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Prevenção e manejo do suicídio: a perspectiva de futuros médicos

Resumo

O suicídio tem adquirido progressiva importância nas reflexões bioéticas, constituindo temática multifatorial que suscita importantes debates para o ensino e a prática médica, em especial no que se refere à autonomia e à vulnerabilidade. Com o intuito de problematizar o assunto no campo da educação médica, este estudo pretendeu compreender a opinião de acadêmicos do curso de medicina acerca do tema, por meio de questionário semiestruturado aplicado a 188 acadêmicos de ambos os sexos, matriculados em universidade pública estadual. Os achados reforçam a importância do preparo pessoal e acadêmico em intervenções junto a pessoas em risco de suicídio, entretanto a visibilidade dessa temática na formação de futuros médicos ainda é um desafio, particularmente quando se considera a importância de ações educativas e preventivas nesse cenário.

Suicídio; Estudantes de medicina; Educação médica; Bioética

Abstract

Suicide has acquired progressive importance in bioethical reflections, constituting a multifactorial theme that raises important debates for medical teaching and practice, especially regarding autonomy and vulnerability. To investigate the topic in the field of medical education, this study sought to understand the opinion of medical students on the subject. Data were collected by a semi-structured questionnaire applied to 188 students (all genders) enrolled in a public state university. The findings reinforce the importance of personal and academic preparation through interventions with people at risk of suicide. However, the topic of suicide is still little discussed during the training of future physicians, particularly considering the importance of educational and preventive actions in this scenario.

Suicide; Students, medical; Education, medical; Bioethics

Resumen

El suicidio ha ganado espacio en las reflexiones bioéticas al ser tema multifactorial de debate para la enseñanza y la práctica médica, sobre todo en lo que se refiere a la autonomía y la vulnerabilidad. Para tratar este tema desde el campo de la educación médica, este estudio tuvo como objetivo conocer qué piensan los estudiantes de medicina sobre el tema; para ello se aplicó un cuestionario semiestructurado a 188 académicos de ambos sexos, matriculados en una universidad pública estatal. Los hallazgos destacan la importancia de la preparación personal y académica en las intervenciones con personas en riesgo de suicidio, sin embargo, el planteamiento de este tema en la formación de los futuros médicos sigue siendo un desafío, particularmente cuando se considera la importancia de las acciones educativas y preventivas en este escenario.

Suicidio; Estudiantes de medicina; Educación médica; Bioética

A motivação para o suicídio se entrelaça a um conjunto de fatores complexos, incluindo o cenário social e cultural, além de fatores econômicos e psicológicos 11. Ribeiro J, Mascarenhas T, Araújo A, Coelho D, Branca S, Coelho D. Sociodemographic profile of suicide mortality. J Nurs UFPE on line [Internet]. 2018 [acesso 22 set 2022];12(1):44-50. DOI: 10.5205/1981-8963-v12i01a25087p44-50-2018. No campo da saúde, o assunto é debatido como uma espécie de violência autoinfligida, com destaque para sua íntima relação com transtornos afetivos, atualmente considerados desencadeadores ou potencializadores do sofrimento psíquico, assim como fatores de riscos para sua ocorrência 22. Albuquerque A, Boeira L, Lima L, Ayres T. Os direitos humanos de pacientes em risco de suicídio no Brasil. Cad Ibero Am Direito Sanit [Internet]. 2019 [acesso 22 set 2022];8(1):1-163. DOI: 10.17566/ciads.v8i1.523.

Dada sua complexidade, o tema tem sido objeto de inúmeros estudos e pesquisas interdisciplinares, tanto na sociologia e no direito como na psicologia e na medicina 33. Sousa GS, Silva RM, Figueiredo AEB, Minayo CS, Vieira LJES. Circunstâncias que envolvem o suicídio de pessoas idosas. Interface (Botucatu) [Internet]. 2014 [acesso 22 set 2022];18(49):389-402. DOI: 10.1590/1807-57622013.0241. Os estudos visam produzir respostas sobre o suicídio, incluindo a compreensão de suas causas e correlatos, além de incentivo a medidas de enfrentamento do problema 33. Sousa GS, Silva RM, Figueiredo AEB, Minayo CS, Vieira LJES. Circunstâncias que envolvem o suicídio de pessoas idosas. Interface (Botucatu) [Internet]. 2014 [acesso 22 set 2022];18(49):389-402. DOI: 10.1590/1807-57622013.0241.

Nesse contexto, a bioética, como um campo de reflexão interdisciplinar que alia conhecimento biológico a reflexão dos valores do ser humano, tem problematizado cada vez mais o tema do suicídio, com um enfoque prioritário em questões relacionadas a autonomia e vulnerabilidade 44. Daolio E. Suicídio: um alerta para uma sociedade autodestrutiva. Saúde Colet [Internet]. 2010 [acesso 22 set 2022];7(44):253-8. Disponível: https://bit.ly/3BrBssl
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. O assunto inclui temas polêmicos e questões éticas e legais relevantes, no âmbito tanto da saúde individual como no da coletiva, fazendo emergir reflexões complexas, inquietantes e nem sempre consensuais sobre o direito de morrer: as pessoas devem ser livres para decidir como desejam morrer? A quem cabe decisões sobre o direito à vida? É eticamente aceitável ajudar alguém a morrer? O suicídio deve ser aceito como a manifestação plena da autonomia do indivíduo 55. Silva TPS, Sougey E, Silva J. Estigma social no comportamento suicida: reflexões bioéticas. Rev. bioét. (Impr.) [Internet]. 2015 [acesso 22 set 2022];23(2):419-26. DOI: 10.1590/1983-80422015232080?

Para os autores que defendem a proteção à vida, cabe considerar as diversas motivações e expressões do suicídio, o que produz um ambiente de inquietações e dúvidas sobre vulnerabilidade e ações preventivas. O suicídio não é um ato isolado, ele é o ponto de chegada de um somatório de fatores, inclusive do direito à liberdade, questionável ou não, de decidir sobre o próprio destino44. Daolio E. Suicídio: um alerta para uma sociedade autodestrutiva. Saúde Colet [Internet]. 2010 [acesso 22 set 2022];7(44):253-8. Disponível: https://bit.ly/3BrBssl
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,55. Silva TPS, Sougey E, Silva J. Estigma social no comportamento suicida: reflexões bioéticas. Rev. bioét. (Impr.) [Internet]. 2015 [acesso 22 set 2022];23(2):419-26. DOI: 10.1590/1983-80422015232080.

As ações de prevenção buscam estimular a autonomia total do indivíduo diante de situações ameaçadoras, para que ele seja capaz de tomar suas decisões de maneira consciente e com liberdade, revertendo sua situação de vulnerabilidade. O fato é que nem sempre as pessoas expõem suas fragilidades, e em não raras vezes o suicídio acaba sendo não somente a expressão do sofrimento, mas, para muitos, sua resolução 44. Daolio E. Suicídio: um alerta para uma sociedade autodestrutiva. Saúde Colet [Internet]. 2010 [acesso 22 set 2022];7(44):253-8. Disponível: https://bit.ly/3BrBssl
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Apesar dos avanços alcançados no sentido de considerar o suicídio um problema de saúde, percebe-se que o estigma relacionado ao tema ainda persiste, alimentado, principalmente, pelo preconceito de que as pessoas afetadas pelo problema são fracas, sem fé ou provenientes de famílias de má índole 66. Kennedy AJ, Brumby SA, Versace VL, Brumby-Rendell T. The ripple effect: a digital intervention to reduce suicide stigma among farming men. BMC Public Health [Internet]. 2020 [acesso 22 set 2022];20:813. DOI: 10.1186/s12889-020-08954-5. Tais estigmas dificultam seu enfrentamento, resultando em discriminação e isolamento, o que pode colaborar para o planejamento e ocorrência de novas tentativas de autoagressão, bem como para o desenvolvimento de outras morbidades, como a maior predisposição ao uso de substâncias psicotrópicas 55. Silva TPS, Sougey E, Silva J. Estigma social no comportamento suicida: reflexões bioéticas. Rev. bioét. (Impr.) [Internet]. 2015 [acesso 22 set 2022];23(2):419-26. DOI: 10.1590/1983-80422015232080.

Infelizmente, as dificuldades para o efetivo enfrentamento da problemática reverberam na atuação dos profissionais de saúde, o que pode tornar mais difícil sua identificação e prevenção 55. Silva TPS, Sougey E, Silva J. Estigma social no comportamento suicida: reflexões bioéticas. Rev. bioét. (Impr.) [Internet]. 2015 [acesso 22 set 2022];23(2):419-26. DOI: 10.1590/1983-80422015232080, culminando em um debate mais moral do que técnico. Além disso, muitos profissionais podem enfrentar problemas para lidar com uma situação para a qual não foram devidamente treinados, gerando sensação de frustração, impotência e revolta, em especial quando sentimentos pessoais não são manejados adequadamente.

Ainda que existam dados sobre o panorama do suicídio na população mundial, a Organização Mundial da Saúde (OMS) 77. World Health Organization. Preventing suicide: a global imperative [Internet]. Geneva: WHO; 2014 [acesso 22 set 2022]. Disponível: https://bit.ly/3GXvFOz
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acredita que os números estejam subestimados em até quatro vezes, em razão da subnotificação ou da inexistência de registros de ocorrência, principalmente em países da África e do Oriente Médio. Contribuem para essa lacuna de informações o preconceito em relação ao tema, ainda considerado um tabu em muitos países, como também a substituição por outras denominações de causa de morte, como acidente automobilístico, afogamento, envenenamento acidental e “morte de causa indeterminada” 88. Botega NJ. Comportamento suicida: epidemiologia. Psicol USP [Internet]. 2014 [acesso 22 set 2022];25(3):231-6. DOI: 10.1590/0103-6564D20140004,99. Machado DB, Santos DN. Suicídio no Brasil, de 2000 a 2012. J Bras Psiquiatr [Internet]. 2015 [acesso 22 set 2022];64(1):45-54. DOI: 10.1590/0047-2085000000056.

Em números absolutos, o Brasil está entre os nove países com mais casos de suicídio, revelando a temática como um grave problema, com elevados custos ao sistema de saúde, isso sem mencionar o número de vidas perdidas 55. Silva TPS, Sougey E, Silva J. Estigma social no comportamento suicida: reflexões bioéticas. Rev. bioét. (Impr.) [Internet]. 2015 [acesso 22 set 2022];23(2):419-26. DOI: 10.1590/1983-80422015232080. Vale ressaltar que a notificação da tentativa ou concretização do suicídio é compulsória em até 24 horas decorridas desde o atendimento na rede pública ou privada de saúde e tem como objetivo o monitoramento e acompanhamento dos casos atendidos nos serviços, visando à prevenção e ao enfrentamento de novas ocorrências 1010. Brasil. Ministério da Saúde. Secretaria de Vigilância em Saúde. Guia de vigilância em saúde [Internet]. 3ª ed. Brasília: Ministério da Saúde; 2019 [acesso 22 set 2022]. Disponível: https://bit.ly/3AW4i3N
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. Apesar disso, ainda parece haver muita dificuldade em manter atualizados os dados epidemiológicos, em grande medida porque nem toda tentativa é devidamente identificada como tal, o que possivelmente aumentaria o número de casos registrados no sistema nacional de monitoramento 1111. Marcolan JF, Silva DA. O comportamento suicida na realidade brasileira: aspectos epidemiológicos e da política de prevenção. Revista M [Internet]. 2019 [acesso 22 set 2022];4(7):31-44. DOI: 10.9789/2525-3050.2019.v4i7.31-44.

Diante da importância do tema no campo da saúde, o suicídio também vem ganhando notoriedade no espaço médico. Corrobora esse interesse o aumento dos casos entre estudantes de medicina, fato mais visível em pesquisas sobre o estresse da formação acadêmica, como resultado da abundante rotina de estudos 1212. Santos HGB, Marcon SR, Espinosa MM, Baptista MN, Paulo PMC. Fatores associados à presença de ideação suicida entre universitários. Rev Latinoam Enfermagem [Internet]. 2017 [acesso 22 set 2022];25:e2878. DOI: 10.1590/1518-8345.1592.2878. Apesar da intensificação de ações preventivas e da divulgação de estratégias de apoio, muitos profissionais se sentem impotentes, sem saber como agir em situações dessa natureza, em que pese a existência de alguns manuais e protocolos de intervenção 1313. Magalhães CA, Neves DMM, Brito LMDM, Leite BBC, Pimenta MMF, Vidal CEL. Atitudes de estudantes de medicina em relação ao suicídio. Rev Bras Educ Méd [Internet]. 2014 [acesso 22 set 2022];38(4):470-6. DOI: 10.1590/S0100-55022014000400008.

Na prática médica, as habilidades de comunicação do médico contribuem para uma intervenção mais adequada perante o risco de suicídio, mas é necessário saber identificar, abordar, manejar e encaminhar aos serviços especializados. Ao contrário das percepções recorrentes no imaginário social, o suicídio pode ser evitado, mas ações eficazes dependem diretamente do tipo de abordagem realizada.

Em muitos serviços de atenção à saúde, observa-se o despreparo dos profissionais para lidar com esse tipo de situação. Isso é resultado de uma formação acadêmica centrada numa perspectiva marcadamente biomédica, com pouca valorização da subjetividade, assim como da baixa capacitação dos técnicos já atuantes 22. Albuquerque A, Boeira L, Lima L, Ayres T. Os direitos humanos de pacientes em risco de suicídio no Brasil. Cad Ibero Am Direito Sanit [Internet]. 2019 [acesso 22 set 2022];8(1):1-163. DOI: 10.17566/ciads.v8i1.523. Tratar o suicídio com a seriedade que o tema requer não é somente uma necessidade, mas um imperativo ético da profissão diante das inúmeras situações que fragilizam e vulnerabilizam a existência humana.

Como estratégia para estimular o debate na formação médica, este estudo foi projetado para investigar a opinião de estudantes do curso de medicina de uma universidade pública estadual sobre o tema, incluindo suas atitudes pessoais e acadêmicas para lidar com a problemática.

Método

O projeto caracterizou-se como estudo descritivo, transversal e exploratório, de metodologia quantitativa e qualitativa, com amostra por conveniência, composta por alunos matriculados no curso de medicina da Universidade do Estado do Pará (Uepa) que aceitaram participar mediante aceite do termo de consentimento livre e esclarecido (TCLE). A pesquisa teve aprovação do Comitê de Ética em Pesquisa (CEP).

O protocolo de pesquisa incluiu questionário semiestruturado com questões abertas e fechadas, algumas formuladas pelas autoras e outras, adaptadas do Questionário de Atitudes em Relação ao Comportamento Suicida (SBQA), de autoria de Botega 88. Botega NJ. Comportamento suicida: epidemiologia. Psicol USP [Internet]. 2014 [acesso 22 set 2022];25(3):231-6. DOI: 10.1590/0103-6564D20140004. As perguntas foram estruturadas para compreender as opiniões, experiências e atitudes pessoais dos acadêmicos em relação ao tema da pesquisa, incluindo seu preparo para intervir junto a indivíduos enfrentando esse processo.

Os dados foram analisados, majoritariamente, por meio de estatística descritiva, utilizando o Microsoft Excel 2010 para apresentação dos resultados em tabelas. Realizou-se, também, análise qualitativa por meio do método da análise de conteúdo de Bardin, com base na sistematização, análise e categorização das respostas obtidas nas perguntas abertas.

Resultados e discussão

Os participantes do estudo cursavam do primeiro ao sexto ano da graduação, com 29 acadêmicos (15,4%) no primeiro, 35 (18,6%) no segundo, 34 (18,1%) no terceiro, 31 (16,5%) no quarto, 28 (14,9%) no quinto e 31 (16,5%) no sexto. A maioria eram mulheres (53,7%). Com relação à idade, a maioria tinha entre 20 e 24 anos (56,3%), abaixo dessa faixa etária eram 23,9%, e acima, 19,8%.

Quanto à religiosidade, 75,5% dos participantes declararam adesão a uma religião, sendo a maioria composta por cristãos católicos (48,8%), cristãos protestantes (12,8%) e espíritas (9%), achado semelhante ao encontrado em outro estudo envolvendo estudantes de medicina do Sudeste 1414. Santana AJ, Vanzella A, Longo GS, Yakabe MF, Progiante SH, Lucchetti G et al. Avaliação da espiritualidade e da religiosidade dos estudantes de medicina e implicações frente a sua formação médica. Arq Ciênc Saúde [Internet]. 2010 [acesso 22 set 2022];17(supl 1):1-20. Disponível: https://bit.ly/3hhBPia
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. A Tabela 1 apresenta informações sobre como os estudantes percebem a influência da religião em suas decisões.

Tabela 1
Relação entre as religiões dos estudantes de medicina e a importância da religiosidade em suas decisões

Entre os participantes, 46,4% consideram a religião um fator importante ou muito importante ao tomar uma decisão, mas 36,7% a consideram pouco importante ou irrelevante. Resultados similares foram encontrados em pesquisa realizada com médicos nos Estados Unidos 1515. Robinson K, Cheng M, Hansen P, Gray R. Religious and spiritual beliefs of physicians. J Relig Health [Internet]. 2017 [acesso 22 set 2022];56(1):205-25. DOI: 10.1007/s10943-016-0233-8. Ainda a esse respeito, percebeu-se que a importância da religiosidade na tomada de decisões é maior entre os cristãos protestantes do que nos demais grupos, sendo também considerável entre católicos, espíritas e praticantes de outras religiões.

A influência de crenças religiosas sobre a percepção do suicídio é importante, pois a religião pode interferir na visão do médico sobre a temática e, consequentemente, em sua abordagem clínica, ainda que de maneira não intencional. Por exemplo, nas religiões monoteístas predomina o princípio da sacralidade da vida, logo, o suicídio costuma ser concebido como um atentado a Deus 1616. Cardoso MTF. No sentido da vida: em diálogo com a prevenção de suicídio. Atualidade Teológica [Internet]. 2011 [acesso 22 set 2022];(38):315-34. DOI: 10.17771/PUCRio.ATeo.20327. Ou seja, as decisões sobre a extinção da vida não pertencem ao indivíduo, porque a vida é considerada um bem sagrado.

Autonomia

Quando questionados se o suicídio deve ser compreendido como expressão de liberdade e autonomia, a maioria dos participantes discordou total ou parcialmente da afirmação (62,2%), sendo que 24,5% concordam total ou parcialmente e 13,3% não se posicionaram. De fato, o suicídio como expressão de autonomia individual é tema controverso, haja vista que o indivíduo não é necessariamente independente em suas escolhas 1717. Silva AJ, Santos JS, Santos AP. O princípio da autonomia e a bioética na fase terminal. In: Anais do Congresso Internacional de Enfermagem; 9-12 maio 2017; Aracaju. Aracaju: Universidade Tiradentes; 2017..

Isso ocorre porque muitas pessoas que o idealizam o fazem por motivações inconscientes e, também, como tentativa de cessar algum tipo de sofrimento preexistente. De maneira geral, a impossibilidade de enfrentar as pressões, sejam elas externas ou internas, pode afetar as possibilidades de autodeterminação 1818. Marques Filho J, Hossne WS. A relação médico-paciente sob a influência do referencial teórico bioético da autonomia. Rev. bioét. (Impr.) [Internet]. 2015 [acesso 22 set 2022];23(2):304-10. DOI: 10.1590/1983-80422015232069 e o exercício da racionalidade 1919. Silva JAC. O fim da vida: uma questão de autonomia. Nascer Crescer [Internet]. 2014 [acesso 22 set 2022];23(2):100-5. Disponível: http://bit.ly/3VlOek7
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, potencializando a intensificação das ideias suicidas.

Uma perspectiva muito difundida no meio médico encontra sustentação na íntima associação entre comportamento suicida e transtornos mentais, como variáveis que aumentam a vulnerabilidade do indivíduo e estão presentes em grande parte dos casos 2020. Ferreira ML, Vargas MAO, Rodrigues R, Trentin D, Brehmer LCF, Lino MM. Comportamento suicida e atenção primária à saúde. Enferm Foco [Internet]. 2018 [acesso 22 set 2022];9(4):50-4. DOI: 10.21675/2357-707X.2018.v9.n4.1803. Entretanto, o tema suscita debates por parte daqueles que defendem o direito de tirar a própria vida como um ato de liberdade e autonomia, desde que não envolva a vida de terceiros 2121. Liba YHAO, Lemes AG, Oliveira PR, Nascimento VF, Fonseca PIMN, Volpato RJ et al. Percepções dos profissionais de enfermagem sobre o paciente pós-tentativa de suicídio. J Health NPEPS [Internet]. 2016 [acesso 22 set 2022];1(1):109-2. DOI: 10.30681/25261010
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. No Brasil, a tentativa ou o cometimento de suicídio não são tipificados como crime, entretanto o artigo 122 do Código Penal tipifica como crime Induzimento, instigação ou auxílio a suicídio ou a automutilação 2222. Brasil. Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940. Código Penal. Diário Oficial da União [Internet]. Rio de Janeiro, 31 dez 1940 [acesso 26 dez 2022]. Disponível: https://bit.ly/3PVRaBX
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.

Assim, os participantes foram questionados sobre se concordavam ou discordavam da frase “a vida é um dom divido e só Deus tem direito de intervir nela”. Do total de participantes, 67 (35,6%) declararam concordar total ou parcialmente com a afirmativa, sendo eles 52 cristãos, cinco espíritas, seis identificados com outras religiões, três ateus/agnósticos e apenas um não se declarando de alguma religião. Entre esses participantes que acreditavam na sacralidade da vida, 79,1% consideravam a religião importante ou muito importante na tomada de suas decisões.

Ainda assim, apesar do fato de a maioria dos pesquisados serem pessoas religiosas, 47,9% dos participantes da pesquisa discordaram da afirmativa, e, desse total, a maioria não tinha religião ou se declaravam ateus/agnósticos, mas um terço deles eram católicos.

Suicídio na formação médica

Médicos estão preparados para intervir?

Um aspecto muito importante a ser considerado nas intervenções médicas é a necessidade de quebra de sigilo médico em caso de suspeita ou confirmação de tentativa de suicídio, haja vista que se trata de condição de notificação compulsória por parte de profissionais de saúde. Do total dos participantes, 64,7% afirmaram concordar total ou parcialmente, 16,6% mantiveram-se neutros e 18,7% discordaram total ou parcialmente da quebra de sigilo médico. Tais achados precisam ser valorizados, pois, mesmo que os participantes ainda estejam com sua formação acadêmica em andamento, a identificação das situações de notificação compulsória constitui assunto a ser abordado desde os primeiros anos do curso, inclusive nos conteúdos relacionados à ética médica 2323. Villas-Bôas ME. O direito-dever de sigilo na proteção ao paciente. Rev. bioét. (Impr.) [Internet]. 2015 [acesso 22 set 2022];23(3):513-22. DOI: 10.1590/1983-80422015233088.

Pesquisas demonstram que grande parte das pessoas que tentaram suicídio tiveram uma consulta médica anterior ao episódio 2424. Godoy VP, organizador. Suicídio: compreender, identificar e intervir. São Paulo: Sociedade Brasileira de Neuropsiquiatria; 2018., de tal modo que surge a pergunta: será que os profissionais estão sendo capazes de escutar seus pacientes e, consequentemente, identificar, em suas narrativas, sinais indicativos de ideação suicida? Vale dizer que não se trata somente de quebrar o sigilo, mas de ofertar alternativas de ajuda, incluindo encaminhamento a serviços especializados.

Atendimento e comunicação

Cerca de 48,1% dos participantes concordam totalmente com a afirmativa “sinto-me disposto como pessoa a ajudar uma pessoa com risco suicida” (Tabela 2), 35,3% concordaram parcialmente, 10,2% mantiveram-se neutros e apenas 6,4% discordaram total ou parcialmente. Entretanto, sabe-se que o desejo de ajudar nem sempre se materializa em ações concretas, em função do desconhecimento e do preconceito relacionado ao assunto. Persistem no imaginário social as representações que associam suicídio a fracasso, falta de fé e, em alguns casos, “má índole” do indivíduo, fazendo que muitas pessoas não queiram se aproximar para ajudar 55. Silva TPS, Sougey E, Silva J. Estigma social no comportamento suicida: reflexões bioéticas. Rev. bioét. (Impr.) [Internet]. 2015 [acesso 22 set 2022];23(2):419-26. DOI: 10.1590/1983-80422015232080.

Tabela 2
Atitudes dos acadêmicos de medicina ao lidar com a ideação suicida

Estudos apontam que há um percurso a ser percorrido, incluindo ideação, planejamento, tentativa e consumação do ato 2424. Godoy VP, organizador. Suicídio: compreender, identificar e intervir. São Paulo: Sociedade Brasileira de Neuropsiquiatria; 2018.. Para aqueles que exercem na relação médico-paciente a escuta atenta, um simples gesto pode ser mais significativo que as palavras. Assim, ao serem questionados sobre seu futuro profissional e sua intenção de ajudar uma pessoa com risco suicida (Tabela 2), cerca de 64,9% dos participantes concordaram completamente e nenhum discordou totalmente dessa afirmação.

Esse posicionamento positivo em relação à temática também foi encontrado no estudo de Magalhães e colaboradores 1313. Magalhães CA, Neves DMM, Brito LMDM, Leite BBC, Pimenta MMF, Vidal CEL. Atitudes de estudantes de medicina em relação ao suicídio. Rev Bras Educ Méd [Internet]. 2014 [acesso 22 set 2022];38(4):470-6. DOI: 10.1590/S0100-55022014000400008, realizado com estudantes de medicina, que evidenciou atitudes positivas de acadêmicos no período pós-clínico da graduação, em especial por apresentaram maior conhecimento e consequente menor preconceito para com os pacientes. Tal disponibilidade é extremamente importante no contexto da educação médica, pois estimula habilidades pessoais e a proposição de intervenções mais eficazes.

Quando questionados quanto a sua opinião sobre a afirmativa “não acho correto fazer perguntas sobre ideação suicida, pois pode incentivar o paciente”, 54,3% dos participantes discordam totalmente da sentença, 30,3% discordam apenas parcialmente e 9% mantiveram-se neutros. Apesar do receio em abordar questões relacionadas à presença de ideação suicida, por ser uma temática considerada “incômoda” por muitas pessoas, é importante ressaltar que conversar sobre o assunto é essencial, principalmente porque muitos indivíduos suicidas entraram em contato com um médico antes da consumação do ato 2424. Godoy VP, organizador. Suicídio: compreender, identificar e intervir. São Paulo: Sociedade Brasileira de Neuropsiquiatria; 2018..

Considerações finais

A temática do suicídio no contexto das reflexões bioéticas revela inúmeros questionamentos, muitos dos quais permanecem ainda sem resposta. Entretanto, o preconceito e o estigma relacionados ao tema precisam ser enfrentados para que o assunto adquira a visibilidade que merece. Assim, o suicídio deve estar inserido no conteúdo da educação médica, de modo que os futuros profissionais sejam capazes de identificar riscos e intervir precocemente na delicada tarefa de cuidar de vidas humanas.

Referências

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  • Aprovação CAAE 91076518.8.0000.5174

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    20 Fev 2023
  • Data do Fascículo
    Oct-Dec 2022

Histórico

  • Recebido
    9 Set 2021
  • Revisado
    22 Set 2022
  • Aceito
    25 Set 2022
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