Caminhos de um comitê de ética: 10 anos da Plataforma Brasil

Resumo

Esta pesquisa buscou traçar o perfil do Comitê de Ética da Universidade Estadual Vale do Acaraú, Ceará, nos 10 anos da Plataforma Brasil. Levantaram-se pesquisas realizadas entre 2012 e 2021, conforme atores ou processos, seguindo a análise descritiva. Houve prevalência feminina e do campo da saúde ou ciências biológicas, e pareceristas tiveram maior formação acadêmica, tempo de experiência e número de projetos em relação a pesquisadores. Das 2.295 pesquisas analisadas, houve flutuações temporais, com concentração de projetos anteriormente aprovados até 2015, finalizados em 2016 e em trâmite em 2021, com evidente diminuição em 2020 e 2021. Foram mais frequentes pesquisas originais de centros coordenadores, institucionais, brasileiras, autofinanciadas, sem área temática, com decisão ética favorável, em até três meses e tempo de fluxo reduzido entre quinquênios. Termo de consentimento livre e esclarecido e riscos destacaram-se como principais óbices éticos. Esse panorama valoriza a importância da plataforma para o progresso científico.

Ética em pesquisa; Bioética; Comitês de ética em pesquisa; Projetos; Avaliação da pesquisa em saúde

Abstract

This study outlines the profile of the Ethics Committee of the Acaraú Valley State University, Ceará, Brazil, after 10 years of Plataforma Brasil. Bibliographic search surveyed research conducted between 2012 and 2021 according to actors and processes, following descriptive analysis. Results showed a prevalence of female researchers from the health or biological sciences field, and reviewers had a greater academic background, length of experience, and number of projects than researchers. Of the 2,295 studies analyzed, most were approved by 2015, completed in 2016 and under evaluation in 2021, with clear decrease in 2020 and 2021. Original research from national self-funded institutional coordinating centers without thematic area, with a favorable ethical opinion within three months, and reduced flow time between quinquennia stood out. Main ethical obstacles concerned the informed consent and risks. This overview highlights the importance of the platform for scientific progress.

Ethics, research; Bioethics; Ethics committees, research; Projects; Health research evaluation

Resumen

Esta investigación rastreó el perfil del Comité de Ética de la Universidad Estadual Vale do Acaraú, Ceará, Brasil, en los 10 años de la Plataforma Brasil. Los estudios ocurrieron entre 2012 y 2021 según actores o procesos, siguiendo el análisis descriptivo. Predominaron mujeres del campo de la salud o las ciencias biológicas y, comparados con los investigadores, los árbitros tenían alto nivel de formación académica, mayor tiempo de experiencia y proyectos. En 2.295 estudios hubo fluctuaciones temporales, con concentración de proyectos aprobados hasta 2015, completados en 2016 y en curso en 2021, con disminución evidente entre 2020-2021. Los estudios más frecuentes provienen de los centros coordinadores, institucionales, brasileños, autoapoyados, sin área temática, con decisión ética favorable hasta tres meses y tiempo de flujo reducido entre quinquenios. El formulario de consentimiento y los riesgos fueron los principales obstáculos éticos. Este panorama valora la importancia de la plataforma al progreso científico.

Ética en investigación; Bioética; Comités de ética en investigación; Proyectos; Evaluación de la investigación en salud

A bioética é componente transversal na pesquisa científica, sendo norteada pelas Resoluções 466/2012 ¹ e 510/2016 ² , do Conselho Nacional de Saúde (CNS), que destacam o respeito aos princípios da não maleficência, beneficência, autonomia, justiça e equidade, além de outras regulamentações, dada sua aderência a múltiplos escopos. Para proteger o participante de pesquisas e responder com diligência a protocolos encaminhados por pesquisadores de instituições ou empresas, é obrigatória a análise por colegiado multidisciplinar e independente, garantindo a eficácia e a lisura dos pareceres ³ , ⁴ .

No Brasil, pesquisas envolvendo seres humanos devem ser avaliadas sob a égide bioética e autorizadas previamente por comitês de ética em pesquisa (CEP), instâncias locais para protocolos de menor complexidade, cuja capilaridade chega a 98% das submissões, ou pela Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (Conep), instância nacional vinculada ao Ministério da Saúde (MS) para áreas temáticas especiais de maior complexidade e responsável pela atualização de diretrizes e normas ¹ , ³ . Para ter uma dimensão real dessa cobertura, até outubro de 2022 o Brasil contava com 875 CEP, sendo 190 na região Nordeste e 42 no estado do Ceará ⁴ , ⁵ .

O sistema CEP/Conep foi instituído pela revogada Resolução CNS 196/1996 ⁶ e passou por uma evolução gerencial significativa, transitando do modelo físico convencional até o eletrônico ⁷ . A primeira plataforma on-line do país foi a do Sistema Nacional de Informações sobre Ética e Pesquisa (Sisnep), que funcionou de 2002 até o fim de 2011. Nela, era possível cadastrar dados gerais dos projetos, emitir folha de rosto e acompanhar sua aprovação, mas não armazenava todos os dados documentais e processuais referentes a cada projeto de pesquisa ⁷ .

A partir de 2012, a plataforma semi-informatizada do Sisnep foi substituída pela Plataforma Brasil, possibilitando cadastro, acompanhamento, notificações e interações diversas, em um sistema transparente, rastreável, ágil e totalmente on-line. Em sua terceira versão, fruto do aprimoramento do sistema via inteligência artificial, conta, ainda, com assistente virtual ⁸ . O advento dessa base nacional e unificada diminuiu a burocracia física e o longo tempo de avaliação, principais reclamações da comunidade acadêmica, e ela atua como ferramenta de controle social mais efetiva, possibilitando o acompanhamento de sua regularidade por pesquisador e participante ⁹ .

Apesar de ofertar funcionalidades de acesso aberto sem necessidade de cadastro para busca de informações, a Plataforma Brasil tem limitações, não permitindo, ao longo da última década, análise automática detalhada de especificidades de pesquisas, como escopo, tempo decorrido e maiores motivos de pendências, bem como aspectos humanos dos colegiados que compõem o sistema CEP/Conep ⁸ . O gerenciamento dos fluxos de avaliação e das equipes constituintes dos CEP no país é assunto escasso na literatura, havendo poucas evidências sobre pontos fortes e aspectos a melhorar, o que poderia contribuir para reflexão e amadurecimento dos CEP ⁴ .

O cenário proposto para este estudo de caso foi o Comitê de Ética em Pesquisa com Seres Humanos da Universidade Estadual Vale do Acaraú (CEP/UVA), implantado em outubro de 2002 no Centro de Ciências da Saúde da UVA, em Sobral, interior do Ceará ¹⁰ , e em atividade contínua registrada pela Conep ⁸ . Em sua trajetória, o CEP/UVA polarizou as pesquisas no âmbito loco-regional no interior, dada sua distância de 232 km da capital Fortaleza, já tendo contado com professores de diversos campos do conhecimento e representações de usuário indicado pelo Conselho Municipal de Saúde de Sobral ¹⁰ . Como pioneiro na cidade, colaborou como nucleador de capacitações dos CEP de duas instituições: hospital Santa Casa da Misericórdia de Sobral (CEP/SCMS), em 2016 ¹¹ , e Centro Universitário Instituto Superior de Teologia Aplicada (CEP/Uninta), em 2017 ¹² .

Diante das lacunas de conhecimento da temática, este estudo buscou traçar um panorama do CEP/UVA para desvelar avanços e desafios após 10 anos da Plataforma Brasil no gerenciamento da tramitação bioética do sistema CEP/Conep.

Material e métodos

O cenário da pesquisa foi o próprio CEP/UVA, utilizando sua base documental eletrônica por meio da interface do CEP na Plataforma Brasil ⁸ , já acessível para cadastro de parecerista do pesquisador. A amostra foi constituída por todos os projetos já avaliados ou em avaliação entre os anos consolidados de 2012 e 2021.

Realizou-se levantamento remoto da amostra, analisando pareceres consubstanciados emitidos pelo CEP ou pela Conep, bem como os históricos de trâmites, o que permitiu categorizar projetos de pesquisa segundo atores ou processos envolvidos.

Na dimensão de atores no interstício decenal, quantificaram-se separadamente os totais de pesquisadores e pareceristas, seguindo para sua classificação segundo gênero, titulação no contato inicial com a Plataforma Brasil, campo do conhecimento conforme o Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), anos totais de experiência com a plataforma e média de projetos enviados ou analisados a cada ano, respectivamente.

Na dimensão de processos no interstício decenal, as pesquisas foram quantificadas segundo tipo (projeto, emenda ou notificação, de centro coordenador, participante ou coparticipante), instituição proponente (do próprio ou diferente do CEP), país (Brasil ou estrangeiro), financiamento (próprio ou institucional), área temática especial para a Conep (enviada pelo pesquisador ou a critério do CEP), decisão ética (aprovada; recusada, retirada ou não aprovada; pendente; em relatoria; em fluxo com a Conep; ou outra) e tempo de fluxo (da submissão até a decisão final, em faixas de dias e em média geral ou por quinquênio). Por fim, procedeu-se a uma classificação geral e quantificação dos principais óbices éticos e documentais registrados durante todo o período analisado.

As informações coletadas foram tabuladas no software Microsoft Excel para análise das variáveis e passaram por análise descritiva simples, por meio de valor absoluto e relativo (porcentagem) ou média±desvio absoluto da média.

De maneira complementar, investigou-se a composição vigente do CEP/UVA, disponível para acesso público em site institucional ¹⁰ , a fim de determinar os perfis de campos de atuação dos pareceristas.

Resultados

A Tabela 1 demonstra que a maior prevalência do gênero feminino e da área de conhecimento em ciências da saúde ou biológicas em relação às demais categorias foi similar entre pesquisadores e pareceristas. A formação acadêmica em nível stricto sensu (mestrado ou doutorado) superou dois terços da amostra de pareceristas, e mais da metade dos pesquisadores apresentaram de graduação a especialização.

Tabela 1
Perfil dos atores nas pesquisas no CEP/UVA no período de 2012 a 2021

Categorias	Pesquisadores (n=849)	Pareceristas (n=51)
Gênero	♀: 581 (68,43%) ♂: 268 (31,57%)	♀: 32 (62,75%) ♂: 19 (37,25%)
Titulação ao contato inicial com a Plataforma Brasil	D: 119 (14,02%) M: 239 (28,15%) E: 319 (37,57%) G: 172 (20,26%)	D: 27 (52,94%) M: 14 (27,45%) E: 5 (9,80%) G: 5 (9,80%)
Área de conhecimento	CSB: 632 (74,44%) CHSA: 118 (13,90%) O: 99 (11,66%)	CSB: 32 (62,75%) CHSA: 13 (25,49%) O: 6 (11,76%)
Anos de experiência com a Plataforma Brasil	1,51±0,77	3,18±1,73
Média±desvio absoluto da média de projetos ao ano	1,48±0,69	9,25±5,01

• CEP/UVA: Comitê de Ética em Pesquisa com Seres Humanos da Universidade Estadual Vale do Acaraú; D: doutorado; M: mestrado; E: especialização; G: graduação; CSB: ciências da saúde ou biológicas; CHSA: ciências humanas ou sociais aplicadas; O: outras

Os pareceristas exibiram o dobro da média de experiência total com a Plataforma Brasil quando comparados aos pesquisadores. A maioria dos primeiros (35; 68,63%) permaneceu por até três anos na atividade, e a maior parte dos últimos (638; 75,15%) teve contato com a atividade por até um ano.

Já a quantidade média de projetos analisados ou em análise por pareceristas superou seis vezes a média de projetos enviados anualmente pelos pesquisadores, com a maioria dos pareceristas (30; 58,82%) executando avaliação de até nove projetos ao ano, enquanto a maioria dos pesquisadores (604; 71,14%) submeteu até um projeto ao ano.

Sobre a composição mais recente do CEP/UVA, até dezembro de 2021 foram registrados 13 pareceristas em exercício, com formação em administração, ciências sociais, educação física, enfermagem, medicina, odontologia, pedagogia, psicologia e química, reforçando o caráter multiprofissional desse colegiado.

A Figura 1 demonstra a evolução temporal do total de pesquisas tramitadas no CEP/UVA via Plataforma Brasil. Projetos aprovados antes da criação da plataforma tiveram registro mais frequente entre 2013 e 2015, e em 2016 houve expressivo pico de projetos com análise já finalizada e menor quantitativo de toda a década em 2020 e 2021. Já projetos em trâmite tiveram maior concentração em 2021, embora anos retroativos também exibissem pequenas frequências.

Figura 1
Evolução temporal de pesquisas no CEP/UVA na década de 2012 a 2021 (n=2.295)

A Tabela 2 descreve o perfil dos projetos no CEP/UVA conforme categorias e resultados, sendo mais frequentes os projetos de pesquisa originais em relação a emendas e notificações, bem como de centro coordenador em relação a centro (co)participante. Em metade da amostra, a instituição proponente foi a própria UVA, sendo a porção restante composta por 27 instituições do mesmo município sem CEP próprio até então, com destaque para o Centro Universitário Uninta (537; 23,40%) e a Santa Casa de Misericórdia de Sobral (164; 7,15%).

Tabela 2
Perfil dos projetos no CEP/UVA no período de 2012 a 2021 (n=2.295)

Categorias	Resultados
Tipo de pesquisa	Projeto original de centro coordenador: 2.104 (91,68%) Projeto original de centro (co)participante: 56 (2,44%) Emenda de centro coordenador: 42 (1,83%) Emenda de centro (co)participante: 16 (0,70%) Notificação de centro coordenador: 55 (2,40%) Notificação de centro (co)participante: 22 (0,96%)
Instituição proponente	Do próprio CEP: 1.130 (49,24%) Diferente do CEP: 1.165 (50,76%)
País	Estudo no Brasil: 2.291 (99,83%) Estudo internacional: 4 (0,17%)
Financiamento	Do próprio pesquisador: 2.151 (93,73%) Institucional: 144 (6,27%)
Área temática especial	Não: 2.244 (97,78%) Sim (genética humana): 8 (0,35%) Sim (novos equipamentos e dispositivos): 8 (0,35%) Sim (biossegurança): 7 (0,31%) Sim (novos procedimentos): 6 (0,26%) Sim (origem fora do Brasil): 5 (0,22%) Sim (reprodução humana): 3 (0,13%) Sim (populações indígenas): 3 (0,13%) Sim (novos fármacos, vacinas e testes diagnósticos): 2 (0,09%) Sim (a critério do CEP): 9 (0,39%)
Decisão ética	Aprovada: 1.698 (73,99%) Recusada, retirada ou não aprovada: 342 (14,90%) Pendente: 170 (7,41%) Em relatoria: 30 (1,31%) Em fluxo com Conep: 27 (1,18%) Transferida, em validação documental ou de relator: 28 (1,22%)
Tempo de fluxo	De 1 a 30 dias: 535 (23,31%) De 31 a 60 dias: 452 (19,69%) De 61 a 90 dias: 367 (15,99%) De 91 a 120 dias: 330 (14,38%) De 121 a 180 dias: 296 (12,90%) De 181 a 365 dias: 213 (9,28%) Acima de 365 dias: 102 (4,44%)

• CEP/UVA: Comitê de Ética em Pesquisa com Seres Humanos da Universidade Estadual Vale do Acaraú

A pesquisa brasileira foi preponderante, havendo apenas quatro protocolos multicêntricos transnacionais, sediados no Reino Unido. A frequência de financiamento do próprio pesquisador foi 15 vezes superior ao fomento institucional, sendo, nesse último caso, mais comum a fonte pública (111; 4,84%) que a privada (33; 1,44%).

Houve baixa frequência de pesquisas dirigidas à Conep nas áreas temáticas especiais cadastradas na submissão, com aumento de encaminhamentos a critério do CEP a partir de 2020 – covid-19 (6; 0,26%) e biobanco (3; 0,13%). A decisão ética favorável foi maioria, com as categorias de não aprovação somadas chegando a um quarto da amostra. O tempo de fluxo mostrou maior prevalência da faixa até 30 dias, com mais da metade da amostra geral atingindo até três meses.

Em análise amiúde do tempo de fluxo, considerando amostra e período total, a média foi de 110,09±84,53 dias. Ao considerar uma estratificação temporal por quinquênio a partir da data de submissão, a amostra entre 2012 e 2016 (n=1.277) alcançou média de 125,51±96,23 dias, e a amostra de 2017 a 2021 (n=1.018) obteve média de 90,78±69,10 dias. Assim, houve redução progressiva do tempo de fluxo ao longo da década analisada.

Registros de mais de uma versão de avaliação de projeto, de troca de pareceristas ou de demora superior a 30 dias para retorno das pendências pelo pesquisador foram achados típicos em fluxos superiores a 60 dias. Mais da metade da amostra (1.308 pesquisas ou 56,99% do total) apresentou pelo menos uma das condições descritas.

A Tabela 3 evidencia os principais motivos de rejeição, pendência ou ressalvas aos projetos analisados pelo CEP/UVA. Ausência ou inconformidade de alguns documentos apensados na Plataforma Brasil foram motivo de óbices éticos, em que o termo de consentimento livre e esclarecido (TCLE) teve maior representatividade mediante anuência institucional, cronograma, folha de rosto, instrumento de coleta de dados, projeto detalhado, orçamento, termo de assentimento, termo de fiel depositário e termo de uso de imagem e depoimentos.

Tabela 3
Óbices éticos ou documentais em pesquisas no CEP/UVA no período de 2012 a 2021 (n=2.295)

Item	Frequência (um ou mais itens por projeto)
TCLE	1.080 (47,06%)
Anuência institucional	773 (33,68%)
Cronograma	591 (25,75%)
Folha de rosto	367 (15,99%)
Riscos	354 (15,42%)
Instrumento de coleta de dados	309 (13,46%)
Projeto detalhado	230 (10,02%)
Amostragem	159 (6,93%)
Benefícios	141 (6,14%)
Orçamento	136 (5,93%)
Termo de assentimento	95 (4,14%)
Abordagem aos participantes	94 (4,10%)
Justificativa da ausência de TCLE	37 (1,61%)
Termo de fiel depositário	36 (1,57%)
Enquadramento em área temática especial	35 (1,53%)
Etapas ou Intervenções a executar	34 (1,48%)
Termo de uso de imagem e depoimentos	10 (0,44%)
Análise dos dados	7 (0,31%)
Título	6 (0,26%)
Objetivos	4 (0,17%)

• CEP/UVA: Comitê de Ética em Pesquisa com Seres Humanos da Universidade Estadual Vale do Acaraú; TCLE: termo de consentimento livre e esclarecido

Ao analisar itens específicos, ausência ou falta de clareza de riscos e suas estratégias de minimização tiveram maior impacto do que deficiências na descrição de amostragem (como quantidade de voluntários e seus critérios de inclusão e exclusão, incluindo grupos, faixa etária e sexo), benefícios, abordagem aos participantes (virtual ou presencial, sem cautelas sanitárias na pandemia), justificativa da ausência de TCLE, enquadramento em área temática especial (apenas sete pesquisas adequadas, incluindo três de populações indígenas e quatro de origem estrangeira), etapas ou intervenções a executar, análise dos dados, título e objetivos.

Discussão

O expressivo número de pesquisas do campo de saúde ou biomédica converge para o esperado, conforme o escopo de pesquisas envolvendo seres humanos ¹ , embora a área de ciências humanas e sociais aplicadas ganhe franca visibilidade e tenha alcançado 42% do total de propostas num CEP da Paraíba ¹³ , valor bem superior ao encontrado no CEP no Ceará.

O maior número de projetos submetidos por pesquisadores, associado à menor titulação, assemelha-se aos achados do estudo de Silva e Santos ¹³ , no qual mais da metade desses atores eram mestres e apresentaram apenas um protocolo. Tal perfil pode sugerir vinculação das pesquisas a pós-graduação em andamento e período típico com produção científica mais ativa ¹⁴ em comparação com trabalhos orientados à graduação em medicina, com apenas 13,5% de pesquisas submetidas a um CEP de Minas Gerais ¹⁵ .

Já o maior número de projetos analisados por pareceristas pode refletir a experiência desejável para um colegiado multiprofissional, executando a análise eficiente de propostas diversas em conteúdo ³ . Quatro CEP da Bahia exibiram prevalência de integrantes do gênero feminino, do campo de ciências biológicas, com doutorado, exercício profissional igual ou superior a 30 anos e participação em algum evento ou curso sobre ética em pesquisa. Isso corrobora a hipótese de que maior grau acadêmico e experiência podem favorecer avaliação bioética mais acurada ¹⁶ .

O total corrente de relatores do CEP/UVA foi ligeiramente inferior à média nacional de 16 membros por CEP aptos a dar pareceres consubstanciados, considerando coordenadores, membros relatores e representantes de participantes de pesquisa ⁵ .

A quantidade de pesquisas analisadas pelo CEP/UVA aproxima-se da média de 200 projetos anuais de um CEP do Espírito Santo ¹⁷ , superando um CEP do Pará, com 633 projetos em cinco anos (entre 2006 e 2010) ¹⁸ , e um CEP da Paraíba, com 228 em sete anos (entre 2008 e 2014) ¹³ , o que sugere discrepâncias entre regiões brasileiras e aporte de cada instituição de ensino e pesquisa. A evolução temporal do CEP corrobora a transformação contínua no sistema de revisão ética em pesquisa no país ¹⁹ .

A tendência nos primeiros anos do decênio de registro de pesquisas já aprovadas antes da Plataforma Brasil reflete o período de transição do antigo modelo de gestão de projetos via Sisnep ⁷ . O aumento de projetos a partir de 2016 pode ter relação com o incremento de resoluções regulamentadoras envolvendo pesquisas em ciências humanas ² , casos clínicos ²⁰ ou temas prioritários para o Sistema Único de Saúde (SUS) ²¹ . Já o menor quantitativo de pesquisas a partir de 2020 pode ser associado ao impacto negativo da pandemia de covid-19, a qual, inicialmente, limitou a produção acadêmica em função do isolamento social ⁴ , mas, por outro lado, aperfeiçoou as coletas de dados virtuais para estudos mais recentes ²² .

O perfil de projetos de pesquisa originais corrobora a literatura, conservando maior associação com estudos para obtenção de título acadêmico em relação àqueles financiados ¹⁵ . Apesar de a Plataforma Brasil atuar desde a fase de projeto até a submissão de relatórios ⁹ , o baixo número de notificações demostra a limitada retroalimentação desse sistema pela própria comunidade acadêmica.

Levantamento em CEP do Espírito Santo demonstrou que estudos observacionais ou de intervenção, com foco em assistência à saúde de trabalhador, mulher, adolescente, criança e idoso, foram mais frequentes que estudos experimentais e de alta complexidade tecnológica ¹⁷ , de modo similar à baixa frequência encontrada de áreas temáticas especiais, mesmo com o incremento de estudos sobre covid-19 ⁴ . Entretanto, a baixa associação entre instituições para execução de projetos conjuntos denota um padrão mais endógeno, ainda tímido, para o avanço de pesquisas multicêntricas ou com permeabilidade internacional ⁹ .

Apesar de a Plataforma Brasil ser base nacional unificada de registro de pesquisas, permitindo interagir com agências regulatórias e de fomento ⁹ , a prevalência do autofinanciamento neste estudo expõe a deficiência brutal de patrocínio enfrentada por pesquisadores.

No Brasil, pesquisas envolvendo seres humanos são claramente subfinanciadas, apesar de sua óbvia importância estratégica para o desenvolvimento do país ⁴ . O padrão de decisão ética aproxima-se de um CEP da Paraíba, onde 82,02% das pesquisas foram aprovadas ¹³ .

É fundamental que pesquisadores e instituições valorizem as tarefas do comitê, permitindo tempo adequado às apreciações colegiadas e evitando trocas de pareceristas, o que causaria demora no fluxo de projetos ²³ . Ainda, uma tramitação mais prolongada de projetos poderia ter relação com grande demanda, adendos, complexidade do escopo ou abandono pelo pesquisador, fatores que dilatam substancialmente o tempo de conclusão das análises ¹⁹ , ²³ .

As pendências de um CEP do Pará alcançaram 86,5% dos projetos, sendo mais prevalentes equívocos no TCLE ¹⁸ , o que vai ao encontro dos achados deste estudo. Mais da metade dos projetos de pesquisa submetidos em CEP do interior de São Paulo para desenvolvimento institucional nos cursos de medicina ou enfermagem apresentaram erro de preenchimento de documentos obrigatórios ²⁴ .

Outro CEP do Pará verificou atendimento dos projetos à beneficência e à autonomia do paciente, mas foram deficientes em justiça e sigilo, com lenta melhora desses princípios ao longo dos anos ²⁵ . Pesquisas desenvolvidas em diferentes cursos de odontologia no Brasil também mostraram fragilidades quanto ao TCLE, nos quesitos direito ao anonimato e autorização para uso de dados e imagens ²⁶ .

A clareza no objetivo, na linguagem e na apresentação do TCLE contribui para bom atendimento aos requisitos éticos e jurídicos previstos ²⁷ . Abordagens clínicas podem ter como óbices a não preservação do direito à privacidade e à confidencialidade em indivíduos hospitalizados com autonomia reduzida, reforçando a necessidade de um olhar atencioso na construção do projeto, para evitar situações invasivas ou aceitação acrítica diante dos cuidados a serem recebidos ²⁸ .

Um CEP de Minas Gerais verificou, nos protocolos de pesquisa, que a descrição de riscos esteve presente em apenas um quarto dos formulários ou no TCLE, ao passo que suas medidas de prevenção compuseram mais da metade dos documentos correspondentes, evidenciando a dificuldade de pesquisadores em identificar potenciais danos em pesquisas humanas ²⁹ . Inadequações do número amostral ou dos métodos de análise para responder às questões estudadas também podem ser motivos comuns de pendências ³⁰ .

Vale reforçar a importância de um CEP como instância consultiva e educativa para a prática da pesquisa ⁹ , ¹⁸ . Programas de capacitação continuada são úteis tanto para pareceristas quanto para pesquisadores, porém sua implementação, desenvolvimento e consolidação demandam maior apoio e investimento institucional ¹⁶ , ¹⁹ .

Em diretrizes curriculares e códigos de ética nos campos de medicina, enfermagem, farmácia, nutrição, odontologia e biomedicina, há pouca ou nenhuma cautela com integridade científica, publicidade, estímulo à pesquisa, plágio e manipulação de dados. Isso torna urgente maior comprometimento ético e metodológico na educação em saúde, a fim de restabelecer boas práticas científicas ³¹ .

Cerca de um quarto dos acadêmicos de medicina e enfermagem que integraram projetos de pesquisa submetidos a um CEP do interior de São Paulo afirmaram ter informações insuficientes de seus orientadores quanto aos documentos e aspectos bioéticos fundamentais para tramitação na Plataforma Brasil, sendo quase unânime a necessidade de inserção da bioética na grade curricular ²⁴ .

Apesar de docentes universitários na Paraíba reconhecerem como positiva a atuação do CEP institucional na proteção dos participantes e na autorização de publicações, enfrentaram dificuldade frequente em entender o processo de avaliação, bem como o significado das recomendações diante das normas vigentes ³² . Áreas pouco usuais de avaliação, tais como pesquisas que envolvam crianças, povos indígenas, genética, novos medicamentos e procedimentos invasivos, também reforçam a necessidade de atualização constante dos membros de CEP para emissão de pareceres consubstanciados adequados ³³ .

As lideranças de CEP no Brasil convergem nos pontos críticos para aperfeiçoamento da avaliação bioética com seres humanos: maior representatividade de usuários, visando à proteção dos participantes; parcimônia na ação de gestores institucionais, para evitar conflitos de interesses; agenda básica, para evitar excesso de demandas administrativas para seus membros; e necessidade de melhor formação em ética em pesquisa ³³ .

Apesar dos entraves no que concerne aos padrões de análise nos diversos comitês, às dificuldades de acompanhamento dos projetos em andamento e ao cadastro na Plataforma Brasil, o sistema brasileiro é referencial para outros países. Isso se deve a sua estruturação efetiva, respeito e proteção de participantes de pesquisa e inserção da sociedade no âmbito dos comitês ³³ , ³⁴ .

Considerações finais

Avanços e desafios permeiam os caminhos do CEP/UVA ao longo da última década, com a operacionalização da Plataforma Brasil, considerando similaridades ou divergências nas dimensões de atores e processos em relação a outros CEP do país. Esse panorama valoriza a importância da plataforma para o progresso científico e motiva futuras discussões sobre a gestão da pesquisa no país.

Referências

• ¹
  Conselho Nacional de Saúde. Resolução nº 466, de 12 de dezembro de 2012. Aprova as diretrizes e normas regulamentadoras de pesquisas envolvendo seres humanos e revoga as Resoluções CNS nos. 196/96, 303/2000 e 404/2008. Diário Oficial da União [Internet]. Brasília, p. 59, 13 jun. 2013 [acesso 16 set 2021]. Seção 1 . Disponível: https://bit.ly/3w4T2yR
  » https://bit.ly/3w4T2yR
• ²
  Conselho Nacional de Saúde . Resolução nº 510, de 7 de abril de 2016. Dispõe sobre as normas aplicáveis a pesquisas em Ciências Humanas e Sociais cujos procedimentos metodológicos envolvam a utilização de dados diretamente obtidos com os participantes ou de informações identificáveis ou que possam acarretar riscos maiores do que os existentes na vida cotidiana . Diário Oficial da União [ Internet ]. Brasília , p. 44 - 6 , 24 maio 2016 [ acesso 28 out 2021 ]. Seção 1 . Disponível: https://bit.ly/41yYSXq
  » https://bit.ly/41yYSXq
• ³
  Conselho Nacional de Saúde . Comissão Nacional de Ética em Pesquisa [ Internet ]. Brasília : Conselho Nacional de Saúde ; 2021 [ acesso 10 abr 2021 ]. Disponível: https://bit.ly/41CeARw
  » https://bit.ly/41CeARw
• ⁴
  Castro-Silva II , Maciel JAC . Panorama de pesquisas com seres humanos sobre Covid-19 no Brasil . Rev. bioét. (Impr.) [ Internet ]. 2020 [ acesso 10 abr 2021 ]; 28 ( 4 ): 655 - 63 . DOI: 10.1590/1983-80422020284429
  » https://doi.org/10.1590/1983-80422020284429
• ⁵
  Conselho Nacional de Saúde . Comitês de Ética em Pesquisa [ Internet ]. Brasília : Conselho Nacional de Saúde ; 2021 [ acesso 10 abr 2021 ]. Disponível: https://bit.ly/40n6dZ8
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• ⁶
  Conselho Nacional de Saúde . Resolução nº 196, de 10 de outubro de 1996. Aprova as diretrizes e normas regulamentadoras de pesquisas envolvendo seres humanos . Diário Oficial da União [ Internet ]. Brasília , p. 21.082 - 5 , 16 out 1996 [ acesso 21 mar 2023 ]. Seção 1 . Disponível: https://bit.ly/3mGTUZY
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• ⁷
  Conselho Nacional de Saúde . Sisnep em consulta [ Internet ]. Brasília : Ministério da Saúde ; 2007 [ acesso 10 abr 2021 ]. Disponível: https://bit.ly/41Hnptw
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• Aprovação CEP-UVA 45749321.8.0000.5053

Datas de Publicação

• Publicação nesta coleção
  31 Jul 2023
• Data do Fascículo
  2023

Histórico

• Recebido
  30 Ago 2022
• Revisado
  21 Mar 2023
• Aceito
  28 Mar 2023