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Transtornos mentais comuns em estudantes de medicina

Resumo

Nas universidades cresce a preocupação com a gravidade dos transtornos mentais e cada vez mais recorrentes entre estudantes de medicina. O tratamento requer envolvimento tanto da academia quanto da sociedade em geral, sobretudo porque esses distúrbios podem ser possíveis fatores preditivos de estresse. Daí a importância de discutir o assunto, correlacionando-o aos impactos psíquicos nos graduandos de medicina. A proposta aqui é debater sobre o que realmente foi estabelecido no âmbito universitário para mudar essa realidade, especificamente quanto à depressão e ansiedade. A partir dessa discussão, sugerem-se passos para minimizar fatores desencadeadores desses fenômenos na vida dos discentes.

Gravidade do paciente-Doença; Transtornos mentais; Estudantes de medicina; Universidades; Depressão; Ansiedade

Abstract

There is growing concern in universities about the severity of common mental disorders, which are increasingly recurrent among medical students. Such issues require the multidisciplinary involvement of both academic levels and society in general, especially due to the their associations with possible predictive factors of stress perpetuated in these students. These associations reflect the importance of discussing disorders, correlating them with the impacts evidenced by the psychic interference of those involved. One proposal reflects a debate about what was actually implemented in the university sphere to change the reality of Common Mental Disorders in medical students, focusing on depression and anxiety. From this debate, suggestions of steps to be implemented are made to minimize problems related to the potentially triggering or somatizing origins of Common Mental Disorders in students’ lives.

Patient acuity-Disease; Mental disorders; Students, medical; Universities; Depression; Anxiety

Resumen

En las universidades crece la preocupación por la gravedad de los trastornos mentales, cada vez más recurrentes entre estudiantes de medicina. El tratamiento requiere el involucramiento de la academia y de la sociedad en general, sobre todo porque estos trastornos pueden ser posibles factores predictivos de estrés. De allí la importancia de discutir el tema, correlacionándolo con los impactos psíquicos en los estudiantes de medicina. La propuesta, aquí, es debatir sobre lo que realmente se estableció en el ámbito universitario para cambiar esta realidad, específicamente en lo que se refiere a depresión y ansiedad. A partir de esta discusión, se sugieren pasos para minimizar los factores desencadenantes de estos fenómenos en la vida de los estudiantes.

Gravedad del paciente-Enfermedad; Trastornos mentales; Estudiantes de medicina; Universidades; Depresión; Ansiedad

O modelo de ensino atual distancia-se de aspectos psicológicos e aproxima-se da formação técnica e científica, deixando de lado todos os elementos essenciais para o equilíbrio entre corpo e mente. Em contrapartida, nota-se excessiva valorização de práticas relacionadas ao bom desempenho acadêmico 11. Rego S. A formação ética dos médicos: saindo da adolescência com a vida (dos outros) nas mãos. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2003.,22. Rego STA, Palácios M, Schramm FR. O ensino da bioética nos cursos de graduação em saúde. In: Marins JJN, Rego S, Lampert JB, Araújo JGC, organizadores. Educação médica em transformação: instrumentos para a construção de novas realidades. São Paulo: Hucitec; 2004. p. 165-86.. Vive-se o dilema: estudar muito e não ter vida social ou conciliar estudo, vida social e boa qualidade de vida, mas se tornar profissional medíocre 33. Wuillaume SM. Educação médica em transformação: instrumentos para a construção de novas realidades [resenhas]. Cad Saúde Pública [Internet]. 2005 [acesso 30 jun 2018];21(6):1962-7. DOI: 10.1590/S0102-311X2005000600051. Diante dessa reflexão, é necessária análise humana da realidade desgastante de tantos estudantes, entre os quais destacam-se os do curso de medicina.

Aspirantes a médicos enfrentam um dos vestibulares mais concorridos do Brasil, o que já afeta previamente seu estado emocional. Por se tratar de profissão extremamente individualista e competitiva, muitos desses discentes aos poucos desenvolvem tendência isolacionista, cuja gênese é a ideia de proteção perante as vorazes competições intrínsecas ao meio.

Estes estudantes são futuros formandos de profissão idealizada e muito desejada pela população, devido ao suposto êxito econômico e ao status creditado à área 44. Quintana AM, Rodrigues AT, Arpini DM, Bassi LA, Cecim PS, Santos MS. A angústia na formação do estudante de medicina. Rev Bras Educ Méd [Internet]. 2008 [acesso 23 jun 2018];32(1):7-14. DOI: 10.1590/S0100-55022008000100002. Ao mesmo tempo, esse status contrasta com os conflitos relacionados às expectativas dos alunos quanto ao curso, com possíveis prejuízos à saúde física e psicológica. Muitos se sentem constantemente julgados e cobram muito de si mesmos, em dimensões peculiares a cada um, mas que refletem o rompimento da ilusão de onipotência atribuída à profissão, que gera intenso estresse desde o início da formação acadêmica.

Como fatores de estresse na graduação médica, pode-se mencionar a competição no processo seletivo, sobrecarga de conhecimentos, excessiva carga horária, dificuldade em administrar o tempo entre as tantas atividades acadêmicas e o pouco lazer, individualismo, e a responsabilidade e expectativas sociais do papel do médico. Somam-se a isso o contato frequente com a morte e outros inúmeros processos patológicos, o medo de contrair doenças nesse contexto, sobretudo no exame físico de pacientes, o receio de cometer erros e o sentimento de impotência diante de certas doenças 55. Fiorotti KP, Rossoni RR, Borges LH, Miranda AE. Transtornos mentais comuns entre os estudantes do curso de medicina: prevalência e fatores associados. J Bras Psiquiatr [Internet]. 2010 [acesso 23 jun 2018];59(1):17-23. DOI: 10.1590/S0047-20852010000100003.

Tais fatores, adicionados às experiências prévias individuais dos discentes, exigem reflexões importantes acerca das reais origens da vulnerabilidade ao esgotamento ocupacional. É o que destaca artigo de revisão sobre a predisposição de estudantes e médicos a distúrbios emocionais e psiquiátricos 66. Johnson WDK. Predisposition to emotional distress and psychiatric illness amongst doctors: the role of unconscious and experimental factors. Br J Med Psychol [Internet]. 1991 [acesso 30 jun 2018];64(4):317-29. DOI: 10.1111/j.2044-8341.1991.tb01670.x. Com a crescente discussão sobre desordens psíquicas em estudantes de medicina, diversas universidades passaram a oferecer serviços de apoio a esses indivíduos 77. Souza JA. Saúde mental do médico. CFM [Internet]. 29 nov 1999 [acesso 23 jun 2017]. Disponível: https://bit.ly/2X9lWys
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Esse amparo requer maior atenção do meio acadêmico no sentido de efetivar o serviço e estimular a adesão dos discentes. Todavia, na literatura e em instituições de ensino superior observa-se ainda que o problema é subestimado, uma vez que a gravidade dos transtornos mentais pode afetar a vida e obnubilar o futuro dessas pessoas, e os impactos subjetivos à sua vida não podem ser dimensionados nem comparados. Resta compreendê-los no âmbito das relações humanas, buscando eliminá-los em prol da melhor qualidade de vida dos formandos em medicina e futuros pacientes.

Para tanto, é preciso entender fatores preditivos ou somatizadores do estresse, que se perpetuam “naturalmente” entre esses estudantes 44. Quintana AM, Rodrigues AT, Arpini DM, Bassi LA, Cecim PS, Santos MS. A angústia na formação do estudante de medicina. Rev Bras Educ Méd [Internet]. 2008 [acesso 23 jun 2018];32(1):7-14. DOI: 10.1590/S0100-55022008000100002. Somente assim será possível aperfeiçoar a formação médica, introjetando nos próprios alunos a necessidade da ética e do cuidado, de modo a humanizar essa profissão tão disputada e, ao mesmo tempo, tão negligenciada no que diz respeito à saúde mental de seus graduandos.

De acordo com o Conselho Federal de Medicina (CFM) 77. Souza JA. Saúde mental do médico. CFM [Internet]. 29 nov 1999 [acesso 23 jun 2017]. Disponível: https://bit.ly/2X9lWys
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, há paradoxo no contexto médico. Por disporem de mais informações, esses profissionais conseguiriam se prevenir melhor e, portanto, ficariam doentes com menos frequência, seguindo o tratamento de forma adequada. Entretanto, verifica-se entre eles maior vulnerabilidade, que repercute em baixa procura por ajuda, muitos casos de abandono do tratamento e alto número de complicações. É difícil resolver tal contrassenso em um país como o Brasil, que culpabiliza o médico em vez de incentivar a busca das origens e soluções desse conflito que não é somente acadêmico, mas sobretudo humano e social 88. Vasconcelos TC, Dias BRT, Andrade LR, Melo GF, Barbosa L, Souza E. Prevalência de sintomas de ansiedade e depressão em estudantes de medicina. Rev Bras Educ Méd [Internet]. 2015 [acesso 23 jun 2018];39(1):135-42. DOI: 10.1590/1981-52712015v39n1e00042014.

Dessas reflexões surgiu a inquietação que orientou este artigo: o que foi implementado para mudar a realidade dos transtornos mentais comuns (TMC) nos estudantes de medicina? Portanto, o objetivo aqui é discutir ações efetivas com foco nos TMC, considerando especialmente depressão e ansiedade, condições capazes de perpetuar o estresse e associadas a outros distúrbios.

Materiais e método

Este estudo consiste em revisão sistemática da literatura, cuja análise foi desenvolvida a partir de dados levantados nas plataformas Scientific Electronic Library Online (SciELO), ResearchGate e Revistas USP, além de informações disponibilizadas pela Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) e pelo Conselho Regional de Medicina do Paraná (CRM-PR).

Na seleção do material foram considerados os descritores “transtornos mentais”; “saúde mental”; “estudantes de medicina”; “educação médica”; “estresse psicológico”; “fatores de risco”; “prevalência”; “depressão”; “ansiedade”; “suicídio”; e “trabalho médico”. Foram encontrados 1.323 trabalhos com estes termos; no entanto, a pesquisa se baseou em apenas 16 publicações pertinentes ao tema investigado.

Estabeleceram-se previamente os seguintes critérios de inclusão: trabalhos originais ou de revisão, disponíveis na íntegra e publicados entre 1990 e 2018. Quanto aos critérios de exclusão, foram desconsiderados textos em duplicidade, anteriores a 1990 e que, apesar de apresentarem os descritores selecionados, não abordavam diretamente a temática proposta, analisada pela leitura dos resumos. Os 16 artigos selecionados foram lidos na íntegra.

Além disso, reportagens recentes, sites e relatórios oficiais foram consultados para atualizar as informações. O levantamento de dados, a sistematização, análise e produção do trabalho aconteceram entre março de 2017 e março de 2018. Os artigos selecionados foram considerados válidos de acordo com o grau de relevância do assunto estudado, levando em conta os que apresentavam no título ou no resumo algum dos descritores utilizados na busca.

Discussão

A crescente abordagem acadêmico-social dos TMC entre estudantes de medicina reflete a negligência da saúde mental dos envolvidos, devido às cobranças e exigências do próprio curso e da profissão, que influenciam a alta prevalência de suicídio, depressão, uso de drogas, distúrbios conjugais e disfunções profissionais em médicos e estudantes de medicina, como já relatado na literatura 99. Martins LAN. Saúde mental do médico e do estudante de medicina. Psychiatry On Line Brasil [Internet]. 1996 [acesso 26 jun 2018];1:1. Disponível: https://bit.ly/2RikZhD
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.

A saúde mental dos profissionais de saúde é motivo de preocupação já há algumas décadas, tendo em vista o caráter estressante do trabalho 1010. Tenório LP, Argolo VA, Sá HP, Melo EV, Costa EFO. Saúde mental de estudantes de escolas médicas com diferentes modelos de ensino. Rev Bras Educ Méd [Internet]. 2016 [acesso 29 jun 2018];40(4):574-82. DOI: 10.1590/1981-52712015v40n4e00192015
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. Destacam-se nesse grupo os médicos, sobre os quais recai a maior parte da expectativa de cura dos pacientes por meio da tecnologia biomédica. Nesse contexto de angústia, dor e desejo de remissão, o estudante vive envolvido em cargas horárias extremas, não somente na universidade, mas também fora do período letivo.

A quantidade de conteúdo teórico e prático aprendido nas escolas médicas pode dar certa segurança na linha tênue que separa vida e morte, mas alimenta a tensão contínua em relação ao ambiente externo, já estressante. Tal pressão desencadeia elementos internos de estresse que agravam o quadro psicossomático dos discentes. Somam-se a isso a cobrança de amadurecimento precoce e a carga de responsabilidade sobre o indivíduo que decide entregar sua vida ao estudo do organismo humano. Portanto, o debate deve abarcar o preparo psicológico necessário aos ingressantes no curso para que consigam se formar com êxito e saúde 1111. Harada BA, Faxina CF, Capeletto CM, Simões JC. Perfil psicológico do estudante de medicina. Rev Méd Resid [Internet]. 2013 [acesso 23 jun 2018];15(2):1-13. Disponível: https://bit.ly/2MNBfIU
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O contexto descrito engendra fatores preditivos de desordens psíquicas, entre elas os TMC, sobretudo ansiedade e depressão. Analisar a origem desses transtornos pode ajudar a detectar padrões, a partir dos quais será possível indicar ações para mudar essa realidade.

Em que consiste a crescente gravidade dos TMC no curso de medicina?

O uso exagerado de drogas lícitas e ilícitas pela maioria dos estudantes de medicina evidencia a gravidade do assunto. Estudos realizados por uma universidade privada de Curitiba demonstraram que 78% dos seus estudantes consomem álcool, enquanto na Faculdade de Medicina de São José do Rio Preto essa porcentagem foi de 86%, e, em outras faculdades de São Paulo, 82%. Esses parâmetros não estão muito longe da realidade baiana: na Faculdade de Medicina da Universidade Federal da Bahia, 56% dos discentes declararam consumir álcool 1212. Lima MCP, Domingues MS, Cerqueira ATAR. Prevalência e fatores de risco para transtornos mentais comuns entre estudantes de medicina. Rev Saúde Pública [Internet]. 2006 [acesso 26 jun 2018];40(6):1035-41. DOI: 10.1590/S0034-89102006000700011.

É mais difícil apurar com veracidade o uso de drogas ilícitas do que o de álcool, pois esta substância, embora cause dependência, é socialmente admitida no Brasil. A rigor, o termo “ilícito” tem caráter essencialmente moral e, sem definição jurídica, é usado vulgarmente para referir de modo um tanto impreciso toda e qualquer substância química ou composto químico natural ou artificial que tenha efeito psicoativo e que seja proibida por lei 1313. Wikipédia: a enciclopédia livre [Internet]. 2019 [acesso 2 abr 2019]. Droga ilícita. Disponível: https://bit.ly/2WHe034
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. Assim, “ilicitude” não é atinente à substância em si, mas à conjuntura legal e moral que vigora em determinado país.

Algumas drogas desenvolvidas legalmente para tratamento são utilizadas com outras finalidades por pessoas que não precisariam delas. É o caso de ansiolíticos e anfetaminas, substâncias mais usadas pelos estudantes com intuito de melhorar a atenção e/ou manter-se acordados durante mais tempo, a fim de cumprir todas as obrigações de estudo ao longo do curso 1212. Lima MCP, Domingues MS, Cerqueira ATAR. Prevalência e fatores de risco para transtornos mentais comuns entre estudantes de medicina. Rev Saúde Pública [Internet]. 2006 [acesso 26 jun 2018];40(6):1035-41. DOI: 10.1590/S0034-89102006000700011. Trata-se de realidade alarmante que pode levá-los a debilidade orgânica, estresse e até mesmo à dependência química.

O desgaste do curso é um dos principais fatores para o aumento da disseminação dos TMC entre esses estudantes. Estudo com alunos de medicina de Sorocaba revelou que aproximadamente um quarto deles em cada ano não estava plenamente satisfeito com sua saúde mental. No entanto, se recusava a buscar ajuda profissional 1414. Ramos-Dias JC, Libardi MC, Zillo CM, Igarashi MH, Senger MH. Qualidade de vida em cem alunos do curso de medicina de Sorocaba-PUC/SP. Rev Bras Educ Méd [Internet]. 2010 [acesso 4 jun 2018];34(1):116-23. DOI: 10.1590/S0100-55022010000100014.

Algumas das justificativas para essa situação são a falta de tempo, o estigma associado à utilização de serviços de saúde mental, custos financeiros e medo das consequências curriculares. Trata-se de contexto fundado na discriminação quanto à saúde mental e, sobretudo, na negação do médico como ser humano vulnerável, suscetível a desordens físicas e psíquicas como qualquer pessoa 1212. Lima MCP, Domingues MS, Cerqueira ATAR. Prevalência e fatores de risco para transtornos mentais comuns entre estudantes de medicina. Rev Saúde Pública [Internet]. 2006 [acesso 26 jun 2018];40(6):1035-41. DOI: 10.1590/S0034-89102006000700011.

O cenário atual tem demostrado o efeito nocivo dos TMC na vida do discente de medicina, sem desfecho positivo. Estudo realizado na Universidade do Estado do Rio Grande do Norte concluiu que a maioria dos alunos se sente sobrecarregada por atividades curriculares e complementares, dispondo de pouco tempo para lazer. Apesar disso, muitos se envolvem paralelamente e, buscando melhorar o currículo profissional e adquirir novas habilidades técnicas. Essa atitude reduz ainda mais a qualidade de vida do acadêmico, gerando repercussões emocionais diretas 1515. Cardoso Filho FAB, Magalhães JF, Silva KML, Pereira ISSD. Perfil do estudante de medicina da Universidade do Estado do Rio Grande do Norte. Rev Bras Educ Méd [Internet]. 2015 [acesso 25 jun 2018];39(1):32-40. Disponível: https://bit.ly/2KhBFVZ
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Os sintomas de ansiedade e depressão entre alunos de medicina é superior à média encontrada na população em geral, indicando que a escola médica pode ser fator predisponente para essas doenças e suas consequências 88. Vasconcelos TC, Dias BRT, Andrade LR, Melo GF, Barbosa L, Souza E. Prevalência de sintomas de ansiedade e depressão em estudantes de medicina. Rev Bras Educ Méd [Internet]. 2015 [acesso 23 jun 2018];39(1):135-42. DOI: 10.1590/1981-52712015v39n1e00042014. Diante disso, o cuidado com o estudante tem sido debatido em diversos meios, mas o produto final dessa discussão ainda é incerto.

É importante destacar que o sofrimento causado ao aluno tem sido um dos principais fatores para o suicídio no meio médico, com prevalência diretamente atrelada aos TMC. Daí a urgência de colocar em prática ações que diminuam a incidência dos TMC no curso de medicina. Além disso, diante de tamanho descaso com a saúde mental desses alunos, é preciso atenção plena por parte dos responsáveis e envolvidos 99. Martins LAN. Saúde mental do médico e do estudante de medicina. Psychiatry On Line Brasil [Internet]. 1996 [acesso 26 jun 2018];1:1. Disponível: https://bit.ly/2RikZhD
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Ações para mudar a realidade dos TMC no curso de medicina

Existem métodos, como escalas autoaplicáveis 1212. Lima MCP, Domingues MS, Cerqueira ATAR. Prevalência e fatores de risco para transtornos mentais comuns entre estudantes de medicina. Rev Saúde Pública [Internet]. 2006 [acesso 26 jun 2018];40(6):1035-41. DOI: 10.1590/S0034-89102006000700011, de fácil uso e imprescindíveis para identificar precocemente pessoas mais suscetíveis a sintomas depressivos. Esses levantamentos diagnósticos podem ser aplicados a discentes que se encontram no primeiro e último ano do curso e aos autoexigentes, que não aceitam falhas em seu desempenho acadêmico. Alunos do terceiro e quarto ano foram considerados os mais difíceis de diagnosticar por meio desses instrumentos.

Para ter informações mais precisas é necessário acrescentar ao instrumento a análise minuciosa da carga horária e da forma como as disciplinas são estruturadas e ministradas. Segundo os estudantes que participaram do estudo de Lima, Domingues e Cerqueira 1212. Lima MCP, Domingues MS, Cerqueira ATAR. Prevalência e fatores de risco para transtornos mentais comuns entre estudantes de medicina. Rev Saúde Pública [Internet]. 2006 [acesso 26 jun 2018];40(6):1035-41. DOI: 10.1590/S0034-89102006000700011, as partes prática e teórica devem ser mais bem elaboradas pela coordenação e pelos professores.

Alternativa eficaz pode ser a oferta de disciplinas psicossociais, com o objetivo de ampliar a discussão sobre as relações interpessoais dos estudantes a partir da entrada no curso superior, hospital, consultório, ou seja, como médicos. O desenvolvimento dessa habilidade deve destacar a importância de estabelecer a boa convivência, relacionamento de confiança pautado no respeito aos colegas e pacientes. Esse tipo de abordagem pode ajudar o discente estressado a recuperar a saúde e criar importantes vínculos pessoais e profissionais, ampliando seu círculo de convivência social e horizontes a partir de aprendizados oriundos da vida e do meio acadêmico 1212. Lima MCP, Domingues MS, Cerqueira ATAR. Prevalência e fatores de risco para transtornos mentais comuns entre estudantes de medicina. Rev Saúde Pública [Internet]. 2006 [acesso 26 jun 2018];40(6):1035-41. DOI: 10.1590/S0034-89102006000700011.

Também pode ser sistematizado o uso da psicoterapia preventiva e interventiva, somada a outras condutas, como a criação de centros especializados para exames psicológicos, a fim de propiciar assistência clínica aos estudantes. Essas ações podem estimular os estudantes a desenvolver estratégias de adaptação e enfrentamento de situações estressantes que farão parte de sua vida acadêmica e profissional 1212. Lima MCP, Domingues MS, Cerqueira ATAR. Prevalência e fatores de risco para transtornos mentais comuns entre estudantes de medicina. Rev Saúde Pública [Internet]. 2006 [acesso 26 jun 2018];40(6):1035-41. DOI: 10.1590/S0034-89102006000700011.

Essa sistematização gera subsídios para o estudo de séries históricas sobre discentes e profissionais afetados por TMC, permitindo mapear a evolução e as consequências do fenômeno em curto e longo prazos. Essa medida apoiará os estudantes, fortalecendo o aprimoramento de seu potencial e incentivando-os a aprender, a se descobrir e se desenvolver ao longo da vida.

Nesse quesito merece destaque a atuação da Universidade de Brasília, que dá orientação psicopedagógica sugerindo tratamentos por intermédio de grupos psicoterápicos, com a participação de pessoas com sintomas de depressão 1515. Cardoso Filho FAB, Magalhães JF, Silva KML, Pereira ISSD. Perfil do estudante de medicina da Universidade do Estado do Rio Grande do Norte. Rev Bras Educ Méd [Internet]. 2015 [acesso 25 jun 2018];39(1):32-40. Disponível: https://bit.ly/2KhBFVZ
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,1616. Bampi LNS, Baraldi S, Guilhem D, Araújo MP, Campos ACO. Qualidade de vida de estudantes de medicina da Universidade de Brasília. Rev Bras Educ Méd [Internet]. 2013 [acesso 30 jun 2018];37(2):217-25. Disponível: https://bit.ly/2ZqqayS
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. Essa estratégia, ao simular exposição social, torna-se extremamente benéfica aos participantes 1717. Palmeira WD, Azevedo LL, Loureiro YS, Lucena JPL, Cayana EG. Ansiedade e depressão: desafios a serem superados por acadêmicos de medicina. In: Anais do Congresso Brasileiro de Ciências da Saúde [Internet]; 15-17 jun 2016; Campina Grande. Campina Grande: Conbracis; 2016 [acesso 26 jun 2018]. Disponível: https://bit.ly/2MITxuP
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Outro exemplo que pode servir de inspiração ou modelo para as instituições é a Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Goiás. A instituição conta com o Núcleo de Apoio ao Estudante de Medicina (Naem) e com o Programa Saudavelmente, cuja função é atender alunos de todas as unidades que chegam com risco ou sofrimento psíquico 1818. Amaral GF, Gomide LMP, Batista MP, Píccolo PP, Teles TBG, Oliveira PM et al. Sintomas depressivos em acadêmicos de medicina da Universidade Federal de Goiás: um estudo de prevalência. Rev Psiquiatria RS [Internet]. 2008 [acesso 26 jun 2018];30(2):124-30. DOI: 10.1590/S0101-81082008000300008
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. No entanto, o funcionamento do programa ainda é incipiente para a demanda, demonstrando que um auxílio como esse realmente deve ser implantado nas instituições 1818. Amaral GF, Gomide LMP, Batista MP, Píccolo PP, Teles TBG, Oliveira PM et al. Sintomas depressivos em acadêmicos de medicina da Universidade Federal de Goiás: um estudo de prevalência. Rev Psiquiatria RS [Internet]. 2008 [acesso 26 jun 2018];30(2):124-30. DOI: 10.1590/S0101-81082008000300008
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Os dois exemplos mostram que a melhor forma de combater esses transtornos ainda é a prevenção. Sabendo de antemão das exigências do curso, das expectativas acadêmicas quanto ao desempenho técnico do discente e das projeções sociais relativas à atuação, as universidades e a sociedade geral devem priorizar propostas para atender sistematicamente as demandas originadas por TMC. Deve-se investir na solução de conflitos gerados no processo de aprendizagem e assegurar que os futuros profissionais estejam mais preparados para atender às necessidades da população.

Criar e aperfeiçoar programas psicológicos nas faculdades médicas, estimulando a participação discente desde o primeiro ano do curso, é forma viável de controlar e minimizar esses transtornos que acometem cada vez mais estudantes 1616. Bampi LNS, Baraldi S, Guilhem D, Araújo MP, Campos ACO. Qualidade de vida de estudantes de medicina da Universidade de Brasília. Rev Bras Educ Méd [Internet]. 2013 [acesso 30 jun 2018];37(2):217-25. Disponível: https://bit.ly/2ZqqayS
https://bit.ly/2ZqqayS...
. Essas iniciativas devem receber amparo institucional e acadêmico para enfrentar o estigma dos transtornos mentais em geral. Nesse sentido, elaborar programas de acompanhamento que se estendam por toda graduação certamente contribui para desconstruir representações sociais errôneas relacionadas aos TMC.

A educação médica tem sua parcela de responsabilidade na gênese desses transtornos, pois reproduz lógicas próprias do capitalismo, marcadas por individualismo, competitividade, exigências do mercado e expectativas sociais sobre o papel do médico. Esses elementos podem funcionar como estressores ainda durante a formação profissional 1515. Cardoso Filho FAB, Magalhães JF, Silva KML, Pereira ISSD. Perfil do estudante de medicina da Universidade do Estado do Rio Grande do Norte. Rev Bras Educ Méd [Internet]. 2015 [acesso 25 jun 2018];39(1):32-40. Disponível: https://bit.ly/2KhBFVZ
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. Tendo isso em vista, as instituições de ensino superior precisam refletir mais sobre a realidade da formação médica, a fim de auxiliar esses estudantes na busca por bem-estar e qualidade de vida nas dimensões física, psíquica, social e espiritual.

Considerações finais

O objetivo deste trabalho foi alcançado, visto que ampliou a discussão das perspectivas acadêmica, social e humana dos estudantes de medicina. Os esclarecimentos necessários para entender essa realidade alarmante fundamentam-se na amplitude do âmbito acadêmico, perpassando a vida pessoal e social do graduando em medicina que depara com diversas dificuldades ao longo do curso e da profissão.

Esse tema torna-se relevante pelo impacto dos TMC na saúde física e psíquica de tantos acadêmicos, que, além das dificuldades internas com desgastes e cobranças extremas do curso e da profissão, ainda lidam com estigma tão prevalente acerca da saúde mental. Esse preconceito é ainda mais disseminado socialmente quando se trata de formandos ou médicos já atuantes, que para a sociedade são apenas cuidadores”, como se não fossem seres humanos para além de suas especializações.

Sob o ponto de vista da bioética, os cuidadores da população em geral também merecem atenção humanizada, assim como seus pacientes, pois todas as pessoas são vulneráveis e imperfeitas, merecendo respeito e dignidade. A vulnerabilidade dos médicos, que não pode ser confundida com sua competência profissional, deve ser considerada para que possam desempenhar plenamente sua atividade e dedicar-se a esse trabalho difícil, mas recompensador.

Dessa apreciação depreende-se que diversos fatores estressantes se associam ao curso de medicina, o que se comprova nas crescentes prevalências de TMC e suas interferências físicas e psíquicas na vida desses alunos. Expor a gravidade dessa situação deve alertar não somente escolas médicas, reverberando nos estudantes e entes queridos, mas toda a sociedade, pois se o cuidado ao profissional de saúde continuar negligenciado, a população ficará ainda mais desamparada.

Certamente ainda há muito para discutir a respeito do tema, e é impossível esgotá-lo neste artigo. Contudo, podem-se sugerir ações para prevenir os TMC, com a intenção de evitar as causas ou amenizar a sobrecarga nas vivências pessoais de cada graduando, como exemplificado neste trabalho.

Por fim, propõe-se que os órgãos estatais fiscalizem instituições de ensino superior, supervisionando a qualidade do suporte oferecido aos alunos de medicina. Esse acompanhamento poderia manter contato direto com os estudantes, a partir de pesquisas de satisfação e/ou pedidos de sugestão para melhorar a educação médica. Esses seriam instrumentos adequados para diminuir os impactos decorrentes da formação acadêmica sobre a qualidade de vida e o bem-estar de estudantes e profissionais da medicina. Outras medidas podem ser sugeridas a partir do estudo e da reflexão mais aprofundada acerca do tema.

Referências

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    Rego S. A formação ética dos médicos: saindo da adolescência com a vida (dos outros) nas mãos. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2003.
  • 2
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  • Errata

    No artigo “Transtornos mentais comuns em estudantes de medicina”, doi 10.1590/1983-80422019273330, da Revista Bioética, publicado no volume 27, número 3 de 2019, páginas 465 e 470:
    Onde se lia: Bárbara Dourado Nascimento de Carvalho
    Leia-se: Bárbara Dourado Macedo Souza

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    26 Set 2019
  • Data do Fascículo
    Jul-Sep 2019

Histórico

  • Recebido
    10 Nov 2018
  • Revisado
    14 Maio 2019
  • Aceito
    18 Maio 2019
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