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Morrer e morte na perspectiva de residentes multiprofissionais em hospital universitário

Resumo

Este artigo tem como objetivo analisar e descrever o entendimento que residentes multiprofissionais de hospital universitário têm sobre a morte e o morrer. Trata-se de estudo de abordagem qualitativa, com emprego da técnica de análise de conteúdo de Bardin. A ferramenta utilizada para coleta de dados foi entrevista semiestruturada, analisada com auxílio do software QSR NVivo 11. Verificou-se que na perspectiva dos entrevistados é totalmente pertinente trabalhar o tema da morte e do morrer, temática indispensável à formação acadêmica para assistência integral. Conclui-se que os entrevistados sinalizaram a sensação de não se sentirem preparados para lidar com o processo de morrer e a morte.

Morte; Atitude frente à morte; Cuidados paliativos; Educação em saúde; Bioética

Abstract

This study aimed to analyze and describe the understanding of multi-professional residents of a teaching hospital regarding death and dying. A qualitative study was performed using Bardin subject analysis. A semi-structured interview was used for the collection of data, which was analyzed with QSR NVivo 11 software. It was noted that the interviewees believe that working with the theme of death and dying is entirely pertinent, and that it is an indispensable subject in academic training for integral care. It was found that the interviewees did not feel they were prepared to deal with the process of death and dying.

Death; Attitude to death; Palliative care; Health education; Bioethics

Resumen

Este artículo tiene como objetivo analizar y describir el entendimiento que los residentes multiprofesionales de un hospital universitario tienen sobre la muerte y el morir. Se trata de un estudio de enfoque cualitativo, con la utilización de la técnica de análisis de contenido de Bardin. La herramienta utilizada para la recolección de datos fue la entrevista semiestructurada, analizada con la ayuda del software QSR NVivo 11. Se verificó que en la perspectiva de los entrevistados es totalmente pertinente trabajar el tema de la muerte y del morir, temática indispensable en la formación académica para la asistencia integral. Se concluye que los entrevistados señalaron la sensación de no sentirse preparados para lidiar con el proceso de morir y la muerte.

Muerte; Actitud frente a la muerte; Cuidados paliativos; Educación en salud; Bioética

A discussão do significado da morte acompanha a história da humanidade. Seu caráter irreversível e a impossibilidade de ser formulada em termos simbólicos aterroriza o ser humano, pois não conseguimos descrevê-la ou nomeá-la 11. Kovács MJ. Educação para a morte: temas e reflexões. São Paulo: Casa do Psicólogo; 2004.

2. Kovács MJ. Educação para a morte. [Internet]. Psicol Ciênc Prof. 2005 [acesso 15 jul 2016];25(3):484-97. Disponível: http://bit.ly/2xezF9L
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-33. Kovács MJ. Educação para a morte: desafio na formação de profissionais de saúde e educação. 2ª ed. São Paulo: Casa do Psicólogo; 2012., embora seja a única grande certeza 44. President’s Commission for the Study of Ethical Problems in Medicine and Biomedical and Behavioral Research. Defining death: a report on the medical, legal and ethical issues in the determination of death. [Internet]. Washington: U.S. Government Printing Office; 1981 [acesso 10 jan 2017]. Disponível: http://bit.ly/2gVkf0d
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. Diversos entendimentos, ênfases e compreensões foram e são dadas a esse processo em diferentes sociedades e períodos, e a conduta do ser humano perante a morte foi mudada diversas vezes no decorrer dos tempos.

O que hoje é caracterizado como fim de vida solitário no hospital já foi enfrentado como “morte domada”, em que o moribundo ou doente terminal presidia sua cerimônia de morte. Na Idade Média, com essa perspectiva de morte familiar, a pessoa agia de maneira calma e resignada diante da morte, aceitando seu destino e o fim da vida. Esperava com serenidade e organizava sua partida, inclusive seu velório ou cortejo fúnebre. A morte era pública e a despedida em casa rodeada de parentes, amigos e vizinhos, com participação também das crianças 55. Ariès P. História da morte no Ocidente: da idade média aos nossos dias. Rio de Janeiro: Ediouro; 2003.,66. Ariès P. O homem diante da morte. São Paulo: Unesp; 2014..

Com as mudanças pelas quais a sociedade passou ao longo do tempo, as pessoas foram se tornando menos receptivas à morte, pois, por medidas sanitaristas, o morto e o doente em processo de terminalidade começaram a ser afastados dos demais, com o objetivo de evitar riscos e propagação de moléstias. Esse deslocamento da morte, que não se dá mais em casa, em meio à família, mas em leito hospitalar, pode ter acelerado sua interdição em termos discursivos e psicológicos 77. Azeredo NSG, Rocha CF, Carvalho PRA. O enfrentamento da morte e do morrer na formação de acadêmicos de medicina. [Internet]. Rev Bras Educ Méd. 2011 [acesso 22 ago 2016];35(1):37-43. Disponível: http://bit.ly/2vO96Vu
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. A compreensão de que o hospital seria o local mais adequado para se morrer, circundado de aparelhos invasivos e de tecnologia pesada, foi denominada por Menezes de “morte moderna” 88. Menezes RA. Tecnologia e “morte natural”: o morrer na contemporaneidade. [Internet]. Physis. 2003 [acesso 6 jul 2017];13(2):129-47. Disponível: http://bit.ly/2fcoJzC
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,99. Hermes HR, Lamarca ICA. Cuidados paliativos: uma abordagem a partir das categorias profissionais de saúde. [Internet]. Ciênc Saúde Coletiva. 2013 [acesso 6 jul 2017];18(9):2577-88. Disponível: http://bit.ly/2xUlRhP
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. Assim, morrer tornou-se ato solitário e temido 1010. Combinato DS, Queiroz MS. Morte: uma visão psicossocial. [Internet]. Estud Psicol. 2006 [acesso 14 out 2016];11(2):209-16. Disponível: http://bit.ly/2vYtur0
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.

Além dessas diferenças inerentes ao processo histórico, durante o desenvolvimento das ciências médicas novos critérios foram elaborados para definir a morte, o que intensificou ainda mais a diversidade de interpretações. Do ponto de vista técnico-científico, a morte, que era anteriormente classificada como sendo ausência de função cardiorrespiratória 1111. Dantas Filho VP, Sardinha LAC, Falcão ALE, Araújo S, Terzi RGG, Damasceno BP. Dos conceitos de morte aos critérios para o diagnóstico de morte encefálica. [Internet]. Arq Neuropsiquiatr. 1996 [acesso 10 jun 2016];54(4):705-10. Disponível: http://bit.ly/2vYfZra
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, passou a ser caracterizada também pelo critério encefálico. Ou seja, atesta-se morte quando ocorre o cessar irreversível das funções do cérebro, como resultado de agressão severa ou ferimento grave no órgão, bloqueando o fluxo sanguíneo e acarretando sua destruição 1212. Beecher HK. After the definition of irreversible coma. [Internet]. N Engl J Med. 1969 [acesso 12 jan 2017];281:1070-1. Disponível: http://bit.ly/2wTe0n2
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,1313. Beecher HK. A definition of irreversible coma. [Internet]. Int Anesthesiol Clin. 2007 [acesso 7 jun 2016];45(4):113-9. Disponível: http://bit.ly/2vOatU8
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.

Os avanços tecnológicos e a visão de corpo como máquina de produção remetem a morte como algo a ser temido, evitado e protelado 44. President’s Commission for the Study of Ethical Problems in Medicine and Biomedical and Behavioral Research. Defining death: a report on the medical, legal and ethical issues in the determination of death. [Internet]. Washington: U.S. Government Printing Office; 1981 [acesso 10 jan 2017]. Disponível: http://bit.ly/2gVkf0d
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5. Ariès P. História da morte no Ocidente: da idade média aos nossos dias. Rio de Janeiro: Ediouro; 2003.
-66. Ariès P. O homem diante da morte. São Paulo: Unesp; 2014.,1313. Beecher HK. A definition of irreversible coma. [Internet]. Int Anesthesiol Clin. 2007 [acesso 7 jun 2016];45(4):113-9. Disponível: http://bit.ly/2vOatU8
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. Tais avanços permitiram o prolongamento da vida por novos métodos artificiais, mas não necessariamente fizeram o suficiente para que o ser humano vivesse com melhor qualidade 44. President’s Commission for the Study of Ethical Problems in Medicine and Biomedical and Behavioral Research. Defining death: a report on the medical, legal and ethical issues in the determination of death. [Internet]. Washington: U.S. Government Printing Office; 1981 [acesso 10 jan 2017]. Disponível: http://bit.ly/2gVkf0d
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5. Ariès P. História da morte no Ocidente: da idade média aos nossos dias. Rio de Janeiro: Ediouro; 2003.
-66. Ariès P. O homem diante da morte. São Paulo: Unesp; 2014.,1414. Maranhão JLS. O que é morte. 2ª ed. São Paulo: Brasiliense; 1986.. Dessa forma, impõe-se a pacientes terapias que prolongam sua existência sem se preocupar com as consequências no viver, sem levar em conta efeitos adversos 1515. Bobbio M. O doente imaginado. São Paulo: Bamboo; 2014. p. 246.. O objetivo passou a ser salvar vidas “a qualquer custo”, priorizando-se os anos de vida, ou seja, a quantidade, independentemente da qualidade do viver 1616. Covolan NT, Corrêa CL, Hoffmann-Horochovski MT, Murata MPF. Quando o vazio se instala no ser: reflexões sobre o adoecer, o morrer e a morte. Rev. bioét. (Impr.). 2010;18(3):561-71.,1717. Agamben G. Homo sacer, o poder soberano e a vida nua. Belo Horizonte: UFMG; 2007.. Isso culminou em distanciamento da morte, que passou a simbolizar fracasso terapêutico 1313. Beecher HK. A definition of irreversible coma. [Internet]. Int Anesthesiol Clin. 2007 [acesso 7 jun 2016];45(4):113-9. Disponível: http://bit.ly/2vOatU8
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,1414. Maranhão JLS. O que é morte. 2ª ed. São Paulo: Brasiliense; 1986., gerando falta de empatia da equipe assistencial, afastamento do entendimento do sofrimento do paciente e a própria interdição do tema.

A discussão do morrer e da morte pode ser realizada em todos os contextos, seja familiar, profissional ou educacional 44. President’s Commission for the Study of Ethical Problems in Medicine and Biomedical and Behavioral Research. Defining death: a report on the medical, legal and ethical issues in the determination of death. [Internet]. Washington: U.S. Government Printing Office; 1981 [acesso 10 jan 2017]. Disponível: http://bit.ly/2gVkf0d
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5. Ariès P. História da morte no Ocidente: da idade média aos nossos dias. Rio de Janeiro: Ediouro; 2003.
-66. Ariès P. O homem diante da morte. São Paulo: Unesp; 2014.. Sendo assim, a perspectiva da morte está presente em qualquer etapa da vida humana, desde o nascimento até a velhice extrema. O profissional da saúde, desde as etapas de sua formação acadêmica e profissional, assim como todo ser vivo, tem a morte presente em seu cotidiano. Residentes multiprofissionais estão expostos a situações envolvendo o morrer e a morte. Entretanto, existem poucos espaços de discussão e reflexão sobre o tema.

Justifica-se, desta maneira, a necessidade de se trabalhar a questão adequadamente durante a formação do profissional de saúde, bem como de fornecer a ele suporte permanente. Evidencia-se igualmente a premência da abertura de espaços dialógicos para a discussão do tema da morte e do morrer, com intuito de melhorar seu entendimento e reconhecimento de que a morte é parte da vida, aperfeiçoando assim a assistência integral ao paciente. O objetivo deste artigo é descrever a percepção de residentes em formação do Programa de Residência Integrada Multiprofissional em Saúde (Rims) sobre o processo de morrer e a morte.

Método

Realizou-se estudo de caráter qualitativo, descritivo, utilizando a análise de conteúdo de Bardin 1818. Bardin L. Análise de conteúdo. Lisboa: Edições 70; 2008. para a construção de categorias temáticas. As três etapas da análise de conteúdo foram observadas: pré-análise, que consistiu na escolha dos documentos a serem analisados, sistematização de hipóteses e ideias iniciais e criação de categorias de análise; exploração, na qual ocorreu a classificação e categorização do material; e, por fim, tratamento e interpretação dos resultados obtidos.

A amostra foi composta por dez residentes em formação da Rims do Hospital de Clínicas de Porto Alegre (HCPA), das seguintes áreas de concentração: Adulto Crítico (n=1), Atenção Cardiovascular (n=1), Onco-Hematologia (n=3) e Saúde da Criança (n=5). O critério de inclusão abrangeu estudantes que iniciaram sua participação na Rims entre 2013 e 2015, atuantes no Programa de Residência durante as entrevistas. A amostra foi selecionada por conveniência.

Dados foram coletados por meio de entrevistas semiestruturadas (Anexo), conduzidas no período de janeiro a agosto de 2016 e realizadas por pesquisador com experiência em pesquisa qualitativa. Os participantes foram convidados a participar do estudo via e-mail institucional e pessoalmente durante o período de formação. Foram enviados 60 convites e os primeiros 15 respondentes foram selecionados para participar do estudo. Após dez entrevistas, chegou-se a saturação de sentidos. As entrevistas foram realizadas no Centro de Pesquisa Clínica do HCPA, gravadas e transcritas em sua totalidade com a autorização dos participantes. Todos os sujeitos participaram do processo de consentimento informado e, após a comunicação de possíveis riscos e benefícios, decidiram participar do estudo.

Para manter a privacidade e confidencialidade dos participantes, decidiu-se não informar a área de formação de cada sujeito, considerando o número reduzido de residentes, facilmente identificáveis, no local de estudo. Na apresentação das falas, optou-se por utilizar a letra “E” seguida do número correspondente à entrevista – por exemplo, à primeira entrevista foi designado o código E1. Os dados obtidos na transcrição das entrevistas foram analisados com o auxílio do software QSR NVivo 11, versão Windows 1919. Lage MC. Utilização do software NVivo em pesquisa qualitativa: uma experiência em EaD. [Internet]. Educ Tem Dig. 2011 [acesso 20 jul 2017];12(N. Esp.):198-226. Disponível: http://bit.ly/2vOgfFg
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, empregando a técnica de análise de conteúdo de Bardin. O programa utilizado permitiu cruzar informações, codificar dados e gerenciar informações, e ajudou na montagem das categorias temáticas. Além disso, também viabilizou análise estatística básica e agrupamento das falas em clusters, árvores e frequências de palavras.

Resultados e discussão

A amostra foi composta por dez residentes da Rims do HCPA, sendo 80% (n=8) do sexo feminino e 20% (n=2) do sexo masculino. A idade média foi de 28 anos, variando de 25 a 41 anos. Participaram profissionais da saúde das áreas de educação física, enfermagem, farmácia, fisioterapia, nutrição e serviço social. Com a finalidade de preservar a confidencialidade e a privacidade dos participantes, suas falas não foram identificadas por profissão ou área de atuação.

Da análise das transcrições das entrevistas obtidas emergiram quatro categorias temáticas: 1) pertinência do tema trabalhado e preparo dos profissionais para lidar com a morte; 2) entendimento do residente multiprofissional sobre a morte e seus critérios de definição; 3) sentimentos relacionados à perda – subdividido em sentimentos relacionados à perda familiar e à perda de pacientes; e 4) simbolismo da morte para o residente multiprofissional.

Pertinência do tema e preparo dos profissionais para lidar com a morte

Na perspectiva dos residentes entrevistados, o tema do morrer e da morte deveria fazer parte do preparo para a assistência integral, tornando sua discussão pertinente. Na formação prática, muitos residentes são jovens estudantes sem experiência prévia na assistência hospitalar, e são poucas ou raras as vezes em que lidaram com perdas no ambiente de trabalho. Diante disso, é natural que se sintam despreparados para lidar com o assunto. Assim, é essencial que recebam formação adequada sobre como lidar com a morte, bem como apoio de outros profissionais por meio de rodas de conversas, trocas de experiências, entre outras atividades de suporte. A necessidade de estar preparado para lidar com a morte é evidenciada diversas vezes nas falas dos entrevistados:

“Eu não acho que esteja preparada para lidar com a morte. Principalmente porque ali na internação não ocorrem tantos óbitos como na UTI, por exemplo” (E1);

“Não, nem um pouco [preparado para lidar com a morte]. Nós somos preparados para lidar com a vida e com as doenças no ser humano doente, mas não com essa questão da morte, do fim” (E4);

“Não, não tive qualquer preparo para lidar com esse assunto antes de ingressar no hospital. No período da residência, tive a possibilidade de assistir palestras e participar de eventos sobre o assunto, mas sinto que o preparo ainda é inadequado, seja na graduação ou na Rims. Existem lacunas sobre o assunto que precisam ser trabalhadas e preenchidas” (E10).

Os profissionais da saúde entrevistados relataram não se sentir aptos para lidar com a morte dos pacientes, demonstrando falta de preparo adequado com relação ao tema estudado. Esse despreparo é identificado também, pelos participantes, na graduação, que não aborda o assunto. A formação profissional enfatiza a vida e pouco discute sobre a morte. Muitos profissionais assumem antagonismo entre vida e morte e não as identificam como processo integral, o que pode levar a sensação de fracasso diante do óbito do paciente.

Palavras como “não”, no sentido de inexistência do preparo; “trabalhado”, no sentido de abordado durante a formação; “morte”; “lidar”, no sentido de manejo pessoal e emocional; e “formação”, no sentido educacional e profissional, foram as mais frequentes nas falas dos residentes. Breve análise permite observar que todas as palavras convergem para o sentimento de despreparo, depreendendo-se que a morte precisa ser tratada na formação do profissional de saúde com abordagem mais ampla.

Figura 1
Nuvem de palavras sobre pertinência do tema e preparo profissional

Trabalhar o tema “morte” é fundamental em todos os contextos. O fenômeno da morte é inerente aos seres vivos, e, mais cedo ou mais tarde, a perda se abate sobre todos. Para o profissional da saúde, além do meio familiar, é necessário refletir sobre essa questão no ambiente de ensino ou no local de trabalho 44. President’s Commission for the Study of Ethical Problems in Medicine and Biomedical and Behavioral Research. Defining death: a report on the medical, legal and ethical issues in the determination of death. [Internet]. Washington: U.S. Government Printing Office; 1981 [acesso 10 jan 2017]. Disponível: http://bit.ly/2gVkf0d
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5. Ariès P. História da morte no Ocidente: da idade média aos nossos dias. Rio de Janeiro: Ediouro; 2003.
-66. Ariès P. O homem diante da morte. São Paulo: Unesp; 2014.. Esses profissionais, e aqui especificamente os residentes multiprofissionais, têm a morte em seu cotidiano de trabalho, o que torna muito mais pertinente abordar o tema durante todo o processo de formação.

De acordo com os residentes entrevistados, discutir a morte é muito importante, principalmente na área da saúde e ao longo da formação. Entendê-la ou enfrentá-la ajuda a lidar com os sentimentos e com as famílias de maneira menos sofrida 2020. Silva Júnior FJG, Santos LCS, Moura PVS, Melo BMS, Monteiro CFS. Processo de morte e morrer: evidências da literatura científica de enfermagem. [Internet]. Rev Bras Enferm. 2011 [acesso 27 nov 2016];64(6):1122-6. Disponível: http://bit.ly/2gVqzFh
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. O contexto hospitalar convencional, de maneira geral, não incentiva a discussão ampla sobre como lidar com o sofrimento físico e psíquico de pacientes gravemente enfermos e seus cuidadores 11. Kovács MJ. Educação para a morte: temas e reflexões. São Paulo: Casa do Psicólogo; 2004.

2. Kovács MJ. Educação para a morte. [Internet]. Psicol Ciênc Prof. 2005 [acesso 15 jul 2016];25(3):484-97. Disponível: http://bit.ly/2xezF9L
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-33. Kovács MJ. Educação para a morte: desafio na formação de profissionais de saúde e educação. 2ª ed. São Paulo: Casa do Psicólogo; 2012.:

“Nós temos que estar preparados para lidar com o fim, com o paciente paliativo, com o paciente que está muito grave, que a equipe deixa pontuado que não tem como voltar (…), acho que nós temos que nos acostumar, mas ao mesmo tempo não dá para perder a sensibilidade como ser humano. Acho que isso faz parte, tem que ser tocado de alguma maneira, é importante também ter essa separação do que a gente sente, de a gente ficar sensibilizado.” (E8);

“Quando o esposo [de paciente que morreu] veio ao hospital, queria agradecer, mas estava perdido. Isso foi uma situação que poderia me desestabilizar. Quem se insere num ambiente hospitalar deve abordar o tema de uma forma madura. Eu não sabia o que falar. Assim como não tive treinamento de como ter conduta em situações difíceis. Essa questão da empatia é muito pessoal, saber dizer as coisas certas na hora certa é um exercício muito de ‘ser’ humano, você tem que ser muito grande para falar algo reconfortante numa hora dessas. O profissional que se permite chorar por um paciente é extremamente raro, até porque nosso preceptor não faz isso e ele é nosso modelo” (E9).

Assim, a análise das falas permitiu concluir que devemos investir em formação mais humana dos profissionais da área da saúde, ensinando-os a compreender a dor do outro e a saber se portar em momentos de perda e tristeza. Para tal, devemos estar cientes de que as interações ocorrem de forma múltipla e atuam de formas diferenciadas nos processos de equilíbrio de pessoas distintas 2020. Silva Júnior FJG, Santos LCS, Moura PVS, Melo BMS, Monteiro CFS. Processo de morte e morrer: evidências da literatura científica de enfermagem. [Internet]. Rev Bras Enferm. 2011 [acesso 27 nov 2016];64(6):1122-6. Disponível: http://bit.ly/2gVqzFh
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. Além disso, é indispensável observar que a relação profissional-paciente não se dá em sistema fechado – é preciso levar em consideração os interesses e desejos dos envolvidos, pacientes e familiares 2121. Piaget J. Epistemologia genética. São Paulo: Martins Fontes; 2002.

22. Goldim JR. Bioética: origens e complexidade. Rev HCPA. 2006;26(2):86-92.

23. Goldim JR. Bioética complexa: uma abordagem abrangente para o processo de tomada de decisão. Rev Amrigs. 2009;53(1):58-63.
-2424. Kübler-Ross E. Sobre a morte e o morrer. 9ª ed. São Paulo: Martins Fontes; 2008.. Essa percepção evidencia a importância de acolher a pessoa com carinho, dando-lhe apoio emocional e respeito.

Entendimento do residente multiprofissional sobre a morte e seus critérios de definição

Pode-se dizer que o entendimento sobre os critérios de morte tende a variar em conformidade com nossas crenças e visão de mundo. De acordo com os dados obtidos nas entrevistas, entende-se por morte a decomposição do corpo, o fim do corpo físico, o fim da vida, ou seja, percebe-se a valorização do aspecto físico na definição de morte no discurso dos participantes da pesquisa. Dessa maneira, para os entrevistados, a morte é estado físico, quando o corpo já não suporta mais a vida, não podendo manter sua funcionalidade biológica. É possível dizer que essa visão está fortemente embasada na ótica biomédica, na qual enxergamos o corpo como máquina. A morte evoca sentimentos de frustração e impotência, associados a pesar, luto, dor, desespero, contrariando o conceito tecnicista e biomédico de vida e desenvolvimento 1212. Beecher HK. After the definition of irreversible coma. [Internet]. N Engl J Med. 1969 [acesso 12 jan 2017];281:1070-1. Disponível: http://bit.ly/2wTe0n2
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,1414. Maranhão JLS. O que é morte. 2ª ed. São Paulo: Brasiliense; 1986.,1616. Covolan NT, Corrêa CL, Hoffmann-Horochovski MT, Murata MPF. Quando o vazio se instala no ser: reflexões sobre o adoecer, o morrer e a morte. Rev. bioét. (Impr.). 2010;18(3):561-71..

O morrer é um processo irreversível; uma vez instalado no organismo, não há como impedi-lo, embora seja possível retardá-lo com terapêuticas, em muitos casos aplicadas de forma artificial e fútil. Representa também o fim de um ciclo, a vida que cessa. É deixar de viver fisicamente, o que é visto como fenômeno natural. Entretanto, a compreensão sobre a morte pode variar conforme a orientação religiosa da pessoa. Para os que acreditam na perspectiva do espiritismo, conforme relatado nas entrevistas, a morte refere-se ao encerramento do corpo como terminalidade física, no qual o espírito deixa o estado físico, mas sua alma ou essência não deixa de existir. Essas considerações são ilustradas nas falas a seguir:

“Depende muito das suas crenças, enfim… Para mim morte se refere mais ao corpo físico, porque eu acredito em espírito, em alma, sou espírita. (…) O corpo físico morre e ali a vida termina, mas referente ao corpo físico. Isso não significa que a essência ou a alma do indivíduo se perdeu. É apenas a morte do corpo físico” (E1);

“Morte é o fim da vida. Não sou religiosa, para mim não tem muito mais do que isso. Então, acho que é quando teu corpo entra num estado que não suporta mais a vida, a partir dali tu já estás em um estado de morte” (E5).

Ao analisarmos as falas a seguir, observamos que os residentes entrevistados enxergam diferentes critérios para definir o desfecho morte, como morte encefálica e a ocasionada por parada cardiorrespiratória (PCR):

“Eu acho que na morte cerebral, tu, tendo alguma manutenção, tu vais ter teu corpo funcionando dependendo de tecnologias, mas tu não tens mais a tua consciência, tu não vais reverter teu caso, isto é constatado por diversos exames, a morte encefálica… E na cardiotorácica, para o pulmão e o coração, progressivamente, o cérebro também vai perdendo funções… As duas são mortes, sim, no meu entendimento, as duas são mortes” (E3);

“Morte é quando a pessoa realmente cessa todos os sinais vitais, né? O coração para de bater e a pessoa não tem mais nenhuma reação” (E6);

“Compreendo morte como o fim da vida, como o encerramento de um ciclo, algo irreversível. Morte por critério encefálico é um diagnóstico sem reversão. Acho equivocado reanimar ” (E9).

Os residentes percebem relação entre morte encefálica e terapêuticas fúteis. Dessa maneira, consideram indesejável a manutenção artificial da vida, exceto em caso de doação de órgãos. Em relação à morte por PCR, existe percepção diferente, na qual o corpo padece lentamente, uma vez que o cérebro, entendido como principal órgão do sistema nervoso, ainda está preservado. Embora possa haver aparente dicotomia entre morte por PCR e morte encefálica, ambas são critérios para caracterização do óbito.

Figura 2
Nuvem de palavras sobre entendimento sobre a morte e critérios de definição

Sentimentos relacionados à perda

Nesta categoria, a palavra “não” toma maior proporção em relação à frequência de palavras, deixando claro o forte sentimento de negação associado à morte.

Figura 3
Nuvem de palavras sobre sentimentos relacionados a perda

Emerge nesta categoria grande sentimento de culpa e vergonha, que podemos relacionar aos avanços tecnológicos, visto que a perda de paciente representa fracasso terapêutico, gerando nos profissionais que lidam com a perda sentimento de impotência e culpa. A modernidade trouxe consigo o conceito de homem autônomo e individual, em que o corpo passa a ser sinônimo de produção, e doença torna-se fraqueza e motivo de vergonha 1313. Beecher HK. A definition of irreversible coma. [Internet]. Int Anesthesiol Clin. 2007 [acesso 7 jun 2016];45(4):113-9. Disponível: http://bit.ly/2vOatU8
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.

Outros sentimentos relacionados a perda são bastante frequentes, como tristeza e sofrimento. Segundo os profissionais entrevistados, a perda gera emoções ambivalentes que se manifestam de modo diverso em cada indivíduo, pois ora sentimos saudades da pessoa amada perdida, ora a odiamos por ter-nos deixado. Esse sentimento de ambivalência também foi verificado em estudos correlatos 2525. Bowlby J. Formação e rompimento dos laços afetivos. 4ª ed. São Paulo: Martins Fontes; 2006.

26. Borges MS, Mendes N. Representações de profissionais de saúde sobre a morte e o processo de morrer. [Internet]. Rev Bras Enferm. 2012 [acesso 17 jul 2017];65(2):324-31. Disponível: http://bit.ly/2gUP0Gl
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-2727. Pereira CP, Lopes SRA. O processo do morrer inserido no cotidiano de profissionais da saúde em unidades de terapia intensiva. [Internet]. Rev SBPH. 2014 [acesso 6 jul 2017];17(2):49-61. Disponível: http://bit.ly/2xoCllQ
http://bit.ly/2xoCllQ...
. Na visão dos entrevistados, podemos e devemos sentir e chorar a perda de pacientes, desde que de forma comedida, sem permitir que atrapalhe a rotina assistencial e a relação entre o profissional e outros pacientes.

Vivenciada por todos os seres humanos em algum momento de sua vida, a perda é fenômeno universal. Independentemente do tipo de situação a que a perda está circunscrita, todas têm em comum a dificuldade dos indivíduos envolvidos em suportar a falta daquele que se foi 2525. Bowlby J. Formação e rompimento dos laços afetivos. 4ª ed. São Paulo: Martins Fontes; 2006.. Após perda inesperada, parece sempre haver fase de protesto, em que o indivíduo que perdeu o ente querido se esforça para recuperar a pessoa perdida. Esperança, desespero e raiva se alternam. O enlutado passa pela desestabilização da fase do desespero e se reorganiza com base na ausência permanente da pessoa 2525. Bowlby J. Formação e rompimento dos laços afetivos. 4ª ed. São Paulo: Martins Fontes; 2006.. Raiva e isolamento social são sentimentos necessários para que o processo de luto seja saudável. As falas referentes a esses aspectos estão transcritas a seguir:

“Eu fiquei bem triste, porque era um paciente em quem estávamos investindo muito, apesar de não ter perspectiva de vida (…). Mas mesmo assim ele estava sendo investido bastante, em todos os tipos de tratamento, especialidades estavam envolvidas, então foi uma pena, porque a mãe tinha bastante esperança sobre a vida do filho e ela estava a todo tempo ali e dedicada” (E1);

“Tristeza, saudade que dá depois que a pessoa falece. Tristeza pela família, ao se colocar no lugar da família. Eu acho que sim, eu sou uma pessoa, eu tenho sentimentos, e no momento em que eu não sentir mais nada, eu vou precisar rever se eu quero mesmo continuar trabalhando nessa área” (E4);

“Sentimento é só tristeza, né? Saudades...” (E6).

De acordo com esses relatos e outros transcritos anteriormente, pode-se perceber que os residentes se incomodam com investimento fútil em pacientes sem perspectivas de cura ou reversão do quadro. Porém, ainda que fique evidenciado o desconforto que isso gera, muitas vezes executam essas terapêuticas na tentativa de preservar os familiares do paciente desse sofrimento.

Segundo Bowlby 2525. Bowlby J. Formação e rompimento dos laços afetivos. 4ª ed. São Paulo: Martins Fontes; 2006., o luto é composto por três fases: protesto, desespero e desligamento. Pessoas de todas as idades que experimentam a perda de ente querido sentem pesar e passam pelo período de luto. A reorganização do indivíduo em sofrimento varia de acordo com o modo como enfrenta esses estágios. Negação é a primeira reação do ser humano perante a má notícia e serve como mecanismo de defesa temporário 2424. Kübler-Ross E. Sobre a morte e o morrer. 9ª ed. São Paulo: Martins Fontes; 2008.. Interditamos o tema morte e não tocamos no assunto pela falsa ilusão de que, ao negarmos, estaríamos protegendo as pessoas do contato com a dor e o sofrimento 44. President’s Commission for the Study of Ethical Problems in Medicine and Biomedical and Behavioral Research. Defining death: a report on the medical, legal and ethical issues in the determination of death. [Internet]. Washington: U.S. Government Printing Office; 1981 [acesso 10 jan 2017]. Disponível: http://bit.ly/2gVkf0d
http://bit.ly/2gVkf0d...

5. Ariès P. História da morte no Ocidente: da idade média aos nossos dias. Rio de Janeiro: Ediouro; 2003.
-66. Ariès P. O homem diante da morte. São Paulo: Unesp; 2014.. Entretanto, negar a ação da morte torna mais difícil a elaboração do luto 2525. Bowlby J. Formação e rompimento dos laços afetivos. 4ª ed. São Paulo: Martins Fontes; 2006..

•Sentimentos relacionados à perda de pessoas próximas

Perder pessoas é sempre doloroso, ainda mais quando são nossos familiares ou pessoas muito próximas. Quando perguntados sobre os sentimentos envolvidos em perdas familiares, os participantes demonstraram maior pesar em relação às perdas de pacientes, o que era normalmente esperado. Temos vínculo afetivo mais forte com nossos familiares. Destacou-se nesta categoria o fato de os residentes relatarem maior preparo para lidar com a morte de familiares pelo fato de conversarem sobre o diagnóstico e falarem abertamente com o doente sobre as possibilidades de viver ou morrer.

Mesmo que seja inerente ao ser humano, a morte costuma produzir sentimentos de angústia e sofrimento, que dificultam seu enfrentamento e aumentam seu dualismo 1616. Covolan NT, Corrêa CL, Hoffmann-Horochovski MT, Murata MPF. Quando o vazio se instala no ser: reflexões sobre o adoecer, o morrer e a morte. Rev. bioét. (Impr.). 2010;18(3):561-71.. Isso porque reagimos à notícia ora com alívio por saber que o sofrimento do enfermo acabou, ora com extrema tristeza e pesar, às vezes mesmo com raiva pela perda. A seguir são apresentadas algumas falas associadas a esses sentimentos:

“A primeira perda próxima que eu tive, (…) eu lidei muito mal [com ela], [foi] meu avô, que foi meu paciente. Eu sofri horrores, fiquei um tempão mal e não queria mais ir à casa dos meus avós, onde ele morava. E aí minha família trabalhou isso comigo” (E5);

“Perdi meu padrasto e meus dois avós maternos, tive meu cunhado também, que faleceu de forma muito inesperada. Doenças crônicas, assim, a gente até entende mais facilmente passar pela morte; agora, eu tive um cunhado de 18 anos que faleceu caindo de uma sacada, então foi bem traumático” (E6);

“A perda do meu pai foi algo inesperado, ele não estava no hospital, morreu em casa, dormindo. A morte dele foi muito impactante, pois horas antes eu havia conversado com ele, mas apesar de toda a dor da perda, o sofrimento da família, sempre consideramos o fato de ele não ter sofrido com doenças terminais como câncer, ou ter feito procedimentos invasivos que causassem dor. Acreditamos que foi uma morte tranquila” (E10).

•Sentimentos relacionados à perda de pacientes

Quando perguntados sobre sentimentos relacionados à perda de pacientes, as respostas divergiram. De certo modo, alguns residentes pensam ser um erro envolver-se e sofrer a perda de paciente, pois enxergam essa atitude como falta de preparo e profissionalismo. Isso se dá em razão de construções culturais, históricas e hierárquicas dentro de hospitais com estruturas biomédicas 2626. Borges MS, Mendes N. Representações de profissionais de saúde sobre a morte e o processo de morrer. [Internet]. Rev Bras Enferm. 2012 [acesso 17 jul 2017];65(2):324-31. Disponível: http://bit.ly/2gUP0Gl
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,2828. Botsaris A. Sem anestesia: o desabafo de um médico: os bastidores de uma medicina cada vez mais distante e cruel. Rio de Janeiro: Objetiva; 2001.,2929. Pitta A. Hospital como campo de prática. In: Pitta A. Hospital: dor e morte como ofício. São Paulo: Hucitec; 1999. p. 39-59.. A morte completa o ciclo da vida 3030. Epicuro. Carta sobre a felicidade (a Meneceu). São Paulo: Unesp; 2002.. Todavia, os profissionais se encontram emocionalmente despreparados para enfrentar os sentimentos que ela desperta, apresentando assim dificuldades no momento de oferecer suporte e assistência ao paciente terminal 3131. Menin GE, Pettenon MK. Terminalidade da vida infantil: percepções e sentimentos de enfermeiros. [Internet]. Rev. bioét. (Impr.). 2015 [acesso 10 jun 2016];23(3):608-14. Disponível: http://bit.ly/2wRxxoE
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. A seguir são apresentadas sentenças que expõem o pensamento dos residentes quanto à criação e manutenção de vínculos com pacientes gravemente doentes:

“É, eu não vou sentir [a morte de paciente] como [se fosse] um familiar meu, mas com certeza eu vou sentir… Acho que não tem como comparar” (E1);

“É muito difícil tu perder uma criança, um ser tão jovem perder a vida. Abala muito, tu te apegas… Por mais que tu tentes não levar o trabalho para casa, do hospital para a vida pessoal, justamente para se proteger” (E3);

“Teve um paciente a quem eu me apeguei um pouco mais. Eu sabia que ele já estava em cuidados paliativos e que uma hora ia acontecer [a morte] (…). Eu que me apeguei e acho que não deveria ter me apegado. Nós não podemos nos apegar, senão se transforma numa coisa negativa para a gente. Porque paciente crítico morre muito” (E5).

Embora não seja consenso, o sentimento de comoção afeta amplamente os participantes. Os profissionais aprendem a vincular-se aos pacientes e a suas famílias para juntos enfrentarem as enfermidades que os acometem. Residentes fortemente ligados a pacientes que vieram a óbito sofrem sua perda, o que é previsto em situação na qual o vínculo é rompido, abruptamente ou não. Entretanto, nem esses nem quaisquer outros médicos podem sofrer perda como essa sem ter amparo de outros profissionais. É necessário que a dor seja compartilhada e que o residente multiprofissional receba suporte adequado.

Outra particularidade de destaque nesta categoria foi a não aceitação da perda de paciente pediátrico. Acolhemos com maior facilidade a perda de adulto ou idoso pelo fato de existir certa naturalidade na morte na velhice 1616. Covolan NT, Corrêa CL, Hoffmann-Horochovski MT, Murata MPF. Quando o vazio se instala no ser: reflexões sobre o adoecer, o morrer e a morte. Rev. bioét. (Impr.). 2010;18(3):561-71. – são mortes esperadas e conseguimos assim elaborar o luto antecipadamente. Quando se perde uma criança, há ruptura precoce do vínculo, e há a concepção de que crianças “ainda têm a vida inteira pela frente”.

O simbolismo da morte para o residente multiprofissional

A morte representa tristeza, perda, o fim. É algo em que geralmente não se pensa, justamente pela associação a esses sentimentos negativos. É a ausência do corpo físico que deixa vazio cheio de saudades. Sentir a perda é natural, desde que de forma comedida. A morte pode ser considerada alívio, passagem, ciclo que se encerra, sendo ou não continuado em outro plano espiritual. A morte é fenômeno complexo com inúmeras influências externas e internas que dificultam sua compreensão e sua integração à vida cotidiana.

A visão da morte está carregada de simbolismo, construído socialmente de modo gradual, impregnando-se de valores e significados que dependem do contexto histórico, cultural, econômico, político e ambiental no qual o sujeito está inserido, exercendo fortes influências em diferentes gerações. Portanto, tais concepções sobre a morte são de extrema relevância para auxiliar no entendimento sobre as representações sociais dos residentes que atuam na assistência em saúde. Suas atitudes diante do morrer e da morte estarão de acordo com sua compreensão. A seguir são apresentadas algumas das falas referentes ao simbolismo da morte:

“O fim de um ciclo. O fim do sofrimento. O fim da vida” (E2);

“Perda. Depende do ponto de vista – é perda para alguns, mas pode ser alívio para outros” (E7);

“Representa tristeza, sofrimento, mudanças, encerramento e descanso” (E10).

Considerações finais

Pode-se dizer que os resultados obtidos com o relato dos participantes deste estudo são corroborados pelos achados na literatura, ou seja, a percepção de falta de preparo adequado para lidar com a morte. Essa lacuna na capacitação do profissional é atribuída a diversos motivos, com destaque para as questões culturais. Os entrevistados percebem a morte como processo de separação, passagem e finitude, indicando o fim da vida, o encerramento de um ciclo, e caracterizando fenômeno irreversível.

Os resultados apontam também que a percepção da morte depende das crenças de cada indivíduo. Nessa perspectiva, pessoas mais religiosas entendem a morte como apenas o fim do corpo físico, sendo alma e espírito preservados em outro plano. Indivíduos menos religiosos entendem a morte como o fim de processo natural, o ato de deixar de existir fisicamente, o fim do ciclo que se inicia ao nascermos, o cessar da vida, o corpo que perde energia. Um dos entrevistados cita o medo da morte que se manifesta em determinadas pessoas, que deriva de sua consciência do modo como utilizou as oportunidades que teve durante a vida, se conduziu sua vida de forma que valesse a pena.

A morte é fator estressor, e enfrentar a perda sozinho, sem estar adequadamente preparado, pode gerar intenso sofrimento mesmo em profissionais mais experientes. Existem lacunas significativas no ensino da área da saúde, seja em graduação ou pós-graduação, sobre as questões envolvendo a morte e o morrer. Embora os profissionais de saúde tenham formação continuada, não encontram espaços dialógicos que permitam compartilhar suas perdas, aflições e sofrimentos. Da mesma maneira, também não são amparados, de forma estruturada, em suas questões emocionais e sociais perante a morte.

Com base nas informações obtidas, sugerimos que seja dada maior atenção às questões envolvidas com a morte e o morrer durante a formação dos profissionais da saúde, em graduação e residência multiprofissional, com espaços de interlocução que permitam a troca de experiências e vivências, facilitando a superação de situações difíceis e angustiantes.

Anexo

Roteiro de entrevista semiestruturada

Dados do participante:

Código do Participante: _________ Data: ____/___/____

Sexo: ( ) feminino ( ) masculino Idade: _____ anos

Prática religiosa: Não ( ) Sim ( ) Qual? _______________ Formação: _________________ Área de atuação na Rims: _________________

Ano da residência: R1 ( ) R2 ( )

Experiência prévia à Rims em atividades assistenciais na saúde: ___ anos

1.O que você entende por “morte”?

2.Você entende que a morte atestada por critério encefálico é igual à morte constatada por critério cardiotorácico?

3.O que a morte representa para você?

4.Você acha que foi adequadamente preparado para lidar com assuntos que abordem a temática da morte e do morrer?

5.Você acha pertinente trabalhar este tema ao longo da formação acadêmica?

6.Nas atividades de graduação, você teve alguma disciplina ou atividade que abordasse a temática da morte e do morrer?

7.Você já teve experiência pessoal de morte de familiar ou amigo? (Especifique)

8.Em caso afirmativo, qual foi o seu sentimento em relação a essa perda?

9.Você já teve experiência pessoal de morte de paciente que acompanhava como atividade vinculada à Rims? (Especifique)

10.Em caso afirmativo, qual foi o seu sentimento em relação a essa perda de um paciente?

11.Você teria algum comentário ou sugestão adicional a fazer sobre o tema da morte e do morrer?

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Sep-Dec 2017

Histórico

  • Recebido
    15 Fev 2017
  • Revisado
    6 Jul 2017
  • Aceito
    16 Ago 2017
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