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Malformação fetal incompatível com a vida: conduta de neonatologistas

Resumo

Para avaliar a conduta de neonatologistas em casos de malformação incompatível com a vida, do diagnóstico intrauterino ao parto, e a instituição de cuidados paliativos e/ou curativo/restaurativos ao nascimento, com ou sem o conhecimento prévio dos médicos e/ou pais sobre a inviabilidade fetal, realizou-se pesquisa qualitativa em maternidade brasileira. A partir de entrevista semiestruturada e análise de conteúdo, observou-se que a maioria dos profissionais não adota manobras de ressuscitação cardiopulmonar quando a situação já está esclarecida aos pais; que o critério para cuidados paliativos está vinculado ao diagnóstico de certeza da síndrome, mediante a informação da família; que o conhecimento dos pais sobre a doença pode influenciar a tomada de decisão; e que o estabelecimento de cuidados paliativos, no caso de apenas o médico saber da inviabilidade fetal, inclui na maioria dos casos a devida informação aos pais.

Neonatologia; Recém-nascido; Anormalidades congênitas; Cuidados paliativos

Abstract

To evaluate the behavior of neonatologists in cases of malformation incompatible with life, from intrauterine diagnosis to delivery, and the use of palliative or curative-restorative care at birth, with or without the prior awareness of physicians or parents on fetal infeasibility, we carried out a qualitative research in a Brazilian maternity hospital. From semi-structured interviews and content analysis, we observed that most professionals do not adopt cardiopulmonary resuscitation techniques when the situation is already clear to the parents; that the criteria for palliative care are linked to the confirmation of the syndrome diagnosis, through information to the family; that the parents’ awareness about the disease can influence decision making; and that the establishment of palliative care, if only the physician knows about the fetal infeasibility, in most cases includes due information to parents.

Neonatology; Infant, newborn; Congenital abnormalities; Palliative care

Resumen

Con el fin de evaluar la conducta de los neonatólogos en casos de malformaciones incompatibles con la vida, desde el diagnóstico intrauterino hasta el parto, y la institución de cuidados paliativos y/o curativos/restaurativos al nacimiento, con o sin el conocimiento previo de los médicos y/o padres sobre la inviabilidad fetal, se llevó a cabo esta investigación cualitativa en una maternidad brasileña. A partir de una entrevista semiestructurada y análisis de contenido, se observó que la mayoría de los profesionales no adoptan maniobras de reanimación cardiopulmonar cuando la situación ya es clara para los padres; que el criterio de cuidados paliativos está vinculado al diagnóstico de certeza del síndrome, a través de la información familiar; que el conocimiento de los padres sobre la enfermedad puede influir en la toma de decisiones; y que el establecimiento de cuidados paliativos, en el caso de que solo el médico sepa sobre la inviabilidad fetal, incluye en la mayoría de los casos la debida información a los padres.

Neonatología; Recién nacido; Anomalías congénitas; Cuidados paliativos

Dilemas éticos profissionais, especialmente em casos de recém-nascidos com malformação ou síndromes incompatíveis com a vida, são frequentes em neonatologia, pois envolvem pessoas que não podem responder por si. Nessas circunstâncias é particularmente importante que a conduta médica esteja embasada também na bioética, entendida como o conjunto de princípios morais que regem direitos e deveres individuais, estabelecidos e aceitos em determinada época por determinada sociedade, relacionados à saúde 11. Jonsen AR, Siegler M, Winslade WJ. Ética clínica: abordagem prática para decisões éticas em medicina clínica. Lisboa: McGraw Hill; 1999. . Dado que a origem grega da palavra “ética” pode se relacionar a costumes, assim como a origem latina da palavra “moral”, a bioética tem sido apontada como uma “ciência da moral” ou “filosofia da moral” 22. Goldim JR. Bioética, cultura e globalização [Internet]. In: Anais da I Jornada de Ética e Globalização; 26 mar 1998; Porto Alegre. Porto Alegre: UFRGS; 1998 [acesso 25 nov 2019]. Disponível: https://bit.ly/3eHGeUi
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Segundo Souza e Goldim, a ética constitui o mais profundo componente da vida, dando-lhe sentido em seu processo de formação, e é concretizada cotidianamente no cuidado com o outro – algo tão simples em sua formulação geral como complex [o] em termos de sua efetuação diuturna 33. Souza RT, Goldim JR. Ethics, genetics and pediatrics. J Pediatr [Internet]. 2008 [acesso 25 nov 2019];84(supl 2):S2-7. p. S6. DOI: 10.1590/S0021-75572008000500002 . A ética médica dá continuidade à antiga tradição de refletir sobre os dilemas morais nos cuidados de saúde, e o juramento de Hipócrates vem perpetuando desde a Grécia antiga as severas determinações éticas da profissão 44. Aleksandrowicz AMC. Os níveis de ética de Henri Atlan e o desafio do “quarto nível”. Ciênc Saúde Coletiva [Internet]. 2008 [acesso 25 nov 2019];13(2):407-16. DOI: 10.1590/S1413-81232008000200016 .

Os avanços científicos e tecnológicos trazem consigo novas e numerosas questões éticas associadas à crescente complexidade da atuação médica e a mudanças socioculturais. Em consequência, a partir dos anos 1980 a ética vem sendo cada vez mais invocada, valorizada e questionada, e de modo progressivo e contínuo as atividades e responsabilidades relacionadas a ela se ampliaram, criando a cada dia novos desafios 55. Hossne WS. Educação médica e ética. In: Marcondes E, Gonçalves EL, organizadores. Educação médica. São Paulo: Sarvier; 1998. p. 130-9. .

O cuidado em saúde da mulher e da criança é fortemente afetado por emoções, crenças, valores e interesses muitas vezes conflitantes, que podem, em alguns casos, produzir verdadeiros dilemas morais 66. Schramm FR. Cuidados em saúde da mulher e da criança, proteção e autonomia. In: Schramm FR, Braz M, organizadores. Bioética e saúde: novos tempos para mulheres e crianças? Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2005. p. 39-65. , cada vez mais complexos. Por exemplo, em terapia fetal, questões centradas na adequação de procedimentos de risco para a mulher grávida podem apresentar benefício incerto para o feto 77. McMann CL, Carter BS, Lantos JD. Ethical issues in fetal diagnosis and treatment. Am J Perinatol [Internet]. 2014 [acesso 25 nov 2019];31(7):637-44. DOI: 10.1055/s-0033-1364190 . Em determinados casos, deve-se ponderar mesmo se a intervenção fetal é apropriada. Mas essas questões éticas se sobrepõem, pois implicam em diagnóstico fetal específico que se reflete na futura qualidade de vida da criança, e levantam ainda problemas originados no status moral único da mulher grávida – quem decide sobre seu próprio cuidado médico, o que reflete diretamente na possibilidade de sobrevivência do feto 77. McMann CL, Carter BS, Lantos JD. Ethical issues in fetal diagnosis and treatment. Am J Perinatol [Internet]. 2014 [acesso 25 nov 2019];31(7):637-44. DOI: 10.1055/s-0033-1364190 .

Diferentes países apresentam distintas estratégias de tratamento de recém-nascidos com malformação ou prematuridade extrema. Rhoden 88. Rhoden NK. Treating baby doe: the ethics of uncertainty. Hastings Cent Rep [Internet]. 1986 [acesso 25 nov 2019];16(4):34-42. DOI: 10.2307/3563115 distinguiu três diferentes abordagens. A primeira delas, prognóstico estatístico, particularmente encontrada na Suécia, confere ao feto com prognose desfavorável o direito de não nascer. A segunda, nos Estados Unidos, propõe esperar até que o diagnóstico seja confirmado, iniciando em todos os casos tratamento intensivo com reavaliação regular do prognóstico individual, admitindo a possibilidade de suspender a terapia quando há quase certeza de morte ou coma irreversível. Por fim, na última abordagem avalia-se o prognóstico individual para iniciar cuidados intensivos em quase todos os recém-nascidos, frequentemente reavaliando a situação e possibilitando retirar o tratamento quando o prognóstico é ruim; esta estratégia incluiria intervenções em prematuros extremos para ampliar o diagnóstico e definir a conduta 99. Lorenz JM. Compassion and perplexity. Pediatrics [Internet]. 2004 [acesso 25 nov 2019];113(2):403-4. DOI: 10.1542/peds.113.2.403 . Os achados de Rhoden 88. Rhoden NK. Treating baby doe: the ethics of uncertainty. Hastings Cent Rep [Internet]. 1986 [acesso 25 nov 2019];16(4):34-42. DOI: 10.2307/3563115 modificaram a perspectiva sobre a conduta em diferentes países, ainda que não haja consenso.

A falta de treinamento formal em ética/bioética de boa parte dos neonatologistas pode impactar a forma como lidam com essas situações 1010. Boss RD, Hutton N, Donohue PK, Arnold RM. Neonatologist training to guide family decision making for critically ill infants. Arch Pediatr Adolesc Med [Internet]. 2009 [acesso 25 nov 2019];163(9):783-8. DOI: 10.1001/archpediatrics.2009.155 . Os que não têm essa formação sentem-se à vontade para discutir prognóstico e opções de tratamento, mas não para abordar questões emocionais e sociais, e têm ainda dificuldade em sugerir cuidados paliativos e contemplar as necessidades espirituais e religiosas da família. Todos esses aspectos são essenciais para a tomada de decisão em casos de malformação incompatível com a vida 1111. Barreto TSM, Sakamoto VTM, Magagnin JS, Coelho DF, Waterkemper R, Canabarro ST. Experience of parents of children with congenital heart disease: feelings and obstacles. Rev Rene [Internet]. 2016 [acesso 25 nov 2019];17(1):128-36. DOI: 10.15253/2175-6783.2016000100017 .

Sentimentos intensos de desamparo e medo são desencadeados pelo diagnóstico de malformação. A detecção precoce, durante a gravidez, permite aos pais se preparar para enfrentar até mesmo o processo de luto. Em contrapartida, o sofrimento da família pode ser agravado quando a anomalia é identificada somente após o nascimento. Os pais não esperam que a criança nasça doente, e por isso é importante que o profissional esteja preparado para apoiá-los 1212. Taquette SR, Rego S, Schramm RF, Soares LL, Carvalho SV. Situações eticamente conflituosas vivenciadas por estudantes de Medicina. Rev Assoc Méd Bras [Internet]. 2005 [acesso 25 nov 2019];51(1):23-8. DOI: 10.1590/S0104-42302005000100015 .

Neste cenário, propõe-se avaliar a conduta de neonatologistas de um hospital de ensino no sul do Brasil, referência em gestação de alto risco, em casos de malformação incompatível com a vida, desde o diagnóstico até o desfecho, incluindo o parto e a instituição de cuidados paliativos e/ou curativo/restaurativos no momento do nascimento, na vigência ou não do conhecimento prévio dos médicos e/ou pais sobre a inviabilidade fetal.

Método

Trata-se de pesquisa com base epistemológica qualitativa cujo delineamento partiu da percepção de sua legitimidade nas ciências da saúde. Aplicou-se o método qualitativo devido à necessidade de conhecer um conjunto de práticas interpretativas e obter dados descritivos de pessoas e processos interativos por meio do contato direto do pesquisador com o tema estudado 1313. Godoy AS. Pesquisa qualitativa: tipos fundamentais. Rev Adm Empres [Internet]. 1995 [acesso 25 nov 2019];35(3):20-9. Disponível: https://bit.ly/2WudDvv
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, 1414. Dalfovo MS, Lana RA, Silveira A. Métodos quantitativos e qualitativos: um resgate teórico. Rev Interdiscip Cient Apl [Internet]. 2008 [acesso 25 nov 2019];2(4):1-13. Disponível: https://bit.ly/3fEZxit
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A amostra foi intencional e representada por 11 médicos neonatologistas que prestam assistência a recém-nascidos em maternidade pública e humanizada no sul do Brasil. Dos 13 profissionais convidados a participar, dois foram excluídos por estarem afastados temporariamente de suas funções. Os participantes foram abordados pela pesquisadora durante seu expediente de trabalho no próprio setor onde atuavam. Foram convidados diretamente e apresentados ao projeto de pesquisa e ao termo de consentimento livre e esclarecido.

O estudo foi realizado na unidade de terapia intensiva neonatal (UTI Neonatal) do Hospital Universitário Professor Polydoro Ernani de São Thiago, situado em Florianópolis/SC e vinculado à Universidade Federal de Santa Catarina. A maternidade atende em média 180 partos por mês e tem nove leitos de UTI Neonatal.

Os dados foram coletados em 2018 por meio de entrevista semiestruturada adaptada de Guedert 1515. Guedert JM. Vivência de problemas éticos em pediatria e sua interface com a educação médica [tese] [Internet]. Florianópolis: Universidade Federal de Santa Catarina; 2012 [acesso 25 nov 2019]. Disponível em: https://bit.ly/3jhwe7F
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, composta por um caso clínico fictício atendido por médico plantonista: parto cesáreo por pré-eclâmpsia materna; o recém-nascido é prematuro e apresenta diversas malformações já diagnosticadas no pré-natal, como restrição de crescimento intrauterino, comunicação interventricular, onfalocele, microcefalia e lábio leporino, as quais motivaram exame de cariótipo, que diagnosticou síndrome de Edwards. Diante do exposto, foram elaboradas quatro perguntas (três abertas e uma fechada), questionando conduta do profissional, instituição de tratamento paliativo ou curativo/restaurativo e grau de informação dos pais e/ou do médico a respeito de malformação incompatível com vida, influenciando ou não a tomada de decisão.

As variáveis quantitativas foram analisadas por meio de estatística descritiva, e as qualitativas pelo software Iramuteq e por análise de conteúdo. Nesse software foram realizadas classificação hierárquica descendente, análises de similitude (tanto de árvore quanto dendrograma) e nuvem de palavras. Na análise de conteúdo o material foi previamente explorado – por meio de leitura flutuante –, unidades de análise foram selecionadas, categorizadas e subcategorizadas e variáveis foram identificadas até a saturação de dados.

Resultados e discussão

Conduta

Os resultados obtidos por meio do software Iramuteq e pela análise de conteúdo foram semelhantes: no primeiro, obteve-se como síntese das respostas “não reanimo crianças quando já foi conversado com os pais sobre o diagnóstico de incompatibilidade com a vida”, e na segunda análise a maioria (63,3%) teve como categoria “não reanimo se foi conversado com os pais sobre o diagnóstico”; pequena parcela (27,3%) teve como categoria “não reanimo” independentemente do grau de informação dos pais.

Dentre os entrevistados, apenas um explicitou que realizaria manobras de reanimação caso a família não soubesse o diagnóstico da criança: “Se eu tiver um tempo para conversar com os pais, antes do nascimento, discuto com eles sobre a não realização de uma intervenção; sem esse momento de conversa com os pais eu procedo à reanimação do paciente, faço todos os procedimentos” (E6).

A conduta dos neonatologistas dado indiscutível diagnóstico de malformação incompatível com a vida, como o caso clínico fictício apresentado, vem ao encontro do que foi publicado recentemente pela Sociedade Brasileira de Pediatria 1616. Sociedade Brasileira de Pediatria. Cuidados paliativos pediátricos: o que são e qual sua importância? Cuidando da criança em todos os momentos [Internet]. São Paulo: Departamento Científico de Medicina da Dor e Cuidados Paliativos; 2017 [acesso 31 ago 2020]. Disponível: https://bit.ly/3hE8LfT
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sobre cuidados paliativos. Cabe observar, no entanto, que a discussão com os pais deve levar em consideração os aspectos culturais, religiosos e morais familiares, além daqueles legais. Ao aplicar preceitos éticos e bioéticos na tomada de decisão, é possível decidir o que é melhor para aquele paciente e o moralmente mais adequado, evitando-se, assim, medidas que possam trazer sofrimento desnecessário sem melhora na qualidade e/ou tempo de vida 1717. Kopelman BI, Cana EN. Diagnóstico pré-natal e a atuação do pediatra. São Paulo: Atheneu; 2009. .

Tomada de decisão: tratamento paliativo ou curativo/restaurativo

Para todos os participantes, o fato de o paciente já ter sido diagnosticado com síndrome de Edwards foi determinante na tomada de decisão, sendo que quatro deles (36,4%) enfatizaram que é importante considerar a ciência da família. O resultado foi semelhante em ambas as técnicas de análise dos dados, como demonstrado na seguinte fala:

“O primeiro critério é a síndrome, que é incompatível com a vida; já tem cariótipo, então fica claro o diagnóstico. Caso não tenha o cariótipo, se for só uma suspeita, então talvez tenha que investir para poder investigar no decorrer da evolução do quadro. Mas aqui é o fato de ser uma situação incompatível com a vida e os pais já estarem cientes” (E2).

Com o avanço tecnológico, inclusive na área de medicina fetal, é possível diagnosticar malformações congênitas com grande precisão ainda durante a vida intrauterina. Quando o prognóstico é incompatível com a vida, deve-se esclarecer os pais. A equipe médica, em concordância com a família, pode indicar a via de parto mais adequada para a gestante e oferecer ao recém-nascido suporte básico, com cuidados paliativos, mas sem procedimentos invasivos 1717. Kopelman BI, Cana EN. Diagnóstico pré-natal e a atuação do pediatra. São Paulo: Atheneu; 2009. . Nesses casos, o Comitê de Feto e Recém-Nascido da Academia Americana de Pediatria recomenda que o suporte de vida seja considerado inapropriado, assim como quando o tratamento é julgado prejudicial ou fútil 1818. American Academy of Pediatrics Committee on Fetus and Newborn. Noninitation or withdrawal of intensive care for high-risk newborns. Pediatrics [Internet]. 2007 [acesso 25 nov 2019];119(2):401-3. DOI: 10.1542/peds.2006-3180 .

Além disso, a opinião dos pais, o diálogo com a equipe e a eventual consultoria médica externa devem ser levados em consideração. Os termos da decisão e as razões que basearam as condutas devem estar documentados no prontuário médico 1919. Dageville C, Bétrémieux P, Gold F, Simeoni U. The French Society of Neonatology’s proposals for neonatal end-of-life decision-making. Neonatology [Internet]. 2011 [acesso 25 nov 2019];100(2):206-14. DOI: 10.1159/000324119 . Apesar de os profissionais serem moralmente obrigados a respeitar a autonomia dos pais e permitir-lhes exercer seu papel, caso estes insistam em intervenções consideradas tecnicamente inadequadas a equipe deve esclarecê-los sobre os possíveis danos e sofrimento infligidos ao paciente, dando a eles suporte emocional e mantendo diálogo respeitoso, independentemente da discordância 2020. Warrick C, Perera L, Murdoch E, Nicholl RM. Guidance for withdrawal and withholding of intensive care as part of neonatal end-of-life care. Br Med Bull [Internet]. 2011 [acesso 25 nov 2019];98(1):99-113. DOI: 10.1093/bmb/ldr016 .

Como enfatizado por parte dos participantes, a ciência da família é aspecto importante, o que não significa, contudo, desconsiderar a não maleficência e medidas de conforto, que visam dar ao recém-nascido condições dignas em seu fim de vida 2121. Catlin A. Transition from curative efforts to purely palliative care for neonates: does physiology matter? Adv Neonatal Care [Internet]. 2011 [acesso 25 nov 2019];11(3):216-22. DOI: 10.1097/ANC.0b013e31821be411 .

Tomada de decisão versus conhecimento dos pais

Ao analisar o dendrograma de classificação hierárquica, a análise de similitude e a nuvem de palavras, obteve-se que os respondentes consideram que o conhecimento dos pais sobre o diagnóstico influencia a tomada de decisão. Esse resultado foi ainda corroborado pela análise de conteúdo, que indicou esse posicionamento da maioria dos participantes (90,9%). É importante salientar que nessa última técnica de análise foi possível também observar que os neonatologistas valorizaram o grau de entendimento, conhecimento e desejo da família.

Considera-se que em todos os casos de diagnóstico de anomalia fetal durante o período intrauterino a gestante deve ser informada sobre possibilidades terapêuticas e provável período de internação, assim como prognóstico. Consequentemente, a equipe de saúde deve definir a acurácia do método diagnóstico e suas implicações na gravidez, no parto e no período neonatal 1717. Kopelman BI, Cana EN. Diagnóstico pré-natal e a atuação do pediatra. São Paulo: Atheneu; 2009. .

As famílias se beneficiam da oportunidade de se preparar e planejar a chegada do recém-nascido com diagnóstico de patologia incompatível com a vida, o que inclui apoiar a mãe durante o parto e envolver o pai. Nesses casos, um plano de parto pode ser desenvolvido previamente, indicando os cuidados com o recém-nascido após o nascimento. A comunicação durante esse processo é fundamental, principalmente ao decidir não reanimar, intubar ou medicar por via venosa ou realizar qualquer outra medida invasiva 2222. Leuthner S, Jones EL. Fetal Concerns Program: a model for perinatal palliative care. MCN Am J Matern Child Nurs [Internet]. 2007 [acesso 25 nov 2019];32(5):272-8. DOI: 10.1097/01.NMC.0000287996.90307.c6 . É importante lembrar que o principal papel da medicina é manter a vida, mas não a prolongar quando não há perspectivas de melhora ou bem-estar 2222. Leuthner S, Jones EL. Fetal Concerns Program: a model for perinatal palliative care. MCN Am J Matern Child Nurs [Internet]. 2007 [acesso 25 nov 2019];32(5):272-8. DOI: 10.1097/01.NMC.0000287996.90307.c6 .

A decisão sobre qualquer procedimento é sempre da gestante e do pai. O médico não precisa necessariamente concordar com ela, mas deve compreendê-la sem recriminar, e quando equipe e pais discordarem, o caso deve ser levado ao Conselho de Ética e Bioética. Em situações específicas, como em casos nos quais o prolongamento da vida do recém-nascido geraria apenas maior sofrimento para todos os envolvidos, a conduta mais prudente, de abreviar sofrimento, poderia ser tomada 2323. Moritz RD, organizadora. Conflitos bioéticos do viver e do morrer [Internet]. Brasília: CFM; 2011 [acesso 25 nov 2019]. Disponível: https://bit.ly/3eBDish
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Sendo assim, acredita-se que o conhecimento dos pais é muito importante no manejo do caso, mas não deve ser o principal determinante na escolha do tratamento, o que não impede a equipe médica de prestar esclarecimentos, dirimir dúvidas e compartilhar informações sobre as medidas que serão realizadas após o nascimento.

Quando apenas o médico tem conhecimento da inviabilidade fetal pela malformação

Nesta hipótese, em síntese, a análise dos dados com o software Iramuteq revelou que os respondentes optam por reanimar o bebê e instituir cuidados e medidas paliativas até que seja possível conversar com os pais para que entendam o diagnóstico de síndrome incompatível com a vida. Na análise de conteúdo, 63,6% das ocorrências determinavam cuidados paliativos para o bebê acompanhados da informação aos pais, enquanto 18,4% categorizaram a instituição imediata de cuidados paliativos, 9% evidenciaram dificuldade de decidir nessas circunstâncias e 9% indicaram que a decisão sobre a conduta é da equipe médica, com a ciência da família. Segundo o respondente E1:

“Eu acho que para se oferecer cuidados paliativos para um paciente existe a necessidade de uma boa comunicação e que a família esteja absolutamente a par de tudo, que esteja confortável em relação aos cuidados paliativos. Se a família não teve a oportunidade de conhecer os detalhes do caso, também não é no momento do parto que tem que se fazer isso. Então, provavelmente, atenderia o bebê de uma forma um pouco mais agressiva, um pouco mais invasiva, até que se estabelecesse, o mais precocemente possível, o contato com os pais. Quando a gente pudesse explicar tudo, tirar todas as dúvidas, aí sim ofereceria os cuidados paliativos”.

A falta de conhecimento dos familiares quanto à inviabilidade do recém-nascido resulta em situação conflituosa e delicada, mas ficou evidente nos resultados a predominância de cuidados paliativos, bem como a necessidade de informar os pais. Observa-se nas respostas a todas as perguntas que os participantes salientaram a importância da ciência da família em todo o processo, e que sua opinião pode influenciar a decisão independentemente de a conduta ser prerrogativa da equipe médica. Isso é evidenciado na fala de E10:

“Eu acho que a família sempre deve estar junta, conversando, para que ela esteja com a equipe. Eu acho que ela tem que estar ciente da conduta que vai ser tomada pela equipe médica. Mas não é uma decisão da família, eu acho até que pode ser uma coisa muito ruim para eles, no futuro. A equipe médica avaliou, e a equipe médica tomou a decisão, e a família está ciente. Eu acho que isso é importante”.

Caso o neonatologista esteja sozinho e despreparado para decidir se reanima o recém-nascido ou se assume conduta mais restritiva, fornecendo apenas os cuidados básicos para evitar o sofrimento ou minimizá-lo, é preferível tomar atitude mais ativa, realizando todos os passos da reanimação, inclusive procedimentos como intubação, ventilação pulmonar mecânica, massagem cardíaca e medicação, quando necessário. Posteriormente, com dados clínicos e de exames complementares em mãos, e após conversar com os pais, pode-se optar por oferecer cuidados paliativos 2424. Kollée LAA, Van der Heide A, Leeuw R, Van der Maas PJ, Van der Wal G. End-of-life decisions in neonates. Semin Perinatol [Internet]. 1999 [acesso 25 nov 2019];23(3):234-41. DOI: 10.1016/s0146-0005(99)80068-8 .

Apesar de a literatura sustentar amplamente que após o diagnóstico de malformação incompatível com a vida deve-se suspender todos os tratamentos, essa decisão pode ser emocionalmente complexa. A equipe deve estar muito convicta de que esse é o melhor para o paciente mesmo antes de dialogar com a família. Somente após toda a equipe, a família e a Comissão de Ética concordarem pode-se suspender o suporte avançado de vida e oferecer cuidados paliativos 2525. Verhagen AAE, Sauer PJJ. End-of-life decisions in newborns: an approach from the Netherlands. Pediatrics [Internet]. 2005 [acesso 25 nov 2019];116(3):736-9. DOI: 10.1542/peds.2005-0014 .

Sendo assim, nada impede que cuidados intensivos ou mesmo manobras de reanimação sejam realizados até que se possa conversar com os pais, explicando a patologia, seus principais riscos, a ausência de tratamentos disponíveis e o prolongamento de sofrimento 2626. Schneiderman LJ, Gilmer T, Teetzel HD. Impact of ethics consultations in the intensive care setting: a randomized, controlled trial. Crit Care Med [Internet]. 2000 [acesso 25 nov 2019];28(12):3920-4. DOI: 10.1097/00003246-200012000-00033 . Depois que todas as partes estiverem esclarecidas, pode-se instituir cuidados paliativos e eventualmente suspender tratamentos considerados “fúteis” – que, apesar de atingir metas terapêuticas, não sanam o quadro clínico – ou “inúteis” – que não atingem metas terapêuticas e não beneficiam o paciente 2626. Schneiderman LJ, Gilmer T, Teetzel HD. Impact of ethics consultations in the intensive care setting: a randomized, controlled trial. Crit Care Med [Internet]. 2000 [acesso 25 nov 2019];28(12):3920-4. DOI: 10.1097/00003246-200012000-00033 .

Considerações finais

Dado o caso clínico fictício de diagnóstico genético de malformação incompatível com a vida, observou-se que a maioria dos neonatologistas optaria por não instituir manobras de ressuscitação cardiopulmonar quando a situação já estivesse esclarecida aos pais. O critério para iniciar cuidados paliativos está vinculado ao diagnóstico de certeza da síndrome e ao conhecimento da família, o qual pode influenciar a tomada de decisão médica. Por fim, a instituição de cuidados paliativos caso apenas o médico saiba da inviabilidade fetal inclui a devida informação aos pais.

Referências

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  • Aprovação CEP-UFSC CAAE 64059317.8.0000.0121

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    06 Nov 2020
  • Data do Fascículo
    Jul-Sep 2020

Histórico

  • Recebido
    23 Jul 2019
  • Revisado
    30 Abr 2020
  • Aceito
    2 Maio 2020
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