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O dever de tratar no contexto da pandemia de covid-19

Resumo

O dever de tratar está no centro do debate moral e público sobre a relação médico-paciente, especialmente em epidemias. O tópico da discussão pode ser o médico que “luta” (o “médico herói”), o profissional contaminado, aquele que se recusa a tratar ou se demitiu. Este aumento de potenciais conflitos entre os valores individuais do profissional e os do paciente podem ter consequências pessoais e sociais. Qualquer médico aceita, implicitamente, que o tratamento do enfermo pode gerar riscos para o próprio bem-estar, mas nenhum profissional deve aceitar riscos causados por equipamento de proteção insuficiente ou protocolos inadequados ou outras causas externas que os aumentem sem motivos justificáveis. Todos os envolvidos no cuidado à saúde devem minimizar os riscos impostos ao enfermo; caso contrário, não apenas o profissional está em risco, mas também os pacientes e a sociedade, que podem receber menos cuidados de saúde ou ainda desenvolver outras doenças.

Infecções por coronavirus; Pandemias; Risco; Beneficência

Abstract

The duty to treat has been at the center of the moral and public debate surrounding the physician-patient relationship, especially in epidemics. The topic of discussion may be the physician who “fights” (the “hero physician”), the contaminated professional, the doctor who refuses to treat or the resigning physician. This may increase potential conflicts between the physicians’ individual values and those of their patients, conflicts that can have personal and social consequences. Doctors implicitly assume that treating patients may generate risks for his/her own well-being, but none should accept risks related to insufficient protective equipment or inappropriate protocols, or other external causes that unjustifiably increase them. Everybody involved in healthcare has the duty to minimize the risks imposed on the patient; otherwise not only physicians are at risk, but also patients and society, which could receive less healthcare or even develop other diseases.

Coronavirus infections; Pandemics; Risk; Beneficence

Resumen

El deber de tratar está en el centro del debate moral y público que rodea la relación médico-paciente, especialmente en epidemias. El tema de discusión puede ser el médico que “lucha” (el “médico héroe”), el médico contaminado, el médico que se niega a tratar o el médico que renuncia. Este aumento de posi-bles conflictos entre los valores del profesional y del paciente puede tener consecuencias personales y sociales. Todo médico acepta, implícitamente, que su trabajo puede poner en riesgo su bienestar, pero ningún profisional debe aceptar los riesgos causados por un equipo de protección insuficiente, por pro-tocolos inapropiados u otras causas externas. Todos los involucrados tienen el deber de minimizar los riesgos al paciente, ya que de lo contrario no solo el médico está en riesgo, sino también toda la socie-dad, visto que los pacientes pueden recibir menos atención médica o desarrollar más enfermedades.

Infecciones por coronavirus; Pandemias; Riesgo; Beneficencia

O dever de tratar está no centro do debate moral e público sobre a relação médico-paciente em inúmeras epidemias, desde a Grécia Antiga. De acordo com Langholf, na obra em que trata do assunto Hipócrates afirma:

Em relação aos perigos desses casos, deve-se sempre atentar à condição da concocção de todas as evacuações e aos abscessos benignos e malignos. As concocções indicam uma crise passageira e restabelecimento da saúde; as evacuações brutas e não digeridas, e aquelas convertidas em abcessos críticos, indicam ausência de crises, dores ou prolongamento da doença, ou mesmo morte ou recaídas; porém, qual destes especificamente, é algo que deve ser determinado a partir de outras circunstâncias. O médico deve ser capaz de informar os antecedentes, conhecer o presente e prever o futuro – deve mediar essas coisas e ter em relação à doença dois objetos especiais em vista, a saber, fazer o bem ou não fazer mal. A arte consiste em três coisas – a doença, o paciente e o médico. O médico é o servo da arte, e o paciente deve combater a doença junto com o médico11. Langholf V. Medical theories in Hippocrates: early texts and the “Epidemics”. Berlim: Walter de Gruyter; 2011. p. 18. DOI: 10.1515/9783110847598 .

Durante as epidemias, houve casos de médicos que fugiram das cidades, deixando pacientes sem assistência. Isso ocorreu até com gigantes da medicina, como Galen, que fugiu de Roma durante a peste antonina, ou com Sydenham, que deixou Londres na epidemia de 1645-164622. Simon M. Déontologie médicale, ou des devoirs et des droits des médecins, dans l’état actuel de la civilisation. Londres: JB Baillière; 1845.

3. Porter R. The greatest benefit to mankind: a medical history of humanity. Londres: W. W. Norton; 1999.
- 44. Schwartz AR. Doubtful duty: physicians’ legal obligation to treat during an epidemic. Stanford Law Rev [Internet]. 2007 [acesso 1º jun 2020];60(2):657-94. Disponível: https://bit.ly/2WrtiMd
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. Nos séculos XIV e XV, os médicos deixaram Veneza para não serem infectados pela peste negra44. Schwartz AR. Doubtful duty: physicians’ legal obligation to treat during an epidemic. Stanford Law Rev [Internet]. 2007 [acesso 1º jun 2020];60(2):657-94. Disponível: https://bit.ly/2WrtiMd
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5. Zuger A, Miles SH. Physicians, aids, and occupational risk: historic traditions and ethical obligations. Jama [Internet]. 1987 [acesso 1º jun 2020];258(14):1924-8. DOI: 10.1001/jama.1987.03400140086030
- 66. Byrne JP. The black death [Internet]. Londres: Greenwood; 2004 [acesso 1º jun 2020]. Disponível: https://bit.ly/32qgute
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. Durante o surto de febre amarela na Filadélfia, em 1793, alguns médicos fugiram da cidade, embora o número fosse reduzido44. Schwartz AR. Doubtful duty: physicians’ legal obligation to treat during an epidemic. Stanford Law Rev [Internet]. 2007 [acesso 1º jun 2020];60(2):657-94. Disponível: https://bit.ly/2WrtiMd
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. Nos principados romenos, em 1813, durante a peste bubônica, o governante Caragea suspendeu o salário de todos os médicos de Bucareste, visto que muitos estavam fugindo da cidade: eu destinei salários aos médicos deste assentamento não apenas pelo engajamento, mas também para que deem prova de seu compromisso por meio de ações e não se afastem do assentamento quando solicitados por causa de chagas e doenças (...) nós ordenamos que, doravante, quando cada um deles se afastar deste assentamento [os médicos Constantin Caracas e Constantin Filipescu] , que sejam destituídos de seus salários 77. Urechia V. Istoria româniloru. Bucareste: Carol Gübl; 1891. p. 541. Tradução livre. . No entanto, essas geralmente são exceções à regra; normalmente os médicos permaneceram no local por vários motivos, sejam materiais, religiosos ou com medo de serem estigmatizados. Sendo um desses motivos também o senso de dever com o paciente44. Schwartz AR. Doubtful duty: physicians’ legal obligation to treat during an epidemic. Stanford Law Rev [Internet]. 2007 [acesso 1º jun 2020];60(2):657-94. Disponível: https://bit.ly/2WrtiMd
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, 55. Zuger A, Miles SH. Physicians, aids, and occupational risk: historic traditions and ethical obligations. Jama [Internet]. 1987 [acesso 1º jun 2020];258(14):1924-8. DOI: 10.1001/jama.1987.03400140086030 .

Mais tarde, a Associação Médica Americana (AMA)88. American Medical Association. Code of medical ethics of the American Medical Association [Internet]. Chicago: American Medical Association Press; 1847 [acesso 1º jun 2020]. Disponível: https://bit.ly/2Dr3dpW
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, fundada na Filadélfia em 1847, redigiu um código de ética que esclarecia os deveres dos médicos em contextos epidemiológicos. No parágrafo 1 do artigo 1º de seu Capítulo 111, esse código determina que:

Como bons cidadãos é dever dos médicos estarem sempre alertas em relação ao bem-estar da comunidade e de fazer sua parte na sustentação das instituições e seus propósitos: devem estar sempre prontos para aconselhar o público em relação a assuntos especialmente pertinentes à profissão, como em assuntos de vigilância sanitária, higiene pública e medicina legal. É de sua competência esclarecer o público a respeito dos regulamentos da quarentena – localização, organização e dieta dos hospitais, hospícios, escolas, prisões e instituições similares – e em relação ao controle sanitário das cidades, como drenagem, ventilação etc., e no que diz respeito às medidas de prevenção de doenças epidêmicas e contagiosas; quando a epidemia prevalecer, é seu dever enfrentar o perigo e continuar seus trabalhos para aliviar o sofrimento de seus pacientes, mesmo com risco à própria vida88. American Medical Association. Code of medical ethics of the American Medical Association [Internet]. Chicago: American Medical Association Press; 1847 [acesso 1º jun 2020]. Disponível: https://bit.ly/2Dr3dpW
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.

De modo similar, na Europa alguns autores enfatizavam os direitos e deveres dos médicos em tempos de epidemia. Por exemplo, Max Simon22. Simon M. Déontologie médicale, ou des devoirs et des droits des médecins, dans l’état actuel de la civilisation. Londres: JB Baillière; 1845. , em Déontologie Médicale , tem um capítulo muito significativo a esse respeito, intitulado “ Devoirs des médecins in epidémies, et les diseases contagieuses ”, no qual discute os deveres dos médicos em epidemias. Albert Moll, em Ärzlichte Ethik , também ressalta que quando eles [médicos] se expõem à morte nesses casos, não fazem nada além do seu dever. Mas não se deve esquecer que o médico também tem parentes que perdem entes queridos 99. Moll A. Ärztliche Ethik: die Pflichten des Arztes in allen Beziehungen seiner Thätigkeit. Erlangen: Enke; 1902. p. 562. Tradução livre. . Mesmo que esses livros ou códigos de ética forneçam recomendações específicas para os médicos, não são obrigatórios, e os médicos geralmente precisam agir de acordo com a própria moral e crenças individuais55. Zuger A, Miles SH. Physicians, aids, and occupational risk: historic traditions and ethical obligations. Jama [Internet]. 1987 [acesso 1º jun 2020];258(14):1924-8. DOI: 10.1001/jama.1987.03400140086030 , baseados em virtudes como empatia, altruísmo, compaixão, justiça e fidelidade.

Salvo raras exceções, os médicos cuidaram de pacientes em todas as pandemias, incluindo a gripe espanhola de 1918, e os enfermos no epicentro de surtos de tuberculose55. Zuger A, Miles SH. Physicians, aids, and occupational risk: historic traditions and ethical obligations. Jama [Internet]. 1987 [acesso 1º jun 2020];258(14):1924-8. DOI: 10.1001/jama.1987.03400140086030 . Os debates sobre o dever de tratar também apareceram na década de 1980, durante a crise da aids, bem como em 2003, durante a epidemia de Sars1010. Ruderman C, Tracy CS, Bensimon CM, Bernstein M, Hawryluck L, Shaul RZ, Upshur REG. On pandemics and the duty to care: whose duty? Who cares? BMC Med Ethics [Internet]. 2006 [acesso 1º jun 2020];7:5. DOI: 10.1186/1472-6939-7-5 ou do surto de ebola de 2014-20161111. Kpanake L, Tonguino TK, Sorum PC, Mullet E. Duty to provide care to Ebola patients: the perspectives of Guinean lay people and healthcare providers. J Med Ethics [Internet]. 2018 [acesso 1º jun 2020];44:599-605. DOI: 10.1136/medethics-2017-104479 .

Em 11 de março de 2020, a Organização Mundial da Saúde (OMS)1212. World Health Organization. WHO Director-General’s opening remarks at the media briefing on Covid-19: 11 March 2020 [Internet]. 11 mar 2020 [acesso 1º jun 2020]. Disponível: https://bit.ly/3fzPHyo
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declarou a crise do coronavírus 2019 (covid-19) como pandemia1212. World Health Organization. WHO Director-General’s opening remarks at the media briefing on Covid-19: 11 March 2020 [Internet]. 11 mar 2020 [acesso 1º jun 2020]. Disponível: https://bit.ly/3fzPHyo
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, a última após o surto de H1N1 em 2009. No caso de uma tão abrangente como a de covid-19, os sistemas de saúde são severamente desafiados em nível global, os recursos são escassos e os médicos ficam sobrecarregados. Uma das questões morais recorrentes que aparecem nessas circunstâncias é o dever dos médicos de tratar pacientes com essa doença, sendo aqui nosso objetivo avaliar essa obrigação a partir da perspectiva ética e identificar seus limites e alcance.

O dever de tratar ou o dever de prestar assistência médica

A obrigação de prestar assistência médica é ainda maior se consideramos a dedicação profissional – o dever com perseverança para cumprir a obrigação moral sem esperar por recompensas. Divide-se em quatro níveis: o dever como obrigação moral intrínseca, como resposta à confiança dada, como norma comportamental profissional e o imposto pelo código de trabalho1313. Curcă GC. Elemente de etică medicală: norme de etică în practica medicală: despr principiile bioeticii. Cluj-Napoca: Casa Cărţii de Ştiinţă; 2013. . Geralmente, o compromisso de tratar aparece sempre que a relação médico-paciente é estabelecida, com o consentimento explícito de ambas as partes, ou sempre que o médico tiver a obrigação de intervir, mesmo sem a autorização do paciente, que pode estar em coma, sem capacidade de discernimento, ou ser uma criança pequena, por exemplo. A maioria dos códigos de ética enfatiza quatro principais deveres gerais/direitos do médico nessa relação contratual: em relação ao paciente, à sociedade, aos colegas e a ele próprio.

Durante uma pandemia, ou em qualquer situação de alto risco, surge uma obrigação adicional, que se sobrepõe aos quatro, ou seja, o dever de minimizar os riscos de contaminação1414. Simonds AK, Sokol DK. Lives on the line? Ethics and practicalities of duty of care in pandemics and disasters. Eur Respir J [Internet]. 2009 [acesso 1º jun 2020];34:303-9. DOI: 10.1183/09031936.00041609 . O respeito a essa obrigação deve ser prioridade absoluta para o médico e o sistema de saúde, visto que um profissional doente pode causar danos não apenas a si próprio, mas também a outros colegas (a quem ele também pode infectar), aos pacientes e à sociedade, considerando-se a possibilidade não somente de espalhar a doença, mas também a necessidade de abandonar o trabalho, o que aumentaria a pressão sobre outros profissionais de saúde.

Malm e colaboradores1515. Malm H, May T, Francis LP, Omer SB, Salmon DA, Hood R. Ethics, pandemics, and the duty to treat. Am J Bioeth [Internet]. 2008 [acesso 1º jun 2020];8(8):4-19. DOI: 10.1080/15265160802317974 argumentam que esse dever de tratar em contextos infecciosos é justificado por cinco elementos. O primeiro é o consentimento expresso – os médicos assinam contrato com a unidade médica para tratar os pacientes de acordo com a especialidade. O segundo é o consentimento implícito – a atividade sempre esteve associada a riscos de saúde para os profissionais e, portanto, qualquer um, ao concordar em exercer o ofício, também aceita esses riscos potenciais implícitos.

O terceiro é a instrução especial – os médicos recebem, durante a faculdade e a residência, treinamento especial para minimizar riscos associados à prática médica. Um especialista em doenças infecciosas, por exemplo, possui conhecimento e equipamentos de proteção específicos para trabalhar com doenças contagiosas, que outros especialistas, como um clínico geral, não têm e, portanto, podem cuidar do paciente de modo mais eficiente e com menos riscos.

O quarto é a reciprocidade – o médico tem status social especial e alguns benefícios adicionais relacionados à profissão. Isso inclui a formação específica, que pode ser financiada pelo Estado, para tratar enfermos que concordam também em ser atendidos por profissionais em treinamento para que estes possam pôr em prática o conhecimento. Assim, os médicos também estão em débito com a sociedade e precisam ajudar as pessoas e agir de acordo com seu status e expectativas da sociedade.

O último elemento é representado por juramentos e códigos profissionais. Esses documentos têm caráter geral e apresentam apenas alguns códigos gerais de conduta em epidemias1515. Malm H, May T, Francis LP, Omer SB, Salmon DA, Hood R. Ethics, pandemics, and the duty to treat. Am J Bioeth [Internet]. 2008 [acesso 1º jun 2020];8(8):4-19. DOI: 10.1080/15265160802317974 . No entanto, essas diretrizes devem ser respeitadas e se tornar a base para códigos morais mais direcionados, desenvolvidos especificamente para surtos epidêmicos.

Limites do dever de tratar

A prática da medicina envolve riscos assumidos, mas também situações que, gerenciadas inadequadamente, são ameaça para o médico e para a sociedade. Durante a pandemia de covid-19, como em qualquer surto epidemiológico, existe risco de contaminação para a equipe médica, algo que, na ausência de proteção adequada e concordância do paciente, pode ter graves repercussões para outras pessoas. De acordo com a OMS, os profissionais de saúde estão na linha de frente da resposta ao surto de covid-19 e, como tal, estão expostos a perigos que os colocam em risco de infecção. Os riscos incluem exposição a patógenos, longas horas de trabalho, sofrimento psicológico, fadiga, desgaste profissional, estigma e violência física e psicológica 1616. World Health Organization. Coronavirus disease (Covid-19) outbreak: rights, roles and responsibilities of health workers, including key considerations for occupational safety and health [Internet]. 18 mar 2020 [acesso 1º jun 2020]. Disponível: https://bit.ly/2OB1wbM
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.

Se infectado, o médico não é apenas aquele que trata o enfermo, mas também um vetor da doença1717. Mayo Clinic. Coronavirus disease 2019 (Covid-19) [Internet]. 2020 [acesso 1º jun 2020]. Disponível: https://mayocl.in/2ZCHWCj
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. Esse fato, aliado à sua saída da linha de frente, uma vez que está incapacitado de trabalhar, vai aumentar a pressão sobre um sistema médico já enfraquecido.

De acordo com as disposições da OMS relativas aos direitos, papéis e responsabilidades na área da saúde, as equipes médicas têm o direito de adotar medidas de proteção e prevenção, utilizar informações e treinamentos relacionados à segurança no local de trabalho, aperfeiçoando cursos de prevenção e controle de infecções e usar equipamentos de proteção (máscaras, luvas, óculos de proteção, roupões, desinfetantes) em quantidade suficiente para cuidar de casos suspeitos e/ou confirmados de covid-19. Eles também têm o direito de adaptar instrumentos para avaliar, selecionar, testar e tratar pacientes, o direito à segurança pessoal, de permanecer em sua residência quando estão doentes e de se retirar da situação profissional quando isso representa perigo iminente e grave para sua saúde1616. World Health Organization. Coronavirus disease (Covid-19) outbreak: rights, roles and responsibilities of health workers, including key considerations for occupational safety and health [Internet]. 18 mar 2020 [acesso 1º jun 2020]. Disponível: https://bit.ly/2OB1wbM
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.

Para proteger as partes envolvidas na pandemia, a OMS divulgou guia sobre o uso racional de equipamento de proteção individual (EPI) para a covid-19, considerando que o atual estoque global de EPI é insuficiente, principalmente para máscaras médicas e respiradores, e o fornecimento de roupas, óculos e protetores faciais já é insuficiente para satisfazer a demanda global. O aumento da demanda global – impulsionado não apenas pelo número de casos do Covid-19, mas também por informações erradas, compras desencadeadas pelo pânico e estocagem – resultou em mais escassez de EPIs globalmente. A capacidade de expandir a produção de EPI é limitada, e a demanda atual por respiradores e máscaras pode não ser atendida, especialmente com o uso inadequado e generalizado de EPIs 1818. World Health Organization. Rational use of personal protective equipment for coronavirus disease (Covid-19) and considerations during severe shortages [Internet]. 6 abr 2020 [acesso 1º jun 2020]. p. 8. Disponível: https://bit.ly/2DTaij9
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.

A AMA, em seu código de ética, afirma que os médicos devem equilibrar os benefícios imediatos para pacientes individuais com capacidade de cuidar de pacientes no futuro 1919. AMA Council on Ethical and Judicial Affairs. AMA Code of Medical Ethics’ opinion on physician duty to treat. AMA J Ethics [Internet]. 2010 [acesso 1º jun 2020];12(6):459. Disponível: https://bit.ly/2B7EeXI
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. Portanto, para ser benéfico para o enfermo e a sociedade, a obrigação de tratar no contexto de pandemia deve ser baseada na análise adequada de riscos e benefícios. No âmbito pessoal e social, essa avaliação tem de considerar não apenas as possíveis consequências dos atos médicos, incluindo as resultantes da prática indiscriminada, que devem ser entendidas, como disse Hipócrates, na perspectiva do paciente, do médico e da doença2020. Langholf V. Op. cit. .

Os princípios da bioética são essenciais em pandemias, mas adquirem novos aspectos nessas situações. O princípio da beneficência leva ao dever de tratar os enfermos, de ajudar colegas de profissão e a sociedade, e é condicionado pela obrigação de ser corretamente informado sobre medidas preventivas, tratamentos e manejo da doença em todas as possíveis manifestações clínicas. O princípio da não maleficência compreende a obrigação de minimizar riscos para pacientes, colegas e população em geral1414. Simonds AK, Sokol DK. Lives on the line? Ethics and practicalities of duty of care in pandemics and disasters. Eur Respir J [Internet]. 2009 [acesso 1º jun 2020];34:303-9. DOI: 10.1183/09031936.00041609 . Isso implica, por exemplo, o uso de EPI adequado, isolamento em caso de contaminação e cumprimento de padrões terapêuticos. Os profissionais devem manter a calma e usar todas as medidas disponíveis para proteger sua saúde e das pessoas ao redor2121. Hostiuc S, Buda O, editores. The age of informed consent: a european history [Internet]. Newcastle upon Tyne: Cambridge Scholars Publishing; 2019 [acesso 1º jun 2020]. Disponível: https://bit.ly/3h6gB12
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.

Às vezes, o dever de não tratar se torna moralmente relevante – o médico doente pode causar mais mal do que bem, violando o princípio da não maleficência, ao tentar cumprir com a obrigação de sua profissão. Mesmo que essa seja a abordagem correta do ponto de vista moral e médico, pode gerar desconfiança do público em relação à profissão médica, ou até mesmo estigma1414. Simonds AK, Sokol DK. Lives on the line? Ethics and practicalities of duty of care in pandemics and disasters. Eur Respir J [Internet]. 2009 [acesso 1º jun 2020];34:303-9. DOI: 10.1183/09031936.00041609 , pois a sociedade vê apenas resultados finais e não o raciocínio moralmente relevante por trás dessa abordagem.

O respeito ao princípio da justiça é delicado no contexto pandêmico, pois os recursos em escala global são limitados. O médico deve considerar os direitos de todos os envolvidos, tanto quanto as possibilidades permitirem, com base em triagem adequada e priorização médica. Além disso, para que a terapêutica seja eficaz durante a pandemia é necessária boa coordenação entre as instituições públicas para frear a propagação da doença, assim como os pacientes devem se submeter às orientações médicas.

Medidas como isolamento e quarentena têm se mostrado eficazes ao longo dos séculos. Em algumas situações, o paciente não entende ou nega a doença e suas repercussões sociais, confiando em aspectos socioculturais anteriores à pandemia. As virtudes dos pacientes – honestidade, submissão ao tratamento, tolerância e confiança2222. Pellegrino ED, Thomasma DC. For the patient’s good: the restoration of beneficence in health care. Nova York: Oxford University Press; 1988. – podem ser elementos-chave para o próprio bem, assim como para a sociedade em um contexto de recursos limitados.

O dever de prestar assistência médica versus riscos implícitos

O profissional deve prestar assistência médica mesmo quando isso implicar risco de contaminação. Até abril de 2020, mais de 300 mortes tinham sido relatadas entre médicos em todo o mundo por causa infecção por covid-192323. Medscape. In memoriam: healthcare workers who have died of Covid-19 [Internet]. 1º abr 2020 [acesso 1º jun 2020]. Disponível: https://wb.md/32tihgY
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, além de muitos casos de profissionais infectados. Esporadicamente, surgem relatos na mídia de pedidos de demissão ou de médicos que se recusam a cuidar desses doentes, além de queixas relacionadas à falta de EPI, que, em teoria, deveria ser obrigatório e suficiente para todos2424. Petkova M. Dozens of Bulgarian doctors resign amid Covid-19 crisis. Al Jazeera News [Internet]. 18 mar 2020 [acesso 1º jun 2020]. Disponível: https://bit.ly/30dF3Xm
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.

Na ausência de proteção adequada é aceitável o risco de infecção? Há um meio termo entre heroísmo – que nesta situação é equivalente ao dever de tratar – e violar essa obrigação quando os recursos são escassos? Quando o EPI é inadequado ou inexistente, esse dever se torna questionável, uma vez que respeitá-lo causaria efeito oposto em todos os envolvidos.

Os médicos precisam trabalhar de forma conjunta com instituições de saúde, órgãos reguladores e o público para garantir que aqueles que trabalham em situação de contágio global se sintam seguros e dispostos a exercer a profissão2525. Davies CE, Shaul RZ. Physicians’ legal duty of care and legal right to refuse to work during a pandemic. CMAJ [Internet]. 2009 [acesso 1º jun 2020]. DOI: 10.1503/cmaj.091628 . Devem ainda explicar de forma transparente as condições que levaram às decisões de não respeitar a obrigação de tratar, para garantir o acesso de pacientes aos serviços de saúde, sua confiança e adesão ao tratamento2626. British Columbia Ministry of Health. Covid-19 ethics analysis: what is the ethical duty of health care workers to provide care during Covid-19 pandemic? [Internet]. 28 mar 2020 [acesso 1º jun 2020]. Disponível: https://bit.ly/3jhIa9M
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Considerações finais

É essencial respeitar os direitos e interesses de todas as partes envolvidas em uma epidemia. A obrigação do médico de cuidar do paciente, mesmo que isso implique risco de contaminação, é condicionada também pelo dever de proteger a si e a sociedade, de acordo com instruções e informações adequadas. Os limites da assistência médica, como entendidos pelo médico, não devem levar à recusa de tratar o doente em situações injustificadas. O dever de cuidar, devidamente compreendido pelo paciente e pela sociedade, não deve ser um meio de intimidar e despersonalizar profissionais. A equipe médica também tem de se proteger ao dar assistência e pode se recusar a trabalhar em caso de condições adequadas.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    06 Nov 2020
  • Data do Fascículo
    Jul-Sep 2020

Histórico

  • Recebido
    20 Abr 2020
  • Revisado
    10 Jul 2020
  • Aceito
    16 Jul 2020
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