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Reflexões humanísticas em serviço de atendimento especializado em HIV

Resumo

A postura do médico em relação a diagnóstico e esclarecimentos ao paciente infectado pelo vírus da imunodeficiência humana baseia-se principalmente na percepção pessoal e experiência humanística. O objetivo deste estudo foi relatar a experiência de estudantes de medicina do sexto período do Centro Universitário Metropolitano da Amazônia, em Belém/PA, durante as aulas do módulo de Habilidades Clínicas (Eixo Infectologia) no Centro de Atenção à Saúde em Doenças Infecciosas Adquiridas. Depois de prestarem atendimentos ambulatoriais e discutirem casos clínicos por cinco meses, os estudantes se deram conta da necessidade de humanização nessa área, considerando questões biopsicossociais. De modo geral, a experiência ampliou os conhecimentos adquiridos nas aulas e permitiu aplicar o cuidado integral ao paciente, além de estimular formação mais humanística e crítica desses profissionais de saúde.

Educação médica; Sorodiagnóstico da aids; Antígenos HIV; Infectologia; Humanização da assistência

Abstract

The physicians’s attitude towards diagnosis and clarifications to the patient infected by the human immunodeficiency virus is based mainly on personal perception and humanistic experience. The objective of this study was to report the experience of medical students from the sixth period of the Centro Universitário Metropolitano da Amazônia, in Belém, Pará, Brazil, during classes of the Clinical Skills module (Infectious Axis) at the Center for Attention on Acquired Infectious Diseases. After providing outpatient care and discussing clinical cases for five months and considering biopsychosocial issues, the students realized a need for humanization in this area. The experience expanded the knowledge acquired in class and allowed the delivery of comprehensive care to the patient, in addition to encouraging more humanistic and critical training of these health professionals.

Education, medical; Aids serodiagnosis; HIV antigens; Infectious disease medicine; Humanization of assistance

Resumen

La actitud del médico respecto al diagnóstico y la aclaración de la condición del paciente infectado por el VIH está relacionada con la percepción personal y la experiencia humanística. El presente estudio tuvo el objetivo de presentar la experiencia de estudiantes de medicina del sexto período del Centro Universitário Metropolitano da Amazônia, en Belém, Pará, Brasil, durante las clases del módulo Habilidades Clínicas (Eje Infectología) en el Centro de Atención de Enfermedades Infecciosas Adquiridas. Los estudiantes ofrecieron atención ambulatoria y tuvieron discusión de casos durante cinco meses y pudieron advertir la necesidad de humanización en esta área debido a problemas biopsicosociales. La experiencia brindó la oportunidad de ampliar los conocimientos adquiridos durante las clases y aplicar una atención integral al paciente, y estimular la capacitación de profesionales de la salud con un perfil humanístico y crítico.

Educación médica; Serodiagnóstico del sida; Antígenos VIH; Infectología; Humanización de la atención

O vírus da imunodeficiência humana (HIV) foi reconhecido pela primeira vez em 1981, com a manifestação de doenças relacionadas à falha do sistema imunológico 11. Palella FJ, Delaney KM, Moorman AC, Loveless MO, Fuhrer J, Satten GA et al . Declining morbidity and mortality among patients with advanced human immunodeficiency virus infection. N Engl J Med [Internet]. 1998 [acesso 12 jul 2019];338:853-60. DOI: 10.1056/NEJM199803263381301
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. A imunodepressão é causada por retrovírus da família Retroviridae: dois vírus desta família foram identificados como causadores da aids – o HIV-1 e, mais tarde, o HIV-2. Além de tornar o indivíduo infectado mais suscetível a doenças oportunistas que normalmente não se manifestariam em pessoas saudáveis, o HIV favorece o aparecimento de neoplasias, especialmente quando associado à coinfecção por vírus oncogênicos 11. Palella FJ, Delaney KM, Moorman AC, Loveless MO, Fuhrer J, Satten GA et al . Declining morbidity and mortality among patients with advanced human immunodeficiency virus infection. N Engl J Med [Internet]. 1998 [acesso 12 jul 2019];338:853-60. DOI: 10.1056/NEJM199803263381301
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, 22. Beyrer C, Baral SD, Van Griensvein F, Goodreau SM, Chariyalertsak S, Wirtz AL, Brookmeyer R. Global epidemiology of HIV infection on men who have sex with men. Lancet [Internet]. 2012 [acesso 12 jul 2019];380(9839):367-77. DOI: 10.1016/S0140-6736(12)60821-6
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.

De acordo com dados publicados pela Joint United Nations Programme on HIV/Aids (Unaids), 20,9 milhões de pessoas tiveram acesso à terapia antirretroviral (TARV) até junho de 2017 33. Global HIV & AIDS statistics. Unaids [Internet]. 2017 [acesso 12 jul 2019]. Disponível: https://bit.ly/2rMFISw
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. A não adesão a esse tratamento está relacionada ao aumento da mortalidade e morbimortalidade, resistência à medicação, aumento do potencial de transmissão de mutações resistentes às drogas disponíveis e à não supressão viral. Quanto aos fatores associados à adesão, a situação socioeconômica, o estigma e a falta de informação são os de maior influência 33. Global HIV & AIDS statistics. Unaids [Internet]. 2017 [acesso 12 jul 2019]. Disponível: https://bit.ly/2rMFISw
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, 44. Falagas ME, Zarkadoulia EA, Pliatsika PA, Panos G. Socioeconomic status (SES) as determinant of adherence to treatment in HIV infected patients: a systematic review of the literature. Retrovirology [Internet]. 2008 [acesso 12 jul 2019];5:13. DOI: 10.1186/1742-4690-5-13
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.

A introdução da TARV mudou muito a percepção sobre a doença: se antes o diagnóstico era visto como situação fatal, hoje passa a ser entendido como condição de saúde crônica. Essa mudança na percepção da doença melhorou a qualidade de vida das pessoas acometidas, contribuindo para as relações interpessoais e ocupacionais, e principalmente para a saúde física e mental desses pacientes 55. Campos LN, César CC, Guimarães MDC. Quality of life among HIV-infected patients in Brazil after initiation of treatment. Clinics [Internet]. 2009 [acesso 12 jul 2019];64(9):867-75. DOI: 10.1590/S1807-59322009000900007
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, 66. Lowther K, Selman L, Harding R, Higginson IJ. Experience of persistent psychological symptoms and perceived stigma among people with HIV on antiretroviral therapy (ART): a systematic review. Int J Nurs Stud [Internet]. 2014 [acesso 12 jul 2019];51(8):1171-89. DOI: 10.1016/j.ijnurstu.2014.01.015
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.

O estigma relacionado ao HIV afeta a qualidade de vida dos pacientes e pode resultar em acometimento físico e psicológico, considerando que o atendimento precário e um mau prognóstico podem comprometer a efetividade do tratamento. Portanto, o enfermo precisa se sentir confortável ao buscar ajuda dos profissionais de saúde, ou seja, os responsáveis por assegurar, orientar e tratar de forma adequada e ética os portadores do vírus 77. Oliveira FBM, Queiroz AAFLN, Sousa ÁFL, Moura MEB, Reis RK. Sexual orientation and quality of life of people living with HIV/Aids. Rev Bras Enferm [Internet]. 2017 [acesso 12 jul 2019];70(5):1004-10. DOI: 10.1590/0034-7167-2016-0420
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, 88. Nunes AA, Caliani LS, Nunes MS, Silva AS, Mello LM. Análise do perfil de pacientes com HIV/aids hospitalizados após introdução da terapia antirretroviral (HAART). Ciênc Saúde Coletiva [Internet]. 2015 [acesso 12 jul 2019];20(10):3191-8. DOI: 10.1590/1413-812320152010.03062015
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.

A falta de informações dos profissionais de saúde em relação ao HIV e seu manejo clínico, assim como a postura adequada para o diagnóstico e esclarecimentos da condição ao paciente, estão relacionados à percepção pessoal, contato com o assunto durante a graduação e experiência em lidar com pacientes com esta patologia 99. Jesus GJ, Oliveira LB, Caliari JS, Queiroz AAFL, Gir E, Reis RK. Dificuldades do viver com HIV/aids: entraves na qualidade de vida. Acta Paul Enferm [Internet]. 2017 [acesso 12 jul 2019];30(3):301-7. DOI: 10.1590/1982-0194201700046
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. O contato com soropositivos durante a vida acadêmica amplia o conhecimento a respeito não só da doença, mas da conduta ética, fortificando a relação médico-paciente.

Ressaltando aspectos bioéticos, este artigo relata a experiência de estudantes de medicina (autores do artigo) durante as atividades desenvolvidas nas aulas práticas do módulo de Habilidades Clínicas (Eixo Infectologia) no Centro de Atenção à Saúde em Doenças Infecciosas Adquiridas (Casa Dia), em Belém/PA.

Relato de experiência

Este trabalho se baseia na visão dos autores – alunos de medicina do Centro Universitário Metropolitano da Amazônia (Unifamaz) – sobre as aulas práticas ministradas no Casa Dia durante o sexto período. Organizada como estágio, a experiência foi acompanhada por médicos infectologistas e seguiu cronograma previamente elaborado para cinco meses – de agosto a dezembro de 2018 –, incluindo atendimentos ambulatoriais e discussão de assuntos relacionados a doenças infectocontagiosas e casos clínicos.

O Casa Dia, serviço especializado do Sistema Único de Saúde (SUS), atende pacientes no município de Belém desde 1999. O serviço conta com equipe multidisciplinar e presta atendimento ambulatorial aos portadores de HIV, oferece quimioprofilaxia antirretroviral para vítimas de violência sexual e acidentes ocupacionais, e acompanhamento ambulatorial para pacientes com hepatites virais.

A maior parte dos pacientes do Casa Dia é encaminhada pelo Centro de Testagem e Acompanhamento (CTA), mas também por unidades básicas de saúde, hospitais credenciados de Belém, prontos-socorros municipais e pela rede privada.

Discussão

Durante o estágio, os estudantes de medicina perceberam a necessidade de humanizar o atendimento desses enfermos, uma vez que esses indivíduos estão mais vulneráveis no contexto biopsicossocial e mais sujeitos à discriminação familiar e social. Entre outros pontos, vale destacar o respeito ao perguntar sobre a orientação sexual, a sensibilidade ao questionar sobre a possível forma de contágio, a confiança estabelecida para que o paciente consiga falar sobre o uso de drogas, a quantidade de parceiros e outras situações de risco.

Quanto às principais doenças oportunistas, pode-se mencionar a dermatite seborreica, candidíase orofaríngea, leucoplasia pilosa, retinite por citomegalovírus, herpes simples, herpes zóster e tuberculose pulmonar. Os alunos perceberam a importância de reconhecê-las como a possível primeira manifestação da infecção pelo vírus da imunodeficiência humana e, portanto, de solicitar sorologia para HIV ao diagnosticá-las, sobretudo no caso de tuberculose.

No decorrer do estágio, foi possível constatar também muitos pacientes que apresentavam coinfecção por HIV e sífilis. A sífilis, nesses pacientes, revela possível comportamento sexual de risco e falhas no sistema de prevenção. Por isso, é fundamental que profissionais da saúde diagnostiquem precocemente e combatam a sífilis, uma vez que, diferentemente do HIV, se trata de doença curável.

A partir dos casos clínicos encontrados no estágio, foi possível inferir diversos fatores que interferem na adesão à TARV, relacionados às condições psicológicas e sociais dos enfermos: não aceitação da doença, baixo grau de instrução, grande quantidade de comprimidos (em alguns esquemas), o fato de o parceiro não saber sobre a condição do paciente, efeitos adversos, falta de condições de transporte para buscar os medicamentos, dificuldade de conseguir se ausentar do trabalho para comparecer às consultas de rotina e renovar a prescrição.

Além de despertar o interesse pelo conhecimento na área, os cinco meses de aulas práticas deixaram os estudantes mais preparados para atender portadores de HIV, esclarecer dúvidas sobre a forma de transmissão, elucidar sobre a contagem de linfócitos T CD4+ e exame de carga viral, evidenciar o impacto da TARV na morbimortalidade e lidar com diversas questões biopsicossociais. No entanto, alguns subgrupos não puderam analisar casos clínicos mais graves e importantes para futura prática clínica, como pacientes com sífilis ou tuberculose, já que foram escolhidos aleatoriamente.

A experiência seguiu os princípios da bioética, conforme recomendam as Diretrizes Curriculares Nacionais (DCN) dos cursos de medicina 1010. Brasil. Ministério da Educação. Diretrizes curriculares nacionais do curso de graduação em medicina [Internet]. [s.d] [acesso 20 nov 2019]. Disponível em: https://bit.ly/2rThC8U
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. A partir dessa perspectiva, é inegável que estimulou a formação de profissionais de saúde com perfil mais humanístico, crítico e reflexivo, sensibilizando e preparando os futuros profissionais para enfrentar as diferentes realidades da saúde da população brasileira.

Considerações finais

Considerando a qualidade da experiência humanística vivida e a contribuição para o ensino dos alunos, pode-se dizer que as aulas práticas no Casa Dia deram a eles a oportunidade de aplicar e ampliar os conhecimentos adquiridos nas aulas teóricas do módulo Infecção e Inflamação. As aulas práticas também os ajudaram a lidar melhor com a timidez e insegurança ao abordar o paciente, um indivíduo que necessita de cuidado médico e mesmo palavras de conforto.

Ademais, essas aulas práticas promovem a reflexão sobre o cuidado integral, tendo em vista uma medicina que não apenas cure patologias, mas que seja mais humana e respeite a individualidade de cada paciente. Nesse sentido, sugere-se que outras universidades adotem essa atividade, tanto para aprimorar a formação ética e dos princípios da bioética dos futuros profissionais para lidar com pacientes em situações de grande vulnerabilidade social como para atender às exigências das DCN do curso de medicina e da sociedade em geral.

Referências

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    30 Mar 2020
  • Data do Fascículo
    Jan-Mar 2020

Histórico

  • Recebido
    7 Maio 2019
  • Revisado
    20 Nov 2019
  • Aceito
    21 Nov 2019
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