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Reflexões sobre cuidados a pacientes críticos em final de vida

Resumo

A influência do pragmatismo tecnológico nos cuidados de saúde oferecidos a pacientes criticamente enfermos, sobretudo àqueles na terminalidade da vida, faz a maioria deles terminar seus dias em unidade de terapia intensiva. Este artigo defende atendimento mais humanizado para essas pessoas e propõe reflexão bioética sobre a temática. O texto é dividido em três partes. Inicialmente apresenta-se a realidade das unidades de terapia intensiva no Brasil, baseando-se na Resolução 2.156/2016 do Conselho Federal de Medicina, que disciplina o uso e os procedimentos médicos nestes setores. Em seguida, contextualiza-se a discussão sobre algumas questões relativas ao final da vida, a partir de pesquisa internacional realizada em quatro países: Estados Unidos, Japão, Itália e Brasil. A última parte é dedicada à análise da eutanásia e do suicídio assistido, considerando argumentos técnicos e morais apresentados pelo médico e bioeticista norte-americano Ezekiel Emanuel.

Bioética; Unidades de terapia intensiva; Cuidados paliativos; Eutanásia; Suicídio assistido

Abstract

The influence of technological pragmatism in health care offered to critically ill patients, especially to those who are in the end of life, makes most of them end their days in an intensive care unit. This article defends more humanized care for these people and proposes bioethical reflection on the subject. The text is divided into three parts. Initially, the study presents the reality of intensive care units in Brazil, based on Resolução 2.156/2016 [Resolution 2,156/2016] of the Brazilian Federal Council of Medicine, which disciplines medical use and procedures in these sectors. Subsequently, the discussion on some end-of-life issues is contextualized considering international research carried out in four countries, namely: the United States, Japan, Italy and Brazil. The last part is dedicated to the analysis of euthanasia and assisted suicide, considering technical and moral arguments presented by the American physician and bioethicist Ezekiel Emanuel.

Bioethics; Intensive care units; Palliative care; Euthanasia; Suicide, assisted

Resumen

La influencia del pragmatismo tecnológico en los cuidados de salud que se ofrecen a los pacientes críticamente enfermos, especialmente a aquellos que se encuentran en la terminalidad de la vida, hace que la mayoría de ellos terminen sus días en una unidad de cuidados intensivos. Este artículo defiende una atención más humanizada para estas personas y propone la reflexión bioética sobre el tema. El texto se divide en tres partes. Inicialmente, se presenta la realidad de las unidades de cuidados intensivos en Brasil, de acuerdo con la Resolución 2.156/2016 del Consejo Federal de Medicina, que regula el uso y los procedimientos médicos en estos sectores. Seguidamente, se contextualiza la discusión sobre algunas cuestiones relativas al final de la vida, a partir de la investigación internacional llevada a cabo en cuatro países: Estados Unidos, Japón, Italia y Brasil. La última parte está dedicada al análisis de la eutanasia y el suicidio asistido, considerando los argumentos técnicos y morales presentados por el médico y bioeticista norteamericano Ezekiel Emanuel.

Bioética; Unidades de cuidados intensivos; Cuidados paliativos; Eutanasia; Suicidio asistido

Questões éticas e técnicas de cuidados críticos oferecidos a pacientes terminais geram acalorados debates acadêmicos e jurídicos no campo da bioética desde seu surgimento nos Estados Unidos (EUA), no início dos anos 1970. Esse campo do conhecimento é valioso instrumento para propor mudanças na cultura ocidental, que persiste em considerar a morte como tabu, negando a realidade da finitude da vida.

Percebe-se a importância dessa discussão nos exemplos de profissionais médicos que abraçam com elegância sua finitude11. D’Avila RL. Cartas do fim da vida: ensaio sobre o envelhecer e o morrer. Palhoça: Editora Unisul; 2015. p. 26. , assim como em muitos eventos científicos e cursos da área da saúde que visam dar formação mais humanista aos profissionais sem subestimar a necessária qualificação técnica. Além disso, a literatura relativa a essas questões tem proliferado de maneira significativa 22. Cook D, Rocker G. Dying with dignity in the intensive care unit. N Engl J Med [Internet]. 2014 [acesso 4 jun 2017];370(26):2506-14. DOI: 10.1056/NEJMra1208795
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3. Kelley AS, Morrison RS. Palliative care for the seriously ill. N Engl J Med [Internet]. 2015 [acesso 8 maio 2017];373(8):747-55. DOI: 10.1056/NEJMra1404684
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-44. Requena P. Why should the World Medical Association not change its policy towards euthanasia? World Med J [Internet]. 2016 [acesso 7 jun 2017];62(3):99-103. p. 103. Disponível: https://bit.ly/2P2OgtX
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.

A Associação Médica Mundial (AMM) 44. Requena P. Why should the World Medical Association not change its policy towards euthanasia? World Med J [Internet]. 2016 [acesso 7 jun 2017];62(3):99-103. p. 103. Disponível: https://bit.ly/2P2OgtX
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5. Keown J. Voluntary euthanasia and physician-assisted suicide: should the WMA drop its opposition? World Med J [Internet]. 2016 [acesso 3 jun 2017];62(3):103-7. Disponível: https://bit.ly/2P2OgtX
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-66. World Medical Association. Major end of life conferences organised by World Medical Association [Internet]. Ferney-Voltaire: WMA; 2017 [acesso 13 jun 2017]. Disponível: https://bit.ly/2rmpPxf
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promoveu em 2017 diversas conferências pelo mundo, com o objetivo de organizar e revisar sua política em relação a eutanásia e suicídio assistido. Ao longo dos últimos anos, a AMM tem lançado vários documentos que alertam os médicos sobre procedimentos desproporcionais na terminalidade da vida.

Considerando essa realidade, este ensaio foi organizado em três partes. Inicialmente apresenta avaliação crítica sobre a realidade das unidades de terapia intensiva (UTI) brasileiras, com base na Resolução do Conselho Federal de Medicina (CFM) 2.156/2016 77. Conselho Federal de Medicina. Resolução CFM nº 2.156, de 28 de outubro de 2016. Estabelece os critérios de admissão e alta em unidade de terapia intensiva [Internet]. Diário Oficial da União. Brasília, p. 138-9, 17 nov 2016 [acesso 11 fev 2018]. Seção 1. Disponível: https://bit.ly/2Glbufg
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, que estabeleceu critérios de admissão e alta de pacientes em estado crítico em UTI.

Na mesma linha de raciocínio, resgata-se a metáfora que classifica as UTI brasileiras como catedrais modernas da dor88. Pessini L, Siqueira JE. Reflexões bioéticas sobre a vida e a morte na UTI. In: Siqueira JE, Zoboli E, Sanches M, Pessini L, organizadores. Bioética clínica [Internet]. Brasília: CFM; 2016. p. 229-52. p. 240. , e apresentam-se os resultados de pesquisa realizada pela Kaiser Family Foundation 99. The Henry J Kaiser Family Foundation. Views and experiences with end-of-life medical care in Japan, Italy, the United States, and Brazil: a cross-country survey. Menlo Park: KFF; abr 2017. e publicada na The Economist , sobre como as pessoas desejam ser tratadas no fim da vida. O estudo levou em conta quatro países, Japão, EUA, Itália e Brasil, e abordou as expectativas e necessidades dos pacientes nessa fase crítica da existência.

Por fim, traz-se à luz instigante provocação do oncologista norte-americano Ezekiel Emanuel 1010. Hope. Euthanasia and assisted suicide: a “sideshow” in end-of-life care. Hope: preventing euthanasia and assisted suicide [Internet]. News and Alerts; maio 2017 [acesso 14 jun 2017]; Disponível: https://bit.ly/2RkyfSs
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a propósito da abordagem insatisfatória da eutanásia e do suicídio assistido. A maneira como a mídia internacional rotineiramente trata desses temas subestima a necessária abrangência biopsicossocial e espiritual que se impõe aos cuidados a esse tipo de enfermo.

Critérios de admissão e alta nas UTI brasileiras

Uma das mais prestigiosas publicações médicas, a New England Journal of Medicine , no apagar das luzes de 2016 publicou corajoso depoimento de Flávia Machado, médica intensivista brasileira, no qual denuncia o caos imperante na área da saúde e, ao mesmo tempo, expressa seu compromisso e otimismo em relação às soluções para esses problemas 1111. Machado FR. All in a day’s work: equity vs. equality at a public ICU in Brazil. N Engl J Med [Internet]. 2016 [acesso 25 jun 2017];375(22):2420-1. p. 2420. DOI: 10.1056/NEJMp1610059
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. Descreve ainda seu dramático dia a dia no atendimento a pacientes em situações críticas em um hospital público da cidade de São Paulo.

A médica é responsável pelo setor de terapia intensiva da disciplina de anestesiologia da Escola Paulista de Medicina da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), além de coordenar o Instituto Latino-Americano de Sepse (Ilas).

A matéria publicada online teve grande repercussão e chamou a atenção de profissionais de saúde de todo o mundo. No Brasil, a repercussão foi tímida, registrada em dois artigos de Cláudia Collucci publicados na Folha de S.Paulo em 30 de março e 7 de maio de 2017 1212. Collucci C. No país da disparidade, a difícil tarefa de decidir quem deve ir para UTI. Folha de S. Paulo [Internet]. Colunistas; 30 mar 2017 [acesso 8 jun 2017]; Disponível: https://bit.ly/2DXPrtS
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,1313. Folha Press. No fim da vida, brasileiro prefere prolongar dias a sentir menos dor. Correio do Estado [Internet]. Ciência e Saúde; 7 maio 2017 [acesso 8 maio 2017]; Disponível: https://bit.ly/2AofQN9
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. Logo no início do texto, Flávia relata flagrante de seu cotidiano:

Começamos outro dia de trabalho às 7h da manhã, e mais uma vez precisamos decidir quem vai receber uma cama na UTI (…) Uma avó de 55 anos com câncer de cólon? Um homem idoso com metástases hepáticas? Uma mulher jovem que sofre de dor e que precisa de uma artrodese (cirurgia na coluna) para continuar trabalhando para que possa alimentar sua família? Devemos escolher ou negar assistência aos pacientes com câncer? Devemos escolher com base na idade? Sobre a qualidade de vida anterior dos pacientes? Ou sobre o impacto social, por exemplo, se um paciente tem quatro filhos para criar? Devemos dar a cama a um paciente que já tivemos que recusar uma vez? Ou talvez devêssemos simplesmente parar de brincar de Deus e entregá-la a quem primeiro pedir? 1414. Machado FR. Op. cit. p. 1. .

Este panorama dramático do trabalho da médica intensivista revela o sofrimento não somente daqueles que necessitam de cuidados, mas também dos próprios profissionais de saúde. Nesse contexto, a Resolução CFM 2.156/2016 77. Conselho Federal de Medicina. Resolução CFM nº 2.156, de 28 de outubro de 2016. Estabelece os critérios de admissão e alta em unidade de terapia intensiva [Internet]. Diário Oficial da União. Brasília, p. 138-9, 17 nov 2016 [acesso 11 fev 2018]. Seção 1. Disponível: https://bit.ly/2Glbufg
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busca otimizar o fluxo de atendimento diante da carência crônica de leitos de cuidados intensivos em hospitais brasileiros. Esta norma será de grande valia para esses médicos no momento de tomar decisões quanto à admissão ou alta de pacientes em UTI. Para o público leigo, distante desses dilemas médicos, é necessário facilitar a compreensão das orientações do CFM.

Unidade de terapia intensiva

A UTI é o setor de atendimento médico de alta complexidade onde se encontram recursos humanos e materiais capazes de introduzir procedimentos de suporte avançado de vida. Tem por objetivo beneficiar pacientes em situação crítica, estabilizando variáveis clínicas e hemodinâmicas essenciais. As terapias intensivas acolhem pessoas criticamente enfermas, mas com possibilidade de recuperação 1515. Senra D. Humanização na terapia intensiva: de onde viemos e onde estamos? In: Senra D. Medicina intensiva: fundamentos e prática. São Paulo: Atheneu; 2013. v. 1. p. 15-9. .

Pacientes considerados para internação em UTI são aqueles que apresentam instabilidade de uma ou mais funções orgânicas com potencial de levar à morte. Isso obriga o médico a adotar procedimentos como ajuda mecânica para respirar (assistência ventilatória), hemodiálise e suporte circulatório, providos por equipamentos disponíveis apenas nas unidades de emergência ou na terapia intensiva.

O enfermo crítico demanda intervenções imediatas, pois sua condição evolui com falências orgânicas múltiplas e prognóstico tempo-dependente. Além disso, a demora de quatro horas ou mais para admissão em UTI contribui para aumentar a mortalidade dessas pessoas.

As UTI brasileiras: conceitos fundamentais e problemática cotidiana

Um complicador na definição de critérios para acolhimento em UTI é a internação de pacientes que, embora graves, têm pouca possibilidade de recuperação e mesmo assim recebem cuidados intensivos convencionais. Essa situação caracteriza prática desarrazoada, pois apenas prolonga o processo de morrer e invariavelmente resulta em mais sofrimento para pacientes e familiares. É o que denominamos obstinação terapêutica ou distanásia 1616. Pessini L. Distanásia: até quando prolongar a vida? 2ª ed. São Paulo: Loyola; 2004.,1717. Pessini L. Vida e morte na UTI: a ética no fio da navalha. Rev. bioét. (Impr.) [Internet]. 2016 [acesso 7 jun 2017];24(1):54-63. Disponível: https://bit.ly/2KABC4X
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.

Em relação à alta nessas unidades, é comum pacientes estáveis permanecerem internados sem justificativa, apesar de demandarem apenas cuidados semi-intensivos. O CFM 77. Conselho Federal de Medicina. Resolução CFM nº 2.156, de 28 de outubro de 2016. Estabelece os critérios de admissão e alta em unidade de terapia intensiva [Internet]. Diário Oficial da União. Brasília, p. 138-9, 17 nov 2016 [acesso 11 fev 2018]. Seção 1. Disponível: https://bit.ly/2Glbufg
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orienta o médico intensivista a considerar não somente o diagnóstico, mas também as condições prognósticas de recuperação. Ademais, recomenda condutas amparadas por critérios científicos e éticos para enfrentar o desafio de oferecer o melhor atendimento a pacientes em situação crítica. Sendo assim, admissões em UTI devem estar fundamentadas em avaliação apurada sobre as chances de recuperação, considerando as melhores práticas clínicas.

A Resolução CFM 2.156/2016 77. Conselho Federal de Medicina. Resolução CFM nº 2.156, de 28 de outubro de 2016. Estabelece os critérios de admissão e alta em unidade de terapia intensiva [Internet]. Diário Oficial da União. Brasília, p. 138-9, 17 nov 2016 [acesso 11 fev 2018]. Seção 1. Disponível: https://bit.ly/2Glbufg
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, prioriza para internação em UTI os pacientes que necessitam de: 1) intervenções de suporte à vida, com alta probabilidade de recuperação e sem limite de procedimento terapêutico; 2) monitoramento intensivo pelo alto risco de precisarem de intervenção imediata, sem limite de conduta terapêutica; 3) procedimentos de suporte à vida, com baixa probabilidade de recuperação ou com limite de recurso terapêutico; 4) monitoramento intensivo pelo alto risco de precisarem de intervenção imediata, mas com limite de conduta terapêutica. Pacientes com doença terminal sem possibilidade de cura são admitidos em caráter excepcional, e essa decisão depende da avaliação do médico intensivista.

A respeito desses critérios, o coordenador da Câmara Técnica de Medicina Intensiva do CFM, Hermann von Tiesenhausen, explicou: Criamos uma escadinha de cinco degraus. Cada uma traduz uma indicação mais precisa, até chegar ao último degrau, tipo 5, que, de maneira geral, não tem mais indicação formal [para permanecer] em UTI1818. Leal A. Conselho Federal de Medicina estabelece critérios para internação em UTI. Agência Brasil [Internet]. 11 nov 2016 [acesso 11 dez 2018]. Disponível: https://bit.ly/2G9etrP
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. Portanto, não deverão ocupar leito em UTI pacientes fora dos critérios estabelecidos pela Resolução, ainda que os familiares pressionem os médicos.

O clamor das famílias é compreensível, mas ao submeter-se a ele, corre-se o risco de ocupar leitos de forma injusta, privando desse direito pacientes críticos com chances reais de recuperação. Obviamente essas decisões devem ser precedidas por diálogo respeitoso e esclarecedor com os familiares.

Quanto à alta da UTI, a Resolução orienta que seja dada ao enfermo cujos parâmetros vitais estejam completamente estáveis, enquanto pacientes em fase terminal devem ser transferidos para a unidade de cuidados paliativos 77. Conselho Federal de Medicina. Resolução CFM nº 2.156, de 28 de outubro de 2016. Estabelece os critérios de admissão e alta em unidade de terapia intensiva [Internet]. Diário Oficial da União. Brasília, p. 138-9, 17 nov 2016 [acesso 11 fev 2018]. Seção 1. Disponível: https://bit.ly/2Glbufg
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.

Cada instituição deve oferecer atendimento com base nos critérios expostos, e caberá aos médicos segui-los com máximo empenho profissional. Urge, portanto, manter a objetividade na tomada de decisões relacionadas a UTI. Outrossim, é imperioso que os cursos de graduação de profissionais de saúde tratem de questões relativas à terminalidade da vida e aos cuidados paliativos.

Pesquisa sobre questões bioéticas relacionadas ao final da vida

Curiosamente, a revista The Economist , uma das mais respeitadas publicações internacionais sobre economia, tem se revelado nos últimos anos o veículo informativo de maior publicidade para matérias referentes a cuidados no final de vida. Em 2010 publicou relatório encomendado pela Lien Foundation 1919. The Economist Intelligence Unit, Lien Foundation. The quality of death: ranking end-of-life care across the world. London: EIU; 2010. , e em 2015 atualizou o índice de qualidade de morte, considerando o número de unidades de cuidados paliativos existentes no mundo 2020. The Economist Intelligence Unit, Lien Foundation. The 2015 quality of death index: ranking palliative care across the world. London: EIU; 2015. .

Em abril de 2017, em parceria com a Kaiser Family Foundation, a revista publicou novo relatório 99. The Henry J Kaiser Family Foundation. Views and experiences with end-of-life medical care in Japan, Italy, the United States, and Brazil: a cross-country survey. Menlo Park: KFF; abr 2017. , que merece a atenção de todos os profissionais que trabalham na área de cuidados críticos e de final de vida, pois trazia informações valiosas sobre o tema. Pela importância do estudo, destacaremos a seguir alguns dados essenciais. A partir da opinião dos pacientes sobre como desejariam ser assistidos ao final da vida, foram eleitas cinco questões mais emblemáticas.

“Em se tratando de assistência e cuidados, o que você considera mais importante no final de sua própria vida?”

1) Prolongar a vida o maior tempo possível: Japão (9%), EUA (19%), Itália (13%), Brasil (50%); 2) auxiliar as pessoas a morrer sem dor: Japão (82%), Estados Unidos (EUA) (71%), Itália (68%), Brasil (42%). Dado marcante observado no Brasil foi que 50% dos entrevistados defendeu o prolongamento da vida pelo maior tempo possível. É provável que essa percepção equivocada tenha relação com o uso inadequado de leitos na UTI e com o fato de o Brasil ainda ser um dos poucos países que acredite que sejam justificáveis os cuidados paliativos na UTI.

“Ao pensar em sua própria morte, o que considera ser de extrema importância?”

1) Não deixar a família em dificuldades financeiras: Japão (59%) e EUA (54%); 2) estar em paz espiritualmente: Brasil (40%); e 3) ter companhia de pessoas queridas no processo de morrer: Itália (34%). Aqui merece destaque o segundo item, que mostra a visão de grande parte dos brasileiros entrevistados.

“Sobre o prolongamento da vida pelo maior tempo possível”

Segundo dados da pesquisa, 50% dos brasileiros, quando questionados sobre o final da vida, manifestaram de maneira enfática o desejo de permanecer internados em UTI, enquanto nos EUA, Itália e Japão as taxas foram inferiores, entre 9% e 19%, prevalecendo a escolha por cuidados paliativos e morte sem dor e sofrimento.

Diante dessa diferença, cabe informar que os dados colhidos no Brasil consideraram diferentes níveis de escolaridade: 51% dos entrevistados com educação elementar se manifestaram favoravelmente ao prolongamento da vida e à permanência na UTI, enquanto 53% dos brasileiros com nível secundário tiveram a mesma opinião, e apenas 35% dos indivíduos com nível de ensino superior concordaram com a ideia.

A resposta da maioria dá margem a diversas considerações sociológicas sobre a qualidade de vida, bem como sobre a dimensão religiosa e espiritual dos brasileiros desses estratos populacionais. Os dados permitem depreender também que os participantes têm maior dificuldade em entender que se trata de situação irreversível. Em contrapartida, os brasileiros com maior nível de escolaridade acompanham os critérios de decisão dos participantes estrangeiros, privilegiando o alívio da dor e o conforto físico e emocional em detrimento da vida prolongada artificialmente.

“Morrer com menos dor, desconforto e sofrimento”

Considerando os demais países estudados, os cuidados para reduzir dores e permitir a companhia de familiares no fim da vida foram aprovados por 41% das pessoas com educação elementar, 40% dos entrevistados com ensino secundário e 58% dos indivíduos com nível universitário. Em síntese, quando se trata de doenças graves e incuráveis, a maioria dos entrevistados no Japão, Itália e EUA privilegiou essa medida em vez do prolongamento artificial da vida.

“Sobre quem deveria decidir sobre o tratamento médico a ser adotado em pacientes no final da vida”

Na média geral dos países, 57% dos entrevistados consideraram ser esta decisão de competência exclusiva de pacientes e familiares, enquanto 40% defenderam condutas definidas por médicos e 3% não souberam responder.

Expectativas e necessidades de pacientes em final de vida

Outro dado identificado pela pesquisa foi a prevalência da religiosidade entre brasileiros, uma vez que 40% dos entrevistados consideraram extremamente importante estar em paz espiritualmente no fim da vida. Oito em cada dez brasileiros participantes do estudo (83%) atribuíram importância a convicções religiosas e espirituais, dado que se destaca sobretudo quando essas pessoas declaram o tratamento que desejam receber ao final da vida.

Na pesquisa, 54% dos adultos brasileiros se identificaram como católicos, e três em cada dez se declararam evangélicos. Segundo o Censo 2010 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) 2121. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Censo demográfico 2010: características gerais da população, religião e pessoas com deficiência [Internet]. Rio de Janeiro: IBGE; 2010 [acesso 6 mar 2017]. Disponível: https://bit.ly/2xQH3IB
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, o Brasil continua sendo país de maioria católica, mas caminha para o pluralismo religioso, com crescimento significativo de outras crenças. Dados que davam dimensão da fé dos brasileiros são agregados por diferentes credos: católicos (64%), evangélicos (22%), espíritas (2%), umbandistas e candomblecistas (0,3%) e outras religiões (3%). Registraram-se também 8% sem religião e 0,1% não soube ou declarou qualquer opção.

Os números revelam que o povo brasileiro é fundamentalmente religioso. Essa característica histórica e cultural tem estreita relação com o que é considerado importante no final da vida. A pergunta que se impõe diante do alto índice de brasileiros preocupados em estar espiritualmente em paz diante da iminência da morte é: como esses cuidados são oferecidos 99. The Henry J Kaiser Family Foundation. Views and experiences with end-of-life medical care in Japan, Italy, the United States, and Brazil: a cross-country survey. Menlo Park: KFF; abr 2017. ?

Nos EUA e no Japão, onde os gastos com serviços médicos costumam ser muito altos, considera-se importante assegurar a estabilidade financeira da família após o falecimento do paciente. Na Itália, a maior preocupação manifestada foi poder contar com entes queridos ao seu lado nos momentos derradeiros, seguida pela certeza de que seus desejos pessoais sobre procedimentos médicos adotados na terminalidade da vida fossem respeitados.

Dado preocupante revelado pela pesquisa nos quatro países foi a ausência quase sistemática de diálogo com pacientes sobre a terminalidade da vida. No Japão, por exemplo, apenas 31% dos pacientes adultos e 33% dos que tinham mais de 65 anos afirmaram ter tido a oportunidade de conversar sobre o tema com algum ente querido. Somente 7% trataram do assunto com o médico, 6% declararam ter registrado formalmente suas diretivas antecipadas de vontade (DAV) e 64% não as elaboraram por desconhecerem essa alternativa.

Dissertação apresentada ao programa de mestrado em bioética da Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR) em 2016 2222. Scottini MA. Direito dos pacientes às diretivas antecipadas de vontade [dissertação] [Internet]. Curitiba: PUCPR; 2017 [acesso 11 fev 2018]. Disponível: https://bit.ly/2StVG0b
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avaliou o conhecimento sobre DAV de 55 pacientes assistidos pelo programa em serviço privado de atendimento domiciliar a pacientes com enfermidades terminais em Florianópolis (SC). Segundo o estudo, apenas um paciente havia registrado suas DAV, três manifestaram desejo de fazê-lo após conversarem com a pesquisadora, e 51 declararam não ter tido oportunidade para falar sobre o assunto.

O registro formal de DAV ainda é restrito e varia muito em cada país. Os resultados sobre o tema nos quatro países estudados foram: 1) para a população geral: 6% no Japão e Itália, 27% nos EUA e 14% no Brasil; 2) apenas para a população com mais de 65 anos: 12% no Japão, 5% na Itália, 51% nos EUA e 13% no Brasil.

Também merece reflexão o fato de que nos EUA aproximadamente um terço das pessoas que morrem após os 65 anos esteve internada em UTI nos meses que antecederam a morte, e um quinto delas foi submetida a procedimento cirúrgico no mês anterior ao falecimento. Calcula-se que em 2020 pelo menos 40% da população dos Estados Unidos morrerá sem a companhia de familiares, em seus domicílios ou em clínicas de repouso destinadas a pessoas idosas.

Por outro lado, a grave situação dos serviços públicos de saúde no Brasil, com falhas na comunicação entre os serviços de maior e menor complexidade (sistema de referência/contrarreferência) e insuficiência de recursos e de infraestrutura hospitalar, somada à insegurança e desinformação das pessoas, pode criar a ideia equivocada de que a ortotanásia, ou seja, morrer sem passar por terapias fúteis ou desproporcionais quando se tem doença incurável em fase terminal, equivaleria a abandonar os cuidados ou omitir socorro médico.

O Brasil conta com 110 serviços de cuidados paliativos cadastrados na Academia Nacional de Cuidados Paliativos (ANCP), enquanto nos EUA esse número chega a 1.700 unidades. Outro grande desafio é a quase total ausência do tema da terminalidade da vida e dos cuidados paliativos nos cursos de graduação em saúde. Estudo publicado na revista The Lancet em dezembro de 2010 mostrou resultados preocupantes sobre a qualificação dos egressos de 2.420 cursos médicos em todo o mundo 2323. Frenk J, Chen L, Bhutta ZA, Cohen J, Crisp N, Evans T et al. Health professionals for a new century: transforming education to strengthen health systems in an interdependent world. The Lancet [Internet]. 2010 [acesso 1º fev 2019];376(9756):1923-58. Disponível: https://bit.ly/2UReaV5
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O primeiro projeto pedagógico utilizado por escolas de medicina no início do século XX, após as reformas propostas pelo “Relatório Flexner” 2424. Flexner A. Medical e ducation in the United States and Canada: a report to The Carnegie Foundation for the Advancement of Teaching [Internet]. Boston: Updyke; 1910 [acesso 11 fev 2018]. Disponível: https://bit.ly/1UNmHqa
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, enfatizava o ensino ministrado em hospitais terciários. O segundo modelo, conhecido como problem-based learning (PBL) 2525. Wood DF. Problem based learning. BMJ [Internet]. 2003 [acesso 1º fev 2019];326(7384):328-30. Disponível: https://bit.ly/2E3LAtU
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e concebido nos anos 1970 pelas universidades de Maastricht e McMaster, teve amplo acolhimento nos cursos da área da saúde. O terceiro, chamado health education systems2626. Frenk J, Chen L, Bhutta ZA, Cohen J, Crisp N, Evans T et al. Health professionals for a new century: transforming education to strengthen health systems in an interdependent world. The Lancet [Internet]. 2010 [acesso 28 maio 2017];376(9756):1923-58. Disponível: https://bit.ly/2UReaV5
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, prometia formar profissionais com mais responsabilidade social, conforme princípios da ética da alteridade, mas sua implementação ainda carece de iniciativas. Esse estudo, concebido por vinte educadores de diferentes países com larga experiência em ensino médico e que integraram a Lancet Commissions 2323. Frenk J, Chen L, Bhutta ZA, Cohen J, Crisp N, Evans T et al. Health professionals for a new century: transforming education to strengthen health systems in an interdependent world. The Lancet [Internet]. 2010 [acesso 1º fev 2019];376(9756):1923-58. Disponível: https://bit.ly/2UReaV5
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, teve como meta definir o perfil de formação profissional mais adequado para exercer a medicina no século XXI. O novo modelo tinha o objetivo de formar egressos da graduação em medicina mais bem preparados para tomar decisões razoáveis e prudentes diante dos frequentes conflitos éticos nas sociedades contemporâneas ocidentais, marcadas pela pluralidade moral.

Nesse contexto dilemático, a formação profissional oscila entre ideais e virtudes defendidos por educadores experientes, mas que não respondem aos interesses de instituições universitárias regidas pelas regras de mercado. Essas escolas médicas preferem formar profissionais para atender o maior número possível de pacientes, em detrimento da qualidade do serviço prestado. Lamentavelmente, estamos longe de formar médicos que reconheçam pacientes como seres biopsicossociais e espirituais, indivíduos com autonomia para participar ativamente dos procedimentos que serão realizados em seus próprios corpos.

Porém, como terão formação humanista se sequer recebem conhecimentos sobre terminalidade da vida e cuidados paliativos na graduação? É o que aponta estudo realizado por Pinheiro 2727. Pinheiro TRSP. Avaliação do grau de conhecimento sobre cuidados paliativos e dor dos estudantes de medicina do quinto e sexto anos. O Mundo da Saúde [Internet]. 2010 [acesso 15 jun 2017];34(3):320-6. Disponível: https://bit.ly/2KEJnqN
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, que entrevistou estudantes do quinto e sexto anos dos cursos de medicina da cidade de São Paulo. Segundo a pesquisa, 83% dos alunos não receberam informações sobre cuidados a pacientes com doenças terminais, 63% não tiveram acesso a qualquer temática sobre “como dar más notícias” e 76% afirmaram desconhecer critérios clínicos para otimizar o tratamento da dor em pacientes oncológicos.

As universidades brasileiras têm enfatizado diversas disciplinas, sem estabelecer conexão lógica que permita aos estudantes compreender que, independentemente da enfermidade, o universo biopsicossocial do paciente sempre estará envolvido. A maioria das escolas de medicina pratica o “fatiamento” do corpo humano em órgãos e sistemas, preparando os estudantes, futuros médicos, para tratar doenças e não pessoas. Edgar Morin é enfático ao afirmar que os desenvolvimentos disciplinares das ciências não só trouxeram as vantagens da divisão de trabalho, mas também os inconvenientes da superespecialização, do confinamento e do despedaçamento do saber. Não só produziram o conhecimento e a elucidação, mas também a ignorância e a cegueira2828. Morin E. A cabeça bem-feita: repensar a reforma, reformar o pensamento. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil; 2001. p. 115. .

Embora incipiente, a abordagem multidisciplinar introduzida nas faculdades de medicina é bem-vinda, mesmo que ainda seja insuficiente para tratar os complexos problemas morais das situações de final de vida. Em relação à finitude humana, é imprescindível que haja diálogo entre diferentes áreas do saber, como medicina, psicologia, teologia, enfermagem e tantas outras, pois somente a perspectiva interdisciplinar pode preparar o médico para cuidar do paciente em fase terminal e conduzir de maneira adequada as decisões sobre cuidados paliativos 88. Pessini L, Siqueira JE. Reflexões bioéticas sobre a vida e a morte na UTI. In: Siqueira JE, Zoboli E, Sanches M, Pessini L, organizadores. Bioética clínica [Internet]. Brasília: CFM; 2016. p. 229-52. p. 240. .

É oportuno recuperar a experiência do neurocirurgião estadunidense Paul Kalanithi, registrada no livro “O último sopro de vida” 2929. Kalanithi P. O último sopro de vida. Rio de Janeiro: Sextante; 2016. , que reproduz sua trajetória desde a etapa “Em perfeita saúde eu começo (parte I)” até “Não parar até morrer (parte II)”. Em 167 páginas o autor expõe seu caminho ao encontro da morte. O epílogo redigido por Lucy, sua viúva, traz o seguinte ensinamento: a decisão de Paul de não desviar o olhar da morte resume uma força que não celebramos o suficiente em nossa cultura avessa à ideia da mortalidade. Escrever este livro foi uma oportunidade para nos ensinar a encarar a morte com integridade3030. Kalanithi L. Epílogo. In: Kalanithi P. Op. cit. p. 149. .

Retomando a pesquisa veiculada pela The Economist99. The Henry J Kaiser Family Foundation. Views and experiences with end-of-life medical care in Japan, Italy, the United States, and Brazil: a cross-country survey. Menlo Park: KFF; abr 2017. , importa sublinhar alguns dados. Não obstante as diferenças sociodemográficas e culturais entre os quatro países estudados, certas convergências merecem destaque, como o fato de a maior parte dos entrevistados, independentemente do país, considerar insatisfatórios os cuidados à saúde patrocinados por iniciativas governamentais. Para muitos deles, os governantes mostraram-se despreparados ou desmotivados para estabelecer medidas adequadas para os cuidados de pessoas idosas ou acometidas por doenças terminais.

A respeito dos tratamentos de saúde essenciais ao final da vida, a maioria dos japoneses, italianos e norte-americanos priorizou terapêuticas para reduzir a dor e aliviar sofrimentos impostos pela doença. Similarmente, perante a questão da finitude da própria vida, sobressaiu o expressivo consenso “ viver bem, tanto quanto possível, desde que sempre seja respeitada a dignidade da pessoa ”. Quanto ao planejamento para enfrentar essa fase da vida, a maioria dos entrevistados opinou que a morte ainda é tabu, sendo esse o maior obstáculo para conversar sobre o assunto, embora existam outras questões atinentes às diferenças culturais de cada povo. Com relação aos registros de DAV, os norte-americanos foram os que se mostraram mais inclinados a firmar o documento.

Cuidados ao final da vida na percepção de Ezekiel Jonathan Emanuel

A revista The Medical Journal of Australia publicou artigo do oncologista e bioeticista estadunidense Ezekiel Emanuel 3131. Emanuel E. Euthanasia and physician-assisted suicide: focus on the data. Med J Aust [Internet]. 2017 [acesso 14 jun 2017];206(8):339-40. Disponível: https://bit.ly/2oOW7PB
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que vem despertando grande interesse do público em geral e acalorados debates nos ambientes acadêmicos. Em síntese, o autor defende que o enfoque sobre finitude da vida deve migrar da eutanásia e do suicídio assistido para o aprimoramento dos cuidados paliativos a serem prestados a pacientes em fase terminal. A respeito do tema, Linda Emanuel publicou em 1998 pela Harvard University Press o livro “ Regulating how we die3232. Emanuel LL, editora. Regulating how we die: the ethical, medical, and legal issues surrounding physician-assisted suicide. Cambridge: Harvard University Press; 1998. , no qual figuram colaboradores como Marcia Angell e Edmund Pellegrino.

O capítulo de Pellegrino, “The false promise of beneficent killing”, é assertivo em suas conclusões: é uma injustiça oferecer a esses pacientes [em fase terminal da vida] o suicídio assistido ou eutanásia como opções [válidas], enquanto tantas outras possibilidades podem ser fornecidas3333. Pellegrino ED. The false promise of beneficent killing. In: Emanuel LL, editor. Regulating how we die: the ethical, medical, and legal issues surrounding physician-assisted suicide. Cambridge: Harvard University Press; 1998. p. 71-91. p. 78. . No recente artigo de Emanuel 3131. Emanuel E. Euthanasia and physician-assisted suicide: focus on the data. Med J Aust [Internet]. 2017 [acesso 14 jun 2017];206(8):339-40. Disponível: https://bit.ly/2oOW7PB
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fica fácil identificar Pellegrino como sua principal inspiração. Segundo o autor, há argumentos que raramente ganham atenção da mídia e que são fundamentais para oferecer amparo ético às decisões médicas sobre pacientes terminais.

Utilizando dados de países onde a eutanásia e o suicídio assistido são legalizados, argumenta que o clamor para legalizar a eutanásia [E] e o suicídio assistido [SA] não ajudam a melhorar os cuidados ao final da vida. A E e o SA não resolvem a gestão dos sintomas ou aprimoram a prática dos cuidados paliativos. Essas intervenções são para 1% e não para 99% dos pacientes que estão morrendo. Precisamos ainda lidar com o problema que a grande maioria dos pacientes terminais enfrenta, ou seja, como conseguir o alívio dos sintomas, e como evitar [internações] hospitalares e permanecer em casa nas semanas finais de vida. Legalizar a E e o SA seria realmente secundário em se tratando de cuidados de final de vida, fato defendido por poucos para poucos com o apoio da mídia, mas que não objetiva aprimorar os cuidados para a maioria dos pacientes em final de vida, que continuarão a sofrer3434. Emanuel E. Op. cit. p. 302-5. .

Segundo o autor, a percepção pública da suposta necessidade da eutanásia e do suicídio assistido foca exageradamente a dor. A palavra “sofrimento” também é utilizada numa tentativa de alargar [o alcance] do argumento sobrequestões existenciais”. Mas os sofrimentos existenciais, assim como a dor, podem muito bem ser controlados por meio de cuidado médico3535. Emanuel E. Op. cit. p. 298. . Portanto, a dor não é a razão primeira pela qual os pacientes procuram essas opções, embora muitas pessoas saudáveis acreditem nisso.

Segundo Emanuel, os pacientes que solicitam e se submetem a eutanásia ou suicídio assistido raramente experimentam dor insuportável, e poucos deles desejam esses procedimentos. Pesquisa com pacientes que padeciam de câncer ou aids demonstrou que os interessados nessas alternativas não sofriam dores insuportáveis. Este fato foi confirmado inúmeras vezes, em dados do estado do Oregon, nos EUA. O acompanhamento de pacientes que fizeram o pedido e se submeteram ao suicídio assistido mostrou que menos de 33% experimentavam controle insatisfatório da dor 3131. Emanuel E. Euthanasia and physician-assisted suicide: focus on the data. Med J Aust [Internet]. 2017 [acesso 14 jun 2017];206(8):339-40. Disponível: https://bit.ly/2oOW7PB
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Se não é a dor, então o que motiva pacientes a solicitar eutanásia ou suicídio assistido? Na opinião do autor, poderia ser depressão, cansaço da vida, perda da esperança, do controle e da dignidade. As verdadeiras razões do pedido seriam de ordem psicológica e não primordialmente físicas, portanto não poderiam ser aliviadas aumentando-se a dose de morfina, por exemplo, mas sim mediante abordagem psicoterapêutica.

Nos estados de Oregon e Washington, onde a eutanásia é legalizada, as razões registradas para o suicídio assistido foram perda de autonomia (90% dos pacientes) e da dignidade pessoal (70%) 3131. Emanuel E. Euthanasia and physician-assisted suicide: focus on the data. Med J Aust [Internet]. 2017 [acesso 14 jun 2017];206(8):339-40. Disponível: https://bit.ly/2oOW7PB
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. É interessante observar que depressão e desesperança não costumam ser incluídas como razões para se decidir pelo suicídio assistido. Na Holanda, por exemplo, a principal exigência legal para a prática é extremo sofrimento físico ou mental, o que torna difícil reconhecer se as razões determinantes dependem ou não do estado emocional 3131. Emanuel E. Euthanasia and physician-assisted suicide: focus on the data. Med J Aust [Internet]. 2017 [acesso 14 jun 2017];206(8):339-40. Disponível: https://bit.ly/2oOW7PB
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Emanuel destaca a importância de considerar atentamente o sofrimento psicológico, indicador de que muitos pedidos de eutanásia e suicídio assistido são menos de cunho paliativo e mais similares aos motivos do suicídio convencional 31. As principais causas de suicídio convencional são problemas psicológicos, tema pouco valorizado por médicos de estados onde essas opções são legalizadas. Tanto no Oregon quanto em Washington, por exemplo, menos de 4% dos pacientes que solicitaram suicídio assistido recebeu assistência psicológica. Sendo psicoexistenciais as razões preponderantes para esse tipo de pedido, oferecer acompanhamento psiquiátrico a esses pacientes seria o mais prudente antes de tomar decisões médicas irreversíveis.

Emanuel conclui sua argumentação defendendo a necessidade de pensar diferente sobre as razões que subjazem a essas escolhas. A imagem que a maioria das pessoas tem de pacientes se contorcendo em dor insuportável é errada 3131. Emanuel E. Euthanasia and physician-assisted suicide: focus on the data. Med J Aust [Internet]. 2017 [acesso 14 jun 2017];206(8):339-40. Disponível: https://bit.ly/2oOW7PB
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. Também é falaciosa a ideia, muito divulgada pelas mídias, de que provocar morte por dose letal de alguma droga seria forma “digna” de morrer. Para Emanuel essa conclusão resulta de avaliação precipitada da realidade.

Adverte ainda que não existe ato médico isento de risco, pois qualquer procedimento pode ter efeitos adversos. Emanuel justifica essa assertiva mencionando estudo feito na Holanda em 2000, que demonstrou que 5,5% dos casos de eutanásia e suicídio assistido tiveram erros técnicos que causaram certo grau de sofrimento aos enfermos. Em 6,9% desses casos também foi registrada dificuldade em concretizar o procedimento que culminaria na morte. Problemas técnicos, incluindo dificuldade de acesso venoso para infusão de drogas, ocorreram em 4,5% das eutanásias e 9,8% das mortes assistidas. Esses fatos sugerem que é enganosa a visão comumente divulgada de que essas alternativas são rápidas e isentas de complicações para induzir fim tranquilo.

Considerações finais

Apesar do tabu em torno da morte, é preciso encará-la com mais naturalidade e poupar pacientes de agonia insensata e prolongada, respeitando seus valores e crenças pessoais para que possam completar ciclos vitais com dignidade. Concordamos com Ezekiel Emanuel quando afirma que ao se levar em conta as evidências ora apresentadas, a legalização da E e do SA surge como alternativa muito menos atraente3636. Emanuel E. Op. cit. p. 284. .

Qual seria então a principal motivação para legalizar intervenções que abreviam vidas de uma minoria de enfermos deprimidos e assustados por terem perdido a autonomia? Embora não exista resposta consensual, consideramos imprescindível conduzir o exercício profissional amparado nos mais autênticos propósitos que há milênios orientam a arte médica, expressos no aforismo curar às vezes, aliviar frequentemente e confortar sempre , atribuído a Hipócrates apesar de não figurar em sua obra maior, o “ Corpus Hippocraticum3737. Cairus HF, Ribeiro Jr WA. Textos hipocráticos: o doente, o médico e a doença. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2005. .

Segundo Emanuel, devemos mudar o foco do frenesi da mídia a respeito da E e do AS, como se estes fossem uma panaceia para aprimorar os cuidados de final de vida. Em vez disso, necessitamos focar no aprimoramento dos cuidados paliativos [oferecidos à] maioria dos pacientes que estão morrendo e que necessitam de um ótimo controle dos sintomas3636. Emanuel E. Op. cit. p. 284. . Aqui desponta com vigor a filosofia dos cuidados paliativos amparada em seguras práticas clínicas, que conta com sólida e comprovada base científica apta a proporcionar atendimento humanizado aos pacientes que padecem de enfermidades terminais 3838. Santos M, editor. Bioética e humanização em oncologia. Brasília: Elsevier; 2017. .

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    21 Fev 2019
  • Data do Fascículo
    Jan-Mar 2019

Histórico

  • Recebido
    7 Jul 2017
  • Revisado
    30 Jan 2018
  • Aceito
    13 Set 2018
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