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Regulamentando políticas públicas em reprodução assistida para casais soroconcordantes homoafetivos

Resumo

Tecnologias reprodutivas permitem que casais soroconcordantes homoafetivos tenham filhos biológicos saudáveis, já que, se aplicadas adequadamente, impedem a transmissão vertical do vírus da imunodeficiência humana. Diante do avanço das ciências naturais e das consequências sociais que o acompanham, a ciência jurídica deve progredir para lidar com essas novas realidades. Com base nisso, a pesquisa propõe-se a investigar a obrigação estatal de regulamentar políticas públicas que contemplem técnicas de reprodução assistida, visto que a integralidade do direito à saúde e ao planejamento familiar deve abarcar o grupo-objeto deste estudo. Utilizou-se método dedutivo e técnicas de revisão literária, com enfoque na legislação brasileira vigente, em monografias do biodireito e resoluções do Conselho Federal de Medicina sobre o tema.

Soropositividade para HIV; Técnicas reprodutivas; Política pública

Abstract

Reproductive technologies allow HIV positive seroconcordant homosexual couples to have healthy biological children, since, if executed properly, they prevent the vertical transmission of the human immunodeficiency virus. Given the advance in natural sciences and the accompanying social consequences, law must progress to deal with these new realities. Based on that, the present study proposes to investigate the state obligation on the regulation of public policies that contemplate assisted reproduction techniques, since the right to health and family planning should encompass the object group of this research. We used the deductive method and literary review techniques focusing on the Brazilian legislation in force, biolaw dissertations and the resolutions of the Brazilian Federal Council of Medicine on the subject.

HIV Seropositivity; Reproductive techniques; Public policy

Resumen

Las tecnologías reproductivas permiten que las parejas seroconcordantes homoafectivas tengan hijos biológicos saludables, ya que, si se aplican adecuadamente, impiden la transmisión vertical del virus de la inmunodeficiencia humana. Frente al avance de las ciencias naturales y de las consecuencias sociales que lo acompañan, la ciencia jurídica debe progresar para lidiar con estas nuevas realidades. En base a ello, el presente estudio se propone investigar la obligación estatal de reglamentar políticas públicas que contemplen técnicas de reproducción asistida, puesto que la integralidad del derecho a la salud y a la planificación familiar debe abarcar al grupo-objeto de esta investigación. Se utilizaron el método deductivo y técnicas de revisión de la literatura, enfocándose en la legislación brasileña vigente, en monografías de bioderecho y en resoluciones del Consejo Federal de Medicina acerca del tema.

Seropositividad para VIH; Técnicas reproductivas; Política pública

Este artigo discute o acesso de casais homoafetivos soroconcordantes (ambos com o vírus da imunodeficiência humana – HIV/aids) às políticas públicas de reprodução assistida. As novas tecnologias reprodutivas possibilitaram que casais inférteis tivessem filhos biológicos, bem como a prevenção da transmissão vertical do HIV, ou seja, dos pais à prole. Essas técnicas auxiliam a concepção, sendo utilizadas principalmente em casos de infertilidade (dificuldade de engravidar), esterilidade (incapacidade de conceber) e para evitar o contágio de doenças, seja vertical ou horizontal (entre parceiros).

A Convenção Internacional sobre População e Desenvolvimento de 1994 (Convenção do Cairo) 11. Fundo de População das Nações Unidas. Relatório da Conferência Internacional sobre População e Desenvolvimento: plataforma de Cairo, 1994 [Internet]. Brasília: UNFPA; 2005 [acesso 21 ago 2018]. Disponível: https://bit.ly/2I9MO6H
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foi marco para os direitos sexuais e reprodutivos. A partir dela passou-se a entender que o indivíduo tem autonomia sobre seu aparelho reprodutivo. Contudo, as novas tecnologias reprodutivas levantaram algumas questões sobre essa autonomia e o papel do Estado, ou seja, caberia ao poder público meramente garantir essa liberdade apenas impedindo que terceiros a violem, ou deveria elaborar e implementar políticas públicas, saindo da inércia garantista?

Para este estudo foi adotado o método dedutivo, com revisão literária da doutrina, jurisprudência e legislação concernentes aos direitos sexuais e reprodutivos, além do direito à saúde do grupo aqui em foco, casais homoafetivos soroconcordantes, assim como resoluções do Conselho Federal de Medicina (CFM) que tratem do assunto.

Nesta pesquisa não foram considerados os sorodiscordantes, o que acrescentaria a transmissão horizontal à problemática, tema que não convergiria com os propósitos deste trabalho. Além disso, o estudo limitou-se a casais homoafetivos, não apenas por serem grupo vulnerável, mas também por sofrerem estigmatização em relação ao HIV.

Assim, para tecer entendimento sobre a regulamentação de políticas públicas de reprodução assistida para esse grupo, o artigo se propõe a costurar direitos fundamentais, normatizações relevantes ao objeto e conhecimentos sobre reprodução humana assistida (RHA), esta última em observância à interdisciplinaridade que a temática exige.

Direitos fundamentais inerentes à saúde reprodutiva

Os direitos fundamentais, enquanto positivação de direitos humanos nos países, estendem-se a todos os seres humanos e não apenas aos cidadãos ou contribuintes. Visam o bem-estar geral da sociedade, sem qualquer tipo de seletividade quanto a quem seja sujeito de direitos. Portanto, é imprescindível recorrer à Carta Magna como fundamento maior para respaldar o acesso de grupos vulneráveis, como casais soroconcordantes homoafetivos, às tecnologias reprodutivas. Ressalta-se que a novidade dessas tecnologias não é empecilho, visto que os direitos fundamentais estão em constante evolução justamente para se adequar às novas realidades.

Nessa discussão merece destaque o direito à saúde, haja vista sua intimidade com o próprio direito à vida, uma vez que a falta do primeiro compromete a preservação do segundo, como apontam Sarlet e Figueiredo 22. Sarlet IW, Figueiredo MF. Algumas considerações sobre o direito fundamental à proteção e promoção da saúde aos 20 anos da Constituição Federal de 1988. Rev Direito Consum [Internet]. 2008 [acesso 16 ago 2018];17(67):125-72. Disponível: https://bit.ly/35BG910
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. Essa relação é essencial, pois, sendo uma das principais garantias do indivíduo, a vida dificilmente pode ser relativizada. Portanto, a inflexibilidade do direito à vida acaba por inviabilizar o direito à saúde.

Este último é difícil de conceituar, visto que a própria ideia de saúde é pouco mensurável. Segundo Ribeiro Filho 33. Ribeiro Filho HD. A terapia gênica como decorrência do direito fundamental à saúde: fundamentos e limites. In: Stancioli BS, Albuquerque L, Freitas RS, coordenadores. XXIV Congresso Nacional do Conpedi: UFMG/Fumec/Dom Helder Câmara: biodireito e direitos dos animais I [Internet]. Florianópolis: Conpedi; 2015 [acesso 19 ago 2018]. p. 296-311. Disponível: https://bit.ly/2ORwu0j
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, quanto maiores os patamares de bem-estar atingidos, maiores podem ser as exigências de serviços sanitários feitas aos poderes públicos. Ou seja, a ideia de saúde não é estática, mas sempre conceito em expansão.

A Organização Mundial da Saúde (OMS), em seu protocolo de constituição, define saúde como estado de completo bem-estar físico, mental e social, (…) [que] não consiste apenas na ausência de doença ou enfermidade 44. Organização Mundial da Saúde. Constituição da Organização Mundial da Saúde (OMS/WHO), 1946 [Internet]. São Paulo: Comissão de Direitos Humanos da USP; [s.d.] [acesso 17 ago 2018]. Disponível: https://bit.ly/1x8itdQ
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. Para complementar, vale dizer que o direito à saúde abrange todas as situações da vida humana em que o bem-estar do indivíduo deve ser garantido 33. Ribeiro Filho HD. A terapia gênica como decorrência do direito fundamental à saúde: fundamentos e limites. In: Stancioli BS, Albuquerque L, Freitas RS, coordenadores. XXIV Congresso Nacional do Conpedi: UFMG/Fumec/Dom Helder Câmara: biodireito e direitos dos animais I [Internet]. Florianópolis: Conpedi; 2015 [acesso 19 ago 2018]. p. 296-311. Disponível: https://bit.ly/2ORwu0j
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. No Brasil, nos termos do artigo 196 da Constituição Federal (CF) de 1988 55. Brasil. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Diário Oficial da União [Internet]. Brasília, 5 out 1988 [acesso 17 abr 2019]. Disponível: https://bit.ly/1bIJ9XW
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, essa garantia é dever do Estado.

Ainda de acordo com Sarlet e Figueiredo 22. Sarlet IW, Figueiredo MF. Algumas considerações sobre o direito fundamental à proteção e promoção da saúde aos 20 anos da Constituição Federal de 1988. Rev Direito Consum [Internet]. 2008 [acesso 16 ago 2018];17(67):125-72. Disponível: https://bit.ly/35BG910
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, os direitos fundamentais têm duas classificações: uma negativa, que envolve a defesa da saúde, e outra positiva, ou seja, a prestação de serviços e aplicação de políticas públicas. Embora o dever estatal nesse âmbito inclua ambas as definições, quando se trata do acesso de casais homoafetivos soroconcordantes à reprodução assistida, fica nítida a necessidade de debater a face positiva.

Ainda considerando o artigo 196 da Constituição Federal de 1988, este direito é universal e igualitário, o que não significa que o modo de o garantir deve ser igual para todas as pessoas, principalmente em um país desigual como o Brasil 22. Sarlet IW, Figueiredo MF. Algumas considerações sobre o direito fundamental à proteção e promoção da saúde aos 20 anos da Constituição Federal de 1988. Rev Direito Consum [Internet]. 2008 [acesso 16 ago 2018];17(67):125-72. Disponível: https://bit.ly/35BG910
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. Nesse contexto, deve-se buscar a igualdade material, ou seja, dar tratamento desigual aos desiguais. Cabe, portanto, considerar o direito à saúde junto com o direito à igualdade, não sendo o primeiro dispensado a apenas uma parcela da população.

Nesse sentido, Marmelstein 66. Marmelstein G. Curso de direitos fundamentais. São Paulo: Atlas; 2008. aponta a discriminação negativa, isto é, o dever de não segregar o diferente, e a discriminação positiva, o compromisso de igualizar. Dessa forma, cabe ao Estado promover medidas compensatórias que garantam igualdade de condições entre grupos menos favorecidos e os demais cidadãos. Isso remete à discriminação positiva, visando a igualdade material.

A Constituição da OMS também trata da isonomia no acesso à saúde, definindo-a da seguinte forma: gozar do melhor estado de saúde que é possível atingir constitui um dos direitos fundamentais de todo o ser humano, sem distinção de raça, de religião, de credo político, de condição econômica ou social 44. Organização Mundial da Saúde. Constituição da Organização Mundial da Saúde (OMS/WHO), 1946 [Internet]. São Paulo: Comissão de Direitos Humanos da USP; [s.d.] [acesso 17 ago 2018]. Disponível: https://bit.ly/1x8itdQ
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. Portanto, na perspectiva isonômica, a saúde deve ser garantida tanto nacional como internacionalmente.

Por ser tema abrangente, para falar de direito à saúde é mais adequado fazer recorte específico – no contexto deste artigo, o direito à saúde reprodutiva a partir de técnicas assistidas. Essas técnicas foram definidas pelo Relatório da Conferência Internacional sobre População e Desenvolvimento 11. Fundo de População das Nações Unidas. Relatório da Conferência Internacional sobre População e Desenvolvimento: plataforma de Cairo, 1994 [Internet]. Brasília: UNFPA; 2005 [acesso 21 ago 2018]. Disponível: https://bit.ly/2I9MO6H
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e reafirmam os conceitos da Constituição da OMS: a saúde reprodutiva é um estado de completo bem-estar físico mental e social (…) em todas as matérias concernentes ao sistema reprodutivo e a suas funções e processos 77. Fundo de População das Nações Unidas. Op. cit. p. 62. . Assim, evitar a transmissão hereditária do HIV é parte do direito à saúde reprodutiva, respeitando-se a isonomia neste processo.

Os direitos reprodutivos baseiam-se na liberdade de todo casal ou indivíduo decidir responsavelmente quando e quantas vezes quer ter filhos, obtendo informações e meios de fazê-lo gozando do mais alto padrão de saúde sexual e reprodutiva. O Relatório da Conferência do Cairo 11. Fundo de População das Nações Unidas. Relatório da Conferência Internacional sobre População e Desenvolvimento: plataforma de Cairo, 1994 [Internet]. Brasília: UNFPA; 2005 [acesso 21 ago 2018]. Disponível: https://bit.ly/2I9MO6H
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também contempla o planejamento familiar, deixando implícito que, para isso, mulheres e homens devem ter acesso a métodos eficientes, seguros e aceitáveis que permitam gerar prole sadia.

Segundo Heloisa Helena Barboza, citada por Moás e colaboradores 88. Moás LC, Vargas EP, Maksud I, Britto R. HIV/aids e reprodução: a perspectiva jurídica em análise. Cad Pesqui [Internet]. 2013 [acesso 18 ago 2018];43(150):948-67. DOI: 10.1590/S0100-15742013000300011 , antigamente se atribuía ao direito de procriar apenas conotação negativa, associada à liberdade de decidir não ter filhos mediante métodos de controle de fecundidade. Atualmente, a ideia adquiriu também sentido positivo, remetendo à liberdade de escolher como procriar, sendo a Conferência do Cairo 11. Fundo de População das Nações Unidas. Relatório da Conferência Internacional sobre População e Desenvolvimento: plataforma de Cairo, 1994 [Internet]. Brasília: UNFPA; 2005 [acesso 21 ago 2018]. Disponível: https://bit.ly/2I9MO6H
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um dos marcos para a valorização dessa faceta positiva.

Lemos e Chagas 99. Lemos MO, Chagas MC. O direito ao planejamento familiar como direito humano fundamental autônomo e absoluto? In: Silva MNA, Engelmann W, coordenadores. Biodireito [Internet]. Florianópolis: Funjab; 2013 [acesso 17 abr 2019]. p. 274-94. Disponível: https://bit.ly/35vEGcN
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entendem que direitos reprodutivos não são necessariamente absolutos, visto que seu exercício pode afetar a vida e a intimidade daquele que será concebido. Esta pessoa não pode ser simples objeto de realização dos desejos, pois tem uma finalidade em si. Apesar disso, não se pode impedir a reprodução de casais soroconcordantes com o argumento de risco à saúde da criança, nem mesmo apontar a adoção como alternativa para satisfazer a paternidade ou maternidade biológica.

No mesmo sentido, Paiva e colaboradores 1010. Paiva V, Lima TN, Santos N, Ventura-Filipe E, Segurado A. Sem direito de amar? A vontade de ter filhos entre homens (e mulheres) vivendo com HIV. Psicol USP [Internet]. 2002 [acesso 19 ago 2018];13(2):105-33. DOI: 10.1590/S0103-65642002000200007 ressaltam a obrigação ética e constitucional de promover os direitos reprodutivos de pessoas vivendo com HIV, cuja liberdade de ter filhos é legítima, apesar da estigmatização da doença até mesmo entre profissionais de saúde. Na prática, essa garantia passa por políticas públicas, como o Programa de Reprodução Assistida para Soropositivos, implementado pelo governo de São Paulo em 2010, e o Programa Estadual DSTAids-SP. Segundo Maria Clara Gianna, coordenadora deste último, o objetivo seria propiciar uma concepção segura, sem riscos de infecção do(a) parceiro(a) soronegativo no caso dos casais sorodiscordantes ou sem riscos de re-infecção para casais onde ambos sejam soropositivos para o HIV 1111. Saúde lança programa pioneiro na rede pública de reprodução assistida para soropositivos. Governo do Estado de São Paulo [Internet]. Saúde; 6 maio 2010 [acesso 4 dez 2018]. Disponível: https://bit.ly/33wdVTz
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.

Constata-se que a aplicação de políticas públicas de RHA para casais soroconcordantes homoafetivos, enquanto discriminação positiva destinada a compensar desigualdades, concretiza também o aspecto positivo dos direitos reprodutivos, permitindo que os membros deste grupo tenham filhos. Assim, seus direitos de reprodução não ficariam restritos à possibilidade de decidir somente não procriar, mas sempre tendo em vista prevenir a transmissão vertical do HIV. Isto posto, na próxima seção encontram-se algumas reflexões mais aprofundadas sobre as técnicas de RHA que podem garantir estes direitos.

Técnicas de reprodução assistida

Diante da carência legislativa sobre RHA no Brasil, o CFM publicou a Resolução 2.168/2017 1212. Conselho Federal de Medicina. Resolução CFM nº 2.168, de 21 de setembro de 2017. Adota as normas éticas para a utilização das técnicas de reprodução assistida. Diário Oficial da União [Internet]. Brasília, 10 nov 2017 [acesso 23 ago 2018]. Seção 1. Disponível: https://bit.ly/31b5MT6
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, que aborda princípios e requisitos para essas técnicas no sistema de saúde nacional. A deliberação define esses métodos como auxiliares na solução dos problemas de reprodução humana, facilitando a procriação de casais hétero e homoafetivos, bem como de pessoas solteiras, resguardado o direito médico à objeção de consciência. Para se submeterem a esses procedimentos, as pessoas devem ser julgadas capazes e estar de inteiro acordo e devidamente esclarecidas, seguindo o princípio do consentimento informado.

Esta pesquisa destaca as técnicas de RHA destinadas a casais homoafetivos soroconcordantes que desejam constituir família, pois a presença do vírus demanda maior atenção para prevenir a transmissão por contato sanguíneo, horizontal ou verticalmente (durante a gestão, parto e amamentação). Dentre essas técnicas destacam-se a inseminação intrauterina (IIU), a fertilização in vitro (FIV) e a injeção intracitoplasmática de espermatozoides (ICSI).

Dada a responsabilidade dos pais e do Estado de garantir a saúde do bebê, evitando a transmissão vertical e assegurando-lhe o direito à vida e à saúde, conforme o artigo 227 da CF/88 55. Brasil. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Diário Oficial da União [Internet]. Brasília, 5 out 1988 [acesso 17 abr 2019]. Disponível: https://bit.ly/1bIJ9XW
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, antes de aplicar a tecnologia citada é preciso proceder à lavagem de espermatozoides. Segundo Vaz 1313. Vaz SFP. Técnicas de reprodução humana assistida para pacientes sorodiscordantes, portadores da síndrome da imunodeficiência adquirida (HIV) [Internet]. Goiânia: Pontifícia Universidade Católica de Goiás; [s.d.] [acesso 27 ago 2018]. Disponível: https://bit.ly/31f0Egz
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, esse método é dividido nas seguintes etapas: coleta, centrifugação, lavagem e filtragem do sêmen, quando o parceiro é soropositivo. Isso permite isolar gametas masculinos não infectados pelo líquido seminal, onde o vírus se instala.

Para casais heterossexuais sorodiscordantes nos quais o homem é soropositivo, após a lavagem de esperma, procede-se à FIV, que, segundo Souza e Alves 1414. Souza KKPC, Alves OF. As principais técnicas de reprodução humana assistida. Saúde Ciênc Ação [Internet]. 2016 [acesso 23 jan 2019];2(1):26-37. Disponível: https://bit.ly/2BggFbz
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, visa a manipulação em laboratório de ambos os gametas (espermatozoides e óvulos), procurando obter embriões de boa qualidade. Cumprida a etapa masculina, os óvulos são captados por punção guiada via ultrassom transvaginal e fertilizados com o esperma já lavado. De três a cinco dias após a FIV, os embriões são transferidos para o útero.

Já na ICSI, o esperma é avaliado com microscópio potente, o que permite escolher os gametas com mais motilidade e morfologia normal. Após a análise, a ICSI consiste em injetar o espermatozoide diretamente no óvulo, em procedimento feito em laboratório por embriologista, segundo relatam Souza e Alves 1414. Souza KKPC, Alves OF. As principais técnicas de reprodução humana assistida. Saúde Ciênc Ação [Internet]. 2016 [acesso 23 jan 2019];2(1):26-37. Disponível: https://bit.ly/2BggFbz
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.

Para casais heterossexuais em que somente a mulher é soropositiva, a IIU é normalmente mais recomendada, uma vez que é considerada de baixa complexidade. Nesta técnica, o sêmen, colhido e preparado em laboratório, é introduzido no útero, com auxílio de cateter específico 1414. Souza KKPC, Alves OF. As principais técnicas de reprodução humana assistida. Saúde Ciênc Ação [Internet]. 2016 [acesso 23 jan 2019];2(1):26-37. Disponível: https://bit.ly/2BggFbz
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. Outro método indicado para esses casais é a ICSI, que evita transmissão por contato, visto ser procedimento realizado por injeção direta do espermatozoide no óvulo, seguida do diagnóstico pré-implantacional que seleciona embriões saudáveis, conforme explicam Corrêa e Loyola 1515. Corrêa MCDV, Loyola MA. Tecnologias de reprodução assistida no Brasil: opções para ampliar o acesso. Physis [Internet]. 2015 [acesso 27 ago 2018];25(3):753-77. DOI: 10.1590/S0103-73312015000300005 .

Vale salientar que, para todas essas técnicas de casais sorodiscordantes, ainda é necessário acompanhamento médico, com remédios antirretrovirais, parto cesáreo e, em casos de mulheres soropositivas, buscar alternativas para amamentação, pois o leite materno contém o vírus.

Para casais soroconcordantes homoafetivos femininos, existem duas possibilidades: a IIU, também chamada inseminação artificial, e a FIV; ambas precisam de sêmen doado. Nesse método, uma das parceiras fecunda com o espermatozoide apenas o seu óvulo ou o da outra também – a chamada gestação compartilhada pela Resolução CFM 2.168/2017 1212. Conselho Federal de Medicina. Resolução CFM nº 2.168, de 21 de setembro de 2017. Adota as normas éticas para a utilização das técnicas de reprodução assistida. Diário Oficial da União [Internet]. Brasília, 10 nov 2017 [acesso 23 ago 2018]. Seção 1. Disponível: https://bit.ly/31b5MT6
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. É importante lembrar que, segundo a Resolução, a idade máxima para as mulheres utilizarem essa técnica é 50 anos, pois as dificuldades aumentam com a idade.

Quando casais soroconcordantes homoafetivos masculinos desejam ter filhos biológicos, a presença de uma terceira pessoa vai além da doação de gametas: é necessária a gestação de substituição, ou seja, a utilização temporária de útero, popularmente conhecida como “barriga de aluguel”. A Resolução CFM 2.168/2017, em seu item VII, inciso 1, deixa claro que as doadoras temporárias do útero devem pertencer à família de um dos parceiros 1212. Conselho Federal de Medicina. Resolução CFM nº 2.168, de 21 de setembro de 2017. Adota as normas éticas para a utilização das técnicas de reprodução assistida. Diário Oficial da União [Internet]. Brasília, 10 nov 2017 [acesso 23 ago 2018]. Seção 1. Disponível: https://bit.ly/31b5MT6
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, podendo ser mãe, irmã, tia ou prima, desde que respeitada a idade de até 50 anos.

Nestes casos, a FIV ou a IIU é feita na doadora de útero com o sêmen de um dos parceiros, após lavagem de esperma em laboratório. Vale salientar que a doação temporária do útero não pode ter caráter lucrativo ou comercial 1616. Regino FA. O desejo de ter filhos e a construção de gênero nas políticas de saúde: análise da Política Nacional de Atenção Integral em Reprodução Humana Assistida [tese] [Internet]. Recife: Fundação Oswaldo Cruz; 2016 [acesso 15 mar 2019]. Disponível: https://bit.ly/32umGNK
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. Para evitar transmissão horizontal e vertical na aplicação das técnicas reprodutivas, é necessária a lavagem de esperma, quando o soropositivo no casal for homem, e a IIU, quando for mulher. Além de manter a terapia antirretroviral durante a gestação, deve-se tomar os devidos cuidados médicos no parto e impedir a amamentação, já que a transmissão vertical poderá ocorrer nesses três últimos estágios.

Um processo pouco utilizado, mas que aos poucos vem ganhando destaque nos estudos da biomedicina brasileira, é a terapia gênica. Segundo Paiva, esse procedimento consiste em introduzir material genético terapêutico em uma célula [para substituir ou silenciar] genes defeituosos, utilizando técnicas de DNA recombinante e de edição de genoma 1717. Paiva JCC. Terapia gênica e suas aplicações no tratamento de doenças [trabalho de conclusão de curso] [Internet]. Brasília: Centro Universitário de Brasília; 2017 [acesso 29 ago 2018]. p. 1. Disponível: https://bit.ly/33BSQHE
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. O autor ainda explica que os vetores protegem e transportam o material genético para dentro da célula ; o vetor ideal é selecionado de acordo com o objetivo terapêutico, sendo possível escolher entre vetores virais e não virais 1717. Paiva JCC. Terapia gênica e suas aplicações no tratamento de doenças [trabalho de conclusão de curso] [Internet]. Brasília: Centro Universitário de Brasília; 2017 [acesso 29 ago 2018]. p. 1. Disponível: https://bit.ly/33BSQHE
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.

Apesar de ter sido pensada para evitar doenças hereditárias monogênicas, nos estudos atuais essa terapia é mais usada para o tratamento de doenças adquiridas, como câncer e infecção por HIV 1818. Azevêdo ES. Terapia gênica. Bioética [Internet]. 1997 [acesso 27 ago 2018];5(2). Disponível: https://bit.ly/2srZfoA
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. A técnica germinativa, parte da terapia gênica, tem chamado a atenção de pessoas que vivem com HIV e desejam ter filhos, pois propõe fundamentalmente a transformação definitiva da expressão gênica para fins terapêuticos.

Todos esses recursos mencionados buscam oferecer mais qualidade de vida reprodutiva ao cidadão, garantindo também seu direito à saúde e à dignidade humana 88. Moás LC, Vargas EP, Maksud I, Britto R. HIV/aids e reprodução: a perspectiva jurídica em análise. Cad Pesqui [Internet]. 2013 [acesso 18 ago 2018];43(150):948-67. DOI: 10.1590/S0100-15742013000300011 . Para casais soropositivos que desejem ter filhos, a terapia gênica germinativa pode ser a esperança para evitar a transmissão vertical, uma vez que suas células-fim são os gametas, localizados para extração do gene defeituoso. Contudo, existem várias críticas a esse método, e uma delas é a ingerência na reprodução humana, no patrimônio genético, sem contar as possíveis consequências ao DNA, como malformação do embrião, alterações morfológicas e, em alguns casos, morte.

Regulamentação de políticas públicas

É necessário investigar a implementação dessas técnicas de RHA por meio de políticas públicas, tendo em vista os princípios e direitos fundamentais que circundam a problemática, bem como o reconhecimento jurisprudencial da proteção aos grupos vulneráveis. Há que se considerar, nesse contexto, o julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 4.277 1919. Brasil. Supremo Tribunal Federal. Ação direta de inconstitucionalidade nº 4.277 [Internet]. 5 maio 2011 [acesso 20 ago 2018]. Disponível: https://bit.ly/2ryLWVJ
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, que reconheceu a união homoafetiva como entidade familiar e garantiu o direito à autoestima e à busca da felicidade para casais do mesmo sexo.

No sistema jurídico brasileiro, assegurar a proteção às minorias e aos grupos vulneráveis qualifica-se, na verdade, como fundamento imprescindível à plena legitimação material do Estado Democrático de Direito 2020. Brasil. Supremo Tribunal Federal. Op. cit. p. 849-50. . Assim, regulamentar políticas em reprodução assistida para casais soroconcordantes homoafetivos concretizaria tais direitos.

Essa possibilidade é reconhecida no artigo 2º da Lei 8.080/1990 (Lei do Sistema Único de Saúde), ao considerar a saúde como direito fundamental de todos, atribuindo ao Estado o dever de prover as condições indispensáveis ao seu pleno exercício mediante formulação e execução de políticas econômicas e sociais que visem à redução de riscos de doenças e de outros agravos 2121. Brasil. Lei nº 8.080, de 19 de setembro de 1990. Dispõe sobre as condições para a promoção, proteção e recuperação da saúde, a organização e o funcionamento dos serviços correspondentes e dá outras providências. Diário Oficial da União [Internet]. Brasília, 20 set 1990 [acesso 22 jan 2019]. Disponível: https://bit.ly/2MVvkP9
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. Portanto, a legislação confere ao poder público papel positivo, sem limitar-se a garantia de acesso universal às suas políticas.

Infertilidade e impossibilidade de formar núcleo familiar saudável, adversidades que acometem pessoas vivendo com HIV, devem ser pensadas como problemas de saúde. O CFM, no preâmbulo da Resolução 2.168/2017 1212. Conselho Federal de Medicina. Resolução CFM nº 2.168, de 21 de setembro de 2017. Adota as normas éticas para a utilização das técnicas de reprodução assistida. Diário Oficial da União [Internet]. Brasília, 10 nov 2017 [acesso 23 ago 2018]. Seção 1. Disponível: https://bit.ly/31b5MT6
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, já reconhece a infertilidade humana como questão de saúde, uma vez que vem acompanhada de implicações médicas e psicológicas sobre os inférteis e legitima o dever de superá-las. O mesmo documento admite o avanço do conhecimento científico para ultrapassar obstáculos à reprodução humana, e recorre ao julgamento da ADI 4.277 para garantir os mesmos direitos a casais homoafetivos.

Essa perspectiva também já vem sendo discutida administrativamente nas últimas duas décadas. De acordo com Nascimento, em sua tese de doutorado, no Plano Nacional de Atenção Integral à Saúde da Mulher – Princípios e Diretrizes, apresentado em 2004, a infertilidade e a reprodução assistida são consideradas como uma das lacunas nas políticas de atenção à saúde da mulher 2222. Nascimento PFG. Reprodução, desigualdade e políticas públicas de saúde: uma etnografia da construção do “desejo de filhos” [tese] [Internet]. Porto Alegre: Universidade Federal do Rio Grande do Sul; 2009 [acesso 15 mar 2019]. p. 45. Disponível: https://bit.ly/2IR5sTh
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Ao reconhecer esses problemas e os direitos reprodutivos dos casais soroconcordantes homoafetivos, que ainda devem ser protegidos pelo princípio da isonomia, surge o dever estatal de concretizar os direitos fundamentais por meio de políticas públicas, como aponta Faro 2323. Faro JP. Políticas públicas, deveres fundamentais e concretização de direitos. Rev Bras Polit Públicas [Internet]. 2013 [acesso 22 jan 2019];10(1):251-69. p. 254. DOI: 10.5102/rbpp.v3i2.2161 . Segundo o pesquisador, o Estado, por meio da Administração Pública, tem o dever de colocar em prática e com eficiência políticas públicas que concretizem direitos, com o uso esperado (correto) dos recursos públicos na melhor relação possível de custo-benefício 2424. Faro JP. Op. cit. p. 261. .

As discussões sobre programas governamentais que viabilizem direitos reprodutivos datam de mais de duas décadas. O item 7.3 do Relatório da Conferência Internacional sobre População e Desenvolvimento 11. Fundo de População das Nações Unidas. Relatório da Conferência Internacional sobre População e Desenvolvimento: plataforma de Cairo, 1994 [Internet]. Brasília: UNFPA; 2005 [acesso 21 ago 2018]. Disponível: https://bit.ly/2I9MO6H
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, ao considerar direitos de reprodução como garantidos por leis nacionais e internacionais, estabelece que a promoção do exercício responsável desses direitos por todo indivíduo deve ser a base fundamental de políticas e programas de governos e da comunidade na área da saúde reprodutiva 77. Fundo de População das Nações Unidas. Op. cit. p. 62. .

A proteção aos indivíduos infectados pelo HIV foi amplamente discutida durante a Conferência e, dentre as ações estabelecidas para os governos, destacam-se: apoiar e desenvolver os devidos mecanismos para ajudar as famílias a cuidar de seus filhos, de dependentes idosos e de membros da família portadores de deficiência, inclusive as resultantes do HIV/aids 2525. Fundo de População das Nações Unidas. Op. cit. p. 56. (item 5.11); (…) reconhecer as necessidades concernentes, inter alia , a saúde reprodutiva, inclusive planejamento familiar e saúde sexual, a HIV/AIDS, a informação, educação e comunicação 2626. Fundo de População das Nações Unidas. Op. cit. p. 61-2. (item 6.30).

O Estado brasileiro já vinha reconhecendo a necessidade de criar serviços eficientes de reprodução assistida ofertados pelo SUS. A Portaria GM/MS 426/2005 2727. Brasil. Ministério da Saúde. Portaria GM/MS nº 426, de 22 de março de 2005. Institui, no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS), a Política Nacional de Atenção Integral em Reprodução Humana Assistida e dá outras providências. Diário Oficial da União [Internet]. Brasília, 22 mar 2005 [acesso 22 jan 2019]. Seção 1. Disponível: https://bit.ly/31f65vZ
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instituiu no âmbito do SUS a Política Nacional de Atenção Integral em RHA, que efetivaria o direito ao planejamento familiar pelas técnicas de RHA, identificando, conforme seu artigo 2º, inciso II, os determinantes e condicionantes dos principais problemas de infertilidade em casais em sua vida fértil, (…) [desenvolvendo] ações transetoriais de responsabilidade pública 2727. Brasil. Ministério da Saúde. Portaria GM/MS nº 426, de 22 de março de 2005. Institui, no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS), a Política Nacional de Atenção Integral em Reprodução Humana Assistida e dá outras providências. Diário Oficial da União [Internet]. Brasília, 22 mar 2005 [acesso 22 jan 2019]. Seção 1. Disponível: https://bit.ly/31f65vZ
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No entanto, mesmo com a instituição de política nacional, pouco se avançou. Em 2012, com a Portaria 3.149 2828. Brasil. Ministério da Saúde. Portaria GM/MS nº 3.149, de 28 de dezembro de 2012. Ficam destinados recursos financeiros aos estabelecimentos de saúde que realizam procedimentos de atenção à reprodução humana assistida, no âmbito do SUS, incluindo fertilização in vitro e/ou injeção intracitoplasmática de espermatozoides. Diário Oficial da União [Internet]. Brasília, 31 dez 2012 [acesso 22 jan 2019]. Seção 1. Disponível: https://bit.ly/2ISuf9f
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, o Ministério da Saúde novamente se manifestou sobre a problemática, determinando a destinação de recursos financeiros aos estabelecimentos de saúde que realizam esses procedimentos. Utilizou como justificativa, inclusive, a ideia de que as técnicas de reprodução humana assistida contribuem para a diminuição da transmissão horizontal e vertical de doenças infectocontagiosas, genéticas, entre outras 2828. Brasil. Ministério da Saúde. Portaria GM/MS nº 3.149, de 28 de dezembro de 2012. Ficam destinados recursos financeiros aos estabelecimentos de saúde que realizam procedimentos de atenção à reprodução humana assistida, no âmbito do SUS, incluindo fertilização in vitro e/ou injeção intracitoplasmática de espermatozoides. Diário Oficial da União [Internet]. Brasília, 31 dez 2012 [acesso 22 jan 2019]. Seção 1. Disponível: https://bit.ly/2ISuf9f
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Em maio de 2010 o governo de São Paulo lançou o Programa de Reprodução Assistida para Soropositivos, que, com um ano em vigência, atendeu cerca de 100 casais 2929. Reprodução assistida para soropositivos atende 100 casais em 1 ano. Governo do Estado de São Paulo [Internet]. Secretaria de Estado da Saúde; 2011 [acesso 22 jan 2019]. Disponível: https://bit.ly/2oIRuff
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. No entanto, desconhece-se quantos desses casais eram de pessoas do mesmo sexo e se algum casal soropositivo homoafetivo foi atendido pelo ambulatório. Portanto, é preciso considerar a inconstitucionalidade de uma restrição (mesmo que não proposital) no acesso a essas tecnologias a casais heterossexuais, excluindo homens ou mulheres solteiros ou indivíduos homossexuais, considerando uma concepção de família que não dá conta da diversidade e pluralismo da nossa cidade , conforme assevera Nascimento 3030. Nascimento PFG. Op. cit. p. 40. .

Não se pode negar o avanço dos direitos reprodutivos dos casais soroconcordantes a partir da implementação de um programa desse tipo, porém é preciso expandir essas políticas públicas em âmbito federal, a fim de atender demandas de todas as pessoas que vivem com HIV e que desejam ter filhos biológicos. O Estado deve incentivar essa tendência, bem como a participação de casais homoafetivos, tendo em vista a vulnerabilidade do grupo em questão.

O Estado brasileiro, mesmo que timidamente, entendeu a importância de regulamentar políticas públicas em RHA para casais soropositivos (soroconcordantes ou não). No entanto, ainda precisa colocar em prática essas ações para garantir os direitos dessas pessoas. Ao confrontar-se com os recursos disponíveis para implementar essas ações, o governo brasileiro deve avaliar primeiro a importância e o alcance delas para toda a sociedade. Como ressalta Liana Cirne Lins, citada por Santos, no Brasil o princípio da reserva do possível tem, muitas vezes, exercido função de mero topos retórico destinado à desqualificação a priori dos direitos sociais, visto que é lançado mão à revelia mesmo da verificação da disponibilidade efetiva do livro-caixa do Estado 3131. Santos CRV. Reserva do possível como uma estratégia jurídica para restringir o direito à saúde: o argumento da “reserva do possível” na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal [dissertação] [Internet]. Recife: Universidade Católica de Pernambuco; 2014 [acesso 15 mar 2019]. p. 114. Disponível: https://bit.ly/2MMBvoB
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Segundo Fernando Facury Scaff, citado por Santos, a teoria da reserva do possível manifesta conceito econômico que decorre da constatação da existência da escassez dos recursos, públicos ou privados, em face da vastidão das necessidades humanas, sociais, coletivas ou individuais 3232. Santos CRV. Op. cit. p. 114-5. . Dessa maneira, não pode ser utilizada pelo Estado como fator determinante para efetivar o direito à saúde sem antes, pelo menos, por meio de estudo financeiro e recursos públicos, analisar a real condição estatal de garantir os direitos aqui discutidos.

Políticas públicas de RHA para casais soroconcordantes homoafetivos sanariam as lacunas na efetivação dos direitos à saúde e reprodutivos desse grupo social. Elas são importantes não apenas para garanti-los, mas para reconhecê-los perante toda a sociedade. De acordo com Lobato, as políticas sociais na atualidade requerem, portanto, essa dimensão, que as coloca como garantidoras de bens sociais como direitos reconhecidos pela sociedade, que reclama a intervenção estatal para sua efetivação, mas que as localiza na esfera pública, em oposição à privada e para além do Estado 3333. Lobato L. Algumas considerações sobre a representação de interesses no processo de formulação de políticas públicas. Rev Adm Pública [Internet]. 1997 [acesso 15 mar 2019];31(1):30-48. p. 45. Disponível: https://bit.ly/35ARwpX
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Resta destacar que essas políticas protegeriam inclusive a ordem econômica do direito à saúde. Para além de assegurar os direitos reprodutivos dos casais soroconcordantes homoafetivos, elas podem contribuir para evitar a disseminação do HIV, reduzindo gastos do poder público com retrovirais e todo o aparato médico e psicológico fornecido pelo SUS.

Considerações finais

Este artigo se propôs a pesquisar o papel estatal, por meio de políticas públicas, na garantia dos direitos reprodutivos de casais soropositivos homoafetivos, tendo em vista o princípio da isonomia. A necessidade de regulamentar e implementar políticas de RHA para essa parcela da população mostrou-se atual e relevante, observadas as discussões que já vinham sendo feitas no Brasil (por exemplo, a instituição do Plano Nacional de Atenção Integral em Reprodução Humana Assistida no SUS, pelas Portarias MS 426 e 3.149) 2727. Brasil. Ministério da Saúde. Portaria GM/MS nº 426, de 22 de março de 2005. Institui, no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS), a Política Nacional de Atenção Integral em Reprodução Humana Assistida e dá outras providências. Diário Oficial da União [Internet]. Brasília, 22 mar 2005 [acesso 22 jan 2019]. Seção 1. Disponível: https://bit.ly/31f65vZ
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, 2828. Brasil. Ministério da Saúde. Portaria GM/MS nº 3.149, de 28 de dezembro de 2012. Ficam destinados recursos financeiros aos estabelecimentos de saúde que realizam procedimentos de atenção à reprodução humana assistida, no âmbito do SUS, incluindo fertilização in vitro e/ou injeção intracitoplasmática de espermatozoides. Diário Oficial da União [Internet]. Brasília, 31 dez 2012 [acesso 22 jan 2019]. Seção 1. Disponível: https://bit.ly/2ISuf9f
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No entanto, apesar da discussão do assunto, pouco tem sido feito. Este trabalho defende a urgência de assegurar o acesso de casais soroconcordantes homoafetivos às políticas públicas de RHA, observando sua condição de grupo socialmente vulnerável e a especial atenção que o Estado deve lhes oferecer, buscando o pleno exercício da isonomia material.

É imprescindível que esse debate seja posto em prática pelo Estado brasileiro, pois as técnicas de reprodução assistida que impedem a transmissão vertical do HIV geralmente são caras, restringindo o acesso de casais hipossuficientes. Outras questões relevantes também deveriam entrar em pauta, como o papel da saúde pública no combate ao HIV e a plena saúde do bebê.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    10 Jan 2020
  • Data do Fascículo
    Oct-Dec 2019

Histórico

  • Recebido
    17 Dez 2018
  • Revisado
    29 Maio 2019
  • Aceito
    30 Maio 2019
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