Acessibilidade / Reportar erro

Qualidade & finalidade: características da bioética brasileira

Resumo

Este trabalho remete aos 25 anos de publicação da Revista Bioética. Além de traçar em linhas gerais a situação atual do periódico, pretende discutir os critérios atualmente adotados para mensurar a qualidade das publicações científicas, considerando a especificidade deste campo de estudo e pesquisa e, particularmente, as vertentes teóricas voltadas ao contexto brasileiro. Como campo transdisciplinar, a bioética perpassa várias áreas do conhecimento, abrangendo ciências biomédicas, direito, filosofia e ciências sociais no intuito de responder aos conflitos e impasses relacionados à vida e à saúde. Em decorrência, a consolidação da bioética no país deve ser encarada como processo paulatino, que abrange tanto a formação profissional lato e stricto sensu quanto sua inserção como disciplina transversal nas graduações da saúde e direito, bem como nas áreas afins que possam se beneficiar com a reflexão bioética.

Bioética-Comunicação interdisciplinar-Ensino; Pesquisa interdisciplinar-Informação; Gestão da qualidade total-Comunicação

Abstract

This paper considers the 25 years of publication of Revista Bioética. In addition to outlining the current status of the journal, it will discuss the criteria currently used for measuring the quality of scientific publications, considering the specific nature of this field of study and research, and particularly theoretical aspects focused on the Brazilian reality. As a transdisciplinary field, bioethics permeates several areas of knowledge, encompassing the Biomedical Sciences, Law, Philosophy and Social Sciences in order to respond to conflicts and impasses related to life and health. As a result, the consolidation of Bioethics in Brazil should be considered a gradual process, which covers both professional training in a broad and narrow sense, as well as its insertion as a transversal discipline in Health and Law degrees and related areas that can benefit from bioethical reflection.

Bioethics-Interdisciplinary communication-Teaching; Interdisciplinary research-Information; Total quality management-Communication

Resumen

Este trabajo remite a los 25 años de publicación de la Revista Bioética. Además de trazar en líneas generales la situación actual de la revista, pretende discutir los criterios actualmente adoptados para medir la calidad de las publicaciones científicas, considerando la especificidad de este campo de estudio e investigación y, particularmente, las vertientes teóricas abocadas al contexto brasileño. Como campo transdisciplinario, la bioética atraviesa diferentes áreas del conocimiento, abarcando a las Ciencias Biomédicas, el Derecho, la Filosofía y las Ciencias Sociales, con el fin de responder a los conflictos e impasses relacionados con la vida y la salud. En consecuencia, la consolidación de la bioética en el país debe ser encarada como un proceso paulatino, que abarca tanto la formación profesional lato y stricto sensu como su inserción como disciplina transversal en las carreras de grado del área de la Salud y del Derecho, así como en las áreas afines que puedan beneficiarse con la reflexión bioética.

Bioética-Comunicación interdisciplinaria-Enseñanza; Investigación interdisciplinaria-Información; Gestión de la calidad total-Comunicación

Abarcando a perspectiva social e a dimensão ambiental, a bioética se consolidou por sua correlação direta com a área da saúde, tanto no que se refere às temáticas discutidas quanto no que diz respeito ao rol das profissões e especialidades que utilizam essa ferramenta. Entretanto, a característica multifacetada do conhecimento construído no âmbito da bioética, produzida pela interface disciplinar, reflete sobre ciência e tecnologia e seu impacto em sociedades, moralidades e modos de vida das populações.

Pode-se dizer assim que bioética é o estudo das relações de poder e dos juízos de valor que orientam as escolhas na esfera da saúde e condicionam o comportamento e a moralidade em sociedade. Nesse sentido, não se pode falar em “bioética”, remetendo a uma ciência ou disciplina, sendo necessário colocar o termo no plural, em referência direta ao fato de, tal qual se observa na descrição etnográfica, a análise bioética ser polissêmica por estar condicionada cultural, temporal e espacialmente 11. Neves MCP. Bioética ou bioéticas na evolução da sociedade. Coimbra: Gráfica de Coimbra; 2005..

Impulsionando a bioética brasileira

Desde que a discussão bioética começou no Brasil, no início da década de 1990, estudiosos e pesquisadores puderam contar com uma publicação para divulgar suas ideias. A Revista Bioética é um projeto contínuo do Conselho Federal de Medicina (CFM) e destina-se a auxiliar a formação ética dos profissionais da saúde e a aprimorar a prática clínica nas diferentes especialidades médicas. Tendo lançado seu primeiro número em 1993 por Sérgio Ibiapina Ferreira Costa, seu primeiro editor, o periódico completou 25 anos em 2017, consolidando seu papel pioneiro como a única publicação brasileira de bioética que alcançou indexação em plataformas internacionais. Atualmente, o periódico foi aceito em dez bases de dados (anexo).

O reconhecimento e a confiança na Revista Bioética por parte dos autores, pareceristas e colaboradores ad hoc, bem como pelas instituições acadêmicas de graduação e pós-graduação, vêm crescendo ano a ano. Se em 2007 a quantidade de trabalhos submetidos a avaliação ainda era pequena, a partir de 2013 foram recebidos e editados, anualmente, mais de uma centena de trabalhos, demonstrando que a publicação é considerada o periódico de melhor qualidade no campo da bioética em nosso país. Desde 2009, quando todos os números pregressos da revista passaram a ser disponibilizados online em português, o site do periódico já recebeu mais de 1 milhão de acessos.

Os artigos publicados trazem discussões atuais relacionadas aos aspectos éticos da prática da medicina, envolvendo questões atinentes à relação médico-paciente e à organização das equipes de saúde, além das vantagens, problemas e impasses das estratégias de atenção nos diferentes níveis de atendimento. Abrangem também o impacto ético e social das inovações tecnológicas utilizadas na saúde, questões relacionadas à terminalidade da vida e cuidados paliativos, bem como ao conhecimento e aplicação das normas voltadas a regular o exercício da profissão médica, entre outros temas relevantes.

Trabalhos sobre ética em pesquisa envolvendo seres humanos também são constantes nos números do periódico, bem como questões que envolvem o uso de animais não humanos para estudo e experimentos. A discussão se estende à vertente social da bioética, com artigos que analisam vários problemas que causam impacto na saúde das pessoas e populações, como questões etárias, de gênero, relacionadas a pobreza, dificuldade de acesso a serviços, judicialização da saúde, suicídio, aborto, entre outros.

Para fomentar a discussão dos trabalhos, a revista é publicada na íntegra em português, espanhol e inglês tanto no site do CFM quanto na página dos indexadores Scientific Electronic Library Online (SciELO), Directory Open Access Journals (Doaj), Red de Revistas Científicas de América Latina y el Caribe, España y Portugal (Redalyc) e Latindex, além da Biblioteca Virtual em Saúde (BVS), mantida pelo governo brasileiro. A publicação nos três idiomas promove a disseminação ampla das discussões apresentadas, estimulando o intercâmbio de ideias entre estudiosos, que passam a contar com um periódico que congrega as principais discussões sobre os temas bioéticos, considerando especialmente a realidade brasileira e latino-americana. O intuito de ampliar a visibilidade pela publicação dos trabalhos nos três idiomas não se restringe ao estímulo à troca de ideias, mas destina-se também a consolidar a bioética como campo do conhecimento.

O compromisso institucional com a formação ética dos profissionais da saúde assumido pela Revista Bioética é atendido pela distribuição do periódico a docentes e estudantes dos cursos de pós-graduação em bioética em todo país. As bibliotecas das instituições universitárias cadastradas no Ministério da Educação também recebem exemplares para consulta.

Para aperfeiçoar ainda mais essa estratégia de disseminação da bioética, 4.500 exemplares do periódico passaram a ser distribuídos a docentes cadastrados em nosso site, que se comprometeram formalmente com seu uso em sala de aula nas disciplinas bioética e ética médica em nível de graduação e em 46 cursos de medicina e de outras áreas da saúde. Esses cursos são ministrados em instituições de ensino de todas as regiões do país, nos estados do Pará, Pernambuco, Piauí, Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul, Paraná, Mato Grosso, da Bahia, de São Paulo, Minas Gerais, Santa Catarina, Goiás e do Distrito Federal. Esta estratégia de distribuição associada ao processo de formação profissional permite aprofundar a reflexão e o conhecimento do discente acerca das questões e dilemas éticos, favorecendo o exercício consciente e comprometido da clínica médica, como requer o Sistema Único de Saúde (SUS).

A vantagem da distribuição de exemplares impressos da Revista Bioética a docentes de cursos de graduação em medicina e de outras áreas da saúde não se esgota no uso didático do material pelos estudantes matriculados nas disciplinas conduzidas pelos professores cadastrados. Verificou-se aumento na quantidade de manuscritos enviados por alunos sob a supervisão de seus mestres, demonstrando que o interesse despertado pelos temas tratados nos artigos estimulou a produção acadêmica de trabalhos científicos. Assim, a leitura do periódico não apenas aproxima o estudante dos temas e da discussão bioética, mas estimula sua reflexão e o incentiva a expor suas próprias ideias.

Desse aumento na quantidade de trabalhos recebidos pelo periódico, feitos por alunos em formação, pode-se inferir ao menos duas conclusões básicas: 1) a leitura e discussão pelos estudantes dos artigos publicados efetivamente estimula a reflexão ética e induz a formulação de outros trabalhos acadêmicos, os quais colaborarão para a formação em pesquisa do acadêmico de medicina, que é atividade essencial à prática educacional e deve integrar sua expertise profissional; 2) a estratégia de distribuir os exemplares impressos vem alcançando a meta de divulgar o periódico e disseminar as questões tratadas, aumentando a visibilidade da Revista Bioética entre profissionais da saúde, inclusive a classe médica.

Ressalte-se que, como esse processo está planejado para ser executado de maneira contínua, será possível somar, ao longo dos próximos anos, quantidade significativa de profissionais da área que conheceram o periódico durante a graduação e passaram a considerá-lo importante veículo de informação científica sobre as principais questões éticas que envolvem a prática profissional. Esta proposta didática tem sido a principal estratégia para consolidar o reconhecimento do periódico.

Fator de impacto: panaceia universal

Fator de impacto (FI) é índice bibliométrico expresso pelo quociente do número de vezes que os artigos publicados em uma revista científica, em determinado intervalo temporal, foram citados por outros periódicos indexados no ano subsequente. Esses dados provêm de bancos que catalogam a literatura científica, sendo que um dos mais utilizados para esse fim é disponibilizado pelo Institute for Scientific Information (ISI) 22. Pinto AC, Andrade JB. Fator de impacto de revistas científicas: qual o significado deste parâmetro? [Internet]. Quím Nova. 1999;22(3):448-53 [acesso 23 maio 2017]. Disponível: http://bit.ly/2xqqXoT
http://bit.ly/2xqqXoT...
.

Desenvolvido a partir da década de 1960 na então recém-criada área de cienciometria 22. Pinto AC, Andrade JB. Fator de impacto de revistas científicas: qual o significado deste parâmetro? [Internet]. Quím Nova. 1999;22(3):448-53 [acesso 23 maio 2017]. Disponível: http://bit.ly/2xqqXoT
http://bit.ly/2xqqXoT...
, o FI passou paulatinamente a ser reconhecido como a principal forma de mensurar a qualidade de periódicos científicos, influenciando inclusive a admissão de professores em universidades estadunidenses. No Brasil, o índice foi inicialmente utilizado de maneira informal pelas coordenações do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), sendo adotado posteriormente pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) como parâmetro para classificar cursos de pós-graduação 22. Pinto AC, Andrade JB. Fator de impacto de revistas científicas: qual o significado deste parâmetro? [Internet]. Quím Nova. 1999;22(3):448-53 [acesso 23 maio 2017]. Disponível: http://bit.ly/2xqqXoT
http://bit.ly/2xqqXoT...
. Para aqueles que buscavam reconhecimento acadêmico por meio desse padrão exógeno de avaliação, o FI passou a ser critério fundamental.

Apesar desse quase unânime reconhecimento, o indicador suscitou muita controvérsia. Pesquisadores consideraram o FI forma de mensuração que tende a se autorreferendar, centrada na produção acadêmica de países desenvolvidos. O indicador que privilegia algumas áreas do conhecimento e pontua melhor alguns formatos de artigo, sendo pouco expressivo no que diz respeito a demonstrar a qualidade dos trabalhos:

Será que acreditar na qualidade das publicações científicas com base no seu prestígio é apenas uma necessidade burocrática no sistema de “ego” científico? Afinal, a qualidade é muitas vezes associada a um alto Fator de Impacto, que é baseado na simples contagem do número médio de vezes que os artigos em um determinado periódico estão sendo citados e fatores de impacto são importantes aos pesquisadores para indicar a importância das publicações que eles incluem em seus currículos. Eles precisam fazer isso, é claro, pois o sistema baseado no ego está sendo reforçado pelo sistema generalizado – quase universal – de usar citações (geralmente o fator de impacto) para avaliar periódicos, artigos, pessoas, propostas de financiamento, grupos de pesquisa, instituições, e até mesmo países 33. Velterop J. Abertura é a única qualidade de um artigo científico que pode ser objetivamente aferida. SciELO em perspectiva. [Internet]. 2 maio 2017 [acesso 17 set 2017]. Disponível: http://bit.ly/2x6BEgu
http://bit.ly/2x6BEgu...
.

A crítica ao uso indiscriminado do FI para definir o ranking dos pesquisadores e das instituições chegou a ser feita em tom jocoso, como carta à Nature de integrante do Departamento de Biologia da Universidade de Leeds no Reino Unido que sublinha a possibilidade de autores com sobrenomes cujas letras iniciais começam pelas primeiras letras do alfabeto terem maior probabilidade de serem citados do que aqueles cujos sobrenomes comecem pelas últimas letras, já que nas referências muitas vezes é adotado o critério de apresentação dos sobrenomes dos autores por ordem alfabética 44. Tregenza T. Darwin a better name than Wallace? Correspondence. [Internet]. Nature. fev. 1997 [acesso 21 set 2017];385(6616):480. Disponível: http://go.nature.com/2hpc1lB
http://go.nature.com/2hpc1lB...
. Por se tratar de índice desenvolvido para indicar padrão quantitativo, nem todos os pesquisadores das diversas áreas reconheceram-no como efetivamente capaz de demonstrar também a qualidade da produção científica:

Há logo aqueles que acham que se está diante do ovo de Colombo e os colocam como os únicos critérios de avaliação de um projeto científico e estabelecem que um artigo científico só tem valor se for publicado em uma revista com alto fator de impacto. Por outro lado, há aqueles que acham que a adoção da hierarquização de revistas científicas e do número de citações de publicações científicas no julgamento de projetos, bolsas de produtividade de pesquisa e avaliação de cursos de pós-graduação é mais uma das muitas formas de colonialismo cultural 55. Pinto AC, Andrade JB. Op. cit. p. 448..

A ideia de que adotar esse índice reflete submissão acrítica a modelos de mensuração estrangeiros não é despropositada. Os países que investem em ciência e produzem tecnologia são os mesmos que desenvolveram por meio de sociedades acadêmicas os modelos de divulgação da produção do conhecimento. Abarcando todas as áreas, da geografia à física, as sociedades científicas do século XIX, voltadas a estimular o saber, responderam à necessidade de produção de conhecimento do colonialismo mercantilista e foram os alicerces da construção posterior de divulgação do conhecimento 22. Pinto AC, Andrade JB. Fator de impacto de revistas científicas: qual o significado deste parâmetro? [Internet]. Quím Nova. 1999;22(3):448-53 [acesso 23 maio 2017]. Disponível: http://bit.ly/2xqqXoT
http://bit.ly/2xqqXoT...
. Esse processo permitiu definir as regras e ditá-las a outros grupos (estudiosos, instituições, nações) que só depois começaram a usar os mesmos mecanismos para disseminar o conhecimento que produzem.

Dessa forma, a ação originada do desejo de apropriação territorial, que surgiu a partir da “descoberta” do Novo Mundo, transformou-se pouco a pouco em situação de dominação colonial e subordinação cultural pela imposição de regras que reproduzem os interesses e beneficiam apenas os dominadores. No que se refere especificamente à publicação científica em bioética, a adoção indiscriminada do FI para avaliar a qualidade dos periódicos denota, no mínimo, pouco reconhecimento do percurso deste campo no Brasil e na América Latina 66. Tealdi JC. Diccionario latinoamericano de bioética. Bogotá: Unesco; 2008..

A adoção deste critério como único indicador capaz de mensurar qualidade de um periódico aponta questão de fundo que precisa ser ponderada: o que se está querendo dizer – exatamente – com “qualidade”? Se até mesmo a Organização Mundial de Saúde reconhece a polissemia do termo, no que tange à definição de qualidade de vida 77. Fleck MPA, Leal OF, Louzada S, Xavier M, Chachamovich E, Vieira G et al. Desenvolvimento da versão em português do instrumento de avaliação de qualidade de vida da OMS (WHOQOL-100). [Internet]. Rev Bras Psiquiatr. 1999 [acesso 11 set 2017];21(1):19-28. Disponível: http://bit.ly/2hauMs5
http://bit.ly/2hauMs5...
,88. Fleck MPA. O instrumento de avaliação de qualidade de vida da Organização Mundial da Saúde (WHOQOL-100): características e perspectivas. [Internet]. Ciênc Saúde Coletiva. 2000 [acesso 11 set 2017];5(1):33-8. Disponível: http://dx.doi.org/10.1590/S1413-81232000000100004
http://dx.doi.org/10.1590/S1413-81232000...
, poderíamos supor que publicações científicas, que comparam o estudo de sociedades, valores e sistemas de saúde tão distintos, estariam todas sujeitas aos mesmos padrões de qualidade? Será que dessa forma não estaríamos decretando o fim da qualidade, em vez de conquistando-a como finalidade de nossa reflexão?

Visibilidade contra-hegemônica

Buscando dar visibilidade à produção científica brasileira, a SciELO foi criada em 1997 pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo, em parceria com o Centro Latino-Americano e do Caribe de Informação em Ciência da Saúde (Bireme) e com apoio do CNPq. Trata-se de biblioteca de publicações científicas brasileiras que passou a ter papel expressivo na divulgação da produção nacional. Até aquele momento, apenas 22 revistas científicas do país estavam indexadas entre os 6 mil títulos do ISI.

De fato, a divulgação concomitante desses periódicos pela biblioteca SciELO e o ingresso de novos títulos considerados significativos para a produção científica nacional aumentaram exponencialmente sua visibilidade. Exemplifica sua importância o FI dos cinco periódicos brasileiros indexados no ISI ter aumentado 132,7% depois de estarem também na SciELO por dois anos 99. SciELO: um modelo reconhecido. [Internet]. Pesquisa Fapesp. 2002 [acesso 23 maio 2017];73. Disponível: http://bit.ly/2wzguTZ
http://bit.ly/2wzguTZ...
.

O fato de bases de dados regionais, voltadas à América Latina, Caribe, Portugal, Espanha e África do Sul, terem começado a se organizar internamente e a articular redes para assegurar o acesso a periódicos regionais foi notado por publicadores internacionais, que passaram a se interessar por essas iniciativas. No entanto, manter essas bibliotecas online pode ser dispendioso, e em 2012 o CNPq alegou dificuldades econômicas para continuar a participar do projeto 1010. Éboli E. Scielo: CNPq retira apoio financeiro à biblioteca de periódicos científicos. [Internet]. O Globo. jan 2013 [acesso 23 maio 2017]. Disponível: http://vermelho.org.br/noticia/203309-1
http://vermelho.org.br/noticia/203309-1...
. A falta de reconhecimento do valor fundamental da iniciativa pelo CNPq e de apoio efetivo para sua continuidade ameaçaram a biblioteca, pondo em risco a própria disseminação da ciência brasileira.

Talvez o impacto dessa falta de reconhecimento e apoio por parte das instituições de fomento à educação do governo brasileiro tenha sido o fator que levou a SciELO a novas perspectivas. A partir de 2014, a biblioteca brasileira e a divisão de propriedade intelectual e ciência da Thomson Reuters estabeleceram acordo para integrá-la à Web of Knowledge, a mais abrangente base internacional de informações científicas mantida pela Reuters 1111. Universidade Federal de Goiás. Fapesp e Thomson Reuters anunciam acordo para integração de bases de informação científica. [Internet]. 2014 [acesso 23 maio 2017]. Disponível: http://bit.ly/2xcAIX9
http://bit.ly/2xcAIX9...
. Embora esse acordo tenha potencializado a continuidade do projeto e a visibilidade da coleção SciELo entre pesquisadores de todo o mundo, acarretou também algumas transformações nas exigências para ingresso e manutenção de periódicos nas coleções indexadas.

Caracterizadas como necessidades para internacionalizar as informações publicadas na coleção SciELO Brasil, algumas dessas determinações, como a conversão dos fascículos online para o formato XML, destinam-se a sistematizar dados. Permitem também seu uso e comparação bibliométricos para gerar informação sobre o acesso a periódicos e a quantidade de citações dos artigos, coadunando-se aos sistemas de mensuração já existentes. Entretanto, outras exigências, como a necessidade de publicar em inglês e a forma de licença para reprodução de artigos (que permite seu uso comercial), parecem reportar ao pressuposto da colonialidade, imposta na produção, divulgação e uso do conhecimento dos países em desenvolvimento 1212. Porto D, Ferreira S. Desigualdades na produção científica: pontuando um recorte atual. [Internet]. Rev. bioét. (Impr.). 2015 [acesso 23 maio 2017];23(3):439-45. Disponível: http://bit.ly/2xa4Fpe
http://bit.ly/2xa4Fpe...
.

Tal constatação reforça a ideia de que ainda que seja importante alinhar-se às formas de mensurar a produção de conhecimento científico – para realizar comparações na dimensão global e verificar transformações nos processos locais de produção do saber, aferindo inclusive seu crescimento e aprofundamento –, é essencial também manter tanto quanto possível processos de classificação, disseminação e mensuração autóctones. Esses processos devem estar concatenados às exigências da realidade à qual pertencem, contribuindo, assim, para desenvolvimento da ciência nativa, autonomia dos pesquisadores e emancipação das instituições:

Tradição científica exige tempo, e uma nação como o Brasil onde a atividade científica é recente e a pós-graduação só há pouco tempo começa a se consolidar (…) se abrir mão de sua independência científica trilhando o caminho da imitação, ao invés de construir sua própria história de desenvolvimento, estará condenada ao subdesenvolvimento eterno 1313. Pinto AC, Andrade JB. Op. cit. p. 453..

Medindo a bioética

As várias e contundentes críticas à adoção do FI como parâmetro único para avaliar a qualidade da produção científica, exemplificadas anteriormente, levam a crer que esta finalidade não é alcançada pelo indicador. Pelo que se depreende dos trabalhos de pesquisadores dedicados a estudar o assunto, o FI espelha principalmente o quanto os países desenvolvidos e suas instituições, periódicos e pesquisadores, que se comunicam prioritariamente em inglês, conhecem e citam os trabalhos uns dos outros, impondo ao resto do mundo a condição de periferia. Todo conhecimento não produzido em língua inglesa não é visto nem entendido, passando despercebido ou, quando muito, tido como secundário.

Porém, além das questões cultural e ética, envolvidas no uso do FI como critério para mensurar a qualidade da produção científica, outros fatores de menor monta precisam ser sopesados. Isso porque essas variáveis também podem influenciar a quantidade de citações recebidas por artigos e periódicos, incidindo em sua posição no ranking científico. Entre os diversos fatores [que] devem ser considerados ao se interpretar o valor do FI de um dado periódico e utilizá-lo em avaliações de cientistas e instituições1414. Antunes AA. Como avaliar produção científica. Rev Col Bras Cir. 2015;42(Suppl 1):17-9., se destacam ao menos três aspectos que precisam ser criteriosamente considerados: 1) a tipificação e universalidade do conhecimento produzido na área; 2) a quantidade de periódicos indexados na mesma área de conhecimento; e 3) a periodicidade média da área de conhecimento e a quantidade média de artigos publicados em cada uma 22. Pinto AC, Andrade JB. Fator de impacto de revistas científicas: qual o significado deste parâmetro? [Internet]. Quím Nova. 1999;22(3):448-53 [acesso 23 maio 2017]. Disponível: http://bit.ly/2xqqXoT
http://bit.ly/2xqqXoT...
.

Tipificação e universalidade do conhecimento

É sabido que artigos da área biomédica, especialmente aqueles que apresentam resultados de pesquisa clínica, tendem a ser considerados mais importantes do que os produzidos pelas áreas sociais, os quais dificilmente poderão se tornar produtos disputados no mercado, como ocorre com os medicamentos. Saber o que pensam os profissionais de saúde sobre determinado fármaco, equipamento ou procedimento, como faz a bioética, por exemplo, não é a mesma coisa que testar e validar propostas terapêuticas. Assim, a possibilidade de lucrar com descobertas científicas influencia diretamente o valor atribuído à área da ciência que gerou esse conhecimento, incidindo no financiamento dos estudos e na forma como pesquisadores e instituições são classificados.

A importância do tipo de conhecimento que uma área pode produzir está relacionada ao grau de generalização que se pode obter nos estudos. A química inorgânica exemplifica plenamente essa propriedade, pois é a mesma em qualquer parte do mundo. Acréscimos à tabela periódica ou comprovação das propriedades dos elementos já descobertos podem ser feitos por estudiosos a qualquer tempo e em qualquer ponto do planeta. A possibilidade de generalizar o conhecimento e a probabilidade de replicá-lo é quase absoluta.

A possibilidade de generalizar o conhecimento da área biológica também é bastante expressiva, embora neste caso imposições do ambiente geográfico, físico e social influenciem diretamente a formação dos biomas e o equilíbrio das espécies em cada um deles. Na mesma linha pode-se classificar o conhecimento de áreas como a medicina, que trabalha sobre o substrato humano mas precisa considerar especificidades etárias, étnicas, sociais, ambientais, de sexo e gênero como elementos que podem circunscrever a possibilidade de generalização. O desafio da medicina é exatamente este: trabalhar com regularidades absolutas – vida e morte – que devem ser interpretadas à luz de singularidades muito específicas.

Perante o amplo enfoque dessas áreas, o conhecimento advindo das humanidades, direito, filosofia e ciências sociais, caracteriza-se por ser muito mais pontual e mediado por fatores próprios. O direito varia de acordo com as moralidades que orientam a sociedade. Embora tenha sido em grande parte herdeiro das normas religiosas, que lhe conferem relativa generalidade, pois ancoradas principalmente na consolidação da propriedade e na interdição ao ato de matar (que só pode ser feito pelas autoridades do Estado ou da própria religião, nos casos em que as duas representam o mesmo poder). Apesar disso, a área estabelece o sistema que define crime e punição a partir da perspectiva da sociedade que o adota, refletindo a moralidade vigente naquele contexto.

Tanto quanto nessa área, a filosofia também busca regularidades nas interpretações da moral para definir o certo e o errado no comportamento humano. Pretende indicar o caminho da ética, da virtude e da felicidade, atributos que muitas vezes se sobrepõem na argumentação filosófica. Talvez por ser a mais antiga área formal do conhecimento e, portanto, identificada “simplesmente” como sabedoria, os pressupostos, princípios teóricos e valores discutidos pela filosofia se pretendem universais e atemporais, embora na prática revelem a todo instante sua condição de interpretação relacional, derivada da conjuntura e da visão de mundo daqueles que a formularam.

As ciências sociais também detectam padrões de comportamento de indivíduos, grupos, segmentos e populações, mas tanto a sociologia quanto a antropologia admitem, em geral, que tais regularidades não podem ser generalizadas nem temporal nem espacialmente. O rigor na aplicação metodológica indica que padrões culturais não devem ser atribuídos a todas as pessoas que (ao menos aparentemente) vivam a mesma situação em outros locais e circunstâncias.

Assim, depreende-se que o conhecimento produzido nessas áreas é marcado por forte viés temporal, espacial e – especialmente – cultural. Neste ramo do saber não há conhecimento absoluto, noções indefectíveis ou com pretensão de serem eternas. O saber sobre as pessoas e suas relações no mundo está em constante mutação, condicionado pela história, mediado pela tecnologia e impulsionado ou restrito pelo poder dos atores sociais. E é nesse campo em que se desenham continuamente as relações humanas que se inscreve a bioética, herdeira dileta das humanidades e descendente direta das ciências da vida.

Como a possibilidade de generalizar está diretamente relacionada à probabilidade de usar (e citar) um estudo, é impossível comparar com os mesmos métodos áreas tão diferentes. Em decorrência, metodologias criadas para verificar a velocidade de disseminação de um tipo específico de informação podem não ser úteis no que concerne a mensurar a difusão de outra forma de conhecimento. Esse é um aspecto que marca fortemente a literatura bioética, que consorcia procedimentos e técnicas da saúde e da medicina, normas e leis do direito, métodos de pesquisa e análise das ciências sociais e conceitos oriundos da filosofia para explicar a realidade e propor resposta aos conflitos relacionados à vida e morte.

É importante levar em conta ainda que essa diferença entre as áreas se aprofunda quando se trata da produção de conhecimento interdisciplinar. Consolidando o saber de diferentes fontes, a interdisciplinaridade é, em essência, complexa e exige mais do que simples reprodução do conhecimento formal, implicando ajuste, complementaridade e contextualização. Por isso, definir o fator de impacto como único ou principal critério de qualidade de periódico de bioética desconsidera que tipo de conhecimento se deve abordar em cada contexto e como se constrói esse saber.

Quantidade de periódicos indexados

Outros aspectos menores também têm relação direta com o FI de determinado periódico. Entre eles, cabe considerar o tamanho da comunidade científica capaz de discutir os estudos da área. Áreas novas, cujo processo de formação profissional ainda é restrito, não têm estudiosos e pesquisadores suficientes para realizar e avaliar muitos estudos, como ocorre com a bioética. Em consequência, as revistas científicas dessas áreas terão menos trabalhos publicados e adotarão intervalos maiores entre as publicações. Por isso, em termos absolutos, terão menos possibilidade de serem citadas do que aquelas que publicam mais trabalhos.

Em qualquer parte do mundo, a medicina forma quantidade expressiva de profissionais. Apenas no Brasil, a previsão é de que em 2020 serão formados 32 mil profissionais em instituições públicas e privadas 1515. Conselho Federal de Medicina. Demografia médica 2015: com aumento no total de médicos, Brasil se aproxima de países da OCDE. [Internet]. 30 nov 2015 [acesso 24 maio 2017]. Disponível: http://bit.ly/2hagDHL
http://bit.ly/2hagDHL...
. Mesmo sem ter dados precisos sobre o assunto, pode-se considerar também que qualquer especialidade médica, tida como pós-graduação, capacita anualmente mais profissionais do que todos os egressos dos cursos de bioética, lato e stricto sensu. Essa afirmação pode ser facilmente deduzida na comparação da quantidade de especialidades, instituições, faculdades e cursos de medicina e de bioética. Assim, há mais médicos do que bioeticistas e há mais revistas médicas do que de bioética.

Lembrando que o impacto de uma revista é medido pelo número médio de citações de seus artigos em outros periódicos, teremos, em consequência, que as áreas médicas alcançarão maior visibilidade e melhor avaliação, pois contarão com mais periódicos indexados nos quais publicarão autores que tendem a citar os trabalhos de seus pares. Essa constatação torna-se mais contundente quando se tem apenas um periódico indexado em um campo de estudos em um país, como ocorre com a bioética. Nesse caso, a possibilidade de ser citado se reduz drasticamente. Contribui nesta equação também o tipo de conhecimento produzido em uma área e o grau de generalização que pode alcançar, que podem aumentar ainda mais o viés decorrente do uso de fórmula quantitativa para mensurar a qualidade.

O hiato decorrente dessas circunstâncias, percebido por simples processo lógico, aumenta entre áreas muito distintas, e se aprofunda ainda mais quando se trata da produção interdisciplinar. Embora a interdisciplinaridade seja tendência atual na produção do conhecimento, enquanto não houver massa crítica suficiente para expandir a reflexão a círculos mais abrangentes, corre-se o risco de “pregar no deserto” por falta de interlocutores capazes de partilhar o saber. Essa é a realidade atual do campo da bioética que, grosso modo, não deve somar mais de três mil profissionais capacitados em todos os cursos de pós-graduação.

No que diz respeito especificamente à bioética, deve-se levar em conta que à reduzida quantidade de profissionais habilitados a trabalhar com este conhecimento soma-se o fato de que não se pode falar deste campo no singular, como sinônimo de ética médica ou bioética clínica 11. Neves MCP. Bioética ou bioéticas na evolução da sociedade. Coimbra: Gráfica de Coimbra; 2005., que ainda é seu sentido hegemônico. Se considerarmos o âmbito expandido do campo, que incorpora noções de direitos humanos e agrega diversas áreas do saber, como propõe a Declaração universal sobre bioética e direitos humanos1616. Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura. Declaração universal sobre bioética e direitos humanos. [Internet]. Paris: Unesco; 2015 [acesso 24 maio 2015]. Disponível: http://bit.ly/1TRJFa9
http://bit.ly/1TRJFa9...
, veremos que o conhecimento se particulariza e a quantidade de estudiosos que podem discutir aspectos específicos dos diferentes conflitos éticos se reduz ainda mais.

Outro aspecto ainda mais restrito da utilização deste parâmetro quantitativo diz respeito ao processo de inflar o FI pela possibilidade de manipular a autocitação, que é definida pela quantidade de vezes que um periódico indexado faz menção direta aos artigos que publica. Ainda que em determinadas circunstâncias a autocitação seja inevitável, especialmente quando só há um periódico indexado de determinada área em um país, quando intencionalmente induzida é considerada prática abjeta e fraudulenta. Em alguns casos, classificados como mais gritantes, a autocitação pode ser penalizada pela suspensão da publicação do fator de impacto do periódico no Journal Citation Reports, como ocorreu em 2013 com algumas revistas médicas brasileiras 1515. Conselho Federal de Medicina. Demografia médica 2015: com aumento no total de médicos, Brasil se aproxima de países da OCDE. [Internet]. 30 nov 2015 [acesso 24 maio 2017]. Disponível: http://bit.ly/2hagDHL
http://bit.ly/2hagDHL...
,1717. Sampaio R. Índice internacional suspende revistas científicas brasileiras. [Internet]. Globo. 30 ago 2013 [acesso 22 maio 2017]; Ciência e Saúde. Disponível: https://glo.bo/1hAyCmp
https://glo.bo/1hAyCmp...
.

Periodicidade, quantidade e tamanho dos artigos

Outro aspecto também menos importante, mas que não deixa de influenciar a mensuração do impacto, diz respeito à característica exigida para indexação na publicação de cada área, que tem parâmetros próprios para definir a periodicidade, quantidade e tamanho dos artigos. Embora se observe a tendência a buscar maior uniformidade nos requisitos básicos para a comunicação científica entre as áreas, as características intrínsecas de cada uma delas acabam por imprimir padrões próprios à produção científica.

Quanto à periodicidade, a frequência de publicação do periódico, nota-se expressiva diferença entre as revistas das áreas de humanidades e as biomédicas. Enquanto na primeira são admissíveis publicações semestrais, nas áreas médica e biológica a trimestralidade é a frequência minimamente aceitável, e se espera intervalos ainda mais reduzidos dos periódicos mais bem conceituados. A quantidade de trabalhos em cada volume também é bastante distinta. Admite-se que boas revistas de direito, filosofia e ciências sociais publiquem 18 trabalhos por ano entre os dois números de cada volume. Na área da saúde não se pode publicar menos de 60 artigos por ano, mais que o triplo da quantidade prevista para as primeiras.

Claro que frequência e quantidade estão relacionadas ao tamanho dos trabalhos de cada área. Na área de humanas os trabalhos costumam ser extensos, podendo atingir número considerável de palavras e caracteres. Em comparação, trabalhos das diferentes especialidades médicas, biologia ou química podem ser bastante sucintos, embora admitam muitas ilustrações, imagens, gráficos e planilhas, que informam aspectos significativos da comunicação.

Essas diferenças têm – obviamente – consequências na quantidade absoluta de trabalhos publicados em cada área e na visibilidade dos periódicos. É simples perceber que mais trabalhos científicos publicados aumenta a chance de dar visibilidade a uma área ou tema, conferindo-lhe prestígio, aumentando a chance de ser citada. Ainda que os critérios para mensurar o impacto ponderem as diferenças entre áreas, sistematizadas pela quantidade de números publicados e de artigos por número, até o senso comum entende que algo que repercute mais tende a ser mais ouvido, mesmo quando não seja de fato escutado.

Deve-se ter em conta também que a quantidade e o tamanho dos manuscritos, assim como sua especificidade, influenciam o grau de dificuldade em obter parecer qualificado. Nas áreas que admitem muita generalização é mais fácil encontrar pareceristas, pois elementos químicos ou propriedades físicas tendem a se reproduzir de maneira uniforme em qualquer parte do mundo, desde que sob as mesmas circunstâncias. Assim, entre Oxford e Bombaim se encontram centenas de pesquisadores aptos a avaliar um artigo. Já nas áreas de humanidades, é quase impossível a reprodução dessas circunstâncias de maneira absoluta em diferentes locais. Comportamento, sentimentos, ideias e valores são diferentes entre indivíduos, grupos, segmentos e populações. História, economia e cultura moldam essas variáveis que tornam inadmissíveis as generalizações. Disso se deduz que a facilidade ou dificuldade em encontrar avaliadores aptos para dirimir sobre manuscritos submetidos a um periódico é fator que também condiciona o processo editorial e interfere no fator de impacto.

Enfim, a finalidade

Em síntese, os parâmetros citados até aqui como elementos que influenciam negativamente a definição do FI para caracterizar a qualidade de alguns tipos de periódicos são: utilizar critério quantitativo para exprimir qualidade; restringir a avaliação a critério que reforça a dependência do conhecimento autóctone; desprezar o papel da quantidade de periódicos indexados na área; e desconsiderar a influência na formação do indicador do tipo de artigo, da área de conhecimento e de sua respectiva abrangência. Mesmo considerando a importância desses aspectos, deve-se, por fim, mencionar o principal critério de qualidade editorial, que se relaciona a todos eles, mas os ultrapassa: a finalidade da publicação. Entender a quem ou a que propósito “serve” um periódico é essencial para compreender que tipo de critério se deve adotar para mensurar sua qualidade.

No caso da Revista Bioética, o objetivo é fomentar a discussão interdisciplinar e plural de temas de bioética e ética médica, voltando-se à formação acadêmica e ao aperfeiçoamento constante dos profissionais de saúde1818. Revista Bioética. Informações básicas. [Internet]. 2013 [acesso 25 maio 2017]. Disponível: http://bit.ly/2jBDy3v
http://bit.ly/2jBDy3v...
. A missão do periódico vem sendo amparada pelo CFM, que entende a importância desse conhecimento para todos os envolvidos na área da saúde. Essa iniciativa editorial elimina a dificuldade de financiamento pela qual passa grande parte dos periódicos brasileiros, que é ainda mais marcante no campo da bioética, que não pode aceitar apoio de qualquer instituição ou empresa, o que causaria conflito de interesse no que tange aos temas ou autores publicados. Diferentemente do que ocorre com diversas especialidades, a bioética não pode ser patrocinada por corporações farmacêuticas ou indústria de equipamentos para a saúde.

O objetivo ao qual se destina a Revista Bioética responde a demanda constitucional. A saúde foi definida como direito de cidadania nos fundamentos legais do país 1919. Brasil. Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília: Senado Federal; 1988. Art. 196. p. 133., e essa prerrogativa foi instituída pela Lei 8.080/1990, que dispôs sobre as condições para a promoção, proteção e recuperação da saúde, a organização e o funcionamento dos serviços2020. Brasil. Presidência da República. Lei nº 8.080, de 19 de setembro de 1990. Dispõe sobre as condições para a promoção, proteção e recuperação da saúde, a organização e o funcionamento dos serviços correspondentes e dá outras providências. [Internet]. Diário Oficial da União. Brasília; 20 set 1990 [acesso 25 maio 2017]. Disponível: http://bit.ly/1UVpr2U
http://bit.ly/1UVpr2U...
do SUS. Para viabilizar a implementação desta lei e formar profissionais aptos a atuar no SUS, o Ministério da Educação estabeleceu em 2014 as Diretrizes Curriculares Nacionais do Curso de Graduação em Medicina 2121. Conselho Nacional de Educação. Diretrizes curriculares nacionais do curso de graduação em medicina. [Internet]. 2014 [acesso 22 maio 2017]. p. 1-4. Disponível: http://bit.ly/1CCBjuE
http://bit.ly/1CCBjuE...
. Entre outros aspectos, a resolução especificou que a educação profissional deve:

  • Promover estilos de vida saudáveis, conciliando as necessidades tanto dos seus clientes/pacientes quanto as de sua comunidade, atuando como agente de transformação social; (…)

  • Incluir dimensões éticas e humanísticas, desenvolvendo no aluno atitudes e valores orientados para a cidadania”; [e]

  • Promover a integração e a interdisciplinaridade em coerência com o eixo de desenvolvimento curricular, buscando integrar as dimensões biológicas, psicológicas, sociais e ambientais 2121. Conselho Nacional de Educação. Diretrizes curriculares nacionais do curso de graduação em medicina. [Internet]. 2014 [acesso 22 maio 2017]. p. 1-4. Disponível: http://bit.ly/1CCBjuE
    http://bit.ly/1CCBjuE...
    .

Entre as competências e habilidades exigidas dos formandos, destaca-se: os profissionais de saúde, dentro de seu âmbito profissional, devem estar aptos a desenvolver ações de prevenção, promoção, proteção e reabilitação da saúde, tanto em nível individual quanto coletivo. Cada profissional deve assegurar que sua prática seja realizada de forma integrada e contínua com as demais instâncias do sistema de saúde. Os profissionais devem realizar seus serviços dentro dos mais altos padrões de qualidade e dos princípios da ética/bioética, tendo em conta que a responsabilidade da atenção à saúde não se encerra com o ato técnico, mas, sim, com a resolução do problema de saúde, tanto a nível individual como coletivo2222. Conselho Nacional de Educação. Diretrizes curriculares nacionais do curso de graduação em medicina. [Internet]. 2014 [acesso 22 maio 2017]. p. 1..

Considerando a missão do periódico e sua relação direta com as demandas de saúde do Estado brasileiro, fica claro que o FI não é parâmetro adequado para avaliar a qualidade da produção científica da Revista Bioética ou de outras publicações neste campo, pelo menos no momento atual. Como consegue medir apenas a velocidade da difusão da informação, sem refletir a qualidade da produção, o FI poderá exprimir no máximo a projeção de determinado periódico ou autor em cenário em grande parte circunscrito aos países desenvolvidos, com suas peculiaridades e problemas específicos. Ainda que a miséria nestes países seja a mesma enfrentada pelas populações das nações em desenvolvimento, as questões sanitárias são matizadas por variáveis sociais, econômicas, culturais e legais que determinam que as estratégias de enfrentamento sejam diferentes.

Assim, é necessário ainda sublinhar que, consoante às diretrizes do SUS, às especificações para a formação médica e às propostas conceituais da bioética brasileira, o objetivo da Revista Bioética é contribuir para a formação ética e humanística dos profissionais da saúde e, muito particularmente, da classe médica. Distribuída a estudantes e professores, o periódico é hoje a principal referência deste campo no país, contribuindo para estimular discussões importantes, como as relacionadas à Estratégia Saúde da Família, à terminalidade da vida, aos cuidados paliativos e ao próprio processo de educação em ética e bioética nos vários cursos da saúde. Dessa forma, o periódico consolida seu papel de ferramenta do conhecimento, voltada a capacitar profissionais brasileiros e todos aqueles que trabalham e militam pela saúde no Brasil.

Ao terminar esta reflexão, não é demais reafirmar que neste momento, em que a força de nossa jovem democracia é testada e que se espera que a crise que atravessamos possa livrar a sociedade das mazelas que acompanham sua formação, como o compadrio, o nepotismo, a corrupção e a impunidade, a reflexão ética revela-se ainda mais imprescindível. Estudar a história, avaliar o substrato ético das razões que condicionam os juízos morais e definem as políticas públicas é essencial para adotar medidas que possam sanear o país, restaurar a confiança nas enxovalhadas instituições nacionais e resgatar a autoestima dos cidadãos. Essa missão educacional em longo prazo, assumida com afinco e rigor pela Revista Bioética, só pode ser mensurada por indicadores adaptados à realidade brasileira, capazes de refletir a conquista da equidade e do respeito pela cidadania que todos desejamos para o Brasil.

Anexo

Quadro 1
Bases de dados que indexam a Revista Bioética

Referência

  • 1
    Neves MCP. Bioética ou bioéticas na evolução da sociedade. Coimbra: Gráfica de Coimbra; 2005.
  • 2
    Pinto AC, Andrade JB. Fator de impacto de revistas científicas: qual o significado deste parâmetro? [Internet]. Quím Nova. 1999;22(3):448-53 [acesso 23 maio 2017]. Disponível: http://bit.ly/2xqqXoT
    » http://bit.ly/2xqqXoT
  • 3
    Velterop J. Abertura é a única qualidade de um artigo científico que pode ser objetivamente aferida. SciELO em perspectiva. [Internet]. 2 maio 2017 [acesso 17 set 2017]. Disponível: http://bit.ly/2x6BEgu
    » http://bit.ly/2x6BEgu
  • 4
    Tregenza T. Darwin a better name than Wallace? Correspondence. [Internet]. Nature. fev. 1997 [acesso 21 set 2017];385(6616):480. Disponível: http://go.nature.com/2hpc1lB
    » http://go.nature.com/2hpc1lB
  • 5
    Pinto AC, Andrade JB. Op. cit. p. 448.
  • 6
    Tealdi JC. Diccionario latinoamericano de bioética. Bogotá: Unesco; 2008.
  • 7
    Fleck MPA, Leal OF, Louzada S, Xavier M, Chachamovich E, Vieira G et al. Desenvolvimento da versão em português do instrumento de avaliação de qualidade de vida da OMS (WHOQOL-100). [Internet]. Rev Bras Psiquiatr. 1999 [acesso 11 set 2017];21(1):19-28. Disponível: http://bit.ly/2hauMs5
    » http://bit.ly/2hauMs5
  • 8
    Fleck MPA. O instrumento de avaliação de qualidade de vida da Organização Mundial da Saúde (WHOQOL-100): características e perspectivas. [Internet]. Ciênc Saúde Coletiva. 2000 [acesso 11 set 2017];5(1):33-8. Disponível: http://dx.doi.org/10.1590/S1413-81232000000100004
    » http://dx.doi.org/10.1590/S1413-81232000000100004
  • 9
    SciELO: um modelo reconhecido. [Internet]. Pesquisa Fapesp. 2002 [acesso 23 maio 2017];73. Disponível: http://bit.ly/2wzguTZ
    » http://bit.ly/2wzguTZ
  • 10
    Éboli E. Scielo: CNPq retira apoio financeiro à biblioteca de periódicos científicos. [Internet]. O Globo. jan 2013 [acesso 23 maio 2017]. Disponível: http://vermelho.org.br/noticia/203309-1
    » http://vermelho.org.br/noticia/203309-1
  • 11
    Universidade Federal de Goiás. Fapesp e Thomson Reuters anunciam acordo para integração de bases de informação científica. [Internet]. 2014 [acesso 23 maio 2017]. Disponível: http://bit.ly/2xcAIX9
    » http://bit.ly/2xcAIX9
  • 12
    Porto D, Ferreira S. Desigualdades na produção científica: pontuando um recorte atual. [Internet]. Rev. bioét. (Impr.). 2015 [acesso 23 maio 2017];23(3):439-45. Disponível: http://bit.ly/2xa4Fpe
    » http://bit.ly/2xa4Fpe
  • 13
    Pinto AC, Andrade JB. Op. cit. p. 453.
  • 14
    Antunes AA. Como avaliar produção científica. Rev Col Bras Cir. 2015;42(Suppl 1):17-9.
  • 15
    Conselho Federal de Medicina. Demografia médica 2015: com aumento no total de médicos, Brasil se aproxima de países da OCDE. [Internet]. 30 nov 2015 [acesso 24 maio 2017]. Disponível: http://bit.ly/2hagDHL
    » http://bit.ly/2hagDHL
  • 16
    Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura. Declaração universal sobre bioética e direitos humanos. [Internet]. Paris: Unesco; 2015 [acesso 24 maio 2015]. Disponível: http://bit.ly/1TRJFa9
    » http://bit.ly/1TRJFa9
  • 17
    Sampaio R. Índice internacional suspende revistas científicas brasileiras. [Internet]. Globo. 30 ago 2013 [acesso 22 maio 2017]; Ciência e Saúde. Disponível: https://glo.bo/1hAyCmp
    » https://glo.bo/1hAyCmp
  • 18
    Revista Bioética. Informações básicas. [Internet]. 2013 [acesso 25 maio 2017]. Disponível: http://bit.ly/2jBDy3v
    » http://bit.ly/2jBDy3v
  • 19
    Brasil. Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília: Senado Federal; 1988. Art. 196. p. 133.
  • 20
    Brasil. Presidência da República. Lei nº 8.080, de 19 de setembro de 1990. Dispõe sobre as condições para a promoção, proteção e recuperação da saúde, a organização e o funcionamento dos serviços correspondentes e dá outras providências. [Internet]. Diário Oficial da União. Brasília; 20 set 1990 [acesso 25 maio 2017]. Disponível: http://bit.ly/1UVpr2U
    » http://bit.ly/1UVpr2U
  • 21
    Conselho Nacional de Educação. Diretrizes curriculares nacionais do curso de graduação em medicina. [Internet]. 2014 [acesso 22 maio 2017]. p. 1-4. Disponível: http://bit.ly/1CCBjuE
    » http://bit.ly/1CCBjuE
  • 22
    Conselho Nacional de Educação. Diretrizes curriculares nacionais do curso de graduação em medicina. [Internet]. 2014 [acesso 22 maio 2017]. p. 1.

Editado por

A autora é editora científica do periódico.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Sep-Dec 2017

Histórico

  • Recebido
    26 Maio 2017
  • Revisado
    11 Set 2017
  • Aceito
    20 Set 2017
Conselho Federal de Medicina SGAS 915, lote 72, CEP 70390-150, Tel.: (55 61) 3445-5932, Fax: (55 61) 3346-7384 - Brasília - DF - Brazil
E-mail: bioetica@portalmedico.org.br