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Objeção de consciência como necessidade legal: um olhar sobre o aborto

Resumo

Na comunidade médica há opiniões muito diferentes sobre o aborto. Propomos analisar as premissas filosóficas que enquadram a opinião dos médicos sobre a legalização do aborto e corroborar como elas variam de acordo com a pertença geracional dos profissionais, bem como estabelecer que papel a objeção de consciência desempenha para alcançar um equilíbrio ante a variedade de posições existentes. Realizamos entrevistas semiestruturadas com médicos e estudantes sobre suas opiniões sobre a legalização do aborto e as razões que basearam suas posições. Os médicos mais jovens foram os que aprovaram a legalização em maior proporção com argumentos apoiados em perspectiva de saúde pública. Devido à grande variabilidade de posições e idiossincrasias que coexistem no campo da medicina, a objeção de consciência é estabelecida como um instrumento legal necessário para proteger a integridade moral de cada pessoa.

Aborto; Consciência; Filosofia médica; Direitos civis

Resumen

En la comunidad médica existen opiniones muy dispares frente al aborto. Nos proponemos analizar las premisas filosóficas que enmarcan la opinión de los médicos respecto a la legalización del aborto y corroborar cómo varían según la pertenencia generacional de los profesionales; así como establecer qué rol juega la objeción de conciencia para lograr un equilibrio ante la variedad de posturas existentes. Se realizaron entrevistas a médicos y a estudiantes de medicina interrogando si les parecía correcto o no legalizar el aborto y las razones en las cuales basaban sus posturas . Los médicos más jóvenes fueron quienes se mostraron a favor de la legalización en mayor proporción con argumentos brindados con una perspectiva en salud pública. Ante tan variadas posturas e idiosincrasias que conviven en el ámbito médico, la objeción de conciencia se erige como un instrumento legal necesario para proteger la integridad moral de cada persona.

Aborto; Conciencia; Filosofía médica; Derechos civiles

Abstract

In medical community there are very different opinions about abortion. We propose to analyze the philosophical premises that frame the opinion of doctors regarding the legalization of abortion and corroborate how they vary according to the generational belonging of professionals; as well as establishing the role that conscientious objection plays to achieve a balance against the variety of existing positions. We conducted semi-structured interviews to doctors and students about their opinion about abortion legalization and the reasons on which they based their positions. Younger physicians were who approved legalization in greater proportion with arguments offered with a public health perspective. Due to the great variability of positions and idiosyncrasies that coexist in the medical field, conscientious objection is established as a necessary legal instrument to protect the moral integrity of each person.

Abortion; Conscience; Philosophy, medical; Civil rights

Durante o ano de 2018, foi apresentado, na República Argentina, o projeto de lei “Interrupción Voluntaria del Embarazo – IVE ([Interrupção Voluntária da Gestação) 11. Argentina. Proyecto 1376-D-2018. Ley de interrupción voluntaria del embarazo [Internet]. Cámara de Diputados. Buenos Aires, 2018 [acesso 31 out 2018]. Disponível: https://bit.ly/2N4IpXT
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ao Congresso Nacional para sua possível aprovação. Este projeto propõe a não penalização e a legalização do direito ao aborto a toda gestante, acessível em todos os órgãos de saúde da Nação.

Além do tratamento no Congresso, em nível social, o aborto ocupa um lugar de destaque em todo debate público, sendo abordado por diferentes aspectos fundamentais como a vida, a morte, a saúde, a religião, a ética e a moral, entre outros. Vivemos na era da razão, porém estamos imersos em uma heterogeneidade cultural em que as razões são tão numerosas e diversificadas como os indivíduos e, em que, com frequência, os argumentos são contraditórios 22. Sánchez FF. Aborto no punible: cuestiones filosóficas de un debate que nos trasciende. Inmanencia [Internet]. 2013 [acesso 31 out 2018];3(1):6-9. Disponível: https://bit.ly/2KMZVx3
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: cada pessoa possui suas próprias convicções no que diz respeito à ética, religião, moral e filosofia, ou seja, sua própria consciência.

Na Argentina, a Constituição Nacional defende a liberdade de consciência e de culto no seu artigo 14 33. Argentina. Ley nº 24.430, de 15 de diciembre de 1994. Constitución de la Nación Argentina [Internet]. Congreso Nacional. Buenos Aires, 3 jan 1995 [aceso 31 out 2018]. art. 14. Disponível: https://bit.ly/2eedveP
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, bem como o direito à autonomia, no artigo 19 44. Argentina. Op. cit. 1995 . art. 19. . Dessa forma, cada indivíduo pode, no exercício da sua autonomia, agir com liberdade de consciência. Isso está estabelecido como um imperativo ético e a sua contemplação faz parte dos direitos humanos fundamentais.

O respeito a esta liberdade se traduz em duas dimensões: por um lado, por meio da tolerância em relação à diversidade e às diferenças e, por outro, buscando evitar a imposição de princípios morais que vão de encontro às íntimas convicções das pessoas. Em outras palavras, a sociedade democrática moderna possui, dentre seus valores fundamentais, o respeito pela moral alheia 55. Fernández Lerena MJ. La objeción de conciencia. Diccionario enciclopédico de la legislación sanitaria [Internet]. 2017 [acesso 31 out 2018]. Disponível: https://bit.ly/2KC4ewk
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Dentro deste conceito, se encaixa a Objeção de Consciência, definida como o direito subjetivo do indivíduo em desobedecer a norma jurídica que imponha ações ou omissões contrárias às suas convicções religiosas, morais ou éticas 66. Provincia de San Luis. Ley nº I-0650-2008, de 17 de diciembre de 2008. El estado provincial garantiza a todos los habitantes de la Provincia de San Luis el derecho fundamental a no actuar en contra de la propia conciencia personal. Boletín [Internet]. San Luis, nº 13372, 31 dez 2008 [acesso 31 out 2018]. art. 2. Disponível: https://bit.ly/2Z3hlyx
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. Neste contexto, pode-se estabelecer que os objetores de consciência são todas as pessoas que têm dado prioridade aos pareceres da sua própria moral em relação aos mandatos e normas legais ou de qualquer outra autoridade. Por tanto, o fundamento para a desobediência ao Direito está justamente na distinção entre a legalidade e a moralidade 77. Santos LGR. La objeción de conciencia: fundamentos y justificación. Bioética [Internet]. 2010 [acesso 31 out 2018];10(3):I-IV. Disponível: https://bit.ly/2KAVPcp
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A moralidade é uma construção social na qual estão envolvidos interesses e desejos, sentimentos e atitudes, valores, ideais e preferências, relações de poder e conhecimento, presentes em cada momento. Desta forma, as mudanças sociais afetam o nosso ethos . As normas morais constituem os artefatos sociais que procuram dar respostas aos conflitos que dão origem a novas situações 88. Heler M . La construcción social de las normas morales . Tópicos [Internet]. 2008 [acesso 31 out 2018 ];( 16 ). Disponível: https://bit.ly/2OYjWWX
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Então, vez que as normas morais não são estáticas, mas construções sociais, elas têm o potencial de se alterar segundo a variação da ideologia do coletivo social e, na comunidade médica, por esta ser composta por atores sociais distintos, também existem opiniões muito discrepantes com relação a temas eticamente dilemáticos em geral e, em particular, com relação ao aborto. Propusemos analisar, a partir da filosofia moral, as premissas que influenciam a opinião dos médicos no que diz respeito à legalização da prática abortiva e demonstrar se elas variam à medida em que muda a geração à qual pertencem os profissionais; como também analisar o papel que a objeção de consciência cumpre como instrumento legal, a fim de que nenhum indivíduo tenha sua moral fragilizada caso esteja contra a lei estabelecida pela maioria. Isso favorecerá a compreensão e tolerância entre colegas, permitindo que cada um respeite suas próprias convicções morais sem se descuidar do direito dos pacientes.

Materiais e método

Foi realizado um trabalho do tipo qualitativo através de entrevistas semiestruturadas interpretativas, com médicos da cidade de Santa Fé e estudantes de medicina da Faculdade de Ciências Médicas da Universidad Nacional del Litoral. Os questionários buscavam a opinião dos entrevistados sobre o projeto de lei, especificamente se lhes parecia correto ou não legalizar o aborto; em caso de resposta negativa, era perguntado se estavam de acordo com as causas segundo as quais o Código Penal Argentino declarava o aborto não punível 99. Argentina. Ley nº 11.179/1984. Código Penal de la Nación Argentina [Internet]. 1984 [acesso 31 out 2018]. art. 86, incisos 1-2. Disponível: https://bit.ly/2gH2pl5
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(evitar um perigo para a vida ou para a saúde da mãe e se este perigo pode ser evitado por outros meios; ou em caso de gravidez decorrente de estupro) 1010. Argentina. Corte Suprema de Justicia de la Nación. F. A. L. s/ medida autosatisfactiva [Internet]. 13 mar 2012 [acesso 31 out 2018]. Disponível: https://bit.ly/2HbocvU
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Foram analisados quatro grupos de gerações, divididos da seguinte maneira:

  • Geração baby boomers: Pessoas nascidas entre 1945-1964;

  • Geração X: Nascidos entre 1965-1981;

  • Geração Y ou millennials: nascidos entre 1982-1994;

  • Geração Z ou centennials: nascidos entre 1995 e hoje.

Cabe informar que o grupo Y (millenials) foi subdividido em dois: Graduados e Estudantes.

Resultados

Foram realizadas 25 entrevistas no total, sendo 14 mulheres e 11 homens. 15 delas foram dirigidas a profissionais médicos da cidade de Santa Fé: 5 a médicos que fazem parte da geração baby boomers (60 a 71 anos), 5 a médicos que fazem parte da geração X (40 a 46 anos) e 5 a médicos pertencentes à geração Y ou millennials (24 a 33 anos).

As demais entrevistas foram realizadas com estudantes da carreira de Ciências Médicas da Universidad Nacional del Litoral: 5 com estudantes pertencentes à geração Y ou millennials (estudantes dos 5º e 6º anos, com idades entre 24 e 26 anos) e 5 com estudantes da geração Z (estudantes dos 1º e 2º anos, com idades entre 18 e 21 anos).

No total dos entrevistados, os resultados foram equilibrados, em que 13 pessoas se manifestaram a favor e 12 pessoas contra à aprovação do projeto de lei.

As razões justificadas por aqueles que se manifestaram a favor, independentemente da idade, eram similares: garantir um ambiente seguro para a sua realização, minimizando as complicações produzidas devido à clandestinidade e assegurando a equidade no momento de solicitar a prática, independentemente da situação econômica da mulher grávida. Deste modo, diziam, todas poderiam realizá-lo em igualdade de condições e com o mesmo grau de segurança. Opinaram ainda que isto garantiria a redução do número de mortes secundárias a abortos realizados em condições precárias, resultantes da negligência e imprudência frequentes na prática clandestina.

Em relação aos que se manifestaram contra a legalização, as razões foram basicamente abordadas a partir de dois enfoques. De um lado, a maioria afirmou que se opunha por considerar que, em princípio, o foco deve ser dirigido à educação sexual, que é considerada a base fundamental da saúde reprodutiva e, enquanto esta questão não for fortalecida, não se considera apropriado aprovar o aborto. Entretanto, eles estavam de acordo com as condições nas quais o Código Penal não considera punível o aborto (no caso de estupro e risco para a saúde materna quando não possa ser evitado de outra maneira), por considerar que ambas as situações provocam um risco físico ou psicológico para a mãe e, deste modo, preferem priorizar a saúde e a decisão da mulher por considerar um “mal menor”.

Por outro lado, uma minoria se manifestou contra, por considerar que nunca é correto matar um ser, acreditando ser o aborto como algo inadmissível segundo os princípios éticos da nossa sociedade. Cabe destacar que este último grupo também não se encontrava de acordo com as causas contempladas pelo Código Penal, manifestando que nenhuma vida deve ser sacrificada sob nenhum aspecto.

Por último, analisando as respostas por grupos de gerações, foi no grupo millennial que predominaram as posturas a favor, com predominância daqueles que já eram médicos, expressando os argumentos previamente expostos. Nas gerações mais velhas ( baby boomers e X) observou-se que a maioria está em desacordo, com preponderância de respostas negativas na geração X; por outro lado, somente neste último grupo havia pessoas que também não estavam de acordo com a permissividade do aborto em caso de estupro ou doença: “ Priorizo a vida, não castigaria um ser inocente independentemente do que tenha passado a mãe. Procuraria ajudá-la de outra maneira, desde o acompanhamento e a contenção ” (Médica, 41 anos).

Discussão

Existe uma grande variedade de opiniões em torno do tema do aborto. De um modo geral, são observados (independente da postura) dois tipos de argumentos, sendo que alguns fazem um julgamento moral da prática abortiva e outros expressam razões por meio de uma perspectiva voltada à saúde pública.

Por sua vez, dentro de cada grupo, existem argumentos tanto ideológicos como utilitaristas. Como exemplo, poderíamos mencionar aqueles que se mantiveram a favor: alguns alegavam que a legalização da prática provocaria uma redução do número de mortes maternas decorrentes de condições inseguras e insalubres, entendendo que, embora o número de abortos não diminuísse, haveria redução da mortalidade materna. Outros afirmaram que, por ser uma problemática que cruza transversalmente todos os estratos sociais, a sua legalização garante que todas as mulheres possam realizá-lo com o mesmo nível de segurança, e não somente aquelas que possuem condições financeiras suficientes para pagar por isso, ou seja, que a segurança do processo não dependeria mais do poder aquisitivo de cada mulher, terminando assim com a inequidade gerada pela marginalidade. Neste exemplo, observa-se como argumentos fornecidos a partir da mesma abordagem (saúde pública), respondem a diferentes posturas. Por um lado, o enfoque utilitarista que procura reduzir o número de mortes maternas (mal menor) e, por outro, uma abordagem deontológica de equidade e igualdade de direitos para todas as mulheres.

Por outro lado, aqueles que estiveram contra também se posicionaram segundo dois enfoques: alguns a partir do enfoque moral, de índole deontológica, sustentando que “ Toda vida tem valor, e matar é errado sob qualquer aspecto ”; outros, por meio da perspectiva da saúde pública, manifestaram que a raiz do problema seria a carência em termos de educação sexual e tratar o tema do abordo seria simplesmente se preocupar com o último estágio da cadeia, em vez de priorizar questões primárias e, uma vez alcançado isso, o aborto seria uma ferramenta de último recurso.

Neste contexto de tão variadas posturas, cabe perguntar como se pode chegar a um acordo como sociedade. John Rawls 1111. Rawls J. Liberalismo político [Internet]. Ciudad del México: Fondo de Cultura Económica; 2014 [acesso 31 out 2018]. Disponível: https://bit.ly/2HkTeTl
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chamou esta variabilidade de argumentos de pluralismo razoável, ou seja, diversidade de doutrinas razoáveis (tanto religiosas, filosóficas como morais) mas incompatíveis entre si e, para alcançar a comunhão entre elas, o autor estabelece o conceito de “liberalismo político”, que não combate a mencionada pluralidade de doutrinas, mas que procura criar uma justiça pela qual todos os cidadãos, por mais diferentes que sejam suas crenças, possam aceitar e subscrever, isso é, que as razões que sustentam diferentes decisões políticas devam ter ingerência na razão pública .

Em outras palavras, se consideramos todos os cidadãos livres e iguais, é lógico afirmar que a deliberação pública deve orientar-se por uma concepção política cujos princípios e valores sejam aceitáveis por todos os indivíduos de uma sociedade. Assim, excluem-se aqueles argumentos que não se pode exigir que outros compreendam e aceitem, constituindo, deste modo, uma forma de se impor limites aos tipos de raciocínio que podem ser fornecidos no debate democrático 1212. Papayannis DM. La objeción de conciencia en el marco de la razón pública. Revista Jurídica de la Universidad de Palermo [Internet]. 2008 [acesso 31 out 2018];(1):55-82. Disponível: https://bit.ly/2YRi1I7
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Em resumo, para que sejam estabelecidos debates de ingerência pública, é necessário deixar de lado os argumentos pessoais e considerar apenas aqueles com enfoque através de uma perspectiva social, sem impor julgamentos pessoais a causas gerais. Isso quer dizer que, para decisões de repercussão social, como é a declaração de uma lei, não seriam válidos os argumentos baseados na moral pessoal como os expressos por alguns dos entrevistados.

Por outro lado, alguns daqueles que expressaram estar de acordo com a lei por meio da perspectiva da saúde pública, manifestaram que, embora em termos coletivos, a lei teria um impacto positivo e, por isso, estão de acordo que ela seja aprovada; em nível pessoal, são adversos a ela por suas convicções morais, pois supõem que não poderiam realizar um aborto na sua prática médica.

Neste contexto perguntamos: O que acontece quando uma determinada norma vulnera os princípios morais de alguém? Do que poderia se valer este indivíduo para lutar contra os regulamentos impostos pela sociedade em defesa da sua própria moral? Como se justifica como “direito” uma desobediência ao que se encontra socialmente estabelecido como legal? Em princípio, e antes de se analisar a desobediência à lei, deve-se perguntar o que impulsiona os cidadãos a cumprirem os deveres legais.

Rawls 1313. Rawls J. Legal obligation and the duty of fair play. In: Freeman S, editor. Collected papers. Cambridge: Harvard University Press; 1964 . p. 117-29. sustenta que em uma sociedade com uma constituição justa como a Argentina (justa no sentido de tratar todos iguais e estar baseada em decisões democráticas), em que as leis são aprovadas por votação, sempre existirá uma minoria em desacordo com a lei estabelecida, principalmente a partir de seus princípios morais. Logo, pergunta-se: o que leva esta minoria que está em desacordo com a lei a cumpri-la integralmente? Chega-se assim à conclusão de que a constituição define um esquema justo de cooperação por meio do qual se pode desfrutar dos benefícios que ela proporciona na medida em que cada cidadão participe, sendo que isto implica em um certo sacrifício por parte de cada um, ou pelo menos, uma certa restrição da sua liberdade.

Neste sentido, aquela pessoa que aceitou os benefícios que este pacto social propõe, está comprometida moralmente pelo dever de jogo limpo a fazer sua parte e não tomar vantagem dos benefícios sem cooperar; é uma obrigação adquirida para com os outros cidadãos. Por último, é importante mencionar que o papel do aparato jurídico é fazer valer as leis aprovadas democraticamente, através da lei da maioria, sem entrar na análise da moralidade das mesmas. O marco da cooperação social e renúncia das liberdades individuais em prol de um bem social comum se baseia na teoria de Rawls e relembra o conceito de “Pacto Social” que Rousseau havia propostos séculos antes.

Este filósofo, na sua obra “El contrato social” 1414. Rousseau JJ. El contrato social. Buenos Aires: Libertador; 2015 . expressa que a maneira mais acertada de se organizar uma sociedade é através de um pacto social, para que seja criada uma força comum, dirigida com base na vontade geral e que deixe de lado as vontades individuais e onde cada homem se submeta a ele, com a finalidade de buscar um bem maior e comum. Para Rousseau 1414. Rousseau JJ. El contrato social. Buenos Aires: Libertador; 2015 . , nenhuma lei pode ser injusta já que elas são registros da vontade geral, funcionando com um denominador comum das vontades individuais, sem responder a particulares. Em outras palavras, para Rousseau, não seria justificada, sob nenhum aspecto, a desobediência ao poder, já que neste caso, se estaria violando o contrato social pelo qual se estabelece a ordem de uma sociedade.

Outro grande representante da filosofia política é Thomas Hobbes 1515. Hobbes T. Leviatán. Buenos Aires: Libertador; 2013 . , o qual sustenta que o homem forma sociedades para garantir sua sobrevivência, já que as paixões naturais dos seres humanos levariam a um constante estado de guerra; assim, estes decidem restringir sua liberdade individual formando Estados, com a finalidade de cuidar da sua própria conservação e atingir uma vida mais harmônica. Entretanto, uma vez que o homem é egoísta por natureza e que o estado de colaboração e tolerância necessário para manter acordos não é inerente ao ser humano, é preciso que exista um certo poder que provoque medo para garantir a manutenção das paixões humanas sob controle e assegurar o correto funcionamento do Estado. Neste caso, é este Estado ou “Leviatã” quem cuida da nossa paz e da nossa defesa.

Assim, Hobes define que, pela autoridade que cada homem em particular confere ao Estado, por meio do terror que ele inspira, é capaz de moldar a vontade de todos para a paz e a ajuda mútua.

Em resumo, todas as teorias anteriormente expostas estão de acordo que a melhor opção, para se chegar a uma ordem social, baseia-se na renúncia das liberdades individuais para poder formar um acordo que garanta o bem-estar geral. Entretanto, são diferentes as maneiras pelas quais as pessoas se mantém em conformidade com a lei; por um lado, o contrato social de Rousseau ou a teoria do jogo limpo de Rawls apelam para a consciência humana como motor para se cumprir a lei. Já Hobbes sustenta que a obediência legal ocorre pelo terror que o castigo imposto pelo Estado provoca face à desobediência da norma estabelecida.

Agora, tendo analisado a maneira pela qual os indivíduos cumprem a lei, voltamos à pergunta original: Como se justifica a desobediência a una norma uma vez que ela repercute negativamente sobre a moral pessoal? Rawls, na sua obra posterior, aborda até que ponto deve ser obrigatório o dever de obedecer às leis promulgadas por uma maioria legislativa (…) em relação ao direito à defesa de suas próprias liberdades e ao dever de nos opormos à injustiça? 1616. Rawls J. Teoría de la justicia. 2ª ed. Ciudad del México: Fondo de Cultura Económica; 1995 . .

Em princípio, deve-se recordar que o objetivo da objeção de consciência como uma ferramenta legal não é a obstrução de uma norma, mas obter o legítimo respeito à sua própria consciência. O objetor concorda com o fato de que a norma faz parte de um sistema judicial justo, porém, por razões morais, não pode cumpri-la. Isto justamente diferencia a objeção de consciência da desobediência civil. Neste contexto, a principal teoria do autor é que o respeito e a tolerância de certas rejeições de consciência se devem ao fato que os mesmos concordam racionalmente com um dos princípios da justiça, que seria: Cada pessoa deve ter direito igual ao mais amplo sistema de liberdades básicas, compatível com um sistema similar de liberdade para todos 1616. Rawls J. Teoría de la justicia. 2ª ed. Ciudad del México: Fondo de Cultura Económica; 1995 . .

Neste sentido, é razoável que ninguém deva ver o seu direito à liberdade de consciência violado, uma vez que a objeção de consciência não deveria influenciar na liberdade alheia, mas apenas respeitar a sua própria. Pode-se dizer, em geral, que o princípio de justiça anteriormente exposto torna-se mais, e não menos, seguro.

Então, dada à grande viabilidade de posturas morais que coexistem em uma sociedade, é razoável supor que, sob o amparo de uma constituição justa, poderão ser aprovadas leis que, em determinadas circunstâncias, serão contrárias às considerações morais de alguns dos cidadãos. Assim, o sistema legal deverá procurar resolver as ditas discrepâncias se quiser manter a estabilidade político-social que pretende. Uma forma eficaz de atingir este objetivo é através do reconhecimento do caráter moral do cidadão, incorporado no direito de desobedecer à lei quando as consequências de a obedecer forem mais prejudiciais do que a primeira ação 1717. Cotroneo C. ¿Obligación moral de obedecer al derecho? La desobediencia civil en Rawls y su inclusión en el positivismo jurídico incluyente. Derecho Humanidad [Internet]. 2015 [acesso 31 out 2018];(25):63-85. Disponível: https://bit.ly/2YL4Qs6
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, sem que isso obstrua o direito de terceiros.

Diversos autores consideram que a objeção de consciência é uma ferramenta legal necessária para qualquer pessoa, independentemente de sua profissão ou ofício, que lhe permite e o estimula negar-se a cumprir uma ordem, uma imposição ou uma determinação, seja qual for a sua origem, uma vez que esta esteja em contradição com suas convicções e que a sua consciência indique a não obediência, já que esta (e não a lei) protege a dignidade própria e irrenunciável do ser humano 1818. Velásquez-Córdoba LF, Córdoba-Palacio R. Objeción de conciencia y la antropología filosófica. Pers Bioét [Internet]. 2010 [acesso 31 out 2018];14(2):167-75. Disponível: https://bit.ly/2N4Xf0x
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.

Entretanto, o problema básico que aborda a objeção de consciência é a dificuldade de encontrar seus limites e estabelecer as circunstâncias para a sua justa aplicação. Para resolver estas questões, é importante entender que não existe um direito à objeção de consciência, mas direito à liberdade de consciência e este último é o que habilita a objeção como uma prerrogativa do profissional para resguardar seus princípios morais 1919. Távara Orozco L. Objeción de conciencia. Rev Peru Ginecol Obstet [Internet]. 2017 [acesso 31 out 2018];63(4):581-90. Disponível: https://bit.ly/2P0xux4
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.

Por outro lado, é uma ferramenta de uso individual, adotada para manter a integridade moral daqueles indivíduos que consideram que o cumprimento da lei iria de encontro as suas mais profundas convicções morais e que não poderiam ser utilizadas como meio de protesto face à norma, com a finalidade de impor ideologias alheias ou, muito menos, dificultar ou retardar a prática do procedimento ou conduta aos quais sejam contrários (situação na qual existiria uma colisão de direitos). Para evitar tal situação, o profissional objetor deve prover o paciente dos meios necessários para que a prática ou procedimento solicitados, amparados pela lei, possam ser cumpridos em tempo e forma por outro profissional não objetor 2020. Beca JP , Astete C . Objeción de conciencia en la práctica médica . Rev Med Chile [Internet]. 2015 [acesso 31 out 2018]; 143 ( 4 ): 493 - 8 . Disponível: https://bit.ly/2WCm4WY
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Poderíamos dizer, então, que a objeção de consciência jamais deve prejudicar ou impedir o direito dos pacientes, estabelecendo assim o limite da sua aplicação. Corretamente utilizada e regulada, a objeção de consciência é um recurso seguro que não afeta o paciente, mas que apenas resguarda o médico. Em outras palavras, amplia as liberdades sem restringir os direitos.

Considerações finais

Dentro do contexto médico, as posturas diante da legalização do aborto se baseiam em uma grande variedade de posturas morais e enfoques diferentes, com uma tendência em apoia-la, à medida que decresce a idade dos médicos. Nestes grupos, os argumentos se afastam da moral pessoal e ganham um enfoque social e geral, a partir de questões de ingerência pública, como a Saúde Pública. Diante de tão variadas posturas e idiossincrasias que convivem em uma sociedade, em particular no contexto médico, a objeção de consciência ergue-se como um instrumento legal necessário para proteger a integridade moral de cada pessoa, respeitando a consciência individual sempre que o fato não afete o direito de outra pessoa. Esta parece ser a forma mais justa de se atuar diante de situações eticamente dilemáticas, evitando-se vulnerar a autonomia dos médicos sem se descuidar do direito dos pacientes.

Referências

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  • 16
    Rawls J. Teoría de la justicia. 2ª ed. Ciudad del México: Fondo de Cultura Económica; 1995 .
  • 17
    Cotroneo C. ¿Obligación moral de obedecer al derecho? La desobediencia civil en Rawls y su inclusión en el positivismo jurídico incluyente. Derecho Humanidad [Internet]. 2015 [acesso 31 out 2018];(25):63-85. Disponível: https://bit.ly/2YL4Qs6
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  • 18
    Velásquez-Córdoba LF, Córdoba-Palacio R. Objeción de conciencia y la antropología filosófica. Pers Bioét [Internet]. 2010 [acesso 31 out 2018];14(2):167-75. Disponível: https://bit.ly/2N4Xf0x
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    » https://bit.ly/2WCm4WY

Anexo

Entrevista semiestruturada realizada com médicos da cidade de Santa Fé e estudantes de medicina da Faculdade de Ciências Médicas da Universidad Nacional del Litoral:

Sexo: __________________

Qual a sua idade? _______

Você concorda com a aprovação do projeto de lei que visa legalizar o aborto na Argentina?

___________________________________________________________________________________________________

Por quê? __________________________________________________________________________________________

___________________________________________________________________________________________________

Existe alguma exceção que poderia mudar a sua opinião?

___________________________________________________________________________________________________

Que impacto você acredita que esta lei possa vir a ter na prática médica?

___________________________________________________________________________________________________

No caso de ter respondido negativamente a segunda pergunta: Concorda que o aborto não seja punível no caso de uma gravidez que ponha em risco a saúde materna ou que seja decorrente de estupro, como atualmente estabelece o Código Penal?

___________________________________________________________________________________________________

Por quê? __________________________________________________________________________________________

___________________________________________________________________________________________________

No caso de estar de acordo, por que lhe parece correto praticar um aborto nestas circunstâncias e não em outras? Onde está a diferença?

___________________________________________________________________________________________________

Existe alguma exceção que poderia mudar a sua posição?

___________________________________________________________________________________________________

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    26 Set 2019
  • Data do Fascículo
    Jul-Sep 2019

Histórico

  • Recebido
    7 Nov 2018
  • Revisado
    28 Jan 2019
  • Aceito
    17 Abr 2019
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