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Elaboração e validação da Escala Brasileira de Percepção sobre Eutanásia

Resumo

Esta pesquisa buscou elaborar um instrumento para identificar a percepção de enfermeiros sobre eutanásia e testar suas evidências de validade de conteúdo, processo de resposta, estrutura interna e confiabilidade. Realizou-se estudo psicométrico por meio de avaliação empreendida por comitê de juízes, pré-teste e validação. O processo de validação incluiu 821 enfermeiros. Realizaram-se análises fatoriais exploratórias e confirmatórias. Elaboraram-se 55 itens com base em revisão de literatura e, após análise por juízes, as alterações sugeridas foram aplicadas, e todos os itens apresentaram concordância acima de 80% entre os avaliadores. As análises fatoriais exploratória e confirmatórias indicaram um ajuste satisfatório de um modelo bidimensional e bons índices de confiabilidade (α=0,85; Ω=0,89). A escala de 12 itens demonstrou boas evidências de validade e confiabilidade, podendo ser utilizada para mensurar a percepção sobre eutanásia por enfermeiros.

Eutanásia; Psicometria; Ética em enfermagem; Estudo de validação; Bioética; Conhecimentos, atitudes e prática em saúde; Percepção social

Abstract

This research elaborated an instrument to identify nurses’ perception on euthanasia and test its content validity, response process, internal structure and reliability evidences. A psychometric study was conducted through evaluation by a committee of judges, pre-test, and validation. The latter step included 821 nurses. Exploratory and confirmatory factor analyses were performed. A total of 55 items were elaborated based on a literature review. After review by judges and applying the suggested changes, all items showed agreement above 80% between evaluators. Exploratory and confirmatory factor analyses indicated a satisfactory fit of a two-dimensional model and good reliability indices (α=0.85; Ω=0.89). The 12-item scale showed good validity and reliability evidences, and can be used to measure nurses’ perception on euthanasia.

Euthanasia; Psychometrics; Ethics, nursing; Validation study; Bioethics; Health knowledge, attitudes, practice; Social perception

Resumen

Esta investigación buscó desarrollar un instrumento para identificar la percepción del profesional enfermero sobre la eutanasia y probar su evidencia de validez de contenido, proceso de respuesta, estructura interna y confiabilidad. Se realizó un estudio psicométrico mediante la evaluación realizada por un comité de jueces, pretest y validación. El proceso de validación incluyó a 821 enfermeros. Se realizaron análisis factoriales exploratorios y confirmatorios. Se elaboraron 55 ítems con base en una revisión de la literatura y, luego del análisis de los jueces, se aplicaron las modificaciones sugeridas, y todos los ítems mostraron concordancia superior al 80% entre los evaluadores. Los análisis factoriales exploratorio y confirmatorio indicaron un ajuste satisfactorio de un modelo bidimensional y buenos índices de confiabilidad (α=0,85; Ω=0,89). La escala de 12 ítems mostró buena evidencia de validez y confiabilidad y puede ser utilizada para medir la percepción del personal enfermero sobre la eutanasia.

Eutanasia; Psicometría; Ética en enfermería; Estudio de validación; Bioética; Conocimientos, actitudes y práctica en salud; Percepción social

Os enfermeiros, durante seu dia a dia profissional, frequentemente enfrentam situações conflituosas e precisam estar preparados para lidar com estas de maneira crítica e responsável 11. Kovács MJ. Bioethics concerning life and death. Psicol USP [Internet]. 2003 [acesso 24 out 2022];14(2):115-67. DOI: 10.1590/S0103-65642003000200008 . O posicionamento ético é especialmente difícil em situações que envolvem vida e morte, pelo fato de os valores de ordem bioética, moral, familiar e religiosa de todos os envolvidos permearem as decisões a serem tomadas 11. Kovács MJ. Bioethics concerning life and death. Psicol USP [Internet]. 2003 [acesso 24 out 2022];14(2):115-67. DOI: 10.1590/S0103-65642003000200008 , 22. Georges JJ, Grypdonck M. Moral problems experienced by nurses when caring for terminally ill people: a literature review. Nurs Ethics [Internet]. 2002 [acesso 24 out 2022];9(2):155-78. DOI: 10.1191/0969733002ne495oa . Os dilemas de fim de vida e o modo como estes são conduzidos frequentemente são questionados, pois os valores bioéticos podem se sobrepor, dificultando o entendimento e a resolução das situações 11. Kovács MJ. Bioethics concerning life and death. Psicol USP [Internet]. 2003 [acesso 24 out 2022];14(2):115-67. DOI: 10.1590/S0103-65642003000200008 , 22. Georges JJ, Grypdonck M. Moral problems experienced by nurses when caring for terminally ill people: a literature review. Nurs Ethics [Internet]. 2002 [acesso 24 out 2022];9(2):155-78. DOI: 10.1191/0969733002ne495oa .

Considerando esse cenário gerado pelos novos paradoxos relacionados ao avanço da medicina, diversos países vêm discutindo a melhor maneira de conduzir tais dilemas éticos e, inclusive, revendo suas leis. Essa realidade engloba o Brasil, considerando que há uma proposta de mudança no Código Penal (Projeto de Lei 236/2012) em tramitação, aguardando designação de relatoria, a respeito de um novo entendimento e punição para casos de eutanásia 33. Moraes HVB. Da eutanásia no direito comparado e na legislação brasileira. Rev Jus Navegandi [Internet]. 2012 [acesso 24 out 2022];17(3463). Disponível: https://bit.ly/3w6MoZn
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, 44. Mendes FP. A tipificação da eutanásia no Projeto de Lei nº 236/12 do Senado Federal (novo Código Penal). Rev Jus Navegandi [Internet]. 2012 [acesso 24 out 2022];17(3456). Disponível: https://bit.ly/3vZxuUN
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.

A palavra “eutanásia”, de origem grega, foi criada por Francis Bacon em 1605, e à época significava “boa morte”. Atualmente entendida como uma ação médica que provoca deliberadamente a morte do paciente, após pedido voluntário e explícito deste 11. Kovács MJ. Bioethics concerning life and death. Psicol USP [Internet]. 2003 [acesso 24 out 2022];14(2):115-67. DOI: 10.1590/S0103-65642003000200008 , a eutanásia pode ser conceitualmente classificada – conforme o ato e a vontade do paciente – como ativa ou passiva, e voluntária, involuntária ou não voluntária, respectivamente.

Na eutanásia ativa, a morte é induzida por meio da administração de medicamentos por terceiros, ao passo que, na passiva, retiram-se equipamentos e suspendem-se medicamentos que dão sustentação à vida 55. Siqueira-Batista R, Schramm FR. Euthanasia: along the road of death and autonomy. Ciênc Saúde Colet [Internet]. 2004 [acesso 24 out 2022];9(1):31-41. DOI: 10.1590/S1413-81232004000100004 .

Na eutanásia voluntária, a decisão é fruto de deliberação individual, informada e esclarecida do paciente; a involuntária, por sua vez, ocorre quando a pessoa não se pronunciou a respeito do desejo desse desfecho, sendo caracterizada como homicídio. Já a eutanásia não voluntária, também chamada de presumida, ocorre quando a vontade do paciente não foi explicitada, mas, considerando sua incapacidade de decisão naquele momento, pode ser realizada por solicitação de um procurador em saúde 55. Siqueira-Batista R, Schramm FR. Euthanasia: along the road of death and autonomy. Ciênc Saúde Colet [Internet]. 2004 [acesso 24 out 2022];9(1):31-41. DOI: 10.1590/S1413-81232004000100004 .

A eutanásia é ilegal na maioria dos países, contudo discussões sobre o tema são frequentes. Há diferentes pontos de vista sobre o fato, considerando prioritariamente os princípios bioéticos: parte das pessoas defende a eutanásia para a preservação da autonomia dos indivíduos, ao passo que outros são contrários a ela, pois valorizam majoritariamente a beneficência e a não maleficência 11. Kovács MJ. Bioethics concerning life and death. Psicol USP [Internet]. 2003 [acesso 24 out 2022];14(2):115-67. DOI: 10.1590/S0103-65642003000200008 , 55. Siqueira-Batista R, Schramm FR. Euthanasia: along the road of death and autonomy. Ciênc Saúde Colet [Internet]. 2004 [acesso 24 out 2022];9(1):31-41. DOI: 10.1590/S1413-81232004000100004 . Acredita-se na importância de enfermeiros refletirem, individual e coletivamente, sobre suas responsabilidades éticas e legais e percepções a respeito do assunto – uma preocupação contemporânea, complexa e controversa 66. Kyba FC. Legal and ethical issues in end-of-life care. Crit Care Nurs Clin North Am [Internet]. 2002 [acesso 24 out 2022];14(2):141-55. DOI: 10.1016/s0899-5885(01)00004-1 .

Buscando medir a percepção de enfermeiros sobre eutanásia de modo válido e confiável, este estudo propõe-se a desenvolver um instrumento específico para esse fim, cumprindo todo o rigor científico das etapas de elaboração e validação de instrumentos de medidas psicológicas.

“Percepção” é um termo amplo, entendido neste trabalho como o processo de organizar e interpretar dados recebidos para desenvolver a consciência de si mesmo e do ambiente. Trata-se de processo ativo e complexo que envolve diversas atividades cognitivas, como atenção, memória, atitudes, opinião, sentimentos, crenças e experiências anteriores 77. Davidoff LL. Introdução à psicologia. São Paulo: Pearson Education do Brasil; 2001. p. 141-5. .

Assim, este artigo tem como objetivo elaborar um instrumento para identificar a percepção de enfermeiros sobre eutanásia e testar as evidências de validade de conteúdo, processo de resposta, estrutura interna e confiabilidade do instrumento proposto.

Método

Trata-se de estudo psicométrico de construção e validação de instrumentos de medida em saúde, realizado em cinco etapas, descritas na sequência.

Etapa 1: revisão bibliográfica e elaboração dos itens do instrumento

Utilizou-se pesquisa bibliográfica realizada nas bases de dados MEDLINE, LILACS, Cochrane Library, Cinahl, Bases de Dados em Enfermagem (BDENF) e Education Resources Information Center (Eric), com os seguintes descritores e seus correlatos em inglês e espanhol: “emoções”, “atitude”, “religião”, “eutanásia”, “psicometria”, “bioética” e “enfermagem”. Foram incluídos trabalhos nos idiomas português, inglês e espanhol, publicados entre 2005 e 2015, que tratavam sobre sentimentos, crenças e atitudes sobre eutanásia. Os dados referentes aos estudos selecionados foram tabulados em planilha eletrônica e, para cada menção a um sentimento, crença ou atitude, elaborou-se um item para compor o instrumento.

Etapa 2: validação de conteúdo

Para avaliar os itens elaborados, constituiu-se um painel com dez especialistas em bioética de diversos campos de atuação profissional, com tempo de formação superior a cinco anos e experiência prática com dilemas éticos do fim da vida.

Os especialistas avaliaram a clareza, a relevância/pertinência e a dimensionalidade de cada item proposto, segundo a escala de concordância: −1=“não concordo com a manutenção do item”; 0=“concordo parcialmente com a manutenção do item”; e +1=“concordo com a manutenção do item”. Para os itens avaliados como 0 ou −1, solicitaram-se sugestões de modificação, e os itens foram reformulados e submetidos à nova rodada de avaliação, até que se chegasse a um consenso.

A concordância entre os juízes foi avaliada pelo coeficiente AC2 de Gwet, com intervalo de confiança de 95% (IC95%) e nível de significância de 5%, e o índice de validade de conteúdo (IVC) pela fórmula “% concordância=soma da pontuação em cada questão, dividido pelo número de participantes e multiplicado por 100”. Para ambos os testes, foram considerados aceitáveis os valores ≥0,80. As análises foram realizadas com o auxílio do programa SPSS.

Realizou-se, também, pré-teste para validar o processo de resposta, com dez enfermeiros alunos do curso de especialização lato sensu em enfermagem em emergência e urgência de uma instituição privada de ensino superior da cidade de São Paulo/SP, que foram convidados a responder ao instrumento. Solicitou-se que avaliassem a clareza e a facilidade de compreensão dos itens propostos, apontando aspectos de melhoria com relação ao processo de preenchimento.

Etapa 3: análise crítica dos itens aprovados e elaboração do instrumento

As autoras analisaram os itens aprovados na etapa anterior considerando os critérios estrutura, composição e nomeação de itens do Guideline patient-reported outcome measurement information system (Promis) sobre padronização científica do desenvolvimento e validação de instrumentos 88. PROMIS. Instrument Development and Validation Scientific Standards Version 2.0 [Internet]. 2013 [acesso 24 out 2022]. Disponível: https://bit.ly/3GKf1R1
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. Em seguida, o instrumento foi construído de modo que cada item viesse acompanhado de uma escala tipo Likert, que variava de 1=“discordo totalmente” a 5=“concordo totalmente”.

Etapa 4: validação da estrutura interna e análise da confiabilidade

O instrumento foi aplicado a uma amostra de enfermeiros, alunos de 18 diferentes cursos de especialização lato sensu da instituição supracitada. O cálculo amostral foi realizado considerando um número mínimo de 20 respondentes por item.

A amostra foi randomizada em dois subgrupos (A e B). O subgrupo A foi utilizado para a realização da análise fatorial exploratória (AFE) e confiabilidade, e o subgrupo B, para realização da análise fatorial confirmatória (AFC). A fatorabilidade dos dados foi verificada no subgrupo A pelo teste de Kaiser-Meyer-Olkin (KMO) e pelo teste de esfericidade de Bartlett (TEB), considerando-se adequados os valores >0,70 e <0,05, respectivamente 99. Hair JF Jr, Babin BJ, Anderson RE, Tatham RL, Black WC. Análise multivariada dos dados. 6ª ed. Porto Alegre: Bookman; 2009. .

A extração dos dados foi realizada pelo método dos mínimos quadrados não ponderados, a partir de uma matriz de correlação policórica, com rotação Oblimin. Itens com cargas fatoriais <0,50, comunalidades <0,40 ou dupla saturação foram excluídos. A suficiência do conjunto de itens foi considerada se a variância total explicada fosse ≥60% 99. Hair JF Jr, Babin BJ, Anderson RE, Tatham RL, Black WC. Análise multivariada dos dados. 6ª ed. Porto Alegre: Bookman; 2009. .

A confiabilidade foi calculada por meio do alfa de Cronbach (α) e do ômega de McDonald (Ω). Foram considerados ideais valores entre 0,70 e 0,90, com intervalo de confiança de 95% para ambos 99. Hair JF Jr, Babin BJ, Anderson RE, Tatham RL, Black WC. Análise multivariada dos dados. 6ª ed. Porto Alegre: Bookman; 2009. . As análises foram realizadas com o auxílio do programa R.

Os itens aprovados nesta etapa foram submetidos à AFC pelo método da máxima verossimilhança, considerando os seguintes critérios de adequação: razão qui-quadrado (χ2)/graus de liberdade (GL), sendo <2=excelente e de 3 a 5=bom; índice de adequação do ajuste (GFI≥0,95); índice de ajuste normatizado (NFI≥0,95); coeficiente Tucker-Lewis (TLI≥0,95); índice de ajuste comparativo (CFI≥0,95); resíduo quadrático médio padrão padronizado (SRMR≤0,08); erro quadrático médio aproximado (RMSEA≤0,05) 99. Hair JF Jr, Babin BJ, Anderson RE, Tatham RL, Black WC. Análise multivariada dos dados. 6ª ed. Porto Alegre: Bookman; 2009. . Para a AFE, utilizou-se o software R e, para a AFC, o software AMOS versão 24.

Etapa 5: definição do escore do instrumento

A partir dos resultados da AFE e da AFC com os itens finais selecionados para compor o instrumento, foram identificados os pesos e elaboradas as instruções para utilizar a escala e obter o escore final.

Esta pesquisa foi realizada de acordo com os preceitos éticos e legais exigidos pela Resolução CNS 466/2012. Foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa (CEP) do Hospital Israelita Albert Einstein (parecer nº 2.060.816).

Resultados

Etapa 1: revisão bibliográfica e elaboração dos itens do instrumento

Foram selecionados 47 estudos. A maioria das publicações (23; 48,9%) foi encontrada na MEDLINE, com maior concentração no ano de 2009 (10; 21,2%). Para cada sentimento, crença ou atitude mencionados nos artigos, elaborou-se um item para compor o instrumento, totalizando 55.

Etapa 2: validação de conteúdo e do processo de resposta

Os 55 itens elaborados foram alocados em três domínios (sentimentos, crenças e atitudes) e submetidos à validação de conteúdo pelo grupo de especialistas, composto de cinco enfermeiros, uma advogada, um padre/filósofo, dois médicos e um psicólogo. A média de idade dos juízes foi de 43,3 anos, com distribuição equânime entre os sexos. Cinco especialistas tinham doutorado, quatro eram mestres e um era especialista.

Houve duas rodadas de avaliação. Na primeira, 15 itens foram aprovados, e sugeriu-se incluir um novo item, identificado com o número 56 – “Sinto compaixão ao cuidar de um paciente que deseja eutanásia”.

Os 40 itens não aprovados na primeira rodada foram ajustados conforme sugestões e, em conjunto com o item 56, foram submetidos à segunda rodada de avaliação. Participaram dessa rodada apenas seis juízes. Foram aprovados 27 itens, e 14 foram excluídos, totalizando 42 aprovados, com AC2 de Gwet 0,80 (IC95%; p<0,05) e IVC≥80%.

Os dez enfermeiros que participaram do pré-teste para validar o processo de resposta referiram que o instrumento proposto estava claro e era de fácil entendimento, e não encontraram dificuldades para respondê-lo. Os participantes desta etapa não foram incluídos na amostra do estudo.

Etapa 3: análise crítica dos itens aprovados e elaboração do instrumento

As autoras excluíram três itens por não atenderem às recomendações Promis 88. PROMIS. Instrument Development and Validation Scientific Standards Version 2.0 [Internet]. 2013 [acesso 24 out 2022]. Disponível: https://bit.ly/3GKf1R1
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(tinham dupla negativa e/ou duas informações em um mesmo item), restando, portanto, 39 itens.

Etapa 4: validação da estrutura interna e análise da confiabilidade

O instrumento com 39 itens foi respondido por 821 enfermeiros. A maioria era do sexo feminino (731; 89,8%), com idade entre 20 e 64 anos (mediana de 29 anos). O tempo de formação variou de zero a 33 anos, com mediana de dois anos. A maior parte dos participantes eram solteiros (452; 55%), sem filhos (601; 73,2%) e católicos (381; 46,4%).

A amostra foi randomizada em subgrupos A (n=411) e B (n=410). A fatorabilidade dos dados foi testada no subgrupo A e confirmada pela obtenção de KMO=0,83 e TEB<0,001. Realizou-se a extração dos dados e excluíram-se 25 itens, por terem carga fatorial <0,50, comunalidades <0,40 e/ou dupla saturação, restando 14 itens no instrumento.

Realizou-se nova reespecificação do modelo, em que mais dois itens precisaram ser excluídos, por apresentarem comunalidades <0,40. Restaram, então, 12 itens, organizados em dois fatores denominados atitudes e sentimentos, respectivamente, com variância explicada de 69%. A análise da confiabilidade foi feita considerando o instrumento total – α=0,85 (IC95%: 0,83; 0,87) e Ω=0,89 (IC 95%: 0,88; 0,90) –, assim como cada um dos fatores, individualmente ( Tabela 1 ).

Tabela 1
Análise fatorial exploratória e confiabilidade (n=411)

Esses 12 itens foram submetidos à AFC com os dados do subgrupo B (n=410). O modelo inicial foi obtido considerando duas dimensões correlacionadas, e a única medida satisfatória foi o SRMR (0,069). Procedeu-se ao controle de erro, considerando as altas covariâncias entre os itens 44, 45 e 46, de modo que o novo modelo apresentou bom ajuste em todos os critérios de adequação: razão χ2/GL=2,384; GFI=0,952; NFI=0,962; TLI=0,970; CFI=0,977; SRMR=0,037; RMSEA=0,058 (0,045; 0,072 – IC90%).

Então, confeccionou-se a versão final do instrumento intitulado Escala Brasileira de Percepção sobre Eutanásia (BEPS).

Etapa 5: definição do escore do instrumento

Para calcular o escore do instrumento, é necessário que os 12 itens estejam respondidos. O escore será obtido pelo somatório das respostas na escala tipo Likert, de modo que o escore do domínio atitudes (itens 1 a 9) varie de 9 a 45 e, quanto maior o valor, maior a atitude favorável à eutanásia, demonstrando conotações positivas dos respondentes.

Para o domínio sentimentos (itens 10 a 12), a pontuação variou de 3 a 15, sendo que, quanto maior o valor, mais negativos são os sentimentos do enfermeiro em relação à eutanásia, que confere relação inversa na pontuação dos domínios.

O Quadro 1 apresenta as instruções de preenchimento da BEPS.

Quadro 1
Instruções de preenchimento da Escala Brasileira de Percepção sobre Eutanásia

Discussão

O instrumento foi construído com 12 itens, distribuídos em duas dimensões (atitudes, com nove itens, e sentimentos, com três itens), sendo autoaplicável, com consistentes propriedades psicométricas que conseguem explicar grande parte (69%) do fenômeno “percepção dos enfermeiros sobre eutanásia”.

Essas características da BEPS seguem as recomendações da literatura que orientam a confecção de instrumentos curtos, com linguagem simples, para maior rapidez na aplicação, evitando fadiga e desinteresse do respondente 1010. Devellis RF. Scale development: theory and applications. 2ª ed. Thousand Oaks: Sage; 2003. . Além disso, uma escala de autorrelato permite ao enfermeiro manifestar livremente suas opiniões, uma vez que o tema é naturalmente sensível e controverso e, eventualmente, suas convicções pessoais podem ser contrárias às leis e aos códigos de ética profissionais 11. Kovács MJ. Bioethics concerning life and death. Psicol USP [Internet]. 2003 [acesso 24 out 2022];14(2):115-67. DOI: 10.1590/S0103-65642003000200008 , 66. Kyba FC. Legal and ethical issues in end-of-life care. Crit Care Nurs Clin North Am [Internet]. 2002 [acesso 24 out 2022];14(2):141-55. DOI: 10.1016/s0899-5885(01)00004-1 .

Com relação às atitudes, o instrumento aborda tanto aspectos relacionados ao posicionamento do enfermeiro (como ser favorável à eutanásia, aceitar participar e apoiar um pedido de eutanásia) quanto suas possíveis ações (solicitar eutanásia para si mesmo ou para um familiar considerando a eutanásia presumida, desligar aparelhos ou administrar medicamentos com a finalidade de auxiliar um paciente a morrer).

Os sentimentos abordados no instrumento são angústia, tristeza e justiça. O instrumento, ao pessoalizar o tema, induz o enfermeiro a uma reflexão mais aprofundada e próxima da realidade de seus sentimentos e prováveis atitudes.

Embora a BEPS seja destinada à utilização por enfermeiros, cabe ressaltar que a amostra de validação foi composta, em sua maioria, por profissionais pós-graduandos, jovens, solteiros, sem filhos e em início de carreira profissional, o que pode não representar a totalidade do universo de profissionais do Brasil. Estudos futuros poderão validar o uso dessa escala com outros perfis profissionais e em contextos diferenciados e com profissionais da saúde de outras áreas.

Apesar da obtenção de bons resultados referentes à análise psicométrica do instrumento, a comparação da BEPS com outras escalas encontradas na literatura é difícil. Foram poucos os instrumentos publicados que avaliam construtos relacionados à eutanásia.

Após extensa busca bibliográfica, encontraram-se os seguintes instrumentos: Chinese Expanded Euthanasia Attitude Scale (EAS-EC) 1111. Chong AM, Fok SY. Validation of the Chinese expanded euthanasia scale. Death Stud [Internet]. 2013 [acesso 24 out 2022];37(1):89-98. DOI: 10.1080/07481187.2011.623214 , Attitudes Toward Euthanasia (ATE) Scale 1212. Wasserman J, Clair JM, Ritchey FJ. A scale to assess attitudes toward euthanasia. Omega [Internet]. 2005 [acesso 24 out 2022];51(3):229-37. DOI: 10.2190/FGHE-YXHX-QJEA-MTM0 , Attitude Towards Dignified Death 1313. Ray R, Raju M. Attitude towards euthanasia in relation to death anxiety among a sample of 343 nurses in India. Psychol Rep [Internet]. 2006 [acesso 24 out 2022];99(1):20-6. DOI: 10.2466/pr0.99.1.20-26 , 1414. Nogueira CMR. Atitudes dos enfermeiros perante decisões de fim de vida [dissertação] [Internet]. Coimbra: Universidade de Coimbra; 2010 [acesso 24 out 2022]. p. 129. Disponível: https://bit.ly/3iCdrIL
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, Attitudes van verpleegkundigen over beslissingen aan het levenseinde bij patiënte 1515. Braun M, Gordon D, Uziely B. Associations between oncology nurses’ attitudes toward death and caring for dying patients. Oncol Nurs Forum [Internet]. 2010 [acesso 24 out 2022];37(1):43-9. DOI: 10.1188/10.ONF.E43-E49 e Frommelt Attitudes Toward Care of the Dying (FATCOD) 1616. Dunn KS, Otten C, Stephens E. Nursing experience and the care of dying patients. Oncol Nurs Forum [Internet]. 2005 [acesso 24 out 2022];32(1):97-104. DOI: 10.1188/05.ONF.97-104 , 1717. Faria YS. Relação entre atitudes sobre eutanásia e crenças religiosas [dissertação] [Internet]. Rio de Janeiro: Fundação Getulio Vargas; 1986 [acesso 24 out 2022]. p. 184. Disponível: https://bit.ly/3EyVGBU
https://bit.ly/3EyVGBU...
.

Nenhuma dessas escalas havia sido validada para enfermeiros, nem abordava especificamente a percepção desses profissionais a respeito do assunto. Além disso, não estavam disponíveis para consulta e/ou apresentavam falhas conceituais, metodológicas ou psicométricas em sua elaboração, adaptação ou validação, o que inviabilizou a comparação dos resultados 1111. Chong AM, Fok SY. Validation of the Chinese expanded euthanasia scale. Death Stud [Internet]. 2013 [acesso 24 out 2022];37(1):89-98. DOI: 10.1080/07481187.2011.623214

12. Wasserman J, Clair JM, Ritchey FJ. A scale to assess attitudes toward euthanasia. Omega [Internet]. 2005 [acesso 24 out 2022];51(3):229-37. DOI: 10.2190/FGHE-YXHX-QJEA-MTM0

13. Ray R, Raju M. Attitude towards euthanasia in relation to death anxiety among a sample of 343 nurses in India. Psychol Rep [Internet]. 2006 [acesso 24 out 2022];99(1):20-6. DOI: 10.2466/pr0.99.1.20-26

14. Nogueira CMR. Atitudes dos enfermeiros perante decisões de fim de vida [dissertação] [Internet]. Coimbra: Universidade de Coimbra; 2010 [acesso 24 out 2022]. p. 129. Disponível: https://bit.ly/3iCdrIL
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15. Braun M, Gordon D, Uziely B. Associations between oncology nurses’ attitudes toward death and caring for dying patients. Oncol Nurs Forum [Internet]. 2010 [acesso 24 out 2022];37(1):43-9. DOI: 10.1188/10.ONF.E43-E49

16. Dunn KS, Otten C, Stephens E. Nursing experience and the care of dying patients. Oncol Nurs Forum [Internet]. 2005 [acesso 24 out 2022];32(1):97-104. DOI: 10.1188/05.ONF.97-104
- 1717. Faria YS. Relação entre atitudes sobre eutanásia e crenças religiosas [dissertação] [Internet]. Rio de Janeiro: Fundação Getulio Vargas; 1986 [acesso 24 out 2022]. p. 184. Disponível: https://bit.ly/3EyVGBU
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O único estudo nacional identificado sobre o tema foi uma dissertação de mestrado datada de 1986, em que a pesquisadora criou e testou algumas propriedades de um instrumento denominado Escala de Atitude sobre Eutanásia 1717. Faria YS. Relação entre atitudes sobre eutanásia e crenças religiosas [dissertação] [Internet]. Rio de Janeiro: Fundação Getulio Vargas; 1986 [acesso 24 out 2022]. p. 184. Disponível: https://bit.ly/3EyVGBU
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em um grupo de médicos e advogados. Porém, pelo fato de mudanças sociais significativas terem acontecido desde aquele período, os itens que compunham a escala não atendem às demandas do atual cenário e às inquietações contemporâneas, não permitindo, novamente, uma adequada comparação de resultados.

Portanto, recomenda-se o uso da BEPS para auxiliar enfermeiros a compreender suas percepções (atitudes e sentimentos) sobre eutanásia, tendo em vista o desconhecimento do assunto por parte dos profissionais – mesmo entre aqueles que lidam com a morte frequentemente 1818. Biondo CA, Silva MJP, Dal Secco LM. Dysthanasia, euthanasia, orthotanasia: the perceptions of nurses working in intensive care units and care implications. Rev Lat Am Enfermagem [Internet]. 2009 [acesso 24 out 2022];17(5):613-9. DOI: 10.1590/S0104-11692009000500003 –, e, a partir daí, permitir uma melhor condução das atividades pedagógicas e deliberações bioéticas acerca do tema.

Considerações finais

Elaborou-se um instrumento para identificar a percepção de enfermeiros sobre a eutanásia, composto por 12 itens, divididos em dois domínios, que demonstrou boas evidências de validade de conteúdo, processo de resposta, estrutura interna e confiabilidade.

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  • Aprovação CEP-Einstein 2.060.816

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    08 Maio 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    26 Out 2021
  • Revisado
    07 Ago 2022
  • Aceito
    09 Dez 2022
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