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Percepção de adolescentes com lesão medular sobre autonomia

Resumo

Considerando que, a partir do referencial dos direitos humanos do paciente, aspectos bioéticos da autonomia relacional são importantes na construção da autonomia como projeto de vida, analisou-se a percepção do processo de autonomia em adolescentes com lesão medular participantes de um programa de reabilitação. Trata-se de estudo transversal quali-quantitativo que utilizou entrevista para coletar dados e o software Iramuteq para analisá-los. Participaram 14 adolescentes, 50% do sexo masculino, 29% moradores do Distrito Federal, 71% com paraplegia. Na análise dos dados qualitativos, identificaram-se cinco classes: programa de reabilitação (20,9%); autonomia (21,8%); relações familiares (16,7%); sentimentos e vivências (23,9%); e rotina (16,7%). A mãe foi apontada como principal cuidadora (64%) e a autonomia muitas vezes foi relacionada ao conceito de independência. Outras formas de relacionamentos corroboraram o modelo da autonomia relacional, sendo identificados desafios intrínsecos e extrínsecos à condição dos participantes analisadas na perspectiva dos direitos humanos do paciente.

Palavras-chave:
Adolescente; Autonomia pessoal; Direitos humanos; Reabilitação; Bioética

Abstract

Starting from the referential of patient's human rights and considering that bioethical aspects of relational autonomy are important in the construction of autonomy as a life project, this study analyzed the perception of the autonomy process in adolescents with spinal cord injury participating in a rehabilitation program. This is a cross-sectional quali-quantitative study that used interviews to collect data and the Iramuteq software to analyze them. Fourteen adolescents participated, 50% male, 29% living in the Federal District, 71% with paraplegia. The qualitative data analysis identified five classes: rehabilitation program (20.9%); autonomy (21.8%); family relations (16.7%); feelings and experiences (23.9%); and routine (16.7%). The mother was indicated as the main caregiver (64%) and autonomy was often related to the concept of independence. Other forms of relationships corroborated the model of relational autonomy, and intrinsic and extrinsic challenges to the condition of the participants analyzed from the perspective of patient's human rights were also identified.

Keywords:
Adolescent; Personal autonomy; Human rights; Rehabilitation; Bioethics

Resumen

Considerando que, desde los derechos humanos del paciente, los aspectos bioéticos de autonomía relacional son importantes para constituir la autonomía como proyecto de vida, se analizó la percepción del proceso de autonomía en adolescentes con lesión medular de un programa de rehabilitación. Es un estudio transversal cualicuantitativo, que utilizó entrevistas para recopilar datos y el software Iramuteq para analizarlos. Participaron 14 adolescentes, 50% del sexo masculino, 29% residentes en el Distrito Federal, 71% con paraplejía. Del análisis de datos cualitativos emergieron cinco clases: programa de rehabilitación (20,9%); autonomía (21,8%); relaciones familiares (16,7%); sentimientos y experiencias (23,9%); y rutina (16,7%). La madre fue la principal cuidadora (64%), y la autonomía estuvo relacionada frecuentemente con el concepto de independencia. Otras formas de relación respaldan el modelo de autonomía relacional, con la identificación de desafíos intrínsecos y extrínsecos a la condición de estos participantes desde la perspectiva de los derechos humanos del paciente.

Palabras clave:
Adolescente; Autonomía personal; Derechos humanos; Rehabilitación; Bioética

A adolescência é o período de desenvolvimento delimitado pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) como a faixa etária de 12 a 18 anos 11 Brasil. Lei n° 8.069, de 13 de julho de 1990. Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). Diário Oficial da União [Internet]. Brasília, p. 13563, 16 jul 1990 [acesso 24 mar 2022]. Seção 1. Disponível: https://bit.ly/3Vj6tXJ
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. É uma etapa marcada por grandes transformações físicas, psíquicas e sociais, destacando-se a conquista de direitos em diversos contextos sociais 22 Coordenação de Desenvolvimento de Programas e Políticas de Saúde. Manual de atenção à saúde do adolescente [Internet]. São Paulo: SMS; 2006 [acesso 24 mar 2022]. Disponível: https://bit.ly/3vPnmy2
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. No entanto, alguns fatores podem afetar o desenvolvimento do indivíduo, como eventos adversos ambientais ou adoecimento, provocando incapacidade física, acentuando a condição de vulnerabilidade intrínseca e prejudicando o exercício da autonomia.

Entre os eventos negativos que podem ocorrer nessa faixa etária, destacam-se as deficiências físicas provocadas por lesões medulares, isto é, injúrias causadas às estruturas contidas no canal medular, ocasionando paraplegia ou tetraplegia 33 Gonçalves AMT, Rosa LN, D’Ângelo CT, Savordelli CL, Bonin GL, Squarcino IM, Borrelli M. Aspectos epidemiológicos da lesão medular traumática na área de referência do Hospital Estadual Mário Covas. Arq Méd ABC [Internet]. 2007 [acesso 24 mar 2022];32(2):64-6. Disponível: https://bit.ly/3JHiVeu
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. Essas lesões podem gerar alterações motoras, sensitivas, autonômicas e psicoafetivas, que se manifestarão como paralisia ou paresia dos membros; alteração de tônus muscular e dos reflexos superficiais e profundos; alteração ou perda das sensibilidades (tátil, dolorosa, de pressão, vibratória e proprioceptiva) e de controle esfincteriano; disfunção sexual; e alterações autonômicas, como vasoplegia, alteração de sudorese, controle de temperatura corporal, entre outras 44 Brasil. Ministério da Saúde. Diretrizes de atenção à pessoa com lesão medular [Internet]. Brasília: Ministério da Saúde; 2013 [acesso 24 mar 2022]. Disponível: https://bit.ly/3zMlHdE
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No Brasil, lesões medulares são consideradas problema de saúde pública, haja vista sua gravidade, a irreversibilidade das sequelas e a consequência produtiva, por incidir mais em indivíduos adultos jovens 33 Gonçalves AMT, Rosa LN, D’Ângelo CT, Savordelli CL, Bonin GL, Squarcino IM, Borrelli M. Aspectos epidemiológicos da lesão medular traumática na área de referência do Hospital Estadual Mário Covas. Arq Méd ABC [Internet]. 2007 [acesso 24 mar 2022];32(2):64-6. Disponível: https://bit.ly/3JHiVeu
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. Estudo do perfil epidemiológico de lesão medular realizado na Rede Sarah identificou incidência de 21 casos por milhão de habitantes/ano e prevalência de 8,6% de lesão medular traumática 55 Barbetta DC, Smanioto TR, Poletto MF, Ferreira RFA, Lopes ACG, Casaro FM et al. Spinal cord injury epidemiological profile in the Sarah Network of Rehabilitation Hospitals: a Brazilian population sample. Spinal Cord Ser Cases [Internet]. 2018 [acesso 24 mar 2022];4:32. DOI: 10.1038/s41394-018-0049-8
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A maior incidência ocorre entre pessoas de 20 a 24 anos de idade, principalmente por lesões traumáticas (80%) provocadas por acidentes automobilísticos, quedas, mergulhos em águas rasas, acidentes de trabalho, prática de esportes e episódios de violência, sobretudo ferimentos por arma de fogo. Entre as causas não traumáticas (20%) destacam-se tumores, doenças infecciosas, vasculares e degenerativas 66 Brunozi AE, Silva AC, Gonçalves LF, Veronezi RJB. Qualidade de vida na lesão medular traumática. Rev Neurocienc [Internet]. 2011 [acesso 24 mar 2022];19(1):139-44. Disponível: https://bit.ly/3zLwtkn
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. Essas lesões desencadeiam fatores que impactam direta ou indiretamente a autonomia, a qualidade de vida e a participação social 66 Brunozi AE, Silva AC, Gonçalves LF, Veronezi RJB. Qualidade de vida na lesão medular traumática. Rev Neurocienc [Internet]. 2011 [acesso 24 mar 2022];19(1):139-44. Disponível: https://bit.ly/3zLwtkn
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Do ponto de vista histórico e social, costuma-se diferenciar lesão de deficiência: a primeira seria foco de ações biomédicas no enfrentamento de condições intrínsecas, ao passo que a segunda seria objeto da justiça social e de políticas públicas de bem-estar. Nesse modelo, a deficiência tem caráter relacional, extrínseco à pessoa, por consistir na interação de tais atributos com as barreiras do meio social, que podem dificultar ou impedir o acesso e o exercício de direitos em igualdade ou condições semelhantes às das demais pessoas 77 Brasil. Ministério da Saúde. Atenção à pessoa portadora de deficiência no Sistema Único de Saúde: planejamento e organização de serviços. Brasília: Secretaria de Atenção à Saúde; 1995. p. 55-7..

A Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência (Lei 13.146/2015) 88 Brasil. Lei n° 13.146, de 6 de julho de 2015. Institui a Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência (Estatuto da Pessoa com Deficiência). Diário Oficial da União [Internet]. Brasília, p. 2, 7 jul 2015 [acesso 24 mar 2022]. Seção 1. Disponível: https://bit.ly/3BTbezZ
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define que essa condição é caracterizada por impedimento de longo prazo de natureza física, mental, intelectual ou sensorial, o qual, em interação com uma ou mais barreiras, pode obstruir a participação plena e efetiva da pessoa na sociedade em igualdade de condições com o restante da sociedade.

A reabilitação é definida por Martini como um trabalho com aspectos educacionais, sociais e terapêuticos em que uma pessoa que sofre algum tipo de deficiência procura restabelecer ou criar recursos para retomar as atividades de sua vida da melhor forma possível 99 Martini A. Reabilitação, ética e técnica. Ciênc Saúde Colet [Internet]. 2011 [acesso 24 mar 2022];16(4):2263-9. DOI: 10.1590/S1413-81232011000400025
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. Trata-se de um trabalho que leva ao melhor discernimento das limitações e possibilidades, a fim de permitir que o indivíduo cumpra seu papel social e otimizar sua participação na comunidade.

Este estudo foi desenvolvido com base no conceito de autonomia − capacidade da pessoa de se autogovernar e fazer as próprias escolhas, buscando orientar suas ações. Entretanto, no âmbito da reabilitação, o termo “autonomia” é amplo e está relacionado com independência, funcionalidade, mobilidade, participação social, tomada de decisão, identidade, capacidade, habilidade, autogestão, autodeterminação, autogoverno, eficiência etc. 1010 Bampi LNS, Guilhem D, Lima DD. Qualidade de vida em pessoas com lesão medular traumática: um estudo com o WHOQOL-bref. Rev Bras Epidemiol [Internet]. 2008 [acesso 24 mar 2022];11(1):67-77. DOI: 10.1590/S1415-790X2008000100006
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,1111 Martini AC, Schoeller SD, Forner S, Nogueira GC. Abordagem multiprofissional do cuidado à pessoa com lesão medular. In: Schoeller SD, Martini AC, Forner S, Nogueira GC, organizadores. Abordagem multiprofissional em lesão medular: saúde, direito e tecnologia [Internet]. Florianópolis: IFSC; 2016 [acesso 24 mar 2022]. p. 11-5. Disponível: https://bit.ly/3bNGHZA
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. As condições sociais vinculam as pessoas nas tomadas de decisão sobre a própria vida, muitas vezes baseadas em exigências e restrições sociais e interpessoais 1212 Albuquerque A. Capacidade jurídica e direitos humanos. Rio de Janeiro: Lumen Juris; 2018. p. 89..

Assim, Albuquerque conceitua autonomia relacional (AR) partindo do pressuposto de que as pessoas são inter-relacionadas, interdependentes e interconectadas, no entanto sem desconsiderar a noção do individual (self), mas o compreendendo, a partir da sua constituição interativa e por meio das relações intersubjetivas, AR se refere à concepção de autonomia que a vincula aos aspectos sociais da vida do indivíduo, ou seja, sua conexão integral com a política, economia, raça, sexo, cultura, experiências de vida, interações com outros e anseios pessoais 1212 Albuquerque A. Capacidade jurídica e direitos humanos. Rio de Janeiro: Lumen Juris; 2018. p. 89..

Ademais, segundo Eler e Albuquerque 1313 Eler K, Albuquerque A. Direito à participação da criança nos cuidados em saúde sob a perspectiva dos direitos humanos dos pacientes. Rev Iberoam Bioét [Internet] 2019 [acesso 24 mar 2022];(9):1-15. p. 14. DOI: 10.14422/rib. i09.y2019.001
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, o referencial dos direitos humanos dos pacientes (DHP) é considerado adequado à proteção dessas pessoas, pois, além de impor ao Estado as responsabilidades de respeitar, proteger e atender aos direitos dos pacientes, parte de uma visão ampliada dos serviços de saúde, não se restringindo ao acesso a bens, mas dando ênfase ao cuidado, entre outros bens éticos essenciais para alcançar melhores resultados em saúde e o incremento do bem-estar do paciente 1414 Sobrinho JD. Educação superior: bem público, equidade e democratização [Internet]. 2013 [acesso 24 mar 2022];18(1):107-26. DOI: 10.1590/S1414-40772013000100007
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.

O objetivo desta pesquisa foi analisar, à luz dos DHP, a percepção de adolescentes com lesão medular, acompanhados em um programa de reabilitação, sobre seu processo de autonomia, tendo como pressuposto o princípio da autonomia relacional. Ao explorar o objeto – a adolescência e suas relações com a autonomia no contexto da LM –, verificou-se que poucos estudos abordaram esse tema, o que justifica a relevância deste estudo.

Método

Trata-se de pesquisa descritiva e quanti-qualitativa, com dados levantados em entrevistas com roteiro semiestruturado realizadas no período de fevereiro a março de 2020 na Rede Sarah de Hospitais de Reabilitação, unidade Brasília/DF. Foram convidados a participar adolescentes com deficiência física decorrente de lesão medular, que assinaram termo de assentimento e cujos responsáveis assinaram o termo de consentimento livre esclarecido (TCLE).

Os critérios de inclusão foram: a) idade entre 12 e 18 anos; b) diagnóstico de LM (traumática ou não traumática); e c) ter frequentado o programa de reabilitação no Hospital Sarah há pelo menos seis meses. Os critérios de exclusão foram: a) apresentar outras comorbidades associadas, como traumatismo craniencefálico, lesão cerebral, déficit cognitivo moderado a grave; e b) ter iniciado programa de reabilitação há menos de seis meses.

O instrumento elaborado para o estudo incluiu questões fechadas sobre aspectos sociodemográficos (idade, escolaridade, composição e renda familiar), cuidados com a saúde (bexiga, intestino neurogênico e pele, uso de medicações), aquisição de insumos e benefícios sociais recebidos pela família, coletados do prontuário eletrônico do hospital. Por fim, realizou-se entrevista com 13 questões abertas, divididas em quatro temas: 1) rotina do paciente e sua relação familiar, 2) significado da LM para o adolescente, 3) percepção sobre o programa de reabilitação e 4) percepção do adolescente sobre autonomia.

Após a seleção dos participantes da pesquisa, foram agendadas entrevistas presenciais, associadas a datas de atendimento, como exames ou consultas dos pacientes no hospital. Sete pacientes participaram da entrevista durante a internação e dois em domicílio, dada a impossibilidade de comparecerem ao hospital. As entrevistas foram realizadas em espaço privativo, individualmente, sem a presença do acompanhante, e a conversa foi gravada em áudio por meio de telefone celular após autorização do(a) entrevistado(a).

Os dados da primeira parte do questionário foram analisados no Statistical Package for Social Sciences (SPSS), versão 21.0, com vistas à realização de análises estatísticas descritivas. Os dados qualitativos foram analisados por meio do software Iramuteq 1515 Reinert M. Une méthode de classification descendante hiérarchique : application à l'analyse lexicale par contexte. Cahiers de l'Analyse des Données [Internet]. 1983 [acesso 24 mar 2022];8(1):187-98. Disponível: https://bit.ly/3QdDdyy
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, versão 0.7 Alpha (2014), ferramenta que possibilita associação de segmentos de texto considerados relevantes, agrupamento de palavras estatisticamente significativas, sugestão de categorias e temas relevantes e análise qualitativa dos dados. Utilizou-se a análise do conteúdo de Bardin 1616 Bardin L. Análise de conteúdo. Lisboa: Edições 70; 2011., modalidade categoria temática, para examinar as classes de palavras geradas pelo Iramuteq.

Resultados

Integraram este estudo 14 adolescentes dos gêneros masculino (n=7; 50%) e feminino (n=7; 50%) com diagnóstico de lesão medular traumática em 64% dos casos, distribuídos em paraplegia (n=10; 71%), paraparesia (n=3; 21%) e tetraplegia (n=1; 7%), todos participantes de um programa de reabilitação. A idade variou de 12 a 18 anos (média=15 anos); 21% (n=3) eram procedentes do Distrito Federal; sete estavam cursando o ensino fundamental; e 43% (n=6) referiram ter perdido o ano escolar pelo menos uma vez (Tabela 1).

Tabela 1
Caracterização dos adolescentes da pesquisa

Para 64% (n=9) dos jovens, o principal cuidador ou representante legal do paciente era a mãe; para 29% (n=4), o pai; e para 7% (n=1), os avós. A escolaridade dos cuidadores variou entre ensino superior (21%; n=3), ensino médio (57%; n=8) e ensino fundamental (21%; n=3) e a renda familiar estava entre R$ 748,00 e R$ 10.000,00, conforme relato dos pacientes. A quantidade média de pessoas que residiam na mesma casa era de quatro pessoas, sendo o máximo sete.

O corpus textual apresentou 298 segmentos de textos e o Iramuteq analisou 234, o que corresponde a 78,52% do total e representa parcela adequada à utilização do método de classificação hierárquica descendente. Segundo Reinert 1515 Reinert M. Une méthode de classification descendante hiérarchique : application à l'analyse lexicale par contexte. Cahiers de l'Analyse des Données [Internet]. 1983 [acesso 24 mar 2022];8(1):187-98. Disponível: https://bit.ly/3QdDdyy
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, proporções menores que 60,0% não são indicadas para essa análise. A análise de conteúdo deu origem a cinco classes.

O dendrograma apresentado na Tabela 2 mostra as relações entre essas cinco classes, além de indicar o percentual de unidade de contexto inicial (UCI) de cada uma delas em relação a todo o corpus textual e de mostrar aquelas palavras com maior qui-quadrado em cada classe. O índice qui-quadrado indica o impacto das palavras na formação das classes, que foram nomeadas de acordo com as disciplinas principais, demonstradas pelas falas e interpretação de sua convergência com o referencial teórico adotado. Cada classe foi descrita nas falas e é ilustrada por exemplos de relatos verbais dos participantes, conforme descrito na Tabela 2.

Tabela 2
Classificação hierárquica descendente obtida pelo software Iramuteq, evidenciando cinco classes e a distribuição das porcentagens no corpus

Classe 1

Programa de reabilitação do adolescente com lesão medular

Em termos de tamanho, a Classe 1 ocupou o terceiro lugar, analisando sua representação do corpus textual (49 palavras em 234 ou 20,94%), e as palavras com maior qui-quadrado nessa classe foram: “faltar”, “Sarah”; “acompanhamento”, “suprir” e “bastante”, conforme mostrou a Tabela 2. A maioria dos participantes apresentou percepção positiva quanto ao programa de reabilitação, identificando que suas necessidades foram atendidas, e houve aquisição de conhecimentos para o autocuidado diante das adaptações necessárias à condição estabelecida pela lesão medular, promovendo independência e autonomia, em uma nova perspectiva para fazer as coisas, exemplificada pelos seguintes relatos:

“Me ajudou bastante a entender que eu não sou o único a estar nessa situação (…) e por me ajudar, porque eu basicamente não sabia nada em cadeira de rodas” (A3).

O programa de reabilitação ajudou a ter essa autonomia, porque sempre estiveram muito presentes, ensinando, aconselhando, mostrando novas formas. Então os aprendizados que eu tive como transferência, autocuidado, tudo foi aprendido com a reabilitação, aprendi a me virar” (A7).

Quanto aos pontos negativos do programa, os adolescentes sugeriram que houvesse mais orientações quanto aos benefícios e direitos das pessoas com deficiência e de atividades aquáticas e para treino de ortostatismo.

Eu fiquei lá em 2018 para fazer reabilitação, mas faltou fazer natação, alguma coisa que possa me estimular, me ajudar a ficar em pé, a ter função na perna, a voltar a andar” (A4).

Na minha opinião, gostaria que os profissionais passassem mais ideias sobre benefícios. Eu não sabia daquele Fremec, que é sobre descontos de passagens, viagens e outras coisas que têm de benefícios para pacientes” (A2).

Classe 2

Autonomia do adolescente com lesão medular

A Classe 2 ocupou o segundo lugar, analisando sua representação do corpus textual, e as palavras com maior qui-quadrado foram: “autonomia”, “sozinho”, “programa”, “pensar” e “querer” (Tabela 2).

Inicialmente os participantes apresentaram dificuldade para compreender o sentido de autonomia, sendo necessário explicar resumidamente o conceito básico, segundo o qual o termo “autonomia” é oriundo dos vocábulos autos (“eu”) e nomos (“lei”), indicando a noção de autolegislação, autogoverno, autodeterminação. Após a explicação do conceito, identificou-se, no entanto, que alguns adolescentes tenderam a associar autonomia à noção de independência e de tomada de decisões.

Autonomia é tipo ser independente, para que não possa sempre depender da minha mãe. Tem que ser tipo sozinha, igual pra eu ir para a escola, eu vou sozinha, faço meu cateterismo, coloco fralda, coloco minha roupa, meu tênis (…) eu ajudo a locomover a cadeira. Acho que tendo maturidade nas coisas, em saber fazer as escolhas certas e não as erradas” (A4).

Agora eu reabilitei, hoje eu posso tomar minhas próprias decisões, eu mesmo ir, eu mesmo fazer, também de socializar mais, né? Eu não conseguia nem sair na calçada” (A9).

Outro fato é a não autonomia, que se deve à dependência total da ajuda de terceiros. Um adolescente, por exemplo, referiu não ter autonomia, por entender que era governado pela mãe. Aprender a se cuidar, ter o domínio de situações constrangedoras, como o controle esfincteriano, a fim de não perder fezes ou urina na roupa, trouxe sensação de domínio da situação, compreendida como autonomia. A reeducação vesicointestinal trouxe ao adolescente melhor qualidade de vida, pela possibilidade de se manter continente.

Os adolescentes entrevistados citaram situações em que não conseguiram exercer sua autonomia: por causa de sua idade e de limitações físicas, ou por não ter seus desejos atendidos. Em todas essas situações, a falta de autonomia do adolescente foi vista como algo negativo, gerando sentimento de impotência e desvalorização.

A lesão medular não interfere na minha vida social (…) claro que não consigo fazer tudo, por exemplo, não consigo andar de ônibus, porque não tem a adaptação no ônibus” (A12).

Quando você precisa fazer alguma coisa, se não tem um lugar acessível, você não faz” (A7).

Os adolescentes entenderam autonomia, também, como meio de planejar o futuro, de vislumbrar a vida com outro olhar, voltado à realização profissional e pessoal.

Sobre o meu futuro, eu penso muito sobre a profissão que eu quero ter. Já pensei em ter várias profissões, em ser policial, ser advogada, ser veterinária ou psicóloga” (A4).

Classe 3

Relações familiares do adolescente com lesão medular

Em termos de tamanho, a Classe 3 ocupou o último lugar (empatando com a Classe 5) em representação no corpus textual (39 UCI em 234 ou 16,67%), e as palavras com maior qui-quadrado foram “família”, “gente”, “tranquilo”, “irmão” e “principalmente” (Tabela 2). Essa categoria evidenciou o relacionamento do adolescente com a família e amigos em seu contexto de vida. A presença da mãe como principal cuidadora foi visível nos relatos.

Minha mãe sempre cuidou de mim, então eu quero dar tudo de bom e melhor para ela” (A8).

A relação com minha família é normal, as pessoas mais próximas são minha família e meus parentes (…) me sinto apoiado por eles, principalmente minha mãe e minha tia, a irmã da minha mãe” (A12).

Por outro lado, alguns adolescentes trouxeram frustrações relacionadas à incompreensão da família diante do diagnóstico e do prognóstico da doença, gerando cobranças excessivas e críticas.

A minha avó e alguns familiares meus, aqueles tios idosos que foram criados na roça e acham que tudo tem que ser na marra. Só que aí a gente explica, eles entendem. Quando a pessoa não me aceita ou não gosta de me ver na cadeira eu me afasto, porque é melhor ficar perto das pessoas que fazem bem pra gente” (A14).

Inicialmente a reação dos familiares foi bem difícil, mas hoje em dia todo mundo se acostumou, principalmente minha avó materna, que antes ficava chorando e bem angustiada” (A3).

Os meus familiares me ajudam quando minha mãe precisa trabalhar. Daí eles vêm ficar comigo. No começo eu estranhava, porque não queria ser assim” (A1).

Segundo a percepção do adolescente, a família enfrenta um processo de reorganização e de adoção de estratégias que estimulem a efetivação de uma rede de apoio social, emocional e de ajuda prática ou auxílio financeiro. O apoio social pode ser considerado uma maneira de auxiliar os familiares a administrar os problemas e atuar colaborativamente no sistema de cuidado à saúde.

A doença foi um fator complicador nas relações familiares. Assim, o excesso de trabalho e o tempo despendido no cuidado com o adolescente com lesão medular podem ter interferido no cotidiano e ocasionado sobrecarga em alguns componentes da família, o que poderia ser motivo de outra pesquisa.

Classe 4

Sentimentos e vivências do adolescente com lesão medular

A Classe 4 ocupou o primeiro lugar, analisando sua representação do corpus textual (56 UCI em 234 ou 23,93%), e as palavras com maior qui-quadrado foram: “falar”, “problema”, “ver”, “assim” e “pessoa” (Tabela 2).

No entanto, uma palavra chamou atenção: a maioria dos adolescentes mencionou o termo “se acostumar”, no sentido de que eles próprios se acostumaram com a situação, assim como outras pessoas da família e amigos. Ressalta-se que, diante da reflexão sobre o impacto da LM em suas vidas, muitos ficaram emocionados ao falar do assunto.

Foi até bom porque resultou no meu crescimento de adolescente para adulto, não é mil maravilhas, estou falando justamente o contrário, mas quando você se acostuma até que não é tão difícil quanto as pessoas veem” (A2).

Eu tinha 9 anos, eu estava no Hospital de Base, assim que fiquei sabendo que eu não iria mais mexer a perna, eu fiquei um tempão sem querer falar com ninguém, aí depois eu fui me acostumando” (A1).

Um adolescente citou a experiência de ter pessoas solidárias ao redor, não vivenciando discriminação naquele momento. No entanto, essa vivência não foi a realidade de todos. Alguns relataram situações em que sofreram preconceito e discriminação, até mesmo no meio de pessoas próximas, como familiares e amigos. A pessoa com LM necessita de um meio de locomoção, e a maioria usa cadeira de rodas.

Outro fator estigmatizante foi o uso de fralda, por causa de incontinência urinária e fecal, trazendo constrangimento à pessoa. As lesões de pele e deformidades causadas pela lesão também foram fatores que limitaram, e até mesmo afastaram, o(a) adolescente do convívio social. Essa mudança no comportamento das pessoas ao redor foi sentida e vivenciada pelo(a) jovem com LM.

Teve uma vez que nenhum sapato dava no aparelho. Eu chorei dentro da loja. Daí quando eu vim para cá (Sarah) eles fizeram um aparelho muito melhor (…) hoje o sapato que eu quero eu uso” (A8).

Meus familiares são muito pacientes, eles sempre tentam ver pelo outro lado, então eles sempre buscam diversas formas de mudar aquele cenário de que não é acessível” (A7).

No entanto, na visão do adolescente, a família muitas vezes superestimou as dificuldades e não acreditava que ele poderia superá-las, o que nem sempre foi verdade. E, assim, o capacitismo foi identificado exatamente em atitudes de pessoas próximas do adolescente, ainda que sem intenção de magoá-lo ou entristecê-lo. O familiar agiu de modo que pareceu não acreditar que o jovem seria capaz. Verificou-se tal comportamento expresso em falas dos adolescentes quando referiram recusar a ajuda de outros ou quando afirmaram serem capazes de se conduzir sozinhos.

Para eles é bem mais difícil do que o que eu passo, eu não sinto tanta dificuldade assim (…) por exemplo, meu pai achava que eu nunca poderia vestir calça jeans porque achava que apertaria muito, porque eu iria ter que usar fralda sempre” (A2).

Eles acham que é bem mais difícil do que o que eu realmente passo, eles querem me proteger… para o lado do bem, claro, são os pais” (A2).

A igreja, a comunidade religiosa e as diversas formas de ver Deus foram fatores importantes nas inter-relações das pessoas. Na visão de alguns adolescentes, a fé desencadeou sentimentos de esperança, importante para enfrentar a doença. Algumas vezes, no entanto, a fé de seus familiares trouxe expectativas irrealistas sobre o progresso dos adolescentes. Em contrapartida, a forma de nomear a LM proporcionou melhor enfrentamento para adolescentes e família, visto que suavizou a maneira de perceber o problema.

“Ao mesmo tempo que estou aprendendo, eu estou ensinando para as outras pessoas. Meus familiares falam para eu fazer minha parte que Deus vai fazer a parte dele” (A4).

“Lesão medular é um termo estranho para mim, eu digo que é um rompimento da medula” (A7).

O ciúme foi citado por uma adolescente. Entretanto, ressaltou que tal sentimento não foi evidenciado no seio de sua família, uma vez que ela se sente cercada de proteção e segurança.

Como eu nasci com um problema, minha mãe dá mais atenção para mim. Porém, meu irmão e minha irmã nunca tiveram ciúmes” (A8).

O bullying (palavra inglesa incorporada na linguagem cotidiana que se refere a atitudes ameaçadoras para intimidar ou dominar outra pessoa, utilizada principalmente entre crianças e adolescentes) foi mencionado por duas adolescentes que passaram por essas situações na escola, por meio de chacota em razão da deformidade no pé: elas relataram xingamentos, apelidos por causa da obesidade e até mesmo do uso de cadeira de rodas. Os relatos revelaram, por outro lado, o apoio de pessoas da escola e de irmãos para lidar com esses atos. Independência e autonomia foram os meios encontrados pelas adolescentes para enfrentar o bullying.

Só meu pé que a pessoa, às vezes olha, aí mexe [critica], alguma coisa assim ou faz brincadeira (…) não posso usar salto, e meu sonho é usar salto” (A8).

Eles [irmãos] sempre me ajudaram em tudo na escola. Quando eu sofria bullying, quem me ajudava era minha irmã (…) sempre me deram o maior apoio” (A8)

Nem sempre os adolescentes revelaram sentimentos positivos e de felicidade. Há momentos em que relataram desânimo, tristeza, desesperança e chegaram a reportar depressão e ideação suicida. Comumente, por causa da perda funcional, observa-se o fenômeno de luto após a lesão medular, acompanhado de sentimentos de raiva, culpa, baixa autoestima, ansiedade e solidão. O apoio familiar diante das dificuldades foi um meio de buscar forças e suporte emocional, melhorando o enfrentamento para seguir a vida.

Tentei morrer, já peguei uma faca… aí minha mãe chegou na hora e viu e não deixou. Já pedi pra comprar uma faca, também pra tentar, mas não deu certo (…) porque pra mim tenho ânimo de nada… perdi toda vontade de querer viver, vontade de sorrir, eu perdi, depois que eu fiquei assim, poder ver assim, como eu jogava bola e hoje não consigo mais” (A9).

Não é normal. Não sou normal como as outras pessoas” (A11).

Ter que se acostumar com uma nova vida é complicado. Tipo, psicologicamente. Baixa autoestima. Fico sempre para baixo, com um pouquinho de depressão. Tem um sintoma específico dentro da depressão que é tipo um desânimo na minha vida” (A3).

Classe 5

Rotina do adolescente com lesão medular

A Classe 5 ocupou o último lugar (empatando com a Classe 3), analisando sua representação do corpus textual (39 UCI em 234 ou 16,67%), e as palavras com maior qui-quadrado foram “escola”, “rotina”, “acordo”, “organizar” e “tarde” (Tabela 2). A rotina foi importante na vida dos adolescentes, possibilitando-lhes organizar seus pensamentos e afazeres, que agora estão incorporados a outras atividades relacionadas à doença. Quando questionados sobre quem organizou essa rotina, a maioria dos adolescentes afirmou que foram eles mesmos quem organizaram, com exceção de um jovem, que afirmou ter sido a mãe quem organizou a rotina em horários marcados no celular.

Os adolescentes tendem a ter uma rotina intercalada entre afazeres escolares, sociais e pessoais. Ao relatar sua rotina, os jovens falaram sobre escola, cuidados pessoais, relacionando família e momentos de lazer, mostrando uma realidade muito semelhante à de um adolescente sem deficiência.

Eu que organizei e acho organizada sim. Final de semana não é igual… eu vou pra casa da minha avó, ficamos lá brincando um com o outro, com meus primos” (A12).

Coloco os horários no celular. Quanto a lazer, eu não gosto muito de sair. Prefiro sair nos finais de semana” (A1)

A minha rotina se baseia em ir pra escola, daí eu chego em casa na hora do almoço, depois faço meu cateterismo. As tardes são livres, assisto filme e gosto de sair de noite” (A7).

Discussão

A questão explorada neste estudo foi a compreensão, à luz da bioética, da percepção de adolescentes com LM sobre sua autonomia, especialmente no que diz respeito à autonomia relacional e aos processos de tomada de decisão compartilhada e no cuidado centrado no paciente no contexto de um programa de reabilitação. A partir das cinco classes temáticas identificadas, analisaram-se relatos dos próprios adolescentes.

Entre os participantes, mais da metade manteve os níveis escolares conforme o esperado. Alguns adolescentes apresentaram repetência escolar devida a períodos de internação e ausência escolar, prejudicando o desempenho acadêmico. Uma adolescente referiu que precisava sair da sala de aula para fazer o cateterismo vesical e, quando voltava, o professor não repetia as explicações e não lhe dava a oportunidade de tirar dúvidas, fato que a levava a se perceber em desvantagem em relação aos colegas de sala.

De acordo com Martini e colaboradores 1111 Martini AC, Schoeller SD, Forner S, Nogueira GC. Abordagem multiprofissional do cuidado à pessoa com lesão medular. In: Schoeller SD, Martini AC, Forner S, Nogueira GC, organizadores. Abordagem multiprofissional em lesão medular: saúde, direito e tecnologia [Internet]. Florianópolis: IFSC; 2016 [acesso 24 mar 2022]. p. 11-5. Disponível: https://bit.ly/3bNGHZA
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, relatórios da OMS descrevem que crianças com LM são menos propensas a começar ou avançar em sua vida acadêmica, o que corrobora esse fato exemplificado. Entretanto, sabe-se que a educação é um bem social, e a importância que o Estado e a sociedade dispensam às crianças serve como parâmetro para promover justiça social.

Diante das mudanças que ocorreram na vida dos adolescentes e familiares após a LM, os participantes expuseram como fatores mais impactantes: interrupção súbita e inesperada de seus planos de vida e dependência de terceiros para atividades do dia a dia, considerando que os adolescentes pensavam no conceito de autonomia no aspecto funcional, mais voltado à independência. Alguns revelaram como se sentiram com a perda da autonomia: desde sair da cama, passar para a cadeira, ir ao banheiro sozinho(a) e sair na rua sozinho(a).

A interação com outras pessoas que vivenciaram a mesma condição, as relações familiares e o programa de reabilitação foram importantes para a troca de experiências, sentimentos e informações, visto que, em outros ambientes, o adolescente foi considerado “o diferente”. A estigmatização e a discriminação foram observadas e podem gerar isolamento social, segregação e ambientes hostis, em uma fase na qual o jovem necessita estar em grupos de identificação e pertencimento.

Neste estudo, observou-se que os adolescentes que passaram pelo programa de reabilitação incorporaram em sua rotina cuidados que foram ensinados durante o programa, como autocateterismo vesical. Outros cuidados, como banho, repouso, lazer, relacionamentos familiares e com amigos também foram descritos como importantes no cotidiano dos jovens. A maioria dos participantes descreveu a rotina como boa e organizada. De acordo com o observado nos relatos, foram diversos os desafios enfrentados diariamente pelos adolescentes com LM que limitaram sua autonomia. A rotina desses jovens passa, então, por uma reestruturação.

Relatos que valorizaram participação em decisões relacionadas ao tratamento, bem como tomada de decisão compartilhada, contribuíram para construir o conceito de autonomia. Os adolescentes citaram a autonomia como algo que estavam conquistando, mesmo que fosse pequena, como decisões sobre o que comer, o que vestir, a hora de dormir etc. Mesmo nas pequenas atividades diárias, os participantes reconheceram que, ao realizar tais atividades sozinhos ou ao tomar decisões, estavam exercendo sua autonomia.

O estudo mostrou a mãe como cuidadora principal. Guimarães afirma que o cuidado quando analisado no contexto familiar e nas relações sociais mais próximas do deficiente é uma tarefa exercida por mulheres (…). Algumas cuidadoras enfrentam o desafio de conciliação entre trabalho remunerado fora do lar e cuidado do deficiente1717 Guimarães R. Gênero e deficiência: um estudo sobre as relações de cuidado. In: Diniz D, Santos W, organizadores. Deficiência e discriminação. Brasília: Letras Livres; 2010. p. 211-2..

A importância de os pais estimularem a participação do adolescente na tomada de decisão refletiu-se nas falas dos jovens, quando foi valorizada sua opinião sobre determinado assunto. Esses relatos corroboraram o conceito de autonomia relacional, que, de acordo com Albuquerque, é dinâmica (…) na medida em que se entrelaçam com suas relações pessoais e consistem em experiências vividas 1212 Albuquerque A. Capacidade jurídica e direitos humanos. Rio de Janeiro: Lumen Juris; 2018. p. 89.. As experiências vividas pela pessoa geram novas maneiras de enfrentar conflitos éticos e morais, mudando sua forma de pensar.

A falta de acessibilidade impediu ou dificultou o adolescente com deficiência de exercer seu direito de ir e vir, assim como edificações inadequadas e banheiros não adaptados. Um jovem respondeu que a falta de ônibus adaptado estava impedindo sua autonomia, visto que era a única coisa que ele não conseguia: subir no ônibus sem adaptação. Não foi a LM que interferiu na vida desse adolescente, mas, sim, as barreiras que ele encontrou em seu caminho. Segundo Barbosa, Santos e Silva, o transporte coletivo acessível é uma das reivindicações recorrentes (…) é uma das formas de garantia de direito à mobilidade (…) quando esse direito não está garantido, pode inviabilizar também o acesso a outros direitos, como o direito à saúde e à educação 1818 Barbosa L, Santos W, Silva R. Discriminação das pessoas com deficiência: um estudo no Distrito Federal. In: Diniz D, Santos W, organizadores. Deficiência e discriminação. Brasília: Letras Livres; 2010. p. 178..

As falas foram importantes para verificar que, quanto ao acesso a programas de reabilitação e a insumos básicos, como medicações, material para cateterismo e outros materiais para cuidados pessoais, o Estado tem cumprido parcialmente o papel como provedor desses materiais. Entretanto, há muito o que fazer ainda, pois, mesmo com a constante luta pelos direitos da pessoa com deficiência e contra a discriminação, observam-se situações em que perduram a injustiça social, retirando o poder de manifestação, participação e acesso a bens e serviços, provocando a marginalização das pessoas 1818 Barbosa L, Santos W, Silva R. Discriminação das pessoas com deficiência: um estudo no Distrito Federal. In: Diniz D, Santos W, organizadores. Deficiência e discriminação. Brasília: Letras Livres; 2010. p. 178.,1919 Machado ILO, Garrafa V. Vulnerabilidade social e proteção: um olhar a partir da bioética de intervenção. Rev Bras Bioét [Internet]. 2019 [acesso 29 mar 2020];14(ed. sup):19. DOI: 10.26512/rbb.v14iedsup.24127
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.

Shakespeare 2020 Shakespeare T. Disability: the basics [Internet]. London: Routledge; 2017 [acesso 15 jan 2021]. DOI: 10.4324/9781315624839
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menciona a estratégia política no caso da remoção de barreiras como meio de desmantelar obstáculos incapacitantes e, assim, promover a inclusão de pessoas com deficiência como estratégia de transformação social. O autor refere, também, que a discriminação poderia ser combatida por meio dos direitos civis e das leis de igualdade de oportunidades e relações raciais – como a solução final. Para tanto, as políticas públicas devem ser formuladas com o intuito de abarcar esse grupo etário, a fim de potencializar a autonomia do adolescente a partir do contexto sociorrelacional no qual ele vive.

Entre as limitações deste estudo, destaca-se o fato de o número de adolescentes ter sido reduzido. Ademais, a pesquisa foi realizada em apenas uma instituição de saúde, cujo modelo de atenção prima pela filosofia do cuidado, de modo que os relatos ficaram restritos à proposta assistencial e filosófica dessa instituição. Sugere-se que em estudos futuros se amplie a pesquisa para outros centros de reabilitação e contextos de vida, visando à comparação com realidades distintas, assim como estudos empíricos envolvendo familiares de adolescentes e profissionais de saúde, por exemplo, não abordados nesta investigação.

Considerações finais

Autonomia é uma capacidade socialmente construída, ou seja, seu exercício pelo adolescente ocorre a partir da integração do elemento relacional. Em razão de sua especial condição de pessoa vulnerável, deve-se reconhecer que autonomia não significa apenas obter do adolescente seu consentimento informado. Mais do que isso, profissionais da saúde devem estar atentos às condições que afetam a capacidade de tomar decisões autônomas e que mitigam sua vontade de participar do tratamento.

Na construção da autonomia do adolescente com LM, além de ele lidar com os conflitos próprios da idade e aqueles intrínsecos à doença, ainda enfrenta situações desnecessárias, barreiras extrínsecas, vez que a própria sociedade não evoluiu suficientemente ao ponto de garantir seus direitos.

Os adolescentes relacionaram autonomia a independência. No entanto, em suas falas, identificaram-se outras formas de relacionamentos que também remetem à autonomia, ampliando os conceitos para suas atividades cotidianas, o que corroborou o modelo da autonomia relacional. Portanto, considerou-se adequada a utilização desse conceito no contexto do adolescente com LM.

Na análise da percepção dos adolescentes, foi possível confrontar os pressupostos bioéticos da AR, a partir do referencial dos DHP, como ferramentas para construir a autonomia como projeto de vida. Entretanto, a autonomia progressiva, relacional, construída na medida que se ganham níveis de independência, confiança e liberdade, pode ser considerada. Vale ressaltar que não se deve desvincular a autonomia do contexto relacional em que o adolescente vive. Portanto, é necessário estabelecer uma rede de proteção que impeça os relacionamentos paternalistas, meio social repressivo e políticas institucionais inadequadas, pois prejudicam o desenvolvimento e o exercício da autonomia.

No modelo social, a deficiência não impede o exercício dos DHP, mas, sim, todas as barreiras que impõem restrições às pessoas com deficiência: preconceito, discriminação, edifícios públicos e sistemas de transportes inacessíveis, educação segregada, entre outros. O modelo de direitos humanos abrange os valores para uma política que reconhece a dignidade humana das pessoas com deficiência.

  • Aprovação CEP-APS 3.832.378

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Apêndice 

Roteiro de entrevista semiestruturado Roteiro de entrevista semiestruturada

Perguntas direcionadas ao adolescente:

  1. Como é a sua rotina? Você a considera organizada ou não organizada?

  2. Como é a sua relação com seus familiares? Você se sente apoiado por eles?

  3. O que significa ter lesão medular para você?

  4. Quais sintomas te afetam mais?

  5. Como a lesão medular interfere na sua vida pessoal e escolar?

  6. Como é a reação dos seus familiares diante das suas limitações causadas pela lesão medular?

  7. De que forma o acompanhamento no Hospital Sarah te ajuda?

  8. De que forma você participa das decisões quanto ao seu tratamento?

  9. Na sua opinião, como o(a) enfermeiro(a) contribui para o seu acompanhamento?

  10. O que você entende por autonomia?

  11. Em quais situações você exerce sua autonomia?

  12. De que forma o programa de reabilitação ajudou você a ter autonomia?

  13. Você gostaria de expressar algum comentário sobre o tema?

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    28 Nov 2022
  • Data do Fascículo
    Jul-Sep 2022

Histórico

  • Recebido
    09 Set 2021
  • Revisado
    31 Maio 2022
  • Aceito
    02 Jun 2022
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