A bioética tem sido pouco requisitada na pesquisa científica sobre problemas inerentes ao ambiente de trabalho. No entanto, com a contrarreforma trabalhista em curso no Brasil, ancorada no avanço neoliberal pelo mundo 1 , o trabalho retoma sua centralidade na saúde, e nesse contexto o debate bioético pode ajudar a compreender algumas questões, tensionando os limites do cenário social.
Na história do capitalismo e, mais recentemente, com o neoliberalismo, o trabalho tem deixado de ser meio para a emancipação humana, estando cada vez mais submetido a superespoliadores que não titubeiam em reforçar a servidão. A exploração baseada na desregulamentação das relações trabalhistas e em sucessivas ameaças ao direto ao trabalho protegido é apenas expressão jurídica dessa relação social, cuja essência pode ser alcançada pela bioética, desde que esta se alie a um posicionamento filosófico que se afaste de especulações metafísicas e exponha a materialidade do problema.
O mundo do trabalho reúne enorme gama de atividades econômicas de produção. Com o desenvolvimento do capitalismo, o ato de produzir tem se alterado profundamente, desde o avanço do setor de serviços até os “intensivos em tecnologia”, utilizados em todas as esferas das relações sociais, mesmo as mais intangíveis. Nesse cenário, a saúde – setor com alto nível de intangibilidade – não está isenta das modificações exigidas pela reestruturação produtiva 2 , inclusive no setor público 3 .
Na saúde e em outras áreas, seja na iniciativa privada ou pública (mas sobretudo nesta), as relações jurídicas tendem a beneficiar a gestão em detrimento do trabalhador, dificultando o exercício do trabalho e, portanto, prejudicando a garantia do direito à saúde em seu sentido amplo 4 . Por essa razão, uma crítica às normas jurídicas – e, mais profundamente, à natureza do direito – pode levar à raiz do problema.
Com base nessas premissas, o objetivo deste artigo é refletir sobre o trabalho em saúde a partir da bioética, pensando a atualidade desta perspectiva num momento em que a flexibilização dos direitos trabalhistas avança no Brasil – avanço ainda mais grave no setor de saúde, dado o custo humano do processo. Para isso, opta-se por ensaio reflexivo e interpretativo, em três seções: a primeira trata do trabalho em saúde e de seus predicados éticos; a segunda apresenta mais diretamente a abordagem bioética, mostrando a pluralidade e os desafios dos debates éticos do setor; e a terceira busca resgatar a raiz da relação entre bioética e trabalho por meio da crítica à moral e à forma jurídica enraizadas no modo de produção capitalista.
Trabalho em saúde e seus predicados éticos
A relação trabalho-saúde se define pelo impacto dos interesses econômicos sobre o corpo humano. Nessa interface, pergunta recorrente vem instigando a discussão: em que medida a ordem econômica imposta é eticamente tolerável, em termos de resistência e adaptação do organismo humano? Para além da perspectiva econômica e biológica 5 , a bioética pode ser campo fecundo para compreender de forma ampla as possibilidades e os limites deste debate.
Há muitas formas de compreender o trabalho. No entanto, independentemente da perspectiva epistemológica, e sobretudo em tempos de crise nas relações humanas 6 , ele será sempre o fator estruturante das relações, por mais que se tente escamoteá-lo. Aqui nos apoiamos na compreensão do trabalho em saúde de Mendes-Gonçalves 7 , que o considera processo cujo fim é atender às necessidades imprescindíveis da população. Estas seriam, basicamente, a redução dos índices epidemiológicos, que em grande medida depende do entendimento ampliado de cuidado em saúde, orientado ao social, para além do mero encontro assistencial entre profissional e usuário.
No setor público, a avalição do trabalhador segundo perspectiva estreita o torna refém de intencionalidades externas e de gestores que julgam o trabalho a partir do que entendem como produto. O resultado é a desconsideração da teleologia do trabalho em saúde em seu sentido crítico e a mecanização que transforma indivíduos em consumidores de consultas. Quando o trabalho em saúde é tratado em termos tão limitados, as considerações éticas da interface bioética-trabalho em saúde restringem-se à esfera da moralidade, com a polarização entre “bem” (atingiu-se o produto esperado) e “mal” (a produção foi aquém do esperado). Por isso o debate ético deve incidir sobre as transformações contemporâneas do trabalho, relativizando e enfrentando os conceitos de harmonia e “ordem social” para coexistência 8 , 9 a fim de substituí-los pelas ideias de luta, conflito, mudança e, claro, superação social.
O trabalho pode ser tanto laço social que liberta e realiza quanto fonte de opressão e alienação do ser humano 10 . Na lógica macroeconômica predominante, que implica as relações de poder 11 da divisão social do trabalho e da clivagem de classe, a exploração e a desvalorização do trabalho vêm ganhando formas cada vez mais sofisticadas, para além da desregulamentação e da perda de direitos, estabelecendo-se sob a ideia de “flexibilidade”, que precariza os vínculos 12 . Essa desvalorização do trabalho enfraquece sua função moral 13 , de modo que, para compreendê-la a partir da bioética, deve-se ir além da deontologia. É indispensável enfatizar a condição atual das relações laborais – disciplinadoras, inseguras e ameaçadoras – a que estão sujeitos os trabalhadores.
A impossibilidade de lidar, individual ou coletivamente, com situações que ameaçam a moralidade positivista (produzido/não produzido) ou de questionar a finalidade desta produção gera no trabalhador sofrimento moral 14 e, com ele, a degradação causada pelas condições de trabalho. Nesse ponto, estabelece-se pacto de tolerância com este tipo de violência (simbólica e material), silenciando o coletivo e gradualmente enfraquecendo e desestabilizando o trabalhador, que pouco a pouco perde autoestima, passa a duvidar de si mesmo e até a sentir-se mentiroso, visto que é frequentemente desacreditado por seus pares. Assim, suas defesas são aniquiladas e sua autoconfiança é quebrada, dificultando ou mesmo impedindo o exercício da atividade profissional, em situação cujos reflexos se estendem ao âmbito familiar e social 15 .
De modo geral, por sua própria natureza, o trabalho em saúde é ainda mais vulnerável à ameaça moral, visto que se dá por meio do trabalho vivo em ato 16 , que determina a atenção. No entanto, esse trabalho vivo lida continuamente com instrumentos, normas e maquinário, num processo em que interagem diferentes tipos de tecnologia. Essas interações moldam a produção do cuidado, que contudo deveria se basear mais na interação subjetiva entre profissional e usuário do que na mera aplicação de protocolos e regras 17 - 19 .
Todo trabalho é mediado por tecnologias e depende de seu comportamento. Essa relação pode ser mais ou menos criativa, com foco nos relacionamentos ou em processos lógicos de instrumentação rígida (como os de máquinas e equipamentos). No trabalho médico, por exemplo, podemos destacar três elementos que demonstram o arsenal tecnológico ligado à atuação profissional: os instrumentos (tecnologias duras), o conhecimento técnico (tecnologias leves-duras) e as relações intersubjetivas (tecnologias leves). O médico pode usar essas três tecnologias, organizando-as de maneiras diferentes para produzir o cuidado. Portanto, se é possível predominar uma lógica mais instrumental, menos livre, o contrário também pode ocorrer caso as relações humanas ganhem centralidade.
As condições de trabalho repercutem nos problemas éticos vividos pelos trabalhadores, em sistema de determinações tão múltiplas que dificulta a abordagem do tema com precisão analítica. Por isso, é recomendável manter o foco nas interações que ocorrem no ambiente social natural, com suas leis e regras, considerando sempre a cultura, os costumes e as relações de poder. Não se pode ignorar, portanto, a lógica macroeconômica particular que determina essas relações 20 - 23 .
Bioética e trabalho em saúde: pluralidade e desempenho
Antes de iniciar a reflexão proposta, cabe apontar, como Berlinguer, que em muitos países não só a relação entre bioética e trabalho não é abordada, mas persistem tipos mais antigos e desumanos de exploração, como escravidão e servidão, (…) práticas (…) moralmente superadas há séculos e declaradas ilegais desde a Slavery Convention de 1926 24 .
No que concerne à interface trabalho-bioética, recorremos a Lins, Vasconcellos e Palacios 25 , que sugerem que essa relação é influenciada por um dos marcos mais importantes da afirmação da cidadania: a Declaração Universal dos Direitos Humanos . Datado de 1948, o documento define o trabalho, em seu artigo 23, § 1, como essencial, explicitando que todos têm direito a exercê-lo e a escolhê-lo livremente, em condições justas e satisfatórias, sendo ainda protegidos contra o desemprego 26 .
A reflexão aqui apresentada parte do cruzamento de dois eventos históricos, propondo que as correspondências entre o artigo 23 da Declaração Universal dos Direitos Humanos 26 e os quatro princípios da teoria de Beauchamp e Childress 27 não são casuais. Podemos fazer a seguinte associação: todos têm direito de trabalhar e escolher livremente seu ofício (autonomia), podem optar pelo campo de atuação (justiça), têm direito à satisfação no trabalho (beneficência) e, finalmente, estão protegidos contra o desemprego (não maleficência).
É essencial pôr em pauta essa analogia, tendo em vista que, a partir de uma perspectiva marxista28 , pode-se questionar a ética de tendência liberal da própria concepção de “direitos humanos” 29 . Observa-se que, na Declaração Universal , o trabalhador parece estar no âmbito das ideias, e não na materialidade da vida concreta. Trabalhadores que se expõem a pneumoconiose, síndromes neurovegetativas, silicose e contaminação por metilmercúrio ou agrotóxicos “escolhem” seus trabalhos? Quem exerce atividades com tais riscos certamente não o faz por livre escolha. E o mesmo se pode dizer, por exemplo, do emprego doméstico. Sonhará alguém em ser empregada doméstica quando crescer? Não se trata de escolha, mas de falta de opção.
Demonstrando a persistência do marco principialista, Schulte e Salamanca-Buentello 30 apontam como o trabalho deve estar em conformidade com os princípios da autonomia, beneficência, não maleficência, justiça, privacidade e respeito. Para isso, os autores relatam que os empregadores devem: 1) apresentar riscos e perigos com exatidão; 2) preveni-los o quanto possível; 3) comunicar-se com os trabalhadores; e 4) controlar os riscos de modo que os funcionários possam considerá-los aceitáveis.
Sob o mesmo marco teórico, Gattás, Segre e Wünsch Filho 31 afirmam que a discussão entre bioética e trabalho tradicionalmente evidencia o conflito entre os direitos, como entre o direito à proteção do emprego e da saúde, o direito à informação e à privacidade, ou os direitos individuais e coletivos. No entanto, o que se percebe na prática é a análise individual do trabalho por parte das empresas, que tendem sempre a responsabilizar o trabalhador nas atividades de risco 32 .
Um exemplo: mesmo quando usa o equipamento de proteção individual (EPI) apropriado, o tempo curto para produzir o que seu empregador espera força o trabalhador a negligenciar precauções, pois a atenção necessariamente conflita com a agilidade. Ainda que o gestor seja obrigado a fornecer EPI e o trabalhador deva utilizá-lo (de modo que ambos são responsáveis pelo gerenciamento do risco), as responsabilidades são desiguais. Em perspectiva crítica, caso o trabalhador seja relapso e maximize seu risco, a análise ética deve considerar as exigências de uma produção hiperacelerada que, caso não sejam cumpridas, levarão o profissional ao desemprego. Isto é o que se espera de uma análise bioética crítica das condições de trabalho.
O que procuramos demonstrar é que a bioética principialista de Beauchamp e Childress, sabidamente liberal, não deve ser convocada à análise dos processos de trabalho atuais, em especial nos países do “Sul global”, quando se sabe que a epistemologia do campo mudou significativamente nos últimos 15 anos. Paradigmas de cunho conservador-mercadológico, assentados em concepções de liberdade que acentuam a individualização dos sujeitos sociais, reforçam a perspectiva opressora e desigual do trabalho. Assim, ratificamos aqui bioéticas não principialistas, especialmente as latino-americanas 33 , que criticam frontalmente o imperialismo moral e a colonialidade (do saber, do poder e da própria vida).
Neste terreno, podemos citar autores marxistas como Daniel Callahan 34 e Martha Nussbaum 35 , nos Estados Unidos, ou Lucien Sève 36 , na França, ou ainda o italiano Giovanni Berlinguer 37 – referência clássica a que não podemos deixar de recorrer numa análise como esta. No Brasil, há publicações voltadas ao viés latino-americano, especialmente a bioética de intervenção 38 , que não reconhece a maximização da autonomia como princípio local, propondo em seu lugar noções como “empoderamento” ou “libertação”, no sentido freiriano, indicando a capacidade do trabalhador de localizar e combater as forças que o desvalorizam e o oprimem. A própria Declaração Universal sobre Bioética e Direitos Humanos 39 pode ser uma referência nesta análise, considerando-se seus artigos 3º a 17, sobretudo o artigo 14, que trata de responsabilidade social e saúde.
Em resumo, a relação entre bioética e trabalho em saúde tem como foco processos subjetivos nos quais a natureza desse ofício se desenvolve, que podem ser sintetizados em três aspectos. O primeiro é a ética do trabalho como código normativo que assegura e disciplina a força de trabalho; o segundo (associado ao primeiro) refere-se ao reconhecimento social do trabalhador como cidadão; e o terceiro, que aqui nos interessa ressaltar, diz respeito às possibilidades da ética, como prática reflexiva, de se insurgir e criticar parâmetros hegemônicos de compreensão do trabalho, contrapondo regimes de pensamento que restringem ou que aumentam a liberdade e o poder de decisão dos trabalhadores 13 , 30 .
Contribuição importante ao debate vem do movimento da saúde coletiva no Brasil, que se contrapõe à abordagem do Complexo Econômico- -Industrial em Saúde 40 , permitido avanços na compreensão de questões relacionadas ao local do trabalhador, à incorporação de tecnologias e à construção do Sistema Único de Saúde. O movimento tem questionado os paradigmas de saúde dominantes, opondo a lógica de mercado à lógica das necessidades sociais, com debate ético voltado à mobilização dos profissionais para repensar o cuidado.
Na imposição de ritmo de trabalho cada vez mais acelerado, por exemplo, os interesses privados se sobrepõem aos interesses públicos. Os parâmetros de saúde do mercado constroem uma ideia de ser humano, civilização e vida, criando a necessidade de uma ética aplicada aos novos avanços tecnológicos e formas de trabalho. Na América Latina, esse debate tem se orientado às questões da vulnerabilidade social, dos direitos humanos, do poder e da justiça 14 .
O gerencialismo tem sido amplamente implementado no setor público, e com ele o “desempenho” como instrumento de opressão dos trabalhadores em saúde. Os processos de trabalho são submetidos cada vez mais ao produtivismo 41: a ordem é produzir mais (e mais irrefletidamente) em menos tempo, ainda que sem o aporte tecnológico necessário, pois o foco da lógica do desempenho são as metas alcançadas e os incentivos financeiros, não as condições de trabalho.
O discurso do desempenho prega a ideia de superação de expectativas e recompensa ao funcionário que produzir mais que a meta estabelecida, classificando resultados sob a perspectiva da meritocracia. Esse paradigma de gestão, no entanto, considera apenas a produtividade e a quantidade de trabalho 42 . Desse modo, embora todo trabalho precise ser avaliado por meio de sistema que permita rever estratégias e métodos 43 , a lógica do desempenho ultrapassa limites de ordem ético-moral.
Esse modelo, que vai além da ausência de diálogo com sindicatos e da intensificação da exploração 44 , gera problemas de ordem moral ao instituir uma cultura de competição desleal no trabalho, acarretando consequências ao próprio cuidado em saúde. Desde 2011, quando a mensuração do desempenho de equipes e sistemas locais de saúde foi legalizada 45 , as avaliações baseadas nessa lógica têm se tornado o foco da gestão nos serviços públicos.
No caso dos serviços de saúde primária, como Estratégia Saúde da Família, as equipes, compostas por pelo menos um médico, um enfermeiro e um dentista, têm processos específicos que caracterizam sua assistência. No entanto, muitos municípios utilizaram padrões gerais de medição de desempenho para avaliar esses trabalhadores, desconsiderando a natureza de sua atuação.
Para Junges e colaboradores 46 , a bioética já considerou problemas éticos bastante complexos do ambiente hospitalar a partir de seus princípios tradicionais – autonomia, beneficência, não maleficência e justiça. Essa habilidade, no entanto, não se estenderia à atenção primária, cuja organização peculiar exigiria outro tipo de análise.
Para investigar o trabalho em saúde, é preciso enxergá-lo sob a luz do atual paradigma de avaliação de desempenho, pensando os problemas éticos deste modo de produção 47 . A reflexão deve sempre considerar o risco de o trabalho prejudicar a vida de usuários e profissionais, que sofrem com estigmatização, preconceito e dano à autoestima ao tentar evitar a perda econômica decorrente do desemprego, tendo sua atuação avaliada, muitas vezes, por parâmetros arbitrários estabelecidos pelos empregadores 48 . Deste modo, deve-se aprofundar o debate a fim de se construir uma ética aplicada, emancipatória, baseada em prática reflexiva que respeite as diferenças e esteja aberta à alteridade 49 .
A raiz da interface bioética-trabalho
Quando tratamos de relações de trabalho, desvelam-se imediatamente os limites das éticas liberais 50 , que enfatizam uma suposta liberdade sem equipará-la à realidade material. Esses sistemas reiteram o modo de produção capitalista ao tratá-lo como inevitável e, propondo-se autônomos, reforçam certo idealismo 51 . No entanto, se admitimos a centralidade do trabalho na constituição do ser humano 52 , é preciso reconhecer que nenhuma forma de idealismo pode se comprometer integralmente com a construção de um pensamento (bio)ético ancorado na prática empírica e que dê conta das condições de trabalho em suas múltiplas expressões.
As doutrinas éticas, especialmente as liberais, que pretendem transformar e consertar o mundo por meio de ideias, têm limites. Na verdade, elas são o reflexo deformado de apenas um lado do mundo real, justamente aquele em que a relação entre as pessoas está subordinada à lei do valor. A bioética, em perspectiva crítica marxista, não se dissocia do movimento de surgimento das ciências em geral; ela não está desconectada da cultura e suas formas. Portanto, o problema não é só teórico, mas essencialmente prático. Afinal, Marx entendia que o discurso reiterado sobre o “dever ser” afastava o sujeito da compreensão das exigências do próprio “ser” 53 . Por isso, a ética marxista tenta enfrentar as profundas mudanças nas condições da existência – o desenvolvimento impetuoso da ciência e da técnica, os fenômenos contraditórios da realidade – redefinindo os valores da “vida humana” real 54 .
Por isso, ao analisar a relação entre (bio)ética e trabalho, é quase ingênuo se valer de abordagens principialistas ou mesmo idealistas. Consideramos mais apropriada a perspectiva marxista da ética, definida por Barroco como reflexão crítica e sistematização teórica orientada por pressupostos sócio-históricos e dirigida a valores emancipatórios 55 . Temos consciência, portanto, dos limites da ética na sociedade burguesa, mas sem negar que ela pode contribuir para ampliar a consciência social crítica que aproxima o “é” do “dever ser”.
Com isso, sobretudo quando se discute a relação bioética-trabalho, justifica-se a crítica ao capitalismo como portador de significado moral. Ainda que esse traço não seja exclusivo desse modo de produção, o fato é que, nesta interface, o capital torna-se o centro da crítica por não satisfazer as necessidades vitais da maioria da humanidade, mostrando-se incapaz de oferecer a todos bens materiais e sociais necessários à vida digna, desfrutada apenas por uma minoria privilegiada. Pelo contrário, o capitalismo tem colocado populações em condição de subumanidade, negando direitos básicos como alimentação, moradia, saúde, segurança, proteção social e trabalho 56 .
Como aponta Ingo Elbe 57 , somente em condições históricas específicas o trabalho se reveste de caráter jurídico. Uma rede infinita de relações legais – como uma trama e, por que não, uma armadilha – emerge em função da gigantesca coleção de mercadorias. É assim que a subjetividade jurídica (personalidade livre, igual e plenamente capaz) se edifica como princípio da juridicização das relações humanas no modo de produção capitalista. Por isso o pensamento ético marxista deve fazer a crítica dos valores morais vigentes e de sua fixação em formas jurídico-normativas, visto que estas espelham e reforçam a exploração 58 .
Valls 59 lembra que a exploração, especialmente nos dias de hoje, assume formas bastante sutis. Mundialmente, ela tomou contornos neocoloniais, de maneira que, em certos casos, patrões e operários de países desenvolvidos podem compartilhar interesses em prejuízo de povos de sociedades periféricas. Mesmo na microeconomia, a exploração deixou de ser percebida como política para se tornar supostamente orgânica, autônoma, intrínseca a uma ordem social clivada por classes em que a burguesia (classe dominante) se utiliza da forma jurídica para a coerção moral (e penal) de quem vende sua força de trabalho.
No modo de produção estabelecido, os seres humanos se relacionam com seu trabalho por meio de produtos mercantilizados 60 . Fazem-no por costume, e lhes escapam as explicações morais sobre como e por que assim vivem. Como afirma Pachukanis, o homem como sujeito moral, ou seja, como uma pessoa igual a todas as outras, não é mais que uma condição da troca com base na lei do valor. O homem como sujeito de direito, ou seja, como proprietário, representa também ele essa mesma condição. Por fim, ambas as determinações estão intimamente ligadas a uma terceira, na qual o homem figura na qualidade de sujeito econômico egoísta 61 .
É neste sentido que Pachukanis aponta o egoísmo, a liberdade e o valor supremo da pessoa como os três princípios da subjetividade jurídica, demonstrando a responsabilidade do direito na sustentação da sociabilidade capitalista. Esses princípios se ligam uns aos outros e expressam uma mesma relação social. Para o autor, o sujeito egoísta, sujeito de direito e pessoa moral são as três máscaras fundamentais por meio das quais o homem atua na sociedade produtora de mercadorias. As economias das relações de valor oferecem uma chave para compreensão da estrutura jurídica e moral não no sentido do conteúdo concreto da norma jurídica ou moral, mas no sentido da própria forma jurídica e moral. A ideia de valor supremo e de igualdade entre as pessoas humanas tem uma longa história 62 .
A constituição desse Homo oeconomicus – com valores cunhados numa pretensa separação da economia dos demais elementos da vida social 63 , atuando sob suas próprias leis – faz emergir a coerção, que visa garantir um comportamento social anódino, que reproduz a sociabilidade capitalista como “direito natural”. Marx e Engels 52 , no entanto, já deixavam claro que a economia é produção social da vida em todas as suas relações – materiais, jurídico-políticas, religiosas, filosóficas e científicas –, compondo uma totalidade indivisível.
Como assevera Pachukanis, se o pensamento humano, no decorrer dos séculos, voltou-se com tal persistência para a tese da igualdade entre as pessoas e a elaborou de mil maneiras, então fica claro que deve estar escondida por trás dessa tese alguma relação objetiva. Não há dúvida de que o conceito de pessoa moral ou pessoal igual é uma construção ideológica e, como tal, não se adéqua à realidade 64 . No entanto, até Marx, ninguém havia questionado as razões históricas desse preceito do direito natural.
Se a pessoa moral não é outra senão o sujeito da sociedade de produção mercantil, então a lei moral será a regra dessa sociedade, o que lhe confere, inevitavelmente, um caráter antinômico. Por um lado, ela deve ser social e, como tal, colocar-se acima da personalidade individual. Por outro, o possuidor de mercadorias é portador da liberdade (de apropriação e alienação) e, portanto, a relação com seus pares deve estar presente na alma de cada um, como uma lei eterna. Ora, se pensarmos bem, o imperativo categórico kantiano 65 reúne todas essas características.
Apesar dos esforços de kantianos e neokantianos, Vázquez 66 relembra que há morais particulares, correspondentes a cada classe, que coexistem numa mesma sociedade. Por isso, não havendo condições reais para uma moral universal 65 , não se pode falar em sistema válido para todos os tempos e sociedades. Tentativas como a do imperativo kantiano acabam apenas por expressar interesses particulares sob uma forma aparentemente universal.
O universalismo ético, que considera todos os seres como pertencentes a um mesmo sistema de crenças, com uma única e mesma “alma”, foi imposto pela expansão comercial que intensificou o fluxo mercadológico com estrangeiros. Pessoas de culturas distintas, com diferentes costumes, hábitos e valores, foram “elevadas” à “igualdade abstrata” da moralidade autonomista da sociedade mercantil para minorar as perdas do detentor da propriedade. Em outras palavras, o que está por trás de tal universalismo é o amor aos “seus” (bens) e o desprezo pelos “outros”.
Em uma sociedade de interesses de classe privados, a liberdade se pretende universal. A propriedade, desejada mas não acessível a todos, é explicada em termos de “vontade pessoal”, “talento” e “esforços individuais”, valores que se cristalizam em normas jurídicas. E a moralidade então só pode ser construída sob a égide da cobiça. Por isso, a vida social, mesmo em suas formas mais elementares, aparece como esfera padronizada por normas, e os produtos do trabalho, que funcionam como materiais destas normas, não são simplesmente objetos de uso, mas valores de uso 67 . O ser humano passa a ser um “fim em si mesmo”, o outro lado do sujeito econômico egoísta.
Bornheim 68 aponta a autonomia como primeiro e mais decisivo princípio (bio)ético que acomoda o tipo burguês, representando o indivíduo moderno como centro do processo social. O grande capitalista de bona fide , por exemplo, pode arruinar o pequeno sem usurpar sequer por um minuto seu valor absoluto de pessoa. O proletário é “igual em princípio” ao capitalista, o que encontra sua expressão no “livre” contrato de emprego. E é a partir dessa “liberdade materializada” que pode o trabalhador tranquilamente morrer de fome.
A troca, ou seja, a circulação de mercadorias pressupõe que seus participantes se reconheçam mutuamente como proprietários. Mas como fazer para que quem nada tem se reconheça como proprietário? Demonstrando-lhe o quanto sua força de trabalho é importante no ato da troca. No entanto, a ideia de que as condições do trabalhador são proporcionais à sua qualificação tem se demonstrado uma ilusão. A relação entre qualificação e melhores salários – pressuposta pela transformação da força de trabalho em mercadoria – vem claramente se deteriorando.
Tudo isso demonstra que a igualdade de troca é apenas bruma que desvanece no ar 69 , uma vez que o contrato de trabalho se baseia nos valores da competição e do desempenho, autorizando a superexploração. Isto é o que expressa o imperativo categórico, representante máximo de sistema ético da sociedade de produção mercantil.
Como propõe Pachukanis, a conduta moral contrapõe-se à conduta jurídica, que se caracteriza como tal independente dos motivos que a geraram 70 . Em exemplo bem claro, a dívida será paga porque, de todo modo, o devedor foi forçado a pagá-la , ou porque o devedor se sente moralmente obrigado a fazê-lo 70 . Desta forma, tanto a moral como as leis chancelam a ordem capitalista. Assim, a coerção externa (direito), as ideias (ética) e sua organização (sistema de normas) são aspectos fundamentais da forma jurídica.
Considerações finais
Associado à aceleração do trabalho e à maximização do desempenho, o conflito entre saúde e trabalho na produção do cuidado é problema ético que tende a se agudizar nos tempos que seguem. Nesse contexto, caso não se dedique a uma guinada crítica em direção ao modo de produção capitalista e sua forma jurídica, a bioética perderá a oportunidade de fazer avançar valores emancipatórios.
Quando o objetivo legítimo do Estado e de empresas de aumentar a produção colide com a organização do trabalho – especialmente na área da saúde, que requer atenção, calma, solidariedade e humanização –, questões éticas emergem. Neste momento, é importante refletir criticamente, de modo a apontar soluções que evitem ou reduzam riscos moralmente inaceitáveis, como o de adoecimento no trabalho.
Investir em pesquisas sobre a relação entre bioética e mundo do trabalho é importante, a fim não só de formar área de convergência entre saberes, mas também para lutar contra injustiças. Esperamos que as propostas deste artigo ajudem os interessados a conformar uma agenda de projetos, cumprindo o objetivo de aclarar os contornos que essa interface pode vir a tomar, em busca de diálogo e soluções.