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Sintagma identidade-metamorfose-emancipação na trajetória da pessoa com deficiência

Resumo

Uma em cada sete pessoas no mundo tem alguma deficiência, e para que possam se emancipar é fundamental que sua identidade seja reconhecida. Este estudo qualitativo de caráter descritivo baseou-se no método de análise do relato oral da vida de uma pessoa com deficiência física, acometida por síndrome pós-poliomielite, em cadeira de rodas, entendida aqui como sujeito emblemático. O objetivo foi entender pela narrativa como o ambiente constrói a identidade e produz metamorfoses emancipatórias. Como aparato teórico, utilizou-se o sintagma identidade-metamorfose-emancipação. Os resultados revelaram vários aspectos da vida do indivíduo, que foram discutidos separadamente e estruturados em linha do tempo para facilitar a visualização e análise dos dados. Portanto, apesar de assumir diversos personagens durante a vida, o sujeito emblemático não consegue emancipar-se devido à manutenção de determinadas estruturas reprodutoras de estigmas que dificultam ou até mesmo impossibilitam o reconhecimento de sua identidade. Aprovação CEP-Unicesumar CAAE 79724817.4.0000

Pessoas com deficiência; Autonomia pessoal; Estigma social

Abstract

Worldwide, one in seven people have disabilities. In order for them to achieve emancipation, it is essential that their identity is recognized. This was a qualitative, descriptive study based on the analysis of oral reports regarding the life trajectory of a physically disabled person. Affected by post-poliomyelitis syndrome and relying on a wheelchair, this person is understood here as an emblematic subject. Our goal was to use this narrative as a means of understanding how one’s environment builds an identity and produces emancipatory metamorphoses. The identity-metamorphosis-emancipation syntagm was chosen as a theoretical apparatus. Our results revealed several aspects of the individual’s life, discussed separately and structured in a timeline to facilitate data visualization and analysis. Although the subject has assumed several personas during her life trajectory, she is unable to emancipate herself due to the maintenance of certain stigma-reproducing structures that make it difficult – or even impossible – for her to recognize her identity.

Disabled persons; Personal autonomy; Social stigma

Resumen

Una de cada siete personas en el mundo tiene alguna discapacidad y, para que puedan emanciparse, es fundamental que se reconozca su identidad. Este estudio cualitativo de carácter descriptivo se basó en el método del relato oral de la vida de una persona con discapacidad física, acometida de síndrome postpolio, usuaria de silla de ruedas, entendida aquí como sujeto emblemático. El objetivo fue entender, mediante su narrativa, la manera en que el entorno construye la identidad y produce metamorfosis emancipatorias. Como aparato teórico, se utilizó el sintagma identidad-metamorfosis-emancipación. Los resultados revelaron varios aspectos de la vida del individuo, los cuales se discutieron por separado y se estructuraron en una línea del tiempo para facilitar la visualización y el análisis de los datos. Por tanto, a pesar de asumir diversos personajes durante la vida, el sujeto emblemático no logra emanciparse debido al mantenimiento de determinadas estructuras reproductores de estigmas que dificultan e incluso imposibilitan el reconocimiento de su identidad. Aprobación CEP-Unicesumar CAAE 79724817.4.0000

Personas con discapacidad; Autonomía personal; Estigma social

Cerca de um bilhão de pessoas vivem com algum tipo de deficiência, e devido ao prolongamento da expectativa de vida, ao consequente aumento global da incidência de doenças crônicas e a acidentes, desastres e conflitos, esse número tende a crescer nos próximos anos 11. Organización Mundial de la Salud . Informe mundial sobre la discapacidad: resumen [ Internet ]. Genebra : Organización Mundial de la Salud ; 2011 [ acesso 10 jan 2018 ]. Disponível: https://bit.ly/36I4O4b
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. Aproximadamente 70 milhões de pessoas no mundo necessitam de tecnologia assistiva, como cadeira de rodas, mas apenas de 5% a 15% 22. World Health Organization . Wheelchair Service Training Package: basic level [ Internet ]. 2012 [ acesso 11 jan 2018 ]. Disponível: https://bit.ly/3bquK7g
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delas, em média, têm acesso a esse recurso. A acessibilidade facilita a inserção em serviços de saúde, redução de iniquidades, inclusão social, promoção da saúde e redução de injustiças evitáveis 33. Brasil . Ministério da Saúde . Política nacional de promoção da saúde [ Internet ]. 3 ª ed. Brasília : Ministério da Saúde ; 2010 [ acesso 10 jan 2018 ]. Disponível: https://bit.ly/307jFTv
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.

A tentativa de diminuir as desigualdades que acometem esses grupos vulneráveis perpassa a busca por emancipação e por direitos de cidadania respaldados pela legislação, como a Lei 13.146/2015 44. Brasil . Lei nº 13.146, de 6 de julho de 2015. Institui a Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência (Estatuto da Pessoa com Deficiência) . Diário Oficial da União [ Internet ]. Brasília , p. 2 , 7 jul 2015 [ acesso 10 jan 2018 ]. Seção 1 . Disponível: https://bit.ly/2NdDa7C
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, conhecida como Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência. Contudo, essas mobilizações não estão livres de contradições e desafios práticos que acabam desmotivando as pessoas e dificultando suas relações de pertencimento 55. Deci EL , Ryan RM . The “what” and “why” of goal pursuits: human needs and the self-determination of behavior . Psychol Inq [ Internet ]. 2000 [ acesso 15 jan 2018 ]; 11 ( 4 ): 227 - 68 . DOI: 10.1207/S15327965PLI1104_01
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, 66. Baumeister RF , Leary MR . The need to belong: desire for interpersonal attachments as a fundamental human motivation . Psychol Bull [ Internet ]. 1995 [ acesso 15 jan 2018 ]; 117 ( 3 ): 497 - 529 . DOI: 10.1037/0033-2909.117.3.497
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.

Desse modo, além de buscar direitos, é preciso refletir sobre como a sociedade os vem consolidando, e para isso é necessário perceber como a identidade da pessoa com deficiência é construída. Neste estudo, tal aspecto é visto como processo de metamorfose, com base no sintagma identidade-metamorfose-emancipação. Segundo a psicologia Referências social crítica, esse conceito entende a identidade em constante transformação, na tentativa de estabelecer teoria na qual o sujeito é autor e personagem que se constrói nos movimentos sociais de um tempo histórico 77. Ciampa AC . A estória do Severino e a história da Severina: um ensaio de psicologia social . São Paulo : Brasiliense ; 2001 . .

Esta abordagem permite relacionar dialeticamente aspectos individuais com aspectos sociais, políticos, econômicos, históricos, sendo capaz de autoproduzir a pessoa pelo processo de vida-morte-vida, que é a própria transformação do ser, em um momento de tomada de consciência em relação à sua condição de existência, levando-a a almejar a emancipação 77. Ciampa AC . A estória do Severino e a história da Severina: um ensaio de psicologia social . São Paulo : Brasiliense ; 2001 . .

Neste sentido, a identidade passa a ser entendida como metamorfose humana, possivelmente impelindo o sujeito a ser autônomo e atingir a emancipação. Porém, mesmo compondo vários personagens na trajetória de vida, estruturando-os nos modos de criação da identidade, esse processo não garante a autonomia que leve a metamorfoses e à emancipação. Isso ocorre pela própria construção histórica e material do sujeito, influenciado pelo capital econômico, simbólico, intelectual e cultural 77. Ciampa AC . A estória do Severino e a história da Severina: um ensaio de psicologia social . São Paulo : Brasiliense ; 2001 . .

Sob essa perspectiva, para conseguir emancipar-se o sujeito vivencia movimento de mudança. À medida que experiencia eventos de vida, suas transformações passam de exteriores para autodeterminação – que surge de motivações intrínsecas. Essa motivação leva o sujeito a querer ser, a representar um papel no mundo e a ser um agente; portanto, a motivação impulsiona metamorfoses que constroem sua identidade 77. Ciampa AC . A estória do Severino e a história da Severina: um ensaio de psicologia social . São Paulo : Brasiliense ; 2001 . .

Diante de tantos discursos voltados para acessibilidade e das leis em vigência, cabe indagar o que impede esse grupo de realmente pertencer aos espaços, interagir com outros grupos diversificados e por fim se relacionar com o outro enquanto pessoa humana que compartilha sentimentos e experiências que formam sua história e a constroem como ser no mundo. Assim, este estudo objetiva analisar como o ambiente forma a identidade do sujeito com deficiência física em cadeira de rodas, produzindo metamorfoses emancipatórias. Consequentemente, não foca dimensões de acessibilidade que abordam diversos tipos de barreiras como matéria que impede o acesso. Apesar da importância dessas discussões, esta análise contempla a autodeterminação do sujeito, as relações de pertencimento e a busca por autonomia, tendo como base o sintagma identidade-metamorfose-emancipação 77. Ciampa AC . A estória do Severino e a história da Severina: um ensaio de psicologia social . São Paulo : Brasiliense ; 2001 . .

Método

Trata-se de pesquisa qualitativa-descritiva baseada no relato oral da história de vida de um indivíduo com deficiência física usuário de cadeira de rodas. Examina-se a evocação da memória como transmissão do vivido por meio de narrativas a fim de perceber como o ambiente constrói a identidade produzindo metamorfoses emancipatórias 88. Meihy JCSB , Holanda F . História oral: como fazer, como pensar . São Paulo : Contexto ; 2007 . . A história oral tem natureza específica, condicionando as perguntas feitas pelo pesquisador e demandando que a abordagem seja relevante para o pesquisado 99. Alberti V . Manual de história oral . Rio de Janeiro : Editora FGV ; 2005 . . Esse método permite extrair categorias analíticas do discurso dos próprios indivíduos sem, contudo, prejudicar o significado que o participante atribui à própria vida, tendo apenas a questão norteadora: “Quem é (nome da pessoa)?”

Entrevistas foram conduzidas por pesquisadora com formação acadêmica na área da educação física e pedagogia, em educação especial e no campo da promoção da saúde. A análise das entrevistas amparou-se no sintagma identidade-metamorfose-emancipação desenvolvido por Ciampa 77. Ciampa AC . A estória do Severino e a história da Severina: um ensaio de psicologia social . São Paulo : Brasiliense ; 2001 . . Visava compreender a essência da identidade construída por meio de vínculos estáveis que conectam as pessoas umas às outras e da teoria da autodeterminação 55. Deci EL , Ryan RM . The “what” and “why” of goal pursuits: human needs and the self-determination of behavior . Psychol Inq [ Internet ]. 2000 [ acesso 15 jan 2018 ]; 11 ( 4 ): 227 - 68 . DOI: 10.1207/S15327965PLI1104_01
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, abordando a necessidade psicológica básica de pertencimento como possibilidade de emancipação.

O sujeito da pesquisa foi escolhido de acordo com a tipologia de Griebeler 1010. Griebeler D . Emblematic subjects in the light of syntagma identity-metamorphosis-emancipation: academic productions of Nepim [ dissertação] [Internet ]. São Paulo : Pontifícia Universidade Católica de São Paulo ; 2015 [ acesso 15 jan 2018 ]. Disponível: https://bit.ly/2QITRK0
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, na qual o participante é tratado como sujeito emblemático, ou seja, sua identidade é construção fundamentada na relação com o outro. Uma participante foi selecionada aleatoriamente a partir de amostra por conveniência de um grupo focal desenvolvido para estudos anteriormente realizados pelos pesquisadores. A participante foi inicialmente abordada por telefone, e depois recebeu a pesquisadora em sua casa durante duas ocasiões: a primeira para a entrevista, que ocorreu no período vespertino, com duração de cinco horas; e a segunda para validá-la, também no período vespertino, por três horas e meia. Os dados foram gravados em áudio e posteriormente transcritos verbatim para análise. No segundo encontro a transcrição da entrevista foi lida, a participante concordou com os dados e salientou que não havia nada a acrescentar.

Resultados

A entrevistada é mulher, tem 52 anos de idade e neste estudo será chamada pelo nome fictício “Laila”. Está desempregada, recebe benefício assistencial e sua deficiência classifica-se como tetraparesia por paralisia infantil, sendo totalmente dependente da cadeira de rodas e cuidadores. A Figura 1 esquematiza cronologicamente os fatos relatados, priorizando os mais enfatizados na entrevista. A linha do tempo permitiu agrupar sua história sob as seguintes temáticas: diagnósticos e trajetória escolar; amizades e rejeições – as relações sociais, vida política, romance e a beleza de ser quem é e a dimensão comunicativa.

Figura 1
Linha do tempo da história oral de vida do sujeito emblemático Laila

Diagnósticos e trajetória escolar

Aos 90 dias de vida, Laila foi acometida por febre intensa, de causa desconhecida. Depois de passar por muitos hospitais, descobriram-na tetraparética por paralisia infantil. Não tinha forças e não realizava nenhum tipo de movimento. Anos depois, a mãe e a tia lutaram para colocar Laila na escola, mas pela forte oposição paterna sua inserção foi tardia: “ Meu pai não queria que eu estudasse porque ele achava que eu ia sofrer o que hoje é chamado de bullying, né? Ele achava que ia ter preconceito, coisa e tal, mas não teve nada disso. Na verdade, acho que o preconceito vinha um pouco por parte dele, porque o preconceito começa dentro da família, né? ” (Laila).

Ao conseguir participar da catequese com a vizinha, pôde também inserir-se no contexto escolar. Tem profunda admiração pela professora. Aprendeu a escrever com 11 anos, colocando o lápis na boca, por falta de coordenação nas mãos: “ Fui me adaptando daqui e dali, no começo mais comia lápis do que tudo… Ave Maria! Que horror ”. Ter aprendido a escrever com a boca prejudicou sua visão, pois utiliza lentes com três dimensões: para curto, médio e longo alcance.

Já na adolescência se considerava rebelde. Parou de estudar na 7ª série e fez supletivo com 18 anos. Fumou dos 25 aos 41 anos: “ Comecei a fumar escondido, aquela coisa do que é proibido é melhor ”. Parou porque estava “ perdendo a graça ”. Fez quatro cursinhos e faltava em algumas aulas para conversar e fumar com outras pessoas: “ Fiz o que eu queria, mas eu me arrependi. Não sou formada hoje, não foi por falta de oportunidade, não… Foi porque eu baguncei muito, festei mesmo ”.

Certa vez, quando se dedicava às atividades regulares de fisioterapia, sentiu fraqueza em todos os membros, em especial nos braços, cujos movimentos já eram limitados. Quando confirmado o primeiro diagnóstico na infância, a poliomielite já tinha se instalado por todo seu corpo. O segundo diagnóstico veio após os 40 anos de idade: “ Os exames acusaram a morte de 98,9% dos neurônios. Olhei para a neurologista e falei: ‘Credo! Tô morta. Que horror! Tô sentindo nada’. Confirmado então que eu tinha uma velha nova doença. Porque eu já tive paralisia infantil na infância e hoje eu tenho o desenvolvimento dela, a pós-pólio. A segunda etapa vem pra detonar com o que não detonou da primeira vez, esse braço e a perna não mexo. Mexo o pé esquerdo, mas pouca coisa, e a mão direita ”.

No mesmo período foi diagnosticada com uma trombose e passou por cirurgia de emergência, ficando internada durante três meses e sofrendo grave hemorragia que desencadeou em anemia. Amputação era seu maior medo: “ A ideia de perder um membro é muito forte para mim. É uma tragédia amputar qualquer coisa que seja, porque eu já sou privada de muita coisa por destino ”.

Amizades e rejeições: as relações sociais

Na juventude, Laila fez um grupo de amigas, todas sem deficiência, e com elas mantinha vida social agitada. Relembra essa fase de sua vida com saudade, diz que foi muito boa e fez coisas das quais não se arrepende. Até ter cerca de 25 anos de idade Laila não se relacionou com pessoas com deficiência: “ Eu era preconceituosa. Eu não aceitava outro cadeirante perto de mim. Quando íamos pra balada, né? Antigamente [era] brincadeira dançante. E quando alguém me falava: ‘Olha, tem um cadeirante ali!’ Eu respondia: ‘Nem me fale, porque eu não quero chegar perto’. Sabe? Essa maldade? Porque era uma maldade muito grande ”.

Com o passar do tempo, o grupo de amigas se distanciou: algumas casaram e outras foram morar em cidades distantes. Laila passou a ficar em casa e sua vida começou a mudar novamente. A mãe e uma amiga insistiram para que ela participasse de uma associação comunitária. Ela foi recebida por um homem que estava há quatro meses em cadeira de rodas: “ Nossa, eu levei aquilo como um tapa de pelica, sabe? Tuff! Beleza! Educadamente ele me mostrou um conhecimento que eu em 20 e tantos anos de cadeira não sabia uma vírgula do que ele falou. Me senti envergonhada. Pensei: ‘Por isso que eu tô sofrendo, porque eu não aceito minha condição mesmo estando nela desde os 3 meses de vida’ ”.

Convivendo com esse homem, percebeu que seu comportamento era demasiadamente polarizado e incoerente com sua condição, e passou a esforçar-se para aceitar quem de fato era: “ Minha vida foi mudando, foi mudando; eu sei que eu tenho muita coisa pra mudar ainda, a gente só deixa de aprender na hora que morre. O que é natural, né? Aí, esse homem foi o meu mestre e eu falo pra ele: ‘Você é meu muso inspirador’. Minha vida foi mudando radicalmente ”.

No centro comunitário, aprendeu que poderia ter uma vida independente, que o fato de precisar de alguém para tirá-la da cadeira não a impediria de escolher o que desejasse. Laila diz não se importar com o que os outros pensam a seu respeito. Gosta de ter uma vida autônoma, alega ter autodeterminação para ir e vir. Respeitando seus limites, percorre toda a cidade utilizando transporte público. Ela se entristece por suas amigas com deficiência que ficam em casa por vergonha de enfrentar o julgamento das pessoas: “ Pode me olhar torto, eu não ligo, sou torta mesmo. Que se lasque! Eu digo pra ela: ‘Olha a tua beleza! E não esquenta a cabeça’. E brigo com ela. Porque pra trocar a bateria é três ou quatro quadras da casa dela e tem que ir com alguém. Falei: ‘Você tá parecendo retardada, tem que pegar na tua mão pra levar? Uma mulher desse tamanho’ ”.

Laila sofreu com a perda de uma amiga, chamada neste estudo pelo nome fictício “Júlia”, também usuária de cadeira de rodas, que há nove anos faleceu de maneira inesperada. Ela tinha pós-poliomielite e seu estado agravou-se repentinamente: “ Aí liguei pra ela, ela tava muito mal, fui lá na casa dela. Fui, aí eu chego lá, ela tá num colchão no chão. Falei: ‘Júlia, o que é isso?’ Né? Pra mim foi um baque, aquele negócio. Parecia um gatinho, sabe? Tudo assim, potinho, água, leite, tudo ali com canudinho ”.

Contou como tentou incentivá-la em vida, levando-a para festas e churrascos contra a vontade e o fervor da família religiosa. Essas motivações vindas de Laila geraram diversos conflitos entre ela e o pai da amiga. Além disso, tentou ainda estimulá-la nos estudos, como descreve: “‘ Júlia, vamos estudar!’ [encorajava Laila]. ‘ Eu não, pra quê? Vou pegar o diploma e jogar na gaveta!’ [respondia Júlia]. ‘ E daí? Pelo menos você chega na sociedade em uma roda e sabe conversar, você é inteligente, aproveita o que tem…’ [redarguia Laila]. ‘ Eu, não’ [Júlia negava]”.

Laila fez 11 vestibulares, parou de tentar e fez o 12º depois de 17 anos, sendo aprovada em instituição privada, mas não se matriculou por não ter conseguido bolsa integral de estudos. Salientou que a vida de uma pessoa em cadeira de rodas é muito cara. Durante o período em que se afastou dos vestibulares, dedicou-se a um curso de espanhol, que concluiu em quatro anos.

Sua autodeterminação mostra que nessa fase da vida ela tentou se emancipar, e nesse contexto surge grande necessidade de pertencer a algum grupo social. A motivação intrínseca de Laila fez com que quisesse aprender para conviver, integrar e interagir com o mundo, como um ser humano socialmente atuante e dotado de capacidades. Apesar das imensas dificuldades proporcionadas por fatores externos e pelo ambiente, que dificultam o acesso ao ensino superior, Laila acredita que pessoas com deficiência devem “ trabalhar com o que têm ”. Ela não conseguiu acessar meios de desenvolver as habilidades que a fariam competir de maneira equânime, então como se emancipar?

Vida política

Laila passou a lutar por espaços de direito para pessoas com deficiência. Desenvolveu um projeto intitulado “Sentindo na pele”, em que os vereadores da cidade se locomoveriam por espaços públicos em cadeiras de rodas. Pretendia-se que, a partir da experiência prática, os vereadores se posicionassem contra as barreiras arquitetônicas, criando projetos em prol da acessibilidade.

Durante a experiência, os vereadores reclamaram muito do desconforto na cadeira, dores nos braços, dificuldades para subir rampas. A cadeira que Laila utiliza foi obtida pelo Sistema Único de Saúde: “ Eu não gosto da palavra ‘ganhar’. Isso aqui [bate no apoio da cadeira] tá muito bem pago com impostos ”. Como não obteve dos parlamentares respostas práticas para melhorar a acessibilidade no município, candidatou-se a vereadora, mas não foi eleita.

Além disso, mantinha-se solidária aos amigos quando era necessário resolver conflitos de ordem pública, como ocorreu com o transporte para as pessoas com deficiência: “ Eles pegavam o passageiro duas da tarde pra ficar o dia inteiro andando, pra quando fosse seis e meia deixar lá na porta do Centro Estadual de Educação Básica para Jovens e Adultos. É um absurdo isso! ”. Foi o que motivou um grupo de usuários do transporte a se reunir, procurar o responsável e expor essa e outras reclamações. O ato gerou a demissão de um funcionário e melhorou a rotina do serviço.

Romance

Laila fala com bastante ênfase de seus relacionamentos e do quanto gostaria de ter alguém com quem dividir momentos da vida. Deixa claro que não gosta de se sentir sozinha e que sempre ansiou por companhia. Quando tinha entre 23 e 24 anos, apaixonou-se por um amigo: “ O preconceito era muito grande na época, e ele não tinha deficiência, não tem. Eu senti preconceito da parte dele ou talvez da minha parte, porque eu era assim. Aí eu penso: será que eu gostei mesmo ou era carência? Nós vamos indo assim cada fase, não sei se melhor ou pior que a outra, mas, enfim, estamos aqui para isso ”.

Mais tarde, quando venceu as barreiras do preconceito, apaixonou-se por uma pessoa com deficiência visual: “ Meu relacionamento com o menino cego foi um ano de idas e vindas. Eu tinha uns 28 anos, achei que tava namorando, mas ele me deu um balde de gelo. Disse que não era namoro. Acho que eu peguei trauma disso daí. Namorado mesmo de vir em casa nunca tive ” (Laila).

Laila fica com a voz emocionada ao falar de um homem de 54 anos com poliomielite que conheceu recentemente em um grupo de WhatsApp: “ Achei ele legal pra caramba… O cara, até (…) Um tava conquistando o outro sem saber, até que saiu, ele falou assim: ‘Olha eu vou fazer um pedido, mas você tem até a tarde pra responder’ [porque era de manhã] ‘você tem até a tarde pra pensar com carinho’. Falei ‘nossa, o que será?’ Daí ele: ‘Quer namorar comigo?’ Meu Deus! Pensa?! ”.

Ela aceitou. Ele morava em outra cidade e os dois passaram 15 dias conversando por meio virtual e fazendo planos de visitarem-se: “ Inclusive, a gente fazia aniversário no mesmo mês. Foi uma coisa bem assim, sabe? Falei ‘nossa! Encontrei, minha cara metade’. E comentei com ele, e ele falou: ‘Também acho que encontrei a minha’. Porque batia tudo, tão bonito, tão legal, que eu jamais imaginei um final como esse, nunca! ”.

Passados os primeiros 15 dias de conversas intensas, ele se ausentou da rede social. Quando Laila ligou, ele atendeu internado em um hospital, devido a complicações de apendicite. Falou com Laila entre gemidos, despediram-se e no dia seguinte ele faleceu: “ Ontem à noite, tá até marcado ali, ninguém mexeu no celular dele, ninguém, e veio um aviso que, sabe aquele aviso da Tim, ‘estou disponível’? Veio pra mim. Eu entrei lá, ninguém tinha mexido no aparelho dele. Menina do céu! Falei ‘gente, o que é isso?’ Quando eu vi, sabe, aquele momento assim… Vou falar com ele, vou falar com ele… Mas ele não está vivo mais! Porque ficou muita coisa engasgada, assim, não por maldade, nem por brigar, mas ficou muita coisa parada na garganta, pra conversar, e agora eu sei que eu não vou ter mais ”.

Depois de alguns instantes em silêncio, diz: “ Daí eu sinto um vazio, sabe? Durante aqueles dias nós conversamos muito, mas muito, muito, muito, eu não sei nem explicar o que foi aquilo. Foi um meteoro, muito rápido, transformou minha vida completamente. E de repente, maior foi o sofrimento dele. E daí… acabou ”.

A beleza de ser quem é e a dimensão comunicativa

Dadas todas as situações vividas, Laila admite que por vezes venceu e por vezes fracassou. Assume personalidade forte e postura de enfrentamento: “ Não é que eu brigava, eu não acho que seja briga, mas eu não sei que nome dar. Uma guerreira eu posso ser? Sei lá… De repente eu tô sendo pretensiosa demais, mas eu sempre gostei dessas coisas, sabe?! Mas não como política, odeio, mas infelizmente a gente depende dessa droga, né?!

Descreve-se como guerreira, aquela que faz a guerra, a soldada. Essa autopercepção provém de suas lutas e de sua identidade política, seja no contexto da vida, da saúde/doença, seja pelos direitos fundamentais, pelo reconhecimento em um relacionamento ou pela sociedade. Suas personagens são lutadoras forjadas em uma individualidade que almeja a autonomia, cujo anseio premente é a emancipação: “ Eu vejo o seguinte… Eu não me importo com minha aparência física, eu não. Me arrumo, saio e não tô me importando com o que a sociedade pensa, não. Nunca me importei. Nunca, porque acho que isso vem de costume, né? De família. Porque acho que meus pais nunca foram de me esconder, como isso era feito há, vamos dizer assim, há 50, 70 anos. Às vezes morria a pessoa e o vizinho não sabia que tinha um deficiente dentro de casa, e então acho que por isso eu nunca fui escondida ”.

Esse relato expõe a relação entre estigmatizados e “normais” nos processos de interação social, não apenas na realidade em que ela vive, mas também na perspectiva histórica de negação das pessoas com deficiência: “ Então a Laila não é uma mulher fracassada, é uma mulher decepcionada – eu luto. Eu me sinto uma guerreira, mas eu preciso de apoio, e apoio eu não tenho. Apoio em todos os sentidos, porque uma andorinha só não faz verão. A gente precisaria ter mais união, coisa que ninguém tem… Só falta isso, porque se todo mundo se unisse por uma só causa, seria tão mais fácil (…) E eu queria só mais união entre todos ” (Laila).

Este aspecto de sua história mostra como as políticas identitárias produzem práticas sociais de manutenção de certos tipos estagnados de identidade. Por mais que os sujeitos queiram sair de determinadas situações, são aprisionados e impossibilitados de se autorrealizar como pessoas humanas. Contudo, com o passar do tempo, ela foi capaz de se transformar de diferentes maneiras por meio dos diversos personagens que assumiu – metamorfoses que possibilitaram novos direcionamentos em sua vida, ressignificando seu passado e a forma como vê a si mesma: “ A gente leva muita cacetada, e eu nunca pensei muito pra falar, por isso a comunicação pra mim é muito importante, é fundamental. Eu tô aqui! E através dela eu vou me manifestar, porque se eu for deixar pela aparência, ninguém vai dar bola ”.

Discussão

Diagnósticos e a trajetória escolar

A tentativa de extirpar a poliomielite é plano estratégico da Iniciativa Global de Erradicação da Pólio. Atualmente, casos são diagnosticados apenas no Afeganistão e no Paquistão 1111. Brasil . Ministério da Saúde . Plano de Erradicação da Poliomielite: estratégia no Brasil [ Internet ]. Brasília : Ministério da Saúde ; 2015 [ acesso 15 mar 2018 ]. Disponível: https://bit.ly/2SgWOSR
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. A meta da Organização Mundial da Saúde 11. Organización Mundial de la Salud . Informe mundial sobre la discapacidad: resumen [ Internet ]. Genebra : Organización Mundial de la Salud ; 2011 [ acesso 10 jan 2018 ]. Disponível: https://bit.ly/36I4O4b
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e da Organização Pan-Americana da Saúde 1212. Organização Pan-Americana da Saúde . Gestão de redes na Opas/OMS Brasil: conceitos, práticas e lições aprendidas [ Internet ]. Brasília : Opas/OMS ; 2008 [ acesso 10 jan 2018 ]. Disponível: https://bit.ly/2NbF9cj
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foi erradicar todos os tipos de poliovírus até 2018 1313. Global Polio Eradication Initiative . Semi-annual status report: July to December 2017 [ Internet ]. Genebra : World Health Organization ; 2018 [ acesso 15 jan 2018 ]. Disponível: https://bit.ly/2FBnG91
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, mas ainda hoje a doença não foi erradicada, apesar de melhorias.

Depois de diagnosticada a poliomielite, as famílias lidam com sentimentos de negação, tristeza, resignação, revolta, dificultando a aceitação e levando a constante busca por cura 1414. Brunhara F , Petean EBL . Mães e filhos especiais: reações, sentimentos e explicações à deficiência da criança . Paidéia [ Internet ]. 1999 [ acesso 11 mar 2018 ]; 9 ( 16 ): 31 - 40 . DOI: 10.1590/S0103-863X1999000100004
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. Estes sentimentos são observados na trajetória de Laila, e as transformações ocorridas na infância passaram a fazer parte de sua identidade.

No ensino fundamental, sua professora teve papel essencial, pois criou ambiente profícuo para os estudos. O incentivo a experiências positivas no ambiente escolar possibilitou à entrevistada estabelecer relações de afeto com o conhecimento, fator indispensável para a aprendizagem. Como educadora, essa professora a influenciou para além dos muros da escola, edificando entre ambas profundo laço afetivo.

A afeição no ambiente escolar é motivação extrínseca que, aliada a fatores intrínsecos, como curiosidade e valores pessoais, é fundamental para a permanência de crianças e adolescentes na escola 55. Deci EL , Ryan RM . The “what” and “why” of goal pursuits: human needs and the self-determination of behavior . Psychol Inq [ Internet ]. 2000 [ acesso 15 jan 2018 ]; 11 ( 4 ): 227 - 68 . DOI: 10.1207/S15327965PLI1104_01
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. As pessoas se tornam educadores por vocação e professores por profissão, e toda vocação nasce do amor e da esperança. Esses sentimentos muitas vezes são incompreendidos pela dinâmica das instituições educacionais, mas na relação entre professor e aluno permitem transcender barreiras, promovendo a emancipação do indivíduo 1515. Alves R . Conversas com quem gosta de ensinar [ Internet ]. São Paulo : Cortez ; 1980 [ acesso 10 mar 2018 ]. Disponível: https://bit.ly/2Td8VBA
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.

A fase de transição inerente à adolescência causa mudanças comportamentais na pessoa, que busca construir-se como ser no mundo. A adolescência pode ser compreendida sob três aspectos: biológico, englobando puberdade e mudanças corporais; psicanalítico, passando pelos contrastes e contradições; e sociológico, que considera a travessia social do sujeito até seu amadurecimento rumo à autonomia 1616. Nasio J-D . Como agir com um adolescente difícil? Rio de Janeiro : Zahar ; 2011 . .

No caso de pessoas com deficiência física severa, durante a puberdade, o desenvolvimento do corpo, a vulnerabilidade pode atrelar-se a construções sociais. Nesse caso, o corpo é visto sob a ótica do risco, atribuída ao sujeito pelos membros de sua família, como o que ocorreu com Laila quando o pai tentou dificultar sua convivência social. Apesar disso, ela tentou se estabelecer durante a adolescência, no contexto das aspirações afetivas e dos vínculos com diferentes grupos. Assim, movida pela afirmação e pelo reconhecimento social, preferiu se comunicar e interagir com várias pessoas. Quando teve tempo para se dedicar aos estudos, acabou se rebelando, absorvendo hábitos transgressores, como mentir para seus familiares e fumar, a fim de livrar-se do isolamento social 1616. Nasio J-D . Como agir com um adolescente difícil? Rio de Janeiro : Zahar ; 2011 . .

Sua tentativa de ser reconhecida nos grupos sociais pode ser relacionada à construção da identidade política. Com o almejado reconhecimento, busca transformar aspectos pessoais pela comunicação, em busca de autonomia naquele contexto 1717. Ciampa AC . Políticas de identidade e identidades políticas . In: Dunker CIL , Passos MC , organizadores . Uma psicologia que se interroga: ensaios . São Paulo : Edicon ; 2002 . p. 133 - 44 . . O conflito entre educação, saúde e doença sempre foi uma constante em sua vida. Contudo, além de biológico, ela é um ser social, e todas essas dinâmicas de vida permeiam suas relações com o mundo e a transformam continuamente, fazendo-a um ser diferente todos os dias. Dessa maneira, suas ações não se esgotam em si, e não se pode considerar o sujeito como consciência abstrata pura forjada na subjetividade, tampouco reduzi-lo à condição de coisa forjada pela objetividade dos fatos biológicos e materiais. Pelo contrário, deve-se considerar o movimento dialético desse dualismo para dar sentido à existência humana 1818. Ciampa AC . Identidade . In: Codo W , Lane STM , organizadores . Psicologia social: o homem em movimento . São Paulo : Brasiliense ; 1984 . p. 58 - 75 . .

Amizades e rejeições: as relações sociais

Laila passou por uma metamorfose completa, da autonegação à negação de outras pessoas com deficiência para autoaceitação, aceitação do outro e imersão no grupo social antes rejeitado. A Laila preconceituosa torna-se altruísta, empática e autodeterminada, passando a “ ser o que é ”. A superação dialética dessa contradição faz surgir nova personagem metamorfoseada, criando um outro que é um ser que contém ambas 1818. Ciampa AC . Identidade . In: Codo W , Lane STM , organizadores . Psicologia social: o homem em movimento . São Paulo : Brasiliense ; 1984 . p. 58 - 75 . .

Para ela aprender é um ensejo para superação, significa mostrar que pode ser mais que alguém com deficiência: significa ser reputada como personagem pensante, pessoa racional, crítica, que pode e deve ser reconhecida. Representa ainda abertura para a convivência com outros grupos, podendo interagir socialmente, dialogando sobre qualquer assunto em qualquer âmbito social, inclusive no mercado de trabalho.

As formas de dominação que envolvem as pessoas com deficiência segregam e não consolidam direitos sociais. Apesar do imenso esforço para sair da opressão, as identidades desse grupo permanecem sem reconhecimento, reduzindo-o a categorias marginalizadas. A luta de Laila pela afirmação de sua identidade é a mesma de muitos que buscam oportunidades de transformar políticas de identidade em identidade política. Esse processo só é possível pela emancipação 1919. Almeida JAM . Identidade e emancipação: uma contribuição à teoria de Ciampa . Psicol Soc [ Internet ]. 2017 [ acesso 20 mar 2018 ]; 29 : e170998 . DOI: 10.1590/1807-0310/2017v29170998
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.

Na tentativa de relacionar as categorias linguagem e trabalho, Habermas 2020. Habermas J . A inclusão do outro: estudos de teoria política . São Paulo : Loyola ; 2004 . busca explicar a linguagem como aquilo que completa no sujeito seu processo de hominização. As discussões de métodos científicos sob perspectiva crítica discorrem sobre a transformação do homem pelo trabalho, considerado-o modelo para todas as atividades humanas 2121. Engels F . O papel do trabalho na transformação do macaco em homem [ Internet ]. São Paulo : Ridendo Castigat Mores ; 1999 [ acesso 5 fev 2018 ]. Disponível: https://bit.ly/2FEu7s0
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. Laila se esforça para adentrar o mercado de trabalho quando se empenha, repetidas vezes, em ingressar em um curso de nível superior: seu anseio é profissionalizar-se. Diante das barreiras encontradas, conclui um curso de espanhol e passa a dar aulas – não remuneradas – para pessoas com deficiência. Assim, depreende-se que a comunicação é a estratégia utilizada por ela para construir seu lugar de fala e interagir socialmente.

Essa vontade de ingressar no mercado de trabalho está relacionada à luta por reconhecimento e à necessidade de pertencer. Ela utiliza a comunicação para se estabelecer como profissional, mas não consegue ingressar no mundo formal da produção. O acesso ao ensino superior seria tentativa de se construir como ser humano por meio do trabalho 2020. Habermas J . A inclusão do outro: estudos de teoria política . São Paulo : Loyola ; 2004 . .

As relações que produz entre trabalho e linguagem a fazem investir-se de diversas personas: estudante, amiga, professora de espanhol. No entanto, não atinge a emancipação à qual aspira porque não consegue resultados materiais com seu trabalho. As exigências de uma sociedade pautada pela produção de bens materiais se justificam pela transformação da natureza para manter o sistema capitalista. Nesse contexto, pode-se perceber que o sucesso de Laila em se tornar uma pessoa independente não supre totalmente suas próprias expectativas de emancipação.

Ciampa adverte que a metamorfose, ainda quando impedida, ainda quando oculta, expressa a invencibilidade da substância humana, como produção histórica e material 2222. Ciampa AC . Op. cit . 2001 . p. 182 . , o que esclarece outros fatores que perpassam a construção da identidade de Laila. A grande transformação pela qual passa, aceitando as pessoas com deficiência e estabelecendo laços com elas, a ponto de serem seu foco de apoio em momento de grande angústia (quando em luto), mostra o quanto sua identidade se alterou no tempo e nos espaços que viveu. Não é a mesma, pois é forjada a cada dia em condições de sua produção histórica e social.

À medida que a identidade de Laila se transforma, surge também novo personagem, construído agora pela dor e pelo luto. Essa persona conforta e é confortada pelo grupo que outrora rejeitara, ao mesmo tempo que tira de dentro de si a força necessária para seguir sendo o que é e para aceitar-se como é, fundindo-se a uma coletividade. Ela liberta-se do preconceito; aquela mulher que não se aproximava de pessoas de cadeira de rodas já não existe mais. Agora, surge uma nova Laila, a que chora por eles, chora com eles e tenta lutar pelos seus direitos na dialética de vida-morte-vida 77. Ciampa AC . A estória do Severino e a história da Severina: um ensaio de psicologia social . São Paulo : Brasiliense ; 2001 . .

Vida política

Nesse contexto, a relação entre sujeito e sociedade remete à questão da identidade a partir de um projeto político. A existência de uma identidade política, somada a um projeto de vida autônomo, conduz o sujeito para a emancipação 2323. Dantas SS . Identidade política e projetos de vida: uma contribuição à teoria de Ciampa . Psicol Soc [ Internet ]. 2017 [ acesso 10 mar 2018 ]; 29 : e172030 . DOI: 10.1590/1807-0310/2017v29172030
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. A Laila preconceituosa passa a ser a Laila candidata a vereadora na tentativa de melhorar a vida das pessoas com deficiência. É a busca de um porvir para os outros em um projeto político que possa transformar suas condições de existência. A constituição da identidade política dos sujeitos deve se basear em projetos coletivos edificados democraticamente. Nesse sentido, a identidade é metamorfose , movimento em desenvolvimento concreto e transformação constante em busca de emancipação 1818. Ciampa AC . Identidade . In: Codo W , Lane STM , organizadores . Psicologia social: o homem em movimento . São Paulo : Brasiliense ; 1984 . p. 58 - 75 . .

Contudo, a lógica sistêmica na qual se organiza o mundo o torna muitas vezes desumanizador, quando não existe ação comunicativa por parte daqueles que são oprimidos: as desigualdade e injustiças ganham força e prevalecem. Nesse sentido, a necessidade do sujeito de vir a ser no mundo o faz superar os limites das condições objetivas impostas em determinadas épocas e sociedades. É por isso também que o exercício da metamorfose é tão importante 1818. Ciampa AC . Identidade . In: Codo W , Lane STM , organizadores . Psicologia social: o homem em movimento . São Paulo : Brasiliense ; 1984 . p. 58 - 75 . .

Romance

Muitos aspectos da sexualidade das pessoas acometidas por patologias incapacitantes são forjados por estereótipos, situações de rejeição e futuro afetivo desacreditado. Porém, muitas pessoas conseguem expressar seu poder de conquista transgredindo modelos sociais que sentenciam a vida sexual das pessoas com deficiência 2424. Barreto E . O corpo rebelado: autonomia, cuidado e deficiência física . Curitiba : Appris ; 2016 . .

Essas transgressões, embora possíveis, são difíceis e exigem superação. Quando alguém é identificado como “deficiente”, atribui-se a ele falta ou perda de alguma capacidade inerente, considerada como algo biologicamente dado. Nesse caso, a “deficiência” torna-se fenômeno social, que marca e estigmatiza a pessoa, tanto para os outros quanto para si mesma. Então, todas as posições que Laila tomou em relação à sua existência – querer relacionar-se, namorar, casar, ter um companheiro para envelhecer, ser cuidada – estão associadas e se desdobram na ideia de “deficiência”, que centraliza as representações das personas socialmente atribuídas a Laila.

Portanto, a construção da identidade cria situação ambígua, estabelecendo uma rede de representações que envolvem todos os relacionamentos, em que a cada metamorfose surgem novas personagens. Embora busquem romper com as normas e alterar a estrutura simbólica e material da sociedade para ensejar aceitação e acolhimento, as pessoas com deficiência acabam também por manter e reproduzir estigmas, que podem levar o sujeito a metamorfoses não emancipatórias ou bloquear seu esforço em direção a elas 1818. Ciampa AC . Identidade . In: Codo W , Lane STM , organizadores . Psicologia social: o homem em movimento . São Paulo : Brasiliense ; 1984 . p. 58 - 75 . .

A beleza de ser quem é e a dimensão comunicativa

A manipulação do estigma 2525. Goffman E . Estigma: notas sobre a manipulação da identidade deteriorada [ Internet ]. [ São Paulo : Site Sabotagem ]; 2004 [ acesso 2 fev 2018 ]. Disponível: https://bit.ly/2FJfdk9
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pertence à vida pública e depende dos contatos estabelecidos entre estranhos e conhecidos. Dessa maneira, resta ao estigmatizado desenvolver métodos para tentar minimizar o tratamento restritivo que receberá, buscando abrir caminhos para que a deficiência deixe de ser fator crucial para o convívio com os outros.

A comunicação para Laila é muito importante. O diálogo que estabelece com os interlocutores pretende encontrar no outro o reconhecimento para que possa participar das convenções morais que regem a sociedade. Seu discurso político busca consolidar direitos previstos por lei, mas que não são estabelecidos ou sequer plenamente reconhecidos socialmente 2626. Habermas J . Teoría de la acción comunicativa [ Internet]. 2ª ed. Madri : Taurus ; 2001 [ acesso 2 fev 2018 ]. v. 1 . Disponível: https://bit.ly/37Mq2y6
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.

Porém, seus diálogos ecoam sozinhos, são válidos somente em determinadas situações. Se o processo de formação da identidade tem como premissa o reconhecimento recíproco entre dois sujeitos, o sujeito só se vê como sujeito social se for reconhecido pelos demais. Se não há reconhecimento, não há formação de um sujeito social 2727. Honneth A . Luta por reconhecimento: a gramática moral dos conflitos sociais [ Internet ]. São Paulo : Editora 34 ; 2003 [ acesso 20 abr 2018 ]. Disponível: https://bit.ly/2R833GO
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.

A vida de Laila é marcada por fatos que não ocorrem em ambientes emancipatórios. Sua luta constante para se autoproduzir e se afirmar como ser humano a faz assumir diferentes personagens que almejam a emancipação plena, em todos os contextos da vida – seja no aspecto saúde/doença, seja no processo de aceitar a si mesma, de negar e aceitar os outros; na busca por um companheiro; na luta por direitos de pessoas na mesma situação; em sua candidatura política ou no seu anseio pelo conhecimento e por motivar seus amigos a ingressar no ensino superior, seja pelo seu projeto “Sentindo na pele” ou pelas aulas gratuitas de espanhol.

Sua luta é ser reconhecida como ser humano em uma sociedade excludente, ter seus direitos em uma sociedade individualista. Para isso, vive, morre e vive; muda sempre que necessário na busca constante de uma oportunidade de poder ser quem é. Laila emancipa-se como ser humano, dá sentido à sua existência quando aceita as próprias limitações e as de outras pessoas. Mas não goza de reconhecimento social. Sua luta é vagarosa, silenciosa, um tanto quanto solitária, pois muitos de seus pares já desistiram, partiram ou faleceram. Mas ela persiste; com autodeterminação luta para manter sua identidade e vive na esperança de conquistar sua liberdade de ser, escolher, pertencer, de poder emancipar-se.

Considerações finais

Este estudo objetivou perceber como o ambiente constrói a identidade de um sujeito com deficiência física, usuário de cadeira de rodas, produzindo metamorfoses emancipatórias. Conclui-se que o contexto no qual se insere o sujeito emblemático não é emancipatório, pois mantém determinadas estruturas reprodutoras de estigmas e ações que dificultam ou até mesmo impossibilitam o reconhecimento do indivíduo, não permitindo a ele satisfazer a necessidade psicológica básica de pertencimento.

Portanto, na sua luta busca libertar-se da segregação e da marginalização estabelecidas nos grupos sociais. Nesse sentido, temos a ideia do sintagma identidade-metamorfose, que em um processo dialético pode ou não gerar emancipação. Este estudo tem implicações futuras por revelar a necessidade de reconhecer a identidade política das pessoas com deficiência física, a fim de que possam se emancipar com equidade de direitos e perspectivas sociais que visem a humanização, o pertencimento e o reconhecimento social de todos.

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  • Agradecemos à Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) e ao Programa de Bolsa de Produtividade do Instituto Cesumar de Ciência, Tecnologia e Inovação (Iceti) pelo apoio financeiro para desenvolver este estudo.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    30 Mar 2020
  • Data do Fascículo
    Jan-Mar 2020

Histórico

  • Recebido
    11 Dez 2018
  • Revisado
    28 Maio 2019
  • Aceito
    29 Maio 2019
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