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O que é uma ferramenta historiográfica?

What is a historiographical tool?

No seu conhecido ensaio “A operação historiográfica”, publicado em meados da década de 1970 em A escrita da história, Michel de Certeau, sob a rubrica da segunda seção do texto, intitulada “Uma prática”, menciona os impactos do computador na historiografia. Segundo o autor,

a transformação do “arquivístico” é o ponto de partida e a condição de uma história nova. Está destinada a representar o mesmo papel que a “máquina” erudita dos séculos XVII e XVIII. Eu não usaria senão um exemplo: a intervenção do computador ( CERTEAU, 2002CERTEAU, Michel de. A operação historiográfica. In: CERTEAU, Michel de. A escrita da história. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2002. p. 56-108., p. 82, grifo nosso).

E, no desenvolvimento de sua apreciação sobre o computador, enquadrada no momento de sua argumentação em que fala sobre a constituição das fontes históricas pelas historiadoras e pelos historiadores, é difícil não pensar que é a mediação do computador que torna possível completar o preceito - estabelecido por Marc Bloch - pelo qual é o questionário que faz a fonte, e não o contrário:

a análise contemporânea altera os procedimentos ligados à “análise simbólica” que prevaleceu a partir do romantismo e que buscou reconhecer um sentido dado e oculto: ele reencontra a confiança na abstração que é hoje um conjunto formal de relações ou “estrutura”. Sua prática consiste em construir “modelos” propostos decisoriamente, em “substituir o estudo do fenômeno concreto pelo estudo de um objeto constituído por sua definição”, em julgar o valor científico deste objeto segundo o campo de questões a que permite responder e segundo as respostas que fornece, finalmente, em “fixar os limites da significabilidade deste modelo” ( CERTEAU, 2002CERTEAU, Michel de. A operação historiográfica. In: CERTEAU, Michel de. A escrita da história. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2002. p. 56-108., p. 82-83, grifo no original).

A intervenção do computador, portanto, desfaz a ilusão da naturalidade das fontes históricas - como já afirmara François Furet anteriormente, estas não seriam meros documentos encontrados por acaso, ordenados arbitrariamente ou classificados segundo critérios eles mesmos historicamente datados, mas seriam o resultado da atuação de uma pesquisadora ou pesquisador que cria o campo sobre o qual atua ( FURET, 1977FURET, François. O quantitativo em história. In: LE GOFF, Jacques; NORA, Pierre (org.). Fazer história: novos problemas. Amadora: Livraria Bertrand, 1977. p. 73-91.). A intervenção do computador significa uma mudança radical na concepção de fonte histórica, que caminha em direção à sua definitiva cientificidade.

Não obstante, suas consequências não terminam aí e mostrando, como afirmou Paul Ricoeur, que a divisão entre as três seções do texto - “um lugar”, “uma prática” e “uma escrita” - é, pode-se dizer, apenas funcional (mas não arbitrária), uma vez que a história é de ponta a ponta escrita, percebe-se, na avaliação de Michel de Certeau, que o estatuto renovado das fontes - a heurística - leva também à aplicação de novos modelos epistemológicos. No item seguinte, ele aponta que a introdução do computador não significa apenas tornar maior, mais rápida ou mais fácil a tarefa da história quantitativa:

este procedimento parece inverter a história tal como se praticava no passado. Partia-se de vestígios (manuscritos, peças raras, etc.) em número limitado e tratava-se de apagar toda a sua diversidade, de unificá-la em uma compreensão coerente. Porém, o valor desta totalização indutiva dependia, então, da quantidade de informações acumuladas. Vacilava quando sua base documental era comprometida por colheitas relatadas por novas investigações. A pesquisa - e seu propósito, a tese - tendiam a prolongar indefinidamente o tempo da informação, com o fim de retardar o momento fatal, quando elementos desconhecidos viriam minar suas bases. Frequentemente monstruoso, o desenvolvimento quantitativo da caça aos documentos terminou por introduzir no próprio trabalho, tornado interminável, a lei que o destinava à caducidade assim que terminado. Um limiar foi ultrapassado, além do qual esta situação se inverte, passa-se a mudanças incessantes de modelos. Com efeito, o estudo se estabelece hoje de imediato sobre unidades definidas por ele mesmo, na medida em que se torna e deve tornar-se capaz de fixar a priori objetos, níveis e taxonomias de análise. A coerência é inicial. A quantidade de informação tratável em função destas normas tornou-se, com o computador, indefinida ( CERTEAU, 2002CERTEAU, Michel de. A operação historiográfica. In: CERTEAU, Michel de. A escrita da história. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2002. p. 56-108., p. 85, grifo nosso).

De fato, tudo passa pela relação entre documento, modelo e explicação, de maneira que é possível concluir este excurso certeauniano destacando a menção (e o reconhecimento) dos interditos e não-ditos desta nova tecnologia, o computador:

a especificação de seu papel não é determinada pelo próprio aparelho (o computador, por exemplo) que coloca a história no conjunto das imposições e das possibilidades nascidas da instituição científica presente. A elucidação do que é próprio da história está descentrada, com relação a este aparelho: ela reflui para o tempo preparatório de programação, que torna necessária a passagem pelo aparelho, e é lançada para a outra extremidade, para o tempo de exploração que os resultados obtidos expõem. Ela se elabora em função dos interditos que a máquina fixa, por objetos de pesquisa a construir e, em função daquilo que permite esta máquina, por um modo de tratar os produtos standard da informática. Mas, estas duas operações se articulam necessariamente na instituição técnica que inscreve cada pesquisa num “sistema generalizado” ( CERTEAU, 2002CERTEAU, Michel de. A operação historiográfica. In: CERTEAU, Michel de. A escrita da história. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2002. p. 56-108., p. 83, grifo no original).

Se o ensaio de Certeau é marcado pelo impacto inicial causado pela introdução do computador, o qual potencializou mas, ao cabo, enfraqueceu o significado das abordagens seriais e quantitativas no estudo da história, percebe-se, por outro lado, que a menção - nem tão breve assim - à computação ainda rende dividendos quando retomada atualmente, isto é, quando se investiga a relação entre o que é próprio da história e o que é próprio da computação e como ambos, enquanto tecnologia, metodologia e epistemologia, se combinam.

Não obstante, se o ensaio de Certeau continuou a ser citado, tornando-se até mesmo canônico para a definição da própria história da historiografia, a passagem sobre o computador se tornaria cada vez mais descentrada do debate historiográfico, aliás como ocorreu com outros textos da época que manifestavam o mesmo entusiasmo pela computação (e cujos parágrafos sobre este aparelho são normalmente negligenciados). 1 1 Talvez o principal exemplo seja Jacques Le Goff (1994). Em parte, a relação entre modelo e desvio pressuposta pela análise certeauniana da operação epistemológica propiciada pelo computador foi ressignificada e dissolvida na relação entre “excepcional” e “normal” que coroou o casamento entre a história social e a micro-história ( GRENDI, 1977GRENDI, Edoardo. Micro analisi e storia sociale. Quaderni storici, Bologna, v. 35, n. 2, p. 506-520, 1977.). Enquanto o desvio depende de um modelo, ressaltando a contribuição ativa da historiadora ou historiador na organização do material que analisa, “excepcional” e “normal” são relativos ao próprio processo histórico; eles só podem ser definidos através do conhecimento intensivo e dedicado à documentação que resultaria da familiaridade com um conjunto limitado de documentos que definem um lugar e período delimitados. Na prática da pesquisa, tal mudança resultou na valorização do documento histórico em sua individualidade e em sua unicidade, de modo que, apesar da maior abundância de fontes disponíveis para historiadoras e historiadores, os recortes temporais e geográficos progressivamente se tornaram menores, como já destacaram Jo Guldi e David Armitage (2018GULDI, Jo; ARMITAGE, David. Manifesto pela história. Belo Horizonte: Autêntica, 2018.), ao mesmo tempo que o avanço das tecnologias de produção e reprodução de imagens, a digitalização e a introdução de conexões de internet cada vez mais rápidas permitiram reproduzir os documentos, mais do que transformá-los para o ambiente computacional. As fontes, pode-se dizer, voltaram a ser naturalizadas em documentos e as difíceis questões levantadas por Certeau relativas ao impacto da computação na historiografia puderam ser deixadas de lado.

Tudo isso mudou, obviamente, nos últimos anos. Como destaca Eric Brasil, a possível ocorrência de uma “profunda virada digital nas humanidades nos últimos vinte anos” está relacionada à “combinação entre a digitalização das fontes primárias, a profusão na criação e disponibilização de novas fontes nativamente digitais, a dataficação das relações sociais e, consequentemente, a transformação nos métodos de pesquisa e construção do conhecimento histórico” (2). Entretanto, os impactos de uma e outra transformação têm sido diferenciados e, como resultado, “mesmo que parte significativa de nossas horas de trabalho sejam efetivadas na frente de uma tela, muitas das ferramentas que utilizamos não são enquadradas como parte de nossos métodos de pesquisa” (4). Quais as consequências desse desencontro entre aplicação e reflexão sobre as novas tecnologias?

Em certo sentido, “pyHDB - Ferramenta heurística para a Hemeroteca Digital Brasileira: utilizando técnicas de web scraping para a pesquisa em História”, de Eric Brasil, submetido à avaliação da revista História da Historiografia, trata justamente disso. Ele o faz, no entanto, através da apresentação de uma ferramenta, a pyHDB - Ferramenta heurística para a Hemeroteca Digital Brasileira (daqui para a frente, pyHDB), programada pelo próprio autor, que é uma ferramenta escrita na linguagem de programação Python que permite aplicar técnicas de coleta parametrizadas de grandes quantidades de dados de determinado site - técnica chamada web scraping, que se encontra no título do artigo - para tornar mais funcional e segura a utilização da Hemeroteca Digital Brasileira (daqui para a frente, HDB).

Como destaca o autor, não obstante sua grande aceitação no meio acadêmico e não-acadêmico brasileiro, para os quais se tornou um recurso indispensável, a interface da HDB ainda não contém alguns elementos que poderiam torná-la ainda melhor. É difícil, por exemplo, elaborar um registro de quando foi feita a pesquisa e, logo, determinar quando tal ou qual recurso esteve efetivamente disponível, o que se torna mais importante considerando a natureza volátil dos recursos digitais e a praxe de mencionar quando o site foi acessado; também com relação às boas práticas acadêmicas, a HDB normalmente não traz a atualização da URL na qual determinada página de um periódico se encontra. Grandes quantidades de resultados têm de ser acessados manualmente, o que é dispendioso temporalmente, enquanto as páginas consultadas não podem ser salvas em arquivos de imagem - o que é compreensível quando se trata de materiais sob restrição de direitos autorais, mas tem a consequência, não levantada pelo autor, de atomizar a pesquisa a conjuntos de palavras-chaves, desfazendo a unidade de sentido na qual a ocorrência se encontrava. A principal consequência, como já destacou o autor junto de Leonardo Nascimento (2020), é que se cita mal a HDB, de modo que sua natureza enquanto arquivo digital é ofuscada pela capacidade de acesso remoto a fontes digitalizadas.

O esquecimento do que é próprio da computação na HDB leva à negligência de seus impactos sobre o que é próprio da história. A interface gráfica da HDB ativamente reproduz a experiência de pesquisa analógica ( GALLOWAY, 2012GALLOWAY, Alexander. The Interface Effect. Cambridge: Polity Press, 2012.; EMERSON, 2014EMERSON, Lori. Reading Writing Interfaces: From the Digital to the Bookbound. Minneapolis: University of Minnesota Press, 2014.); em si, tal escolha não é um demérito, mas é resultado, teoricamente, de uma determinada compreensão do que é uma ferramenta de pesquisa, enquanto, praticamente, resulta no estreitamento das “possibilidades de uso desse arquivo monumental e fundamental para a pesquisa Histórica”, de modo que

mesmo sendo possível encontrar uma palavra ou frase entre milhões de páginas - que é um recurso fenomenal que tem transformado a pesquisa no Brasil -, não é possível trabalhar com esses mesmos resultados através de métodos e ferramentas mais sofisticadas das Humanidades Digitais ( BRASIL, 2022BRASIL, Eric; NASCIMENTO, Leonardo F. História digital: reflexões a partir da Hemeroteca Digital Brasileira e o uso de CAQDAS na reelaboração da pesquisa histórica. Revista Estudos Históricos, Rio de Janeiro, v. 33, n. 69, p. 202-219, 2020., p. 195).

No restante deste parecer, abordarei a relação entre os dois aspectos, teórico e prático, epistemológico e metodológico.

No campo das humanidades digitais norte-americanas, que se tornaram, devido a pressões financeiras, tecnológicas e linguísticas, as humanidades digitais dominantes globalmente, a passagem das décadas de 2000 a 2010 foi marcada por uma série de debates sobre o lugar da teoria e o que constituía a especificidade deste campo frente ao restante das humanidades que não eram digitais ( GOLD, 2012GOLD, Matthew K. (ed.). Debates in the Digital Humanities. Minneapolis: University of Minnesota Press, 2012.; TERRAS; NYHAM, VNAHOUTTE, 2013TERRAS, Melissa; NYHAM, Julianne; VANHOUTTE, Edward (ed.). Defining Digital Humanities: A Reader. Farnham: Ashgate, 2013.). Tais debates foram estruturados em torno da oposição entre metodologia e teoria, de modo a distinguir as pesquisadoras e pesquisadores que acompanharam o crescimento das digital humanities a partir das humanities computing surgidas nas décadas de 1960 e 1970 daquelas e daqueles que chegaram ao campo a partir dos estudos de mídia (ou da preocupação com a utilização das tecnologias digitais para a divulgação das pesquisas, e não necessariamente para sua realização). Talvez a mais veemente defesa de tal posição tenha sido de Stephen Ramsay, que, em 2011, alegou que

os praticantes das humanidades digitais insistem repetidamente que esse processo de criação fornece insights que são difíceis de adquirir de outro modo. É o que escuto desde que entrei nisso. Pessoas que marcam textos dizem isso, assim como os que criam software, hackeiam redes sociais, elaboram visualizações e perseguem as dezenas de outras formas de abordagens táteis que colocam os praticantes das humanidades digitais na mesma mesa ( RAMSSAY, 2013RAMSAY, Stephen. On Building. In: TERRAS, Melissa; NYHAM, Julianne; VANHOUTTE, Edward (ed.). Defining Digital Humanities: A Reader. Farnham: Ashgate, 2013. p. 242-244., p. 243).

O diagnóstico, resultado de todos os verbos mencionados, é que “se você não está fazendo algo, você não é [...] um humanista digital” ( RAMSAY, 2013RAMSAY, Stephen. On Building. In: TERRAS, Melissa; NYHAM, Julianne; VANHOUTTE, Edward (ed.). Defining Digital Humanities: A Reader. Farnham: Ashgate, 2013. p. 242-244., p. 243). Outro exemplo, relativamente conhecido, é o de Tom Scheinfeldt, que adia o tempo da reflexão teórica ao momento posterior ao esgotamento dos instrumentos digitais de pesquisa; como escreveu em 2010, quando afirmou que as humanidades digitais anunciavam uma ruptura epistemológica mais ampla, ainda que menos teorizada:

eu acredito que estamos passando por um momento similar de mudança agora que estamos entrando numa nova fase da pesquisa acadêmica que será dominada não por ideias mas novamente por atividades de organização, tanto em termos de organizar o conhecimento quanto organizar a nós mesmos e nosso trabalho ( SCHEINFELDT, 2012SCHEINFELDT, Tom. Sunset for Ideology, Sunrise for Methodology. In: GOLD, Matthew K. (ed.). Debates in the Digital Humanities. Minneapolis: University of Minnesota Press, 2012. p. 124-126., p. 125-126, tradução nossa).

E, por isso,

às vezes, novas ferramentas são construídas para responder questões preexistentes. Às vezes [...] novas questões e respostas são o produto colateral da criação de novas ferramentas. Às vezes é necessário tempo; enquanto isso, as próprias ferramentas e os espetaculares efeitos que elas produzem têm de ser o foco da atenção dos pesquisadores ( SCHEINFELDT, 2012SCHEINFELDT, Tom. Sunset for Ideology, Sunrise for Methodology. In: GOLD, Matthew K. (ed.). Debates in the Digital Humanities. Minneapolis: University of Minnesota Press, 2012. p. 124-126., p. 125-126, tradução nossa).

Enquanto isso, as ferramentas bastam por si, até o momento em que seja possível saber que conhecimento elas efetivamente produzem.

Nan Z. Da, professora de literatura inglesa na Universidade de Notre Dame, nos Estados Unidos, foi duramente - e, eu diria, injustamente - criticada pelos praticantes das humanidades digitais norte-americanas por afirmar que os resultados até então obtidos não justificavam o dispêndio de recursos e a atenção que tais projetos recebiam em programas de financiamento, diminuindo a participação relativa dos projetos nas humanidades não-digitais ( DA, 2019DA, Nan Z. The Computational Case against Computational Literary Studies. Critical Inquiry, Chicago, v. 45, n. 3, p. 601-639, 2019.). Para além de defender que os resultados das investigações em humanidades digitais não justificavam os meios empregados, o argumento da autora toca num ponto central, qual seja, é preciso um conjunto de problemas teóricos comuns, e não apenas o compartilhamento de um mesmo ambiente institucional, para determinar o que é uma disciplina ou subdisciplina científicas.

No Brasil e no mundo, o debate é levantado também por ocasião das pressões às quais a estrutura e o modo de proceder acadêmicos, sobretudo nas humanidades, têm encontrado. Eric Brasil resume particularmente bem a situação, atualizando-a para o contexto atual, quando afirma que

muitas reflexões emanam desse cenário, ainda de forma incipiente em espaços acadêmicos nacionais, e giram, em grande medida, em torno de dois pólos: de um lado a urgência em enfrentar tal virada digital como elemento chave para a produção historiográfica do século XXI. De outro, a setorização dos aspectos digitais da disciplina em uma subárea, restrita apenas aos interessados “nessas novidades tecnológicas” ( BRASIL, 2022BRASIL, Eric; NASCIMENTO, Leonardo F. História digital: reflexões a partir da Hemeroteca Digital Brasileira e o uso de CAQDAS na reelaboração da pesquisa histórica. Revista Estudos Históricos, Rio de Janeiro, v. 33, n. 69, p. 202-219, 2020., p. 188).

O problema acompanha a história da história digital, desde as reflexões pioneiras de Rolando Minuti (2001MINUTI, Rolando. Internet e il mestieri di storico. Riflessione sulle incertezze di una mutazione. Cromohs, vol. 6, 2001, s/página, disponível em https://web.archive.org/web/20180421151233/http://www.fupress.net/index.php/cromohs/issue/view/1097
https://web.archive.org/web/201804211512...
) passando, no Brasil, pelo trabalho - igualmente pioneiro - de Anita Lucchesi (2014LUCCHESI, Anita. Digital History e Storiografia digitale: estudo comparado sobre a escrita da história no tempo presente (2001-2011). Rio de Janeiro: Programa de Pós-Graduação em História Comparada/UFRJ, 2014, dissertação de mestrado.) até chegar a um conjunto de trabalhos cujo principal representante é o editorial de Andreas Fickers e Frédéric Clavert para o Journal of Digital History FICKERS, Andreas; CLAVERT, Frédéric. On pyramids, prisms, and scalable reading. Journal of Digital History, 2021, jdh0001, https://journalofdigitalhistory.org/en/article/jXupS3QAeNgb.
https://journalofdigitalhistory.org/en/a...
lançado em 2021, o qual sinaliza a maturidade do debate. Passado tanto tempo, não se trata, eu diria, simplesmente da questão a respeito da condição da história digital - ela é uma subdisciplina ou indica uma transformação de toda a historiografia -, pois os debates mais recentes já mostraram que, apesar das competências técnicas necessárias ao letramento digital serem pouco distribuídas entre as historiadoras e os historiadores, percebe-se que o que é feito na história digital reverbera sobre o conjunto da historiografia, seja na forma da pesquisa, seja na publicização de seus resultados. O debate, na minha opinião, é sobre o que é uma disciplina na atualidade, pois é aí que incide a relação entre teoria e prática que as humanidades digitais norte-americanas abordaram tão erroneamente - e que o autor do artigo, Eric Brasil, aponta de maneira tão acertada.

Num editorial recente da própria História da Historiografia, Lidiane Soares Rodrigues, María Inés Mudrovcic e Alexandre de Sá Avelar abordaram a possibilidade de uma reflexão sobre a “indisciplina” da história no instrumento disciplinar por excelência, o periódico científico. Não abordarei a conclusão dos autores - que tal reflexão é possível justamente no modo irônico de abordar a disciplina histórica como algo distante e próximo, desnaturalizando-a e abrindo-a para outras formas de compreendê-la -, mas destacarei o meio que leva os autores a levantarem tal proposta. Em sua opinião, existiriam duas maneiras de compreender as disciplinas científicas: a primeira, “logicista e formalista”, entende que as disciplinas são definidas a partir de métodos, objetos e problemas comuns e, “A partir disso, estabelecem-se as respectivas naturezas do conhecimento pressuposto em tais domínios, prescrevem-se as condições de possibilidade de intercâmbio entre eles, demarcando fronteiras e porosidades que mantenham suas especificidades” ( RODRIGUES; MUDROVCIC; AVELAR, 2021RODRIGUES, Lidiane; MUDROVCIC, María Inés; AVELAR, Alexandre de Sá. Rebeldia disciplinada?. História da Historiografia, Ouro Preto, v. 14, n. 36, p. 25-44, 2021., p. 26). De outro lado, existe uma perspectiva que é “histórica e sociológica”, segundo a qual

[...] rigorosamente nem um ponto lógico de apoio fixo e confortável é possível. As disciplinas são concebidas como produto da divisão social do trabalho de conhecimento e, nesse sentido, as aludidas definições lógico-formais só poderiam derivar de dinâmicas sociais de diferenciação ( RODRIGUES; MUDROVCIC; AVELAR, 2021RODRIGUES, Lidiane; MUDROVCIC, María Inés; AVELAR, Alexandre de Sá. Rebeldia disciplinada?. História da Historiografia, Ouro Preto, v. 14, n. 36, p. 25-44, 2021., p. 26).

O debate sobre as humanidades digitais e, junto dele, sobre a história digital incide nas duas dimensões da disciplinaridade: quais são os métodos, objetos e problemas comuns a um campo de atuação e quem são as pessoas capazes e/ou responsáveis por sua realização.

Uma e outra definições, no entanto, sofrem frente à necessidade de considerar que a demanda para alterações epistêmicas - quem pratica o conhecimento - e epistemológicas - o que o conhecimento intenta responder - é levada a cabo por um agente externo, o avanço da computação, e como ela é traduzida para o interior da membrana disciplinar. Isso toca, acredito, no ponto em que teoria e prática se combinam numa ferramenta.

Tanto a proposta das humanidades digitais norte-americanas quanto a crítica de Nan Z. Da reiteram a separação entre teoria e prática - uma, para dizer que a questão foi superada; outra, para dizer que ela foi insuficientemente resolvida. Entretanto, Eric Brasil apresenta, ainda que brevemente, uma apreciação mais complexa do assunto, quando ele afirma que a pyHDB não deve ser entendida apenas “uma técnica, mas também como uma maneira particular de lidar com informação e [com] o conhecimento”, de modo que “as ferramentas digitais são sempre ao mesmo tempo metodológicas e profundamente imiscuídas de teoria, impactando nos resultados epistemológicos” ( BRASIL, 2022BRASIL, Eric; NASCIMENTO, Leonardo F. História digital: reflexões a partir da Hemeroteca Digital Brasileira e o uso de CAQDAS na reelaboração da pesquisa histórica. Revista Estudos Históricos, Rio de Janeiro, v. 33, n. 69, p. 202-219, 2020., p. 197). Em meu entendimento, a passagem demonstra que a ferramenta não é apenas um auxiliar metodológico para a pesquisa, mas que ela produz teoria; é uma parte integral do conhecimento.

O debate sobre as humanidades digitais norte-americanas apresenta a teoria como algo externo; a teoria informa uma prática, a qual pode ser mais ou menos desvencilhada dos enunciados teóricos. As ferramentas são reduzidas ao âmbito dos instrumentos e medidas apenas por seu uso - elas servem ou não? Para Eric Brasil, por sua vez, ao longo do artigo, o próprio funcionamento das ferramentas já condiciona a produção destes mesmos enunciados, os quais articulam posteriormente a produção de novas ferramentas. Um resultado é a grande atenção dispensada aos diferentes elementos que determinam a experiência do usuário, da interface gráfica da HDB à ausência do código-fonte que permite realizar sua crítica. Tudo isso aponta para um campo de preocupações ampliado, que pode ser resumido na consideração segundo a qual as ferramentas não são apenas instrumentos que incidem na prática historiográfica, mas são formas operacionais que conceitos e preceitos epistemológicos assumem no encontro entre usuário, máquina e os dados que são processados.

O significado - ou, pelo menos, um dos resultados - da transformação digital do conhecimento histórico é introduzir a dimensão operacional enquanto princípio, meio e resultado da produção do conhecimento. É nesse sentido que historiadoras ou historiadores podem se tornar programadores - ou não, ao menos podem entender, como também destaca Eric Brasil, que tais aspectos, como a interface e o código, se tornaram parte da crítica das fontes.

A articulação entre o que é próprio da história e o que é próprio da computação depende do reconhecimento dessa situação. A “virada digital” da historiografia, mencionada por Eric Brasil, encontra-se aí. Não se trata somente da utilização das tecnologias digitais - computadores, bancos de dados, redes sociais, ferramentas de análise -, mas da compreensão das transformações na ideia de conhecimento operadas pela introdução do computador. Com isso, a historiografia se junta ao debate sobre o caráter da prática científica nas últimas décadas, o qual tem relação com a dissolução das fronteiras entre ciência aplicada e teoria, o caráter dos objetos científicos e o papel dos instrumentos na produção do conhecimento ( DASTON; GALISON, 2007DASTON, Lorraine; GALISON, Peter. Objectivity. New York: Zone Books, 2007.; HALPERN, 2014HALPERN, Orit. Beautiful Data: A History of Vision and Reason since 1945. Durham: Duke University Press, 2014.).

Isso já havia sido, de certo modo, antecipado por Michel de Certeau, quando ele sinalizou que a introdução do computador operava uma mudança do desvio em direção ao modelo. Mesmo assim, é possível perguntar por que precisamos de ferramentas? Não é apenas porque a quantidade de registros aumentou, embora certamente isso influencie nas escolhas sobre como pesquisamos; eu diria que as ferramentas se tornaram necessárias, em primeiro lugar, devido à natureza dos registros - eles são digitais, o que permite sua “decomposição” em diferentes camadas e modos de funcionamento, tornando-os analisáveis não apenas ao nível da interface, mas também do código e das informações que ele contém 2 2 Para além das discussões sobre small data ou thick data, uma boa apreciação dos desafios e das novas formas de conduta com conjuntos diversos de dados é oferecida por Catherine D’Ignazio e Lauren F. Klein (2020). - e, por conseguinte, na própria ideia, apresentada por Ramsay de modo beligerante, de ser necessário fazer algo para que eles possam ser estudados. O que é necessário teorizar, e que Ramsay não faz, é o que significa a conversão operacional dos conceitos históricos, que encontra sua principal expressão nas ferramentas computacionais de análise.

*

Existem muitos outros aspectos que poderia destacar no artigo de Eric Brasil, cuja trajetória no ensino e na pesquisa de humanidades digitais tem transformado num dos principais atores do debate - e uma das pessoas a fazer a ligação entre o que é próprio da história e o que é próprio da computação. Uma das questões levantadas - e que seria interessante conhecer mais sobre a opinião do autor - é a relação entre transparência, metodologia e disponibilidade dos códigos, o que o autor sugere no artigo deveria ser de praxe em projetos, como a HDB, realizados com financiamento público. O problema mostra uma dimensão bastante concreta da relação entre história digital e história pública, não no sentido de construir uma história pública digital, no dizer de Serge Noiret, mas de uma história digital pública, isto é, uma história digital que atende, do início ao fim, o princípio da transparência e da responsabilidade. Mesmo assim, quis aprofundar a dimensão destacada aqui, pois é, ainda, a natureza da história digital e seus impactos sobre a historiografia que estão em debate. O artigo de Eric Brasil, na minha leitura, apresenta um avanço significativo na proposição de questões e ferramentas para a resolução desse impasse.

Referências

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  • TERRAS, Melissa; NYHAM, Julianne; VANHOUTTE, Edward (ed.). Defining Digital Humanities: A Reader. Farnham: Ashgate, 2013.
  • Financiamento:

    Não se aplica.
  • Aprovação no comitê de ética:

    Não se aplica.
  • Preprint

    O parecer não é um preprint.
  • Disponibilidade de dados de pesquisa e outros materiais

    Não se aplica.
  • 1
    Talvez o principal exemplo seja Jacques Le Goff (1994LE GOFF, Jacques. Documento/monumento. In: LE GOFF, Jacques. História e Memória. Campinas: Editora da UNICAMP, 1994. p. 535-549.).
  • 2
    Para além das discussões sobre small data ou thick data, uma boa apreciação dos desafios e das novas formas de conduta com conjuntos diversos de dados é oferecida por Catherine D’Ignazio e Lauren F. Klein (2020D’IGNAZIO, Catherine; KLEIN, Lauren F. Data Feminism. Cambridge, Mass.: The MIT Press, 2020.).

Disponibilidade de dados

Não se aplica.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    09 Out 2023
  • Data do Fascículo
    Sep-Dec 2022
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