vida.

A responsabilidade social em saúde exige muito mais que a responsabilização dos Estados na formulação de políticas públicas, a exemplo da Política Nacional de Saúde Integral da População Negra 3939. Brasil. Ministério da Saúde, Secretaria de Gestão Estratégica e Participativa. Política Nacional de Saúde Integral da População Negra. Brasília: Ministério da Saúde; 2007.. Exige estratégias sociais no âmbito nacional e internacional que eliminem as desigualdades e promovam o bem-estar dos vulneráveis. Infere-se, portanto, que o indivíduo é compreendido em sua totalidade (não mais objeto reduzido a doença ou incapacidade) e está inserido em uma bioética de diretos e deveres. Vulnerabilidade e integridade devem ser reconhecidas como dimensões intrinsecamente humanas. São componentes da identidade individual que devem ser levadas em consideração em todas as funções.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    May-Aug 2017

Histórico

  • Recebido
    2 Out 2016
  • Revisado
    6 Mar 2017
  • Aceito
    15 Mar 2017
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