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Edmund Pellegrino: moralidade médica e a teoria do consenso moral

Resumo

Os autores apresentam e comentam as ideias de Edmund Pellegrino, bioeticista nascido em New Jersey, Estados Unidos, acerca da existência de moralidade interna à medicina, relacionada ao fim inerente à arte médica, ou seja, a cura do paciente, assim como a moralidade externa à medicina, que diz respeito a todos os outros aspectos da atividade médica cujo propósito final não seja a cura do paciente. Apresentam também os comentários de outros eticistas, contra ou a favor dos argumentos apresentados por Pellegrino, e comparam aspectos da referida moralidade externa à teoria do consenso moral desenvolvida anteriormente pelos autores.

Ética médica; Consenso; Princípios morais; Medicina; Bioética; Eticistas

Abstract

The authors present and comment on the ideas of Edmund Pellegrino, a bioethics specialist born in New Jersey, USA, regarding the existence of a morality intrinsic to medicine, related to the inherent goal of the medical art, that is, the cure of the patient, as well as the existence of a morality external to medicine, which concerns all other aspects of medical activity whose ultimate purpose is not the cure of the patient. The authors also present the comments of other ethicists, for or against the arguments presented by Pellegrino, and compare aspects of this external morality to the moral consensus theory previously developed by the authors.

Ethics medical; Consensus; Morals; Medicine; Bioethics; Ethicists

Resumen

Los autores presentan y comentan las ideas de Edmund Pellegrino, bioeticista nacido en New Jersey, Estados Unidos, acerca de la existencia de una moralidad interna de la medicina, relacionada con el fin inherente al arte médico, es decir, la cura del paciente, así como sobre la existencia de una moralidad externa a la medicina, que se relaciona con todos los demás aspectos de la actividad médica, cuyo propósito final no sea la cura del paciente. Presentan también los comentarios de otros eticistas, en contra o a favor de los argumentos presentados por Pellegrino, y comparan aspectos de la mencionada moralidad externa con la teoría del consenso moral desarrollada anteriormente por los autores.

Ética médica; Consenso; Principios morales; Medicina; Bioética; Eticistas

Edmund Pellegrino, bioeticista cujos escritos foram muito influenciados pelos filósofos gregos Aristóteles e Platão, sempre foi um pensador da ética e, notadamente, da ética inerente à prática médica. Em verdade, sua grande busca – no decorrer de uma carreira dedicada a esmiuçar os diversos níveis de moralidade presentes nas relações entre médicos e pacientes –, foi lançar alicerces para a existência da hipotética filosofia da medicina. Além disso, Pellegrino sempre foi interessado na resolução de conflitos morais. Em suas palavras: O discurso ético foi alterado por Kant, Mill, Hume e Bentham, que modificaram o foco primário de como uma pessoa boa deve agir para um foco em como resolver conflitos morais expressos em escolhas morais difíceis11. Pellegrino ED, Thomasma DC. The Christian virtues in medical practice. Washington: Georgetown University Press; 1996. p. 8-9..

Moralidades

No terreno da moralidade propriamente dita, Pellegrino lançou mão em alguns de seus estudos 22. Pellegrino ED. The healing relationship: the architectonics of clinical medicine. In: Shelp EE, ditor. The clinical encounter: the moral fabric of the patient-physician relationship. Dordrecht: Springer; 1983. p. 153-72.,33. Pellegrino ED. The philosophy of medicine reborn: a Pellegrino reader. Notre Dame: University of Notre Dame Press; 2008. p. 63 de uma construção teleológica (no sentido aristotélico-tomista) para estabelecer que a medicina possui duas formas de moralidade. A primeira delas é a que denominou “moralidade interna”, aquela que deriva dos próprios fins que o médico deve perseguir em relação ao paciente. Fundindo o conceito aristotélico de “bom” (ou seja, aquilo que qualquer forma de arte ou atividade prática deve perseguir) com o conceito platônico de que a saúde é inegavelmente um bem a ser perseguido pela prática médica, o autor propôs que a natureza da atividade médica, suas virtudes e benefícios são definidos como fins da medicina em si mesmo44. Pellegrino ED. Op. cit. 2008. p. 66..

Pellegrino sustenta que a finalidade da medicina – curar – determina as virtudes e as obrigações do profissional de saúde (ou seja, o fim mesmo da medicina é que determina internamente toda a ética que norteia a prática médica). Afirma que converter ou assimilar a medicina para outros fins – por exemplo, econômico – é transformá-la e pervertê-la. Qualquer outra finalidade além da cura é externa à medicina 44. Pellegrino ED. Op. cit. 2008. p. 66.. Do ponto de vista ortodoxo, poder-se-ia dizer que esse é o conceito hipocrático clássico das obrigações a que o médico está sujeito no exercício de sua arte.

O conceito de que a moralidade interna à medicina seja aceitável apenas pelo fato de assim rezar a tradição ou os costumes durante séculos ou de ser sancionada pelas associações médicas é renegado por Pellegrino 55. Pellegrino ED. The metamorphosis of medical ethics: a 30-year retrospective. Jama. 1993;269(9):1158-62.. Ele insiste que qualquer moralidade interna à prática médica deve ser fiel à finalidade verdadeira da arte – curar – e sugere a reconstrução da moralidade médica como a interação de três facetas do relacionamento médico-paciente – o fato da doença; a ação do profissional; e a ação boa ou má para um paciente11. Pellegrino ED, Thomasma DC. The Christian virtues in medical practice. Washington: Georgetown University Press; 1996. p. 8-9..

Conforme afirma Tom Beauchamp 66. Beauchamp TL. Internal and external standards for medical morality. J Med Philos. 2001;26(6):601-19., para Pellegrino o médico pode igualmente ter objetivos e propósitos na prática médica que não estejam formalmente atrelados ao “propósito final” da profissão. No entanto, considera esses objetivos como externos, sendo que ordens de não ressuscitar, abortamento, avaliações psiquiátricas com fins forenses, autopsias, circuncisão e racionalização do uso de sistemas de suporte à vida em unidade de terapia intensiva poderiam ser exemplos de seu pensamento. Ou seja, como os exemplos dados – e demais situações análogas – nem sempre estão atrelados à cura, objetivo final da medicina, seriam então fins “externos” à prática médica.

No entanto, Pellegrino 55. Pellegrino ED. The metamorphosis of medical ethics: a 30-year retrospective. Jama. 1993;269(9):1158-62. vez por outra parece acreditar, talvez forçado pelas circunstâncias que condicionam a evolução dos conceitos éticos, que pelo menos um paradigma externo à medicina – a beneficência – também faça parte de todos os paradigmas internos à profissão. Para o autor, os médicos modernos têm certa dificuldade em relação ao princípio de respeito à autonomia do paciente, pois “erroneamente interpretam como sendo em oposição à beneficência” 77. Pellegrino ED. Op. cit. 1993. p. 1160..

Beneficência: paradigma externo ou interno à medicina?

Para Beauchamp, a beneficência é paradigma externo à medicina 88. Beauchamp TL. Op. cit. p. 603., enquanto na visão de Pellegrino ela é paradigma interno [destaque nosso] à prática médica, exclusivamente orientada para a cura do paciente. Obviamente, trata-se de simplificação do conceito de beneficência, limitando o que se possa considerar realmente benéfico para o paciente – que, na concepção de Pellegrino, não incluiria, para citar apenas dois exemplos levantados por Beauchamp 66. Beauchamp TL. Internal and external standards for medical morality. J Med Philos. 2001;26(6):601-19., ações médicas como controle da reprodução ou eutanásia.

Essa simplificação é a parte mais importante do conceito ético de Pellegrino. Porém, como se vê, é também seu “calcanhar de aquiles”. Tomando a beneficência como princípio moral central à prática médica e assumindo que os médicos tenham a obrigação de prover as diversas formas de benefício a seus pacientes, não existe outra razão moral para que sejam impedidos de realizar ações cujo único fim seja beneficiar o paciente. Dessa forma, tanto pacientes como a sociedade podem encarar controle da reprodução, suicídio assistido, abortamento, esterilização e outras áreas da prática médica como benefícios importantes aos pacientes que os médicos têm o dever de proporcionar.

Note-se que nenhuma das práticas citadas pode se encaixar no conceito pellegriniano de cura do paciente. Além disso, existem fatores culturais e religiosos envolvidos nessas questões – o que alguns podem encarar como “cura” pode ser para outros terminantemente proibido ou inaceitável por motivos religiosos ou morais. Todavia, voltamos a frisar, a questão central nessa contradição reside no fato de Pellegrino encarar a cura como essência da arte médica. Como afirma Beauchamp, não acredito ser possível precisar nesse modelo, ou em qualquer modelo, onde a medicina termina e onde as atividades não médicas começam88. Beauchamp TL. Op. cit. p. 603..

Esse conceito de “cura” baseado na visão da doença, muito em voga entre leigos e mesmo em escolas médicas, não fornece limites precisos para o que seja a medicina. Desde os tempos de Hipócrates, que enunciou “curar às vezes, consolar sempre”, o conceito é vago, o que subjuga essa visão limitadora de beneficência apenas como cura – principalmente em sociedade plural como a que vivemos nesta era de globalização cultural.

É uma visão limitadora também porque não leva em conta muitas atividades da prática médica que podem trazer benefícios aos pacientes, enquanto indivíduos, e à sociedade como um todo. Como exemplos, pode-se citar a suspensão de tratamentos fúteis e danosos, execução de decisões prévias à internação (como o direito de não ser reanimado), alívio da dor e do sofrimento em situações de cuidados paliativos etc. 99. Pellegrino ED, Thomasma DC. For the patient’s good: the restoration of beneficence in health care. New York: Oxford University Press; 1988. p. 7-8..

Medicina como atividade neutra

Brody e Miller 1010. Brody H, Miller FG. The internal morality of medicine: explication and application to managed care. J Med Philos. 1998;23(4):384-410. também criticam a postura de Pellegrino e postulam que a medicina não é atividade neutra, mas, sim, comprometida moralmente com regras próprias, as quais derivam dos objetivos específicos da arte, de deveres e das virtudes próprias dos profissionais que a praticam. Em outras palavras, derivam da moralidade interna da medicina, à qual os médicos devem aderir, como afirma Beauchamp 1111. Beauchamp TL. Op. cit. p. 605..

Assim, a integridade, por exemplo, é virtude característica da profissão, enfatizada pelo convívio social, que, no dizer de Brody e Miller 1010. Brody H, Miller FG. The internal morality of medicine: explication and application to managed care. J Med Philos. 1998;23(4):384-410., baliza a expressão individual do médico. Em nosso meio, ainda no século XX, Flamínio Fávero explicitava essa questão com sábia propriedade:

O médico, no seio da coletividade, deve ser orientado pelos princípios da ética geral e particular, como homem, (…) mas, pelo fato de sua investidura profissional é forçado a subordinar-se igualmente a um conjunto de preceitos moldados pela feição especial do próprio exercício de sua atividade e instituídos tácita ou expressamente, à sombra do senso comum ou, melhor, do bom senso, da razão e da ordem. Estes preceitos dizem com as relações do médico consigo mesmo, com os clientes, com os colegas e com a sociedade1212. Fávero F. Medicina legal. 9ª ed. São Paulo: Livraria Martins; 1973. p. 5..

Entretanto, apesar de reconhecer a incorporação dessas virtudes à prática médica, Beauchamp contrapõe que uma moralidade interna à medicina notoriamente pode não ser ampla, coerente ou mesmo moralmente aceitável. Tradição e paradigmas profissionais não são garantia de adequação moral mínima1111. Beauchamp TL. Op. cit. p. 605., afirma. Por isso mesmo, Brody e Miller 1010. Brody H, Miller FG. The internal morality of medicine: explication and application to managed care. J Med Philos. 1998;23(4):384-410. distinguem as normas morais apropriadas à medicina daquelas recomendações dogmáticas e não sistemáticas encontradas em muitos códigos profissionais de ética médica.

Esses autores 1010. Brody H, Miller FG. The internal morality of medicine: explication and application to managed care. J Med Philos. 1998;23(4):384-410. argumentam que, em linhas gerais, a prática médica apresenta contornos nem sempre bem definidos e que pode ser socialmente controversa em muitas oportunidades. Isso implica que a moralidade interna da medicina não é ampla o bastante para abrigar a evolução social: mesmo o cerne da moralidade médica deve ser cuidadosamente reavaliado e reconstruído de tempos em tempos, e essa reconstrução deve ser feita por personagens que vivem na sociedade moderna, que são inevitavelmente influenciados pelos valores sociais vigentes e pelo modo como a história é interpretada1313. Brody H, Miller FG. Op. cit. p. 397..

Além disso, essa própria moralidade interna muitas vezes é questionada em sua origem. Robert Veatch 1414. Veatch RM. Hippocratic, religious, and secular medical ethics: the points of conflict. Washington: Georgetown University Press; 2012. p. 4. afirma a necessidade de revisar velhos conceitos hipocráticos e códigos escritos por organizações médicas profissionais para se verificar a autoridade dos profissionais em estabelecer normas morais legítimas para seu grupo. A isso adicionamos nossa interpretação 1515. Miziara ID, Miziara CS. Moral consensus theory: paradigm cases of abortion and orthothanasia in Brazil. Indian J Med Ethics. 2013;10(1):58-61. de que a moralidade interna da medicina é mesmo reavaliada e modificada de tempos em tempos. No entanto, a forma como essa reavaliação e reestruturação são feitas depende de “consenso moral” estabelecido pelos vários componentes da sociedade em que os médicos vivem e da correlação de forças políticas entre eles. Tanto a tese de Brody e Miller 1010. Brody H, Miller FG. The internal morality of medicine: explication and application to managed care. J Med Philos. 1998;23(4):384-410. como nossa teoria 1515. Miziara ID, Miziara CS. Moral consensus theory: paradigm cases of abortion and orthothanasia in Brazil. Indian J Med Ethics. 2013;10(1):58-61. do “consenso moral” (termo que já poderia ter sido visto na obra de Jonsen, Siegler e Winslade 1616. Jonsen A, Siegler M, Winslade W. Clinical ethics: a practical approach to ethical decisions in clinical medicine. 7ª ed. New York: McGraw Hill; 2010.) levam à legitimação da influência de paradigmas externos sobre a moralidade médica.

Brody e Miller 1010. Brody H, Miller FG. The internal morality of medicine: explication and application to managed care. J Med Philos. 1998;23(4):384-410. defendem que a moralidade interna da medicina deve ser reavaliada ou reconstruída de acordo com as demandas da sociedade moderna. Os autores especulam que mesmo a prática do suicídio assistido pelo médico pode ser compatível com a moralidade interna da medicina, ainda que a tradição médica condene essa atividade de forma enfática. Afirmam eles: médicos de hoje (legitimamente) concluem que muita coisa mudou desde o tempo de Hipócrates (…) e na reconstrução da moralidade interna da medicina, em certas circunstâncias definidas, pode ser permitida1313. Brody H, Miller FG. Op. cit. p. 397..

Beneficência de acordo com a perspectiva analisada

Essa é questão que, em última análise, coloca novamente em xeque a certeza do princípio da beneficência como pedra de toque da moralidade interna da prática médica, ou, simplificando, daquilo que se acredita ser benéfico ao paciente. Como diz Robert Veatch 1717. Veatch RM. The basics of bioethics. 3ª ed. New York: Routledge; 2012. p. 47., o entendimento do benefício pode mudar conforme a perspectiva analisada. O benefício objetivo, para o autor, é aquele verdadeiro, independentemente de quem realiza o ato, enquanto o subjetivo seria variável e baseado no entendimento de quem pratica a ação. Portanto, há divergência de opiniões acerca do juízo de valor entre o que venha a ser ato bom ou causador de dano. Na visão de Veatch 1717. Veatch RM. The basics of bioethics. 3ª ed. New York: Routledge; 2012. p. 47., a subjetividade deve ser levada em consideração e ato bom pode ser definido como aquilo desejado por quem realiza o ato ou preferido por quem realiza esse ato1818. Veatch RM. Op. cit. p. 48..

Do ponto de vista utilitarista é necessário entender o que é bom resultado. Devemos fazê-lo tentando eliminar, ou ao menos neutralizar, vieses e perspectivas especiais ao decidirmos o que um bom resultado poderia ser1919. Jonsen A, Siegler M, Winslade W. Op. cit. p. 17.. Uma possibilidade, para Veatch 1717. Veatch RM. The basics of bioethics. 3ª ed. New York: Routledge; 2012. p. 47., seria o consenso estabelecido por várias pessoas e não a opinião de um único médico sobre o que seria bom resultado. Assim, a consideração médica deve estar integrada à participação do paciente e/ou de outras partes envolvidas no processo 1414. Veatch RM. Hippocratic, religious, and secular medical ethics: the points of conflict. Washington: Georgetown University Press; 2012. p. 4..

De modo geral, tanto as teses de Brody e Miller 1010. Brody H, Miller FG. The internal morality of medicine: explication and application to managed care. J Med Philos. 1998;23(4):384-410. como os conceitos de Veatch 1414. Veatch RM. Hippocratic, religious, and secular medical ethics: the points of conflict. Washington: Georgetown University Press; 2012. p. 4.,1717. Veatch RM. The basics of bioethics. 3ª ed. New York: Routledge; 2012. p. 47. e suas linhas argumentativas mais excluem do que criam suporte à existência da moralidade interna da medicina. Efetivamente, esses autores admitem que paradigmas internos da moralidade médica podem ser voláteis e subjetivos, enquanto alguns paradigmas externos podem ser, como afirma Beauchamp, profundos e essenciais2020. Beauchamp TL. Op. cit. p. 606.. É de se notar que, como querem Brody e Miller 1010. Brody H, Miller FG. The internal morality of medicine: explication and application to managed care. J Med Philos. 1998;23(4):384-410., a reconstrução da moralidade médica para acomodar o suicídio assistido não deverá contar com o apoio dos paradigmas internos da moralidade médica.

Embora seja situação bastante complexa, a assistência do médico ao suicídio de paciente em fase terminal não deveria ser ajuizada como imoral, mas entendida como algo que vai de encontro ao que se espera do cuidado médico. Essa decisão deve, portanto, ser considerada alternativa flexível aos cuidados recomendados e amplamente discutida em todos os seus aspectos 2121. Wanzer SH, Federman DD, Adelstein SJ, Cassel CK, Cassem EH, Cranford RE et al. The physician’s responsibility toward hopelessly ill patients: a second look. N Engl J Med. 1989;320(13):844-9..

Teoria do consenso moral

A visão de Wanzer e colaboradores 2121. Wanzer SH, Federman DD, Adelstein SJ, Cassel CK, Cassem EH, Cranford RE et al. The physician’s responsibility toward hopelessly ill patients: a second look. N Engl J Med. 1989;320(13):844-9. se aproxima bastante de nossa teoria do consenso moral, desenvolvida inicialmente para pensar questões relativas à legalização do abortamento e da eutanásia em nosso meio. Assim como afirmamos em relação ao consenso moral, as maiores mudanças nos aspectos morais da prática médica (no Brasil e no mundo) ocorridas no último quarto do século XX resultaram de pressões realizadas pela sociedade ou por grupos sociais majoritários presentes no debate ético 1515. Miziara ID, Miziara CS. Moral consensus theory: paradigm cases of abortion and orthothanasia in Brazil. Indian J Med Ethics. 2013;10(1):58-61.. Para Wanzer e colaboradores, alterações no comportamento social em relação ao direito de morrer do paciente muitas vezes se antecipam às atitudes dos legisladores e dos tribunais, assim como dos prestadores de saúde 2121. Wanzer SH, Federman DD, Adelstein SJ, Cassel CK, Cassem EH, Cranford RE et al. The physician’s responsibility toward hopelessly ill patients: a second look. N Engl J Med. 1989;320(13):844-9..

Necessidades específicas da comunidade, e, portanto, extrínsecas à moralidade médica tradicional, motivaram mudanças nas normas de conduta dirigidas aos médicos (como o respeito à autonomia e à dignidade das pessoas, a não utilização de meios fúteis de prolongamento da vida, a obtenção de consentimento dos participantes de pesquisas etc.). Em outras palavras, consenso moral desenvolvido no seio de determinado grupo social, motivado por necessidades específicas daquela comunidade, é capaz de alterar de forma dinâmica a moralidade interna da prática médica naquela sociedade.

Para Charlotte Paul 2222. Paul C. Internal and external morality of medicine: lessons from New Zealand. BMJ. 2000;320:499., a moralidade interna tem por base o comportamento esperado do profissional médico durante suas atividades diárias. Essa adequação de comportamento profissional é aprendida e compartilhada com outros profissionais, nem sempre de forma escrita. Por outro lado, a moral externa seria o reflexo do ethos da sociedade em geral 2323. Engelhardt HT, Wildes KW. The four principles of health care ethics and post-modernity: why a libertarian interpretation is unavoidable. In: Gillon R, editor. Principles of health care ethics. London: Wiley; 1994. p. 135-48..

Para Beauchamp, a moralidade externa tem papel primordial nessa dinâmica: a conclusão desse fato não é que um conjunto de normas da moralidade interna desenvolvida por e para os médicos seja inconsequente, mas apenas que esta moralidade não é autojustificada por suas normas internas2323. Engelhardt HT, Wildes KW. The four principles of health care ethics and post-modernity: why a libertarian interpretation is unavoidable. In: Gillon R, editor. Principles of health care ethics. London: Wiley; 1994. p. 135-48.. O autor complementa indagando: quais paradigmas externos, se é que existem, explicam e justificam modificações na moralidade médica?2323. Engelhardt HT, Wildes KW. The four principles of health care ethics and post-modernity: why a libertarian interpretation is unavoidable. In: Gillon R, editor. Principles of health care ethics. London: Wiley; 1994. p. 135-48.. Segundo essa perspectiva, e reforçando a tese de Paul 2222. Paul C. Internal and external morality of medicine: lessons from New Zealand. BMJ. 2000;320:499., a influência da sociedade quanto ao aspecto de opinião pública, de leis, de instituições religiosas e da própria ética filosófica é incontestável fonte de moralidade externa 66. Beauchamp TL. Internal and external standards for medical morality. J Med Philos. 2001;26(6):601-19.. Ou mesmo, acrescentamos, refletem questões ainda não contempladas por análise moral consensual, como os já referidos casos de abortamento e eutanásia 1515. Miziara ID, Miziara CS. Moral consensus theory: paradigm cases of abortion and orthothanasia in Brazil. Indian J Med Ethics. 2013;10(1):58-61..

Nesse aspecto, Beauchamp 66. Beauchamp TL. Internal and external standards for medical morality. J Med Philos. 2001;26(6):601-19. reforça a ideia de que existe uma terceira forma de abordagem que incorpora elementos tanto do que ele denomina “internalismo” quanto do “externalismo”. Dessa forma, existe flexibilidade entre compromissos morais tradicionais e modernos, adaptados de acordo com as diversas culturas, pessoas e grupos. Considera que um pluralismo moral secular intratável permeia o mundo moderno, fazendo com que compromissos morais sejam implementados de diferentes formas em diversas culturas e grupos (e até em decisões individuais).

Assim, cada comunidade ou grupo fornece à medicina padrões externos que podem influenciar sua finalidade universal e como servirá a pacientes e público. Esses padrões externos são incorporados à moralidade interna da medicina em determinada cultura, afirma Beauchamp 2424. Beauchamp TL. Op. cit. p. 609.. Em outras palavras, pode-se deduzir que os padrões morais de determinada cultura são incorporados gradativamente à moralidade interna da medicina, modificando-a com a evolução do pensamento inerente àquele corpus social.

Esse conceito, também muito semelhante ao nosso de consenso moral 1515. Miziara ID, Miziara CS. Moral consensus theory: paradigm cases of abortion and orthothanasia in Brazil. Indian J Med Ethics. 2013;10(1):58-61., foi mais bem desenvolvido por Engelhardt e Wildes 2323. Engelhardt HT, Wildes KW. The four principles of health care ethics and post-modernity: why a libertarian interpretation is unavoidable. In: Gillon R, editor. Principles of health care ethics. London: Wiley; 1994. p. 135-48.. Na visão de Beauchamp 66. Beauchamp TL. Internal and external standards for medical morality. J Med Philos. 2001;26(6):601-19., entretanto, as ideias desses autores (assim como as nossas) falham ao não reconhecer que mesmo em culturas diferentes (como o judaísmo ortodoxo, o catolicismo romano ou o hinduísmo) os fins de beneficência da arte médica permanecem os mesmos. Outros críticos acusaram os mesmos autores de terem elaborado uma teoria política, e não filosófica/moral. Essa acusação, que também sofremos, a nosso ver é feita de forma errônea. Isso porque o fato de incorporar elementos culturais às influências sofridas pela moralidade externa da medicina é conclusão óbvia do processo de assimilação e não diminui em nada sua concepção inicial de como se dá essa “internalização” de padrões externos da moralidade médica.

Reconhecemos, enfim, que a primeira crítica formulada por Beauchamp (isto é, de que mesmo em diferentes culturas e grupos sociais os fins da medicina permanecem bastante similares) traz questionamento importante acerca da verdadeira força da “moralidade externa” sobre a “moralidade interna” da medicina, e demonstra apenas certa contradição latente nas ideias de Engelhardt e Wildes 2323. Engelhardt HT, Wildes KW. The four principles of health care ethics and post-modernity: why a libertarian interpretation is unavoidable. In: Gillon R, editor. Principles of health care ethics. London: Wiley; 1994. p. 135-48. e em nossa teoria do consenso moral 1515. Miziara ID, Miziara CS. Moral consensus theory: paradigm cases of abortion and orthothanasia in Brazil. Indian J Med Ethics. 2013;10(1):58-61.. Afinal, se diferentes grupos socioculturais, de um modo ou outro, mantêm visão similar dos fins da medicina, seria possível deduzir que talvez essas influências externas não sejam assim tão importantes, porém meramente pontuais e específicas em determinados casos e situações.

Por outro lado, consideramos que de modo algum essa crítica invalida as ideias de Engelhardt e Wildes 2323. Engelhardt HT, Wildes KW. The four principles of health care ethics and post-modernity: why a libertarian interpretation is unavoidable. In: Gillon R, editor. Principles of health care ethics. London: Wiley; 1994. p. 135-48. ou as nossas 1515. Miziara ID, Miziara CS. Moral consensus theory: paradigm cases of abortion and orthothanasia in Brazil. Indian J Med Ethics. 2013;10(1):58-61.. Ao contrário, apenas as reforça, uma vez que não estamos tratando específica e isoladamente da moralidade interna à medicina, e sim de como fatores que forjam a moralidade externa à prática médica acabam sendo incorporados à sua moralidade interna, assumindo assim o caráter de beneficência ao paciente, ou, em outras palavras, de ato bom – tendo em vista o resultado favorável esperado e obtido pelo paciente.

Explicando melhor: supondo-se que o abortamento ou a eutanásia sejam incorporados, em determinado grupo social, à moralidade externa da medicina, e, por conseguinte, à moralidade interna da prática médica nesse mesmo grupo social, de imediato essas ações passarão a ser vistas como atos bons executados em benefício dos pacientes.

Este é ponto nevrálgico que surge no seio das questões morais de nosso tempo. A implementação de práticas médicas abolidas durante muito tempo em grupos sociais depende de alterações na moralidade externa à medicina. E as alterações nessa moralidade externa, e mesmo no conceito que se possa fazer de “beneficência”, ou do que seja agir em benefício de paciente, ou do que seja ato bom, depende de correlação de forças morais que se embatem no interior de uma sociedade culturalmente heterogênea, em que a visão predominante é influente.

Considerações finais

Desse modo, talvez sejamos, ao fim e ao cabo, obrigados a concordar com a visão aristotélica de Pellegrino de que a medicina, por ser arte eminentemente prática, carregue seus fins em si mesma, exigindo de seu praticante tão somente a virtude kantiana essencial de agir sempre colocando o paciente como fim e jamais como meio. Isso implica praticar a medicina visando tão somente o benefício daquele que sofre, e, nunca é demais repetir, com seu consentimento prévio 2525. Miziara ID. Ética para clínicos e cirurgiões: consentimento. Rev Assoc Med Bras. 2013;59(4):312-5.. Visto por esse ângulo, concluímos que a ótica pellegriniana, apesar de diversas críticas, como aquelas que citamos anteriormente, mostrou-se sempre mais dinâmica do que sugeria de início, e mais complexo do que muitos poderiam supor. Ademais, parece claro que há pontos coincidentes entre a visão de Engelhardt e Wildes, a nossa teoria do consenso moral e aquilo que Pellegrino define como moralidade externa à medicina.

Referências

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Apr-Jun 2018

Histórico

  • Recebido
    5 Fev 2017
  • Revisado
    4 Out 2017
  • Aceito
    18 Out 2017
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