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Cuidadores formais e assistência paliativa sob a ótica da bioética

Resumo

A partir dos significados atribuídos ao tratamento paliativo por cuidadores formais de Pouso Alegre, Minas Gerais, Brasil, esta pesquisa pretende identificar e compreender possíveis hiatos na formação desses profissionais. O estudo é de caráter descritivo, exploratório e transversal; a amostragem foi intencional e seguiu a técnica bola de neve. Foram utilizados dois instrumentos para coletar os dados: questionário de caracterização pessoal e profissional e roteiro de entrevista semiestruturada. Para analisar os dados, utilizou-se o método do discurso do sujeito coletivo. As representações sociais relatadas foram: “cuidado”; “diversos significados”; “amor, carinho, atenção, dedicação ao paciente”; e “ir além de gostar”. Aprovação CEP-Univás 62531216.6.0000.5102

Cuidados paliativos; Bioética; Cuidadores

Abstract

From the meanings attributed to palliative treatment by formal caregivers of Pouso Alegre, Minas Gerais, Brazil, this study aims to identify and understand possible gaps in the training of these professionals. The study is descriptive, exploratory and cross-sectional; sampling was intentional and followed the snowball technique. Two instruments were used to collect data: a personal and professional characterization questionnaire and a semi-structured interview. The collective subject discourse method was used to analyze the data. The social representations reported were: “care”; “Various meanings”; “Love, care, attention, dedication to the patient”; and “go beyond liking”. Aprovação CEP-Univás 62531216.6.0000.5102

Palliative care; Bioethics; Caregivers

Resumen

A partir de los significados atribuidos al tratamiento paliativo por parte de cuidadores formales de Pouso Alegre, Minas Gerais, Brasil, esta investigación pretende identificar y comprender posibles hiatos en la formación de estos profesionales. El estudio es de carácter descriptivo, exploratorio y transversal; el muestreo fue intencional y siguió la técnica de bola de nieve. Se utilizaron dos instrumentos para recolectar los datos: cuestionario de caracterización personal y profesional y guion de entrevista semiestructurada. Para analizar los datos, se utilizó el método del discurso del sujeto colectivo. Las representaciones sociales relatadas fueron: “cuidado”; “diversos significados”; “amor, cariño, atención, dedicación al paciente”; e “ir más allá del gusto”. Aprovação CEP-Univás 62531216.6.0000.5102

Cuidados paliativos; Bioética; Cuidadores

Na “ Encyclopedia of bioethics ”, Reich 11. Reich WT. Encyclopedia of bioethics. New York: Free Press-Macmillan; 1978 . define a bioética como estudo sistemático e interdisciplinar de dimensões morais que utiliza múltiplos métodos. Nela se inserem a visão, a decisão e a conduta ética das normas das ciências da vida e da saúde, conciliando conhecimentos e valores humanos e biológicos. A bioética da proteção – referencial adotado no presente estudo – é corrente recente nesse campo do conhecimento e foi uma resposta ao processo de globalização que tornou vulneráveis contingentes populacionais inteiros, excluídos da capacidade de desenvolver suas potencialidades e garantir a própria dignidade, direito fundamental do ser humano.

Um dos muitos temas aos quais a bioética dedica atenção são os cuidados paliativos – modalidade emergente de assistência no fim da vida, desenvolvida a partir de modelo de cuidado total oferecido ao paciente com doença avançada e terminal e a seus familiares, tendo por fundamento o direito de morrer com dignidade 22. Floriani CA , Schramm FR . Cuidados paliativos: interfaces, conflitos e necessidades . Ciênc Saúde Coletiva [Internet]. 2008 [acesso 5 ago 2018]; 13 (Supl 2): 2123 - 32 . Disponível: https://bit.ly/2wUJR5G
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. Esses cuidados são multiprofissionais e têm por finalidade controlar sintomas corporais, mentais, espirituais e sociais que afligem a pessoa quando a morte se aproxima, uma vez que nessa situação ela necessita de proteção dada a fragilidade que muitas vezes pode impedir sua autonomia 33. Schramm FR . A bioética de proteção: uma ferramenta para a avaliação das práticas sanitárias? Ciênc Saúde Coletiva [Internet]. 2017 [acesso 9 ago 2018]; 22 ( 5 ): 1531 - 8 . DOI: 10.1590/1413-81232017225.04532017 .

A etimologia confirma tal definição, uma vez que a base do termo “paliativo” é “pálio”, do latim pallium , que significa “manto”, símbolo da proteção no processo de morrer 44. Mendonça AVPM, Dutra EMS, organizadoras. Dos ganhos teleológicos em cuidados paliativos. Curitiba: Prismas; 2016 .

5. Silva JV, Andrade FN, Nascimento EM. Cuidados paliativos: fundamentos e abrangência. Rev Ciênc Saúde [Internet]. 2013 [acesso 5 ago 2018];3(3):56-73. DOI: 10.21876/rcsfmit.v3i3.242
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- 66. Santos FS. O desenvolvimento histórico dos cuidados paliativos e a filosofia hospice. In: Santos FS, organizador. Cuidados paliativos, diretrizes, humanização e alívio de sintomas. São Paulo: Atheneu; 2011 . p. 3-15. . Daí a ideia de proteger, amparar, cobrir e agasalhar quando a cura de determinada doença não é mais possível. Ademais, nesse contexto também a família é acolhida pela equipe multiprofissional, pois compartilha do sofrimento do paciente.

Os cuidados paliativos surgiram em Londres, em 1967, com Cicely Saunders à frente do movimento Hospice e da fundação do St. Christopher’s Hospice , que ganharam grande repercussão internacional 11. Reich WT. Encyclopedia of bioethics. New York: Free Press-Macmillan; 1978 . , 44. Mendonça AVPM, Dutra EMS, organizadoras. Dos ganhos teleológicos em cuidados paliativos. Curitiba: Prismas; 2016 . , 66. Santos FS. O desenvolvimento histórico dos cuidados paliativos e a filosofia hospice. In: Santos FS, organizador. Cuidados paliativos, diretrizes, humanização e alívio de sintomas. São Paulo: Atheneu; 2011 . p. 3-15. , 77. McCoughlan M. A necessidade de cuidados paliativos. In: Pessini L, Bertachini L, organizadores. Humanização e cuidados paliativos. São Paulo: Loyola; 2009 . p. 167-79. . Ao longo do tempo o conceito se estendeu, ligando-se à medicina paliativa que, por sua vez, remete à prática de escutar e compreender, propondo tratamentos que aliviem as dores de pacientes terminais.

Em 1990, a Organização Mundial da Saúde (OMS) definiu assistência paliativa como cuidado focado em pessoas cuja doença já não responde aos tratamentos apropriados, visando o controle da dor e de outros sintomas psicológicos, espirituais e sociais a fim de melhorar a qualidade de vida do paciente e de seus familiares 88. World Health Organization . WHO definition of palliative care [Internet]. Geneva: WHO; 2010 [acesso 8 fev 2018]. Disponível: https://bit.ly/1SXHxiy
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. Apenas nos anos 1980 a medicina paliativa chegou ao Brasil, e duas décadas depois, em fevereiro de 2005, a criação da Academia Nacional de Cuidados Paliativos (ANCP) foi marco para a história da medicina no país 99. Alves EF . A comunicação da equipe de enfermagem com o paciente em cuidados paliativos . Semina Ciênc Biol Saúde [Internet]. 2013 [acesso 8 ago 2018]; 34 ( 1 ): 55 -62. Disponível: https://bit.ly/2XIaKWw
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.

Portanto, os cuidados paliativos representam quebra de paradigmas, haja vista que não são protocolos, mas princípios morais que os norteiam; e o cerne de sua atenção e atuação não é a doença, mas o bem-estar. Esse tipo de tratamento busca, pela primeira vez na medicina, integrar a ciência à espiritualidade e à psicologia como meio de apoiar o paciente, estimulando-o a viver mais ativamente até a morte, bem como assistindo e aconselhando seus familiares no luto.

Os cinco princípios da assistência paliativa são: 1) veracidade, que constitui o amadurecimento da relação entre as partes, potencializando a participação dos pacientes e familiares na tomada de decisão; 2) prevenção, que busca condutas clínicas que evitem complicações e prezem tratamento proporcional e adequado; 3) não abandono, que se refere à postura ética diante dos desafios profissionais no cuidado do paciente terminal; 4) duplo efeito, que preza a conduta ética e legal ao decidir por ações que causam bons e maus efeitos – por exemplo, administrar fármacos que levam à perda da vigilância ou da consciência; 5) proporcionalidade terapêutica, que alude ao equilíbrio das intervenções quanto aos meios empregados e os resultados esperados 1010. Taboada P . El derecho a morir con dignidad . Acta Bioeth [Internet]. 2000 [acesso 7 ago 2018]; 6 ( 1 ):89-101. Disponível: https://bit.ly/2KjpyI6
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.

Outros princípios importantes são destacados por Pessini, Bertachini e Barchifontaine 1111. Pessini L, Bertachini L, Barchifontaine CP, organizadores. Bioética, cuidado e humanização. São Paulo: Loyola; 2014 . , por exemplo, ter compaixão para se colocar no lugar do enfermo e imaginar o que ele desejaria para si. Dessa forma, os cuidados paliativos demandam profissional que permaneça com o paciente constantemente: o cuidador formal. No entanto, muitas vezes esses profissionais não têm formação adequada para desempenhar essa função 1212. Neri AL. Bem-estar e estresse em familiares que cuidam de idosos fragilizados e de alta dependência. In: Neri AL, organizadora. Qualidade de vida e idade madura. Campinas: Papirus; 1993 . p. 237-85. , referindo-se a si mesmos como “acompanhantes com prática de enfermagem”, ou seja, sem qualquer curso de enfermagem, seja técnico ou superior, o que pode colocar em risco a qualidade de vida do enfermo terminal 1313. Duarte YAO. Cuidadores de idosos: uma questão a ser analisada. O Mundo da Saúde. 1997 ;21(4):226-30. .

Hoje, a assistência paliativa é fornecida também no ambiente domiciliar, inclusive com tecnologia mais avançada, como os respiradores artificiais. Essas situações requerem que cuidadores formais substituam os informais, o que impulsiona o surgimento de empresas de home care , que dão assistência paliativa profissional.

É comum que cuidadores formais enfrentem sobrecarga no exercício profissional devido à assistência prestada e ao vínculo que estabelecem com os enfermos. Muitas vezes, esses profissionais não têm tempo para se cuidar, comprometendo a própria saúde (isso ocorre principalmente quando a cuidadora é do sexo feminino, pois é comum que mulheres também tenham tarefas no lar, exercendo mais de um turno de trabalho).

É imprescindível que o paciente seja atendido com humanidade, com respeito à sua autonomia e aos princípios dos cuidados paliativos. A bioética reforça ainda a dimensão da beneficência e da não maleficência, aspectos norteadores da responsabilidade inerente à atuação desse profissional.

Partindo das definições de cuidado paliativo, o objetivo deste trabalho é identificar as principais lacunas na formação do cuidador formal para esse tipo de tratamento, buscando formas de supri-las. Para tanto, procura-se definir as competências e habilidades necessárias ao profissional, propondo critérios para sua contratação a fim de dar mais segurança e tranquilidade a familiares com entes sob esse tipo de assistência e, futuramente, àqueles que necessitem desses cuidados.

Método

A presente investigação, realizada a partir de abordagem qualitativa, descritiva-exploratória, em recorte transversal, identifica e analisa representações sociais por meio do discurso do sujeito coletivo (DSC), propondo-se a conhecer o significado atribuído por cuidadores formais ao tratamento paliativo, e identificando, além disso, características pessoais, familiares e profissionais dos sujeitos para compreender possíveis hiatos em sua formação. Participaram da pesquisa 20 cuidadores formais que trabalhavam em âmbito domiciliar, residentes da cidade de Pouso Alegre (MG). Todos os entrevistados tiveram seu anonimato, privacidade e sigilo respeitados.

Nas entrevistas, buscou-se compreender o imaginário social e identificar aspectos da formação dos cuidadores formais a partir das peculiaridades semânticas de seu discurso sobre os cuidados paliativos. A amostragem foi intencional, e a seleção dos entrevistados seguiu a técnica bola de neve.

A escolha dos participantes baseou-se nos seguintes critérios de inclusão: 1) contrato ou registro na carteira profissional que atestasse o trabalho como cuidador formal em domicílio, com atuação em tratamento paliativo; 2) ter, no mínimo, seis meses de experiência; e 3) ter, no mínimo, 18 anos de idade. Não foram considerados para a amostra cuidadores formais que não trabalhassem com assistência paliativa ou que tivessem experiência profissional apenas em âmbito hospitalar.

A entrevista com cada cuidador foi agendada previamente, e todos foram informados dos objetivos da pesquisa e da gravação em áudio da conversa, que ocorreu em local tranquilo, livre de interferências, escolhido pelos entrevistados de modo a lhes proporcionar privacidade e segurança. Depois de transcrita a gravação, o material com a fala dos participantes foi devidamente arquivado em local próprio, onde permanecerá por cinco anos, quando será devidamente descartado sem agressão ao meio ambiente, conforme as normas vigentes.

Foram utilizados dois instrumentos de coleta de dados: um questionário fechado e outro semiestruturado. O instrumento com questões fechadas coletou dados sociodemográficos, que foram analisados com o programa Statistical Package for the Social Sciences (SPSS), versão 21. Das variáveis categóricas, foram calculadas a frequência absoluta e relativa; das variáveis contínuas e numéricas, extraíram-se a média, a mediana e o desvio-padrão. O instrumento semiestruturado trazia pergunta aberta sobre o significado do tratamento paliativo: “ Se um amigo lhe perguntasse: ‘Para você, o que significam cuidados paliativos?’, o que você responderia?”.

Em seguida, pelo método do DSC, formulou-se discurso-síntese a partir das respostas dos entrevistados, inseridos no mesmo corpo organizacional ou empenhados em atividades afins. O método fundamenta-se em três figuras metodológicas: expressões-chave (ECH), ideias centrais (IC) (significantes que compilam, de maneira sintética e precisa, o sentido dos discursos recolhidos), e o DSC propriamente dito.

O tratamento e a análise dos dados obedeceram a cinco etapas. Na primeira delas, as respostas por escrito foram lidas várias vezes a fim de se ter ideia geral e melhor compreensão dos textos, e o material em áudio foi transcrito literalmente. Na segunda etapa, todas as respostas foram lidas cuidadosamente e, depois disso, cada resposta foi lida separadamente em busca de padrões, isto é, a primeira questão de todos os respondentes, depois a segunda e, finalmente, a terceira.

A terceira fase consistiu na cópia integral das respostas de cada cuidador à questão 1 do Instrumento de Análise do Discurso 1, com a representação em itálico das ECH, a partir das quais foi possível identificar as IC, que deveriam descrever as ECH, e não interpretá-las. Esse mesmo procedimento foi realizado com as demais questões. A seguir, na quarta etapa, foram agrupadas as IC iguais ou semelhantes. Por fim, por meio das falas dos participantes, efetuou-se o DSC, inserido em outro instrumento denominado Instrumento de Análise do Discurso 2.

Resultados

Foram entrevistados 20 cuidadores formais, com média etária de 36,5 anos (DP±9,78), sendo 85% do sexo feminino, 40% solteiros, 70% autodeclarados católicos e com média de filhos de 1,35 (DP±1,22). Quanto às características profissionais, 40% dos entrevistados afirmaram ser técnicos de enfermagem, com média de tempo de formação de 2,5 anos (DP±1,14); o tempo de experiência no que tange aos anos de atuação profissional como técnico de enfermagem correspondeu a 2,45 anos (DP±1,19). Por outro lado, o tempo médio de atuação que se refere aos anos de atividade como cuidador foi de um ano (DP±1,27).

Entre os 20 participantes, 95% tinham o cuidado em saúde como área de experiência profissional, todos atuavam profissionalmente e 90% se referiam à sua função como “cuidador formal”.

As entrevistas permitiram articular significados para cuidados paliativos em torno de quatro IC: 1) “cuidado” 2) “diversos significados”; 3) “amor, carinho e atenção”; e 4) “ir além de gostar” ( Quadro 1 ).

Quadro 1
Significados de cuidados paliativos: ideias centrais, participantes e frequência do tema

É importante esclarecer que, a IC “cuidado” foi representada por 13 participantes do estudo. Isso significa que, de 13 participantes do estudo, extraiu-se essa mesma IC.

Cuidado

Cuidados paliativos é um ato de cuidar do paciente na fase terminal, é o cuidar num todo, prestando cuidados para evitar e aliviar o sofrimento da melhor forma possível. Com um cuidado digno sempre dialogando e tentando levar tranquilidade ao paciente e à família.

Diversos significados

É a ação da equipe multiprofissional ao paciente em fase terminal, proporcionando o melhor possível em todas as áreas que ele necessita, suprindo a necessidade naquilo que tem deficiência em desenvolver e deixando a família segura. Dar o melhor de si, olhando com outros olhos o paciente para que tenha e sinta conforto.

Amor, carinho, atenção e dedicação com o paciente

Cuidados paliativos é amor, carinho, dedicação, atenção, dignidade, conforto e paciência com o paciente e com a família.

Ir além de gostar

Cuidados paliativos tem que ir além do gostar.

Discussão

De acordo com o DSC, a primeira IC, “cuidado”, indica que o tratamento paliativo “é o ato de cuidar do paciente na fase terminal integralmente, evitando e aliviando o sofrimento da melhor forma possível, por meio de um cuidado digno que dialoga e leva tranquilidade ao paciente e à família”. Assim, em contextos nos quais o bem-estar está comprometido, o cuidado teria como desígnio aliviar as dores físicas e as aflições psicológicas que levam o indivíduo a questionar, depreciativamente, sua existência e potencialidades. Nessas situações, o cuidador formal precisa criar vínculo com o paciente e a família por meio de trabalho que alie tanto conhecimentos técnicos e científicos para lidar com o corpo e a enfermidade quanto a empatia e a sensibilidade com o ser humano.

Portanto, é notória a responsabilidade social do cuidador formal, uma vez que sua atuação protege a dignidade humana do paciente 1414. Conselho Nacional de Saúde. Manual operacional para comitês de ética em pesquisa [Internet]. Brasília: Ministério da Saúde; 2002 [acesso 8 ago 2018]. Disponível em: https://bit.ly/2N6AKIM
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. Mais do que obrigação moral, o ato de cuidar cria intimidade que ultrapassa técnicas e treinamento, estimulando o profissional a extrair de si toda a criatividade e leveza em prol do bem-estar e conforto do paciente e seus familiares 1111. Pessini L, Bertachini L, Barchifontaine CP, organizadores. Bioética, cuidado e humanização. São Paulo: Loyola; 2014 . .

Na segunda IC, ‘‘diversos significados’’, infere-se a partir do DSC que a assistência paliativa é “a ação da equipe multiprofissional que proporciona o melhor atendimento nos mais diversos domínios, suprindo as deficiências da pessoa em fase terminal e transmitindo segurança aos familiares. Essa ação consiste em dar o melhor de si ao assistir o paciente, garantindo o conforto devido”. Nessa perspectiva, o foco recai sobre a equipe multiprofissional, já que as demandas são de naturezas diversas e precisam de olhar holístico e integrado, que traga dignidade e tranquilidade ao enfermo terminal. Esse processo respeita a autonomia do indivíduo, dando a ele a possibilidade de morrer no lar, cercado por seus familiares, amigos e bens pessoais 77. McCoughlan M. A necessidade de cuidados paliativos. In: Pessini L, Bertachini L, organizadores. Humanização e cuidados paliativos. São Paulo: Loyola; 2009 . p. 167-79. .

Em investigação análoga, Fernandes e colaboradores 1515. Fernandes MA , Evangelista CB , Platel ICS , Agra G , Lopes MS , Rodrigues FA . Percepção dos enfermeiros sobre o significado dos cuidados paliativos em pacientes com câncer terminal . Ciênc Saúde Coletiva [Internet]. 2013 [acesso 7 ago 2018]; 18 ( 9 ): 2589 - 96 . Disponível: https://bit.ly/2II1R8V
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também apontam o fato de profissionais da área considerarem a assistência paliativa como integral, humanizada e multidisciplinar, enfatizando que a equipe deve tratar o paciente de maneira individualizada e primar pela excelência, de modo a proteger sua dignidade. Para tanto, os que exercem essa função devem ampliar seu domínio teórico, técnico e ético para prevenir e aliviar o sofrimento do enfermo.

Na mesma perspectiva, a terceira IC engloba compreensão mais humana dos cuidadores formais: “amor, carinho, dedicação, atenção, dignidade, conforto e paciência com o paciente e a família” . Dessa forma, o tratamento paliativo acaba criando envolvimento maior entre as partes, uma vez que, como indica Figueiredo 1616. Figueiredo MTA. A história dos cuidados paliativos no Brasil. Rev Ciênc Saúde [Internet]. 2011 [acesso 5 ago 2018];1(2):2-3. DOI: 10.21876/rcsfmit.v1i2.509
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, são engajadas as quatro dimensões do ser humano: física, mental, espiritual e social.

Com atenção e paciência, o cuidador formal deve trabalhar o afeto, no sentido adequado da palavra nesse contexto, pelo paciente que se encontra fragilizado, oferecendo o seu melhor de modo a fazê-lo se sentir menos impotente. Para tanto, o profissional conta com recursos como o toque terapêutico, a escuta ativa ou a simples presença silenciosa ao lado do enfermo. No tratamento paliativo, duas condições são imprescindíveis para o profissional: a dimensão humana e a competência técnica. Associados, esses dois elementos aliviam o sofrimento e contribuem para a qualidade de vida da pessoa tratada 1717. Potter PA, Perry AG. Fundamentos de enfermagem. Rio de Janeiro: Elsevier; 2009 . .

Na quarta e última IC, “ir além de gostar”, diferentemente dos pontos ligados aos vínculos com o paciente, os entrevistados ressaltaram a importância da relação do cuidador com seu próprio trabalho. É primordial que o profissional cuide de si mesmo, já que a assistência pressupõe disponibilidade, solidariedade, altruísmo, competência técnica e beneficência 1818. Pessini L. Filosofia dos cuidados paliativos: uma resposta diante da obstinação terapêutica. In: Pessini L, Bertachini L, organizadores. Op. cit. p. 181-208. . Além da habilidade técnica e científica, o exercício da profissão exige empatia e resiliência diante das conquistas, perdas e desafios do dia a dia. Waldow 1919. Waldow VR. Cuidado humano e a enfermagem: ampliando sua interpretação. Esc Anna Nery Rev Enferm. 1997 ;1(2):142-53. , na mesma perspectiva, ressalta que o cuidador formal, ao deslocar o paradigma da cura para o cuidado, deve combinar conhecimentos teóricos à sua intuição e sensibilidade.

Por fim, é imperioso destacar que cuidadores formais não devem assumir comportamento paternalista 2020. Schramm FR. Bioética da proteção: ferramenta válida para enfrentar problemas morais na era da globalização. Rev. Bioética [Internet]. 2008 [acesso 8 ago 2018];16(1):11-23. Disponível: https://bit.ly/2IGkiuK
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, mas incentivar a pessoa tratada a realizar o que suas condições físicas, mentais e espirituais lhe permitam. É preciso respeitar a autonomia do paciente de querer e poder fazer algo para si próprio 22. Floriani CA , Schramm FR . Cuidados paliativos: interfaces, conflitos e necessidades . Ciênc Saúde Coletiva [Internet]. 2008 [acesso 5 ago 2018]; 13 (Supl 2): 2123 - 32 . Disponível: https://bit.ly/2wUJR5G
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, 2121. Schramm FR. A bioética de proteção é pertinente e legítima. Rev. bioét. (Impr.) [Internet]. 2011 [acesso 8 ago 2018];19(3):713-24. Disponível: https://bit.ly/31vVuhM
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, buscando compreender suas memórias e experiências com o objetivo de garantir sua independência. O cuidador, portanto, coloca-se como suporte necessário para que o próprio indivíduo potencialize suas capacidades e faça suas escolhas de forma consciente 2020. Schramm FR. Bioética da proteção: ferramenta válida para enfrentar problemas morais na era da globalização. Rev. Bioética [Internet]. 2008 [acesso 8 ago 2018];16(1):11-23. Disponível: https://bit.ly/2IGkiuK
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.

Considerações finais

A partir das entrevistas, depreende-se que os participantes estão cientes da responsabilidade de seu trabalho, ainda que não usem termos acadêmicos como “vulnerado”, “proteção”, “ética” e “moral”. Pode-se atribuir essa lacuna à formação deficitária, em que falta reflexão sobre a própria prática. Da mesma maneira, nota-se que os entrevistados se referiram apenas ao cuidar , sem se preocupar em fazer reflexões sobre a morte.

O incentivo à multidisciplinaridade por parte das publicações científicas pode ajudar a reverter esse cenário ao articular diversos saberes e priorizar novas discussões, contribuindo para a divulgação de conhecimentos cada vez mais relevantes. Por sua vez, o enfermo precisa tanto da atenção às necessidades do corpo e a seus desejos subjetivos quanto do respeito e conforto que exige sua condição.

O resultado da pesquisa sugere quatro recomendações. A primeira delas é estimular a produção científica, inclusive de trabalhos com amostras maiores e em diferentes panoramas, a fim de confirmar ou refutar os resultados aqui apresentados. A segunda recomendação é a de que os responsáveis por serviços de home care verifiquem a capacitação dos profissionais e os preparem antes de iniciar o atendimento ao paciente em estado terminal, garantindo depois capacitação constante.

Recomenda-se também a realização de pesquisas para avaliar a qualidade da assistência paliativa. Por fim, preconiza-se que equipes multiprofissionais das unidades básicas e da Estratégia Saúde da Família tomem conhecimento dos pacientes terminais em sua área de abrangência, uma vez que a prestação de cuidados paliativos é questão de saúde pública, sendo incontestável a necessidade do fortalecer o Sistema Único nesse aspecto.

O maior desafio para o cuidador formal é conciliar sensibilidade e competência técnica, o que requer aprofundamento da formação por meio da reflexão bioética e, especificamente, quanto à bioética da proteção, que levantam questionamentos sobre o agir humano e podem nortear o pensamento e a prática do profissional. Em conjunto com essas reflexões, deve-se buscar abordagem interdisciplinar e humanística e estimular a proteção daqueles que necessitam. O indivíduo em estado terminal demanda assistência que deve tanto evitar o agravamento de seu quadro quanto procurar meios para melhorar sua qualidade de vida.

Referências

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Anexo

Caracterização pessoal e profissional do cuidador formal

Instruções: Ler cada uma das perguntas ao entrevistado, assinalar com um X a resposta correta ou complementar a questão, quando for o caso.

Data da aplicação: _____/_____/_____

1. Sexo: ( ) Feminino ( ) Masculino

2. Idade: __________anos

3. Estado conjugal:

( ) Solteiro(a) ( ) Casado(a) ( ) Viúvo(a) ( ) Divorciado(a) ( ) Outros(as): ____________

4. Religião:

( ) Católico(a) ( ) Evangélico(a) ( ) Outros(as):___________________

5. Escolaridade:

( ) Primeiro grau completo ( ) Primeiro grau incompleto

( ) Segundo grau completo ( ) Segundo grau incompleto

( ) Ensino profissionalizante ( ) Superior completo

( ) Superior incompleto ( ) Pós-graduação

6. Filhos: ( ) Sim. Quantos:___________ ( ) Não

7. Profissão:

( ) Técnico de enfermagem ( ) Enfermeiro ( ) Outros: ___________________

8. Tempo de formação profissional:

( ) Menos de 1 ano ( ) 1 a 5 anos

( ) 6 a 10 anos ( ) 10 a 15 anos

( ) Acima de 15 anos: _________________

9. Experiência profissional:

( ) Menos de 1 ano ( ) 1 a 5 anos

( ) 6 a 10 anos ( ) 10 a 15 anos

( ) Acima de 15 anos: _________________

10. Área de experiência profissional: ______________________

11. Atualização profissional: ( ) Sim ( ) Não

12. Área de atualização profissional: _______________________ ( ) Não se aplica

13. Tempo de atualização profissional:

( ) Menos de 1 ano ( ) 1 a 5 anos

( ) 6 a 10 anos ( ) 10 a 15 anos

( ) Acima de 15 anos: _________________

( ) Não se aplica

Roteiro de entrevista semiestruturada

1) Se um amigo lhe perguntasse “para você, o que significa cuidados paliativos?”, o que você responderia?

___________________________________________________________________________________________________

___________________________________________________________________________________________________

___________________________________________________________________________________________________

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    26 Set 2019
  • Data do Fascículo
    Jul-Sep 2019

Histórico

  • Recebido
    2 Set 2018
  • Revisado
    20 Fev 2019
  • Aceito
    21 Abr 2019
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