O exercício de pensar as origens da bioética, assim como as da saúde coletiva, levanta diversas polêmicas e contradições não só quanto a seu surgimento, mas também quanto a suas correntes e principais contribuições teóricas e práticas. Esta constatação é certamente comum às tentativas de construir narrativas históricas de qualquer disciplina, mas talvez seja mais evidente nos casos da bioética e da saúde coletiva, que podem ser consideradas interdisciplinares desde o início.
Esta característica basilar compartilhada de produção do conhecimento deve-se ao fato de serem ao mesmo tempo: 1) produção de conhecimento científico sobre o objeto que analisam (ou constroem), o que se tem tornado inseparável da avaliação moral de suas práticas; 2) movimento social, pois constituem proposta organizada de crítica política permanente a partir da conflituosidade envolvida; e 3) prática transformadora, pois, a partir de arcabouço teórico e da abordagem normativa das práticas envolvidas, agem (ou instrumentam ações) para transformar a realidade nas quais atuam 1 , 2 . É a tridimensionalidade de ambos – como conhecimento científico, prática transformadora e movimento social – que gera as múltiplas narrativas de origem destes campos constitutivamente interdisciplinares.
No caso da saúde coletiva, sua gênese é por vezes atribuída aos primeiros olhares críticos da sociologia e da antropologia para a medicina como estratégia de tecnificação da vida 3 . Em outras narrativas, o nascimento da disciplina se deu no contexto pós-Segunda Guerra Mundial com a iniciativa norte-americana (depois replicada por outros países) de chamar pesquisadores das ciências humanas e sociais para pensar a relação entre fenômenos sociais e saúde, e assim colaborar com as práticas sanitárias 4 . Há ainda as narrativas que privilegiam o contexto local do movimento de Reforma Sanitária Brasileira como evento fundador do campo 5 , 6 .
Da mesma forma, a bioética tanto é apontada como resposta à necessidade prática de médicos que atuam em situações de conflito moral impostas pelo desenvolvimento tecnológico 7 quanto em contexto mais amplo, como aquele da saúde pública 8 - 10 . É também vista como “ponte” entre as ciências naturais e as humanidades para produzir conhecimento integral, dado o cenário ecológico tal qual era percebido 11 , ou ainda como resultado dos movimentos pelos direitos civis 12 .
Estas aproximações não são de forma alguma acidentais e falam, em dois sentidos diversos, sobre a característica reflexiva destes campos, que não se efetiva somente porque refletem sobre a relação entre saúde e sociedade, mas também porque fazem parte dessa sociedade e não escapam de refleti-la também nesta acepção. Desta forma, esta identidade múltipla de ambos os campos – como empreendimento científico, movimento social e prática transformadora – se revela tanto tentativa de compreender o mundo quanto olhar científico inegavelmente fruto de seu tempo – multicultural e despedaçado –, sobre o qual refletem e do qual são inegavelmente reflexo.
Para entender esta nova configuração do mundo, estilhaçado e desmontado 13 , segundo Geertz, a investigação científica consiste em trabalho paciente, modesto e criterioso. Não requer hipóteses grandiosas ou o completo abandono de ideias sintetizadoras, mas precisa de modos de pensar que sejam receptivos às particularidades, às individualidades, às estranhezas, descontinuidades, contrastes e singularidades (…) uma pluralidade de maneiras de fazer parte e ser, e que possam extrair (…) dela um sentimento de vinculação (…) que não é abrangente nem uniforme, primordial nem imutável, mas que, apesar disso, é real 14 . Este esforço e sentimento de vinculação dão contornos às análises realizadas em campos como a saúde coletiva e a bioética.
Objeto científico: a relação entre saúde e sociedade
Estas pluralidades, mas também as singularidades, evidenciam que o conhecimento biomédico é insuficiente para explicar a vida na totalidade, e que na própria prática cotidiana dos profissionais de saúde o saber biomédico não basta. Desta forma, a constituição da saúde coletiva e da bioética, enquanto campos de conhecimento, é resultado desta insuficiência do saber biomédico em abordar a totalidade das questões referentes à relação entre saúde e sociedade.
No entanto, ao tomar este objeto científico para si, esses campos não pretendem contrapor o conhecimento biomédico e os ditos tradicionais ou populares. Ao contrário, evidenciam a multiplicidade de arranjos e permutas existentes entre o modelo biomédico ocidental hegemônico e outras práticas de saúde, inclusive aquelas embasadas em outros tipos de racionalidade 15 . Nesta perspectiva, a bioética e a saúde coletiva interessam-se mais pelas possibilidades múltiplas de apropriação e transferência de práticas entre o modelo biomédico e outros sistemas de cura e/ou de cuidado do que por um suposto perigo de homogeneização das culturas.
Assim, pensar sobre a saúde coletiva em um país multicultural como o Brasil parte tanto da compreensão de que outros sistemas de cura emprestam práticas ao modelo biomédico, mas sem aceitar completamente suas premissas e valores 16 , quanto do fato de que a percepção da comunidade afeta as práticas biomédicas 17 . Neste sentido, a saúde como direito em contexto cultural plural se estabelece como tema igualmente caro à saúde coletiva e à bioética.
Evidentemente, as relações entre vida individual e coletiva, saúde e sociedade, práticas de saúde e culturas são analisadas e acessadas pela saúde coletiva e pela bioética de formas tão diversas como os vários aportes teóricos que amparam suas análises. Dessa forma, pode-se afirmar que também a falta de referencial teórico único identificável é comum a ambos os campos, que se caracterizam mais por um tipo de olhar: uma reflexão sobre a relação do indivíduo com a coletividade e da coletividade com a saúde. Esse olhar entende a saúde tanto como direito fundamental quanto como arena em que se conjugam (e disputam entre si) interesses e representações culturais diversas sobre saúde, corpo, doença e terapêutica, por exemplo.
Portanto, a proximidade entre bioética e saúde coletiva não se resume às origens e relações institucionais nos departamentos e institutos universitários, mas também os olhares convergem para o mesmo objeto – a relação entre saúde e sociedade em linhas gerais – e partem de alguns pressupostos comuns. Enquanto a saúde coletiva nega uma unidimensionalidade biológica da saúde e se estabelece para analisar criticamente o modelo biomédico hegemônico 18 , a bioética nega a neutralidade moral do conhecimento científico e remete, em parte importante de seu exercício, à análise e à crítica do assim chamado “paradigma biotecnocientífico” 19 .
Esse paradigma, resultado dos avanços tecnológicos de áreas principalmente relacionadas à biologia, pretende interferir em processos orgânicos e controlá-los, anunciando o objetivo de melhorar a qualidade da vida humana 19 . No entanto, encarado do ponto de vista das relações de biopoder, entendidas como o poder de fazer viver e deixar morrer 20 , o paradigma biotecnocientífico realça o que há de tecnológico no modelo biomédico hegemônico, e, assim, o que há de mais hegemônico atualmente no paradigma biomédico: seu afeto pela tecnologia.
A bioética, porém, não se dedica somente às questões derivadas da produção e apropriação das biotecnologias. Berlinguer 21 , nome igualmente importante para a saúde coletiva e a bioética, chama inclusive de “bioética cotidiana” o olhar acadêmico que identifica e analisa questões morais que acontecem rotineiramente e ao longo do tempo, mas que não deveriam mais ocorrer – realidade muitas vezes da periferia, fruto de desequilíbrios sociais que determinam chances desiguais de acesso à saúde e a outros direitos fundamentais. Aproxima-se, portanto, da discussão das iniquidades em saúde, entendidas como diferenças desnecessárias e evitáveis e que são ao mesmo tempo consideradas injustas e indesejáveis – situações depois nomeadas por Garrafa e Porto 22 como “persistentes”.
Esta persistência, porém, não é uniforme, pois as contradições e iniquidades perduram, mas são interceptadas e transformadas pelos novos cenários sociais e econômicos. As iniquidades convivem com as novas biotecnologias, e conjugadas a elas produzem novos arranjos, determinam novas formas de nascer, viver e morrer e, com elas, novas formas de desigualdade e de injustiça.
Saúde, doença e novas biotecnologias: olhares interdisciplinares
A percepção de que as representações de saúde, corpo e biotecnologias são determinadas por contexto social dinâmico e complexo une a bioética e a saúde coletiva. As anunciadas mudanças e libertações das estruturas da sociedade capitalista industrial não eliminaram a distinção de oportunidades e acesso dependentes de classe, gênero, etnia e outros determinantes sociais da saúde. Por isso a prática biomédica é colocada sob análise, envolvendo questões como o acesso a estas novas tecnologias de saúde, o respeito às culturas, o poder do discurso biomédico, a relação entre profissional de saúde e usuário, os interesses econômicos envolvidos no desenvolvimento de novos dispositivos, entre outras.
Este trabalho da bioética de pensar e mesmo de reconfigurar valores sociais mais amplamente compartilhados dialoga com sua relação com a prática biomédica e com a importância cultural do corpo, da saúde e da doença para a sociedade ocidental. Ao analisar a biologia e a medicina como linguagens metafóricas e meios simbólicos, a bioética lida com crenças, valores e normas fundamentais para nossa sociedade, sua tradição cultural e consciência coletiva 23 . Sob esta perspectiva, neste momento, em suas trocas entre ciências biomédicas e ciências sociais e humanas, as fronteiras entre bioética e a própria saúde coletiva perdem nitidez: a bioética constitui arena ideal na qual é possível desenvolver pensamentos sobre a criação e a organização de novas profissões, o contexto social da moralidade e o papel do conhecimento científico na sociedade 24 .
A articulação destes referenciais possibilita as análises que a bioética oferece a temas interdisciplinares, como a organização das profissões de saúde. De fato, a formação dos profissionais envolve mais do que o espaço que oferece o conjunto de capacidades teóricas e práticas necessárias à sua atuação. Sua educação formal representa ambiente de socialização no qual se aprendem valores e normas que medeiam seu comportamento e sua identificação como doutor entre seus pares e na sociedade 25 .
Para além da preocupação com a prática e identificação na sociedade, a educação do profissional de saúde interessa duplamente. Tanto é ponto de vista privilegiado para compreender como se estabelecem as disputas pelo controle de determinados espaços de saber-fazer 26 quanto janela para modificá-las. Em suma, é por compreender a educação dos profissionais de saúde como objeto de conhecimento científico e espaço para prática transformadora que a bioética se torna importante na formação profissional.
No entanto, a introdução da bioética nas matrizes curriculares das profissões de saúde encontra alguns obstáculos, pois a formação dos profissionais prioriza aspectos e habilidades técnicas e resiste à introdução de disciplinas de apelo mais crítico e teórico. Assim, ainda devido a reflexos do modelo flexneriano de ensino científico das profissões de saúde, a bioética e a saúde coletiva são relegadas a posições secundárias na atenção de alunos e departamentos 27 . A bioética, principalmente, acaba sendo entendida como disciplina optativa, oferecida por professores sem formação no campo. Por este motivo, frequentemente o conteúdo das aulas de bioética se confunde e se limita a aspectos legalistas e deontológicos dos códigos de ética profissional 28 .
Essa depreciação da bioética nos cursos de graduação se relaciona a uma crítica mais dura e ampla que a disciplina recebe no âmbito aca- dêmico. A acusação de ser “ateórica”, feita também à própria saúde coletiva em seus primórdios, não atinge somente a bioética e se estende a muitos campos interdisciplinares de conhecimento, como aqueles relacionados à sustentabilidade, por exemplo 29 . Neste sentido, as áreas interdisciplinares, empreendimentos científicos fruto de seu tempo, representam tentativas de compreender, descrever e, muitas vezes, modificar realidades em suas múltiplas dimensões. Desta forma, por evitar o reducionismo de muitas análises ditas cartesianas e tentar compreender seus objetos integralmente, em suas conexões e não por suas partes, os campos interdisciplinares padecem no limbo, permanecendo em espaço pouco privilegiado e indefinido entre ciências naturais e sociais. Portanto, a bioética recebe ao mesmo tempo críticas por não ser suficientemente objetiva e científica e por não ter densidade crítica ou teórica.
Como resposta a estas críticas, na bioética encontra-se tendência crescente de uma reflexão mais ampla sobre as repercussões do conhecimento biomédico em suas dimensões discursivas e relações de poder. A partir desta reflexão, evidencia-se cada vez mais que as biotecnologias e a prática biomédica não intervêm somente sobre a matéria orgânica, como defenderia a visão biologicista, mas se realizam como discurso poderoso. Percebe-se que o discurso científico é visto como o enunciado não somente válido, mas que valida e legitima os outros.
Nesta dinâmica, ao considerar a biomedicina como o atual modelo de produção científica, a bioética busca compreender não somente o papel do conhecimento científico na sociedade, mas, mais precisamente, como as produções biotecnológicas determinam as relações de produção e consumo, a distribuição de riqueza e de riscos, e como influenciam as percepções e concepções sobre corpo, saúde, doença e sobre o ser humano e seu entorno 30 .
A busca pela inovação, que caracteriza atualmente o saber científico, representa o produto da vinculação irreversível entre experimentação e mercado. Neste cenário, as ciências biomédicas configuram-se, cada vez mais, como âmbito da tecnociência e, em particular, da biotecnociência. Como resultado, a relação entre o saber e o poder nunca foi tão concentrada e eficiente em modificar, controlar e reproduzir a vida 31 .
Em particular, a descoberta do código genético e a expectativa de programá-lo em função dos desejos e projetos humanos reconfiguram o saber biomédico e suas potencialidades. Ao aliar as tecnologias da informação à biologia, formula-se um saber-fazer que não se limita a compreender e descrever a vida, mas que intenta transformá-la a partir da informação da qual deriva. Obviamente, estas transformações epistemológicas, tecnológicas e antropológicas, anunciadas pelos avanços do saber-fazer biomédico, geram desdobramentos morais, sociais e econômicos importantes para a bioética e a saúde coletiva 19 .
Ao encarar as biotecnologias nesta ótica, percebe-se que àquelas técnicas analógicas instituídas, que moldam e esculpem os corpos no sentido de normalizá-los, somam-se novas técnicas digitais que programam as mudanças nos corpos para que evoluam e aumentem seu desempenho. As transformações, antes consumadas por intervenção material sobre a saúde, encontram nuanças mais fluidas, intermediadas pela informação 32 .
Isso provoca não somente mudança na concepção de pesquisadores e profissionais da área de saúde sobre doença, mas também reflexos culturais mais amplos. A doença, antes associada principalmente à ideia de contaminação, de um mal que adentra o corpo e do qual precisamos nos livrar, agora é entendida como algo previamente determinado por nossos genes. O patológico, portanto, torna-se algo constituinte do indivíduo, e é no nível genético que idealmente se dá a intervenção técnica sobre ele 32 . Nesta perspectiva, desde o nascimento somos todos pacientes em fila de espera 33 .
Impactos da nanotecnologia: interface entre bioética e saúde coletiva
Neste contexto, a nanotecnologia, resultado da contribuição entre física quântica, biologia molecular, eletrônica, química e engenharia de materiais 34 , surge como o mais recente avanço biotecnológico. Por ilustrar tão bem o contexto rico e complexo da tecnociência de seu tempo, a nanotecnologia torna-se objeto de estudo interessante até mesmo para compreender e avaliar a atual abordagem bioética sobre a tecnociência em geral. Encará-la como resultado da convergência de configurações científicas, tecnológicas, políticas e econômicas, um imbricado de relações, cria mais espaço para integrar as reflexões das ciências humanas e sociais e da saúde, exercício de articulação fundamental tanto para a bioética quanto para a saúde coletiva 35 .
No caso da nanotecnologia, a possibilidade de rearranjar átomo a átomo parece ser o que faltava para conhecer e manipular o universo, desde sua menor parte. Seu arsenal tecnológico permitiria interferir na evolução humana, proporcionando corpos e mentes perfeitos. Este tipo de discurso é conhecido e denominado por alguns como “síndrome do Santo Graal” 36 . Esta fascinação pelos desenvolvimentos biomédicos atinge níveis extremos, levando a crer sempre que cada avanço é a descoberta que faltava para compreender o universo, alcançar a “vida eterna”, seja por um corpo perfeito, melhorado, ou pela mente, cada vez mais potente e compatível com as máquinas atuais 37 .
Assim, para analisar eticamente novas biotecnologias não basta conhecer seu impacto na saúde do ser humano e do ambiente. É necessário também considerar os cientistas como produtores culturais criativos e entender as formas pelas quais os instrumentos e as infraestruturas materiais da ciência conformam a compreensão socialmente compartilhada da prática biomédica. É preciso esclarecer o que seu discurso pretende revelar e aquilo que escolhe obscurecer, reprimir e retirar do cenário ao apresentar os novos avanços biotecnológicos à sociedade 33 .
Portanto, para qualificar a análise de tema tão complexo quanto os impactos da nanotecnologia na saúde, é necessário articular teoricamente contribuições da ética aplicada, bioética, ciências sociais e humanas, mas também das ciências biomédicas. Todas são fundamentais para compreender os avanços das biotecnologias, da sua apropriação pela biomedicina e de seus resultados na saúde e doença em suas dimensões sociais, simbólicas e discursivas.
Índices e indicadores epidemiológicos são importantes, visto que de forma pungente retratam em números as desigualdades sociais e como elas resultam, na maior parte das vezes, em vida mais curta e menos saudável, sem acesso aos avanços biotecnológicos 38 . É também importante compreender os aspectos fisiológicos e técnicos envolvidos na produção e no uso das novas biotecnologias.
No entanto, estes aspectos não bastam às análises da bioética e da saúde coletiva sobre a crescente introdução de biotecnologias em cenário no qual iniquidades sociais e danos ao meio ambiente não somente existem, mas são alimentados por instituições e práticas sociais que favorecem grandes indústrias em detrimento do bem-estar da população. Esta constatação evidencia um dos motivos pelos quais as análises de risco não são suficientes para pensar o impacto das novas biotecnologias para a saúde humana e para o meio ambiente: a distribuição geoeconômica, no espaço urbano e rural, dos possíveis acessos, benefícios e riscos da nanotecnologia não será uniforme 39 .
Espera-se para os próximos anos que as iniquidades sociais características da economia globalizada sejam intensificadas por fatores como a introdução da nanotecnologia no mercado alimentar, a presença cada vez mais marcante das grandes indústrias no ramo das biotecnologias e as questões relacionadas a patentes e propriedade intelectual na indústria farmacêutica 40 .
Para compreender a ruptura que avanços biotecnológicos anunciam é preciso entender que a dimensão simbólica destes avanços extrapola seus campos de aplicação biomédica. Exemplo é a profunda transformação na concepção de sociedade e parentesco que o estudo da genética introduziu no mundo ocidental. A forma de narrar e perceber as relações familiares e de explicar características da personalidade sofreu significativas alterações 41 .
Em novelas, jornais, programas televisivos, livros sobre maternidade, todas as dimensões humanas podem ser reduzidas a características genéticas: os genes explicam obesidade, criminalidade, timidez, inteligência e preferências sexuais. São citados genes do egoísmo, da violência, da celebridade, da homossexualidade, da depressão e até da genialidade. Assim, a genética pretensamente explicaria até mesmo a constituição familiar: haveria genes relacionados à necessidade biológica de formar família e transmitir sua carga genética. Nesta visão, as relações de parentesco são redefinidas e estruturam famílias em que os laços de tradição, história, experiências e recordações comuns seriam menos importantes do que partilhar o mesmo DNA 42 .
Os principais aspectos de interesse para a bioética e para a saúde coletiva derivam justamente deste objetivo característico do saber-fazer biomédico, de não somente conhecer e explicar a vida, mas, principalmente, interferir em processos orgânicos e controlá-los 19 . Destaca-se a cura do câncer como a mais proeminente tarefa a que a nanotecnologia se propõe, com todo o caráter simbólico da doença 43 . Para a biomedicina, o câncer representa a desorganização, a incontrolável reprodução de células primitivas, não diferenciadas. Representa a fuga ao inteligente controle genético que dispara os mecanismos de morte programada em células defeituosas 44 . No entanto, fora do consultório, o câncer ganha outros contornos: um mal que escapa à ordem natural, ao equilíbrio do corpo, e o consome em desorganização. Neste sentido, o câncer, entre outras expressões da retórica militar, é identificado metaforicamente como inimigo contra o qual a medicina e a sociedade devem batalhar 45 .
Neste contexto, a nanotecnologia figura como arma poderosa. É justamente sua proposta de organizar a matéria, átomo a átomo, que parece proporcionar o controle necessário para oferecer a certeira ferramenta para a cura do câncer. O caráter simbólico da proposta não poderia ser mais evidente: a nanotecnologia, aliada à genética, possibilitaria o total controle sobre os processos orgânicos, de forma a finalmente poder combater a desorganização representada pelo câncer.
O segundo aspecto importante é a revolução anunciada pela manipulação massiva do DNA, que de código da vida se torna material profanado, disponível e banalizado. Na descrição de suas pesquisas, os cientistas nos convidam a despir a molécula do caráter metafórico do DNA como código da vida, característica de sua apresentação mais simples 46 . A nanotecnologia convida a olhar a molécula de forma nova e ainda mais promissora: a possibilidade infinita de obter conformações diversas do DNA. Devido à sua flexibilidade para manipulação e sua capacidade de autorreplicação de acordo com a conformação programada, esta molécula poderia ser utilizada para tantos fins quanto os propostos pela imaginação humana 47 .
Certamente, a toxicidade para os humanos e o meio ambiente será questionada, mas as transformações sociais e culturais anunciadas são ainda mais profundas. Isso porque a condição humana não será alterada somente pela possibilidade de intervenção biológica mais frequente e eficiente sobre o DNA, mas também porque, ao anunciá-lo como sua mais promissora matéria-prima, a nanotecnologia altera sua função simbólica como código da vida e, assim, propõe ressignificar a representação que o ser humano faz de si.
Desta forma, é preciso analisar as biotecnologias, mas também as práticas dos profissionais de saúde, como objetos (científicos) de seu tempo: objetos híbridos em que as dimensões biológica e social são indissociáveis 48 . A articulação entre ciências humanas e sociais e ciências da saúde é fundamental para analisar temas como a organização das profissões de saúde e a relação das práticas de saúde com as realidades sociais, já tão explorados pela bioética e pela saúde coletiva.
No entanto, são as novas biotecnologias em saúde que demandam, cada vez mais, a visita a esses referenciais teóricos. Ao contrário do que se poderia pensar, e como revela a construção do conhecimento na própria saúde coletiva, enfrentar novas questões científicas não é, de forma alguma, convite ao descarte de referenciais científicos anteriores. O trabalho de tecer análises entre campos interdisciplinares não é o de “reinventar a roda”, mas de articular conhecimentos e arcabouços teóricos estabelecidos. Confrontar estes objetos científicos, fruto de temporalidade complexa e plural, não demanda somente criatividade para pensar e resolver problemas novos, mas olhar cuidadoso para referenciais anteriores, até mesmo para compreender suas limitações: há sempre coisa melhor a fazer com uma herança, mesmo problemática, do que jogá-la no lixo 49 .
Considerações finais
Entender que na interface entre bioética e saúde coletiva se encontra a preocupação com o elo entre saúde e sociedade, entre biomedicina e outras práticas de saúde, evidencia a importância das novas biotecnologias e seu impacto na saúde e na qualidade de vida da população. Porém, esse impacto deve ser entendido de forma ampla, não somente em termos de riscos à saúde humana e ao meio ambiente. Está em jogo a maneira como estas novas biotecnologias interceptam iniquidades sociais de longa data e passam a conviver com elas, a alimentá-las. Analisar os resultados das novas biotecnologias para a saúde não é somente entender se apresentam riscos toxicológicos, mas entender como estes riscos serão distribuídos e quais fatores sociais condicionam estas configurações.
Neste sentido, a intervenção e o controle biomédico sobre os processos orgânicos parecem atingir seu auge com o uso do DNA como material nanotecnológico. Essa tecnologia ilustra assim a capacidade que o saber-fazer biomédico, em suas dimensões científicas, sociais e discursivas, tem de afetar o humano em sua saúde, o mundo em sua conjuntura socioeconômica, e toda a representação que o ser humano faz de si e de seu entorno.
Esta perspectiva justifica a articulação de referenciais teóricos diversos para analisar contextos plurais. As novas biotecnologias evidenciam a necessidade de compreender local e global, individual e coletivo, cultura e natureza em suas conexões e continuidades. Bioética e saúde coletiva compartilham esta tarefa nada fácil: conjugar cientificamente referenciais diversos para compreender (e transformar) um mundo globalizado, cada vez mais tecnológico e desigual.