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Sem nomes e sem histórias, mas amados: a escrita da história da escravidão em Perder a mãe, de Saidiya Hartman

They have no names and no stories, but they are beloved: the writing of the history of slavery in Lose Your Mother, by Saidiya Hartman

Resumo

O artigo se propõe a pensar Perder a mãe: uma jornada pela rota atlântica da escravidão, de Saidiya Hartman, em diálogo com os seus ensaios “Tempo da escravidão” e “Vênus em dois atos”, como uma escrita da história da escravidão que concebe os escravizados como seus ancestrais à medida que a autora se afirma como uma descendente de escravizados que vive a sobrevida da escravidão. Situando-a na nova história social da escravidão e no debate em torno do caráter narrativo e ficcional da história, argumentamos como Hartman, apoiada em uma tradição radical negra, elabora uma escrita da história que tenta dar conta dos milhões de mortos sem nomes e sem histórias ao longo do tráfico de escravos. Nesse processo, não apenas o esquecimento, mas também a impossibilidade de lembrar diante da escassez de fontes documentais ou de contornar a violência do arquivo se impõem como desafios ao trabalho de luto dessas vidas perdidas, levando-a à criação do método da fabulação crítica, que dialoga com o pensamento de Toni Morrison ao escrever o romance Amada. Ao fim, conclui-se que a escrita da história da escravidão deve ser acompanhada por um gesto ético de cuidado com os mortos, buscando não a redenção, mas a narração dessas vidas perdidas.

Palavras-chave:
Escravidão; Escrita da história; Luto

Abstract

The article aims to think of Lose Your Mother: A Journey Along the Atlantic Slave Route, by Saidiya Hartman, in dialogue with “Time of Slavery” and “Venus in Two Acts” as a writing of the history of slavery that considers slaves as her ancestors inasmuch as she claims to be a descendant of slaves who lives the afterlife of slavery. Situating her work in the new social history of slavery and in the debate about the narrative and fictional character of history, we argue that Hartman, based on a black radical tradition, elaborates a historical writing that tries to account for the millions of dead people who have no names and no stories throughout the slave trade years. In this sense, not only forgetfulness but also the impossibility to remember in face of the scarcity of documentary sources, or to avoid the violence of the archive challenges the work of mourning these lost lives, leading her to create the method of critical fabulation, which dialogues with the thoughts of Toni Morrison on the novel Beloved. In the end, this text concludes that the writing of the history of slavery must be accompanied by an ethical gesture of care for the dead, seeking not redemption, but the narration of these lost lives.

Keywords:
Slavery; Writing history; Mourning

Nada nunca morre.

Toni Morrison (2011MORRISON, Toni. Amada. Trad. José Rubens Siqueira. São Paulo: Companhia das Letras , 2011., p. 64)

Introdução

Nas últimas duas décadas do século XX, casos de pessoas negras sendo assassinadas pela polícia têm ganhado mais repercussão e sido amplamente difundidos nas redes sociais. Com câmeras e celulares em mãos, os derradeiros momentos das vítimas têm sido filmados e divulgados nas redes, num gesto ambíguo de denúncia e espetacularização da violência, reiterada a partir de compartilhamentos que reproduzem a cena do assassinato ad infinitum. Nos Estados Unidos e no Brasil, Claudia Ferreira da Silva, Eric Garner, George Floyd, João Alberto Silveira Freitas, Genivaldo Santos são alguns dos tantos nomes que conhecemos após suas mortes violentas e filmadas e que levaram a diferentes manifestações contra o racismo. Como afirma Alexander (1994ALEXANDER, Elizabeth. “Can you be Black and Look at This?”: Reading the Rodney King Video(s). Public Culture, Durham, v. 7, n. 1, p. 77-94, 1994. Disponível em: https://doi.org/10.1215/08992363-7-1-77 . Acesso em: 5 set. 2022.
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, p. 81), corpos negros em dor têm sido um espetáculo de consumo público há séculos, ensinando à população negra a “triste lição de sua contínua vulnerabilidade física”.

Por mais que a internet possa colaborar para a denúncia do racismo e para a conscientização racial da sociedade, a necessidade de que a violência antinegro seja materializada e evidenciada pela exposição e reiteração do corpo em dor “reforça o caráter espetacular do sofrimento negro” (HARTMAN, 1997HARTMAN, Saidiya. Scenes of Subjection: Terror, Slavery, and Self-Making in Nineteenth-Century America. New York: Oxford University Press, 1997., p. 3). A violência racista se torna, assim, discernível somente em episódios hediondos, como se a força da reação estivesse proporcionalmente relacionada ao grau da violência infligido. Além disso, a velocidade da circulação de informações na internet em torno de mais um caso de violência parece fazer do presente uma urgência que se impõe como a única realidade a ser enfrentada, sobretudo em um momento em que o debate antirracista tem aparentemente ganhado mais força, e práticas de combate ao racismo têm obtido mais apoio da sociedade civil.

Nesse contexto, os vídeos que registram os assassinatos serviriam, então, como recursos que nos exigem uma tomada de posição diante de uma realidade marcada, nos últimos anos, por uma maior conscientização sobre o racismo. Nesse cenário, as mortes de pessoas negras não param de acontecer, o que tem sido apontado historicamente por diferentes ativistas, intelectuais e organizações do movimento negro, como a Coalizão Negra ou Reaja ou Será Morta, Reaja ou Será Morto, como parte de um processo de genocídio do negro brasileiro (NASCIMENTO, 2016NASCIMENTO, Abdias. O genocídio do negro brasileiro: processo de um racismo mascarado. São Paulo: Perspectiva , 2016.). Esse extermínio, por sua vez, não deve ser compreendido apenas do ponto de vista da morte matada, mas também da “morte desgraçada”. Segundo a conclusão de um estudo sobre causas de óbito com base nos dados de raça/cor no Estado de São Paulo, esta seria a morte:

que não tem causa em doenças; decorre de infortúnio. É uma morte insensata, que bule com as coisas da vida, como a gravidez e o parto. É uma morte insana, que aliena a existência em transtornos mentais. É uma morte de vítima, em agressões de doenças infecciosas ou de violência de causas externas. É uma morte que não é morte, é mal definida. A morte negra não é um fim de vida, é uma vida desfeita, é uma Átropos ensandecida que corta o fio da vida sem que Cloto o teça ou que Láquesis o meça. A morte negra é uma morte desgraçada (BATISTA; ESCUDERO; PEREIRA, 2004BATISTA, Luís Eduardo; ESCUDER, Maria Mercedes Loureiro; PEREIRA, Julio Cesar Rodrigues. A cor da morte: causas de óbito segundo características de raça no Estado de São Paulo, 1999 a 2001. Revista de Saúde Pública, São Paulo, v. 38, n. 5, p. 630-636, 2004. Disponível em: https://doi.org/10.1590/S0034-89102004000500003 . Acesso em: 5 set. 2022.
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, p. 635, grifo no original).

Diante de tantas mortes desgraçadas que são parte de um genocídio em curso, a contagem dos mortos do presente não se confunde com a contagem dos mortos do passado da escravidão? E se essas mortes que se acumulam no tempo presente fossem vistas como parte de um evento que não terminou e fôssemos lançados para o passado da escravidão como um passado que ainda não acabou, cujo horror ainda não foi interrompido? Estas são questões que instigam a leitura, neste artigo, do trabalho da historiadora afro-americana Saidiya Hartman (2020HARTMAN, Saidiya. Vênus em dois atos. Revista ECO-Pós, Rio de Janeiro, v. 23, n. 3, p. 12-33, 2020b. Trad. Marcelo R. S. Ribeiro e Fernanda Silva e Sousa. Disponível em: https://doi.org/10.29146/eco-pos.v23i3.27640 . Acesso em: 5 set. 2022.
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a, p. 928), que pergunta: “Como podemos entender o luto quando o evento ainda tem que terminar? Quando as feridas não apenas perduram, mas também são infligidas de novo? É possível lamentar o que ainda não parou de acontecer?”. Nesse sentido, como escrever a história do presente sem realizar um trabalho de luto em relação aos mortos do passado escravista e como escrever a história da escravidão sem realizar o mesmo trabalho com os mortos do presente face à “natureza constitutiva da perda na formação da diáspora africana e o papel do luto na identificação transatlântica”? (HARTMAN, 2020a HARTMAN, Saidiya. Tempo da escravidão. Contemporânea: Revista de Sociologia da UFSCar, São Carlos, v. 10, n. 3, p. 927-948, 2020a. Trad. Carolina Nascimento De Melo. Disponível em: https://doi.org/10.31560/2316-1329.v10n3.4 . Acesso em: 5 set. 2022.
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, p. 929). E quando se é uma mulher negra que se afirma como descendente de escravizados, como é o caso de Hartman, a escrita da história da escravidão também não pode se tornar uma escrita de sua própria história, concebendo os escravizados também como seus ancestrais?

São esses questionamentos, produzidos pela leitura do trabalho de Saidiya Hartman, especialmente por Perder a mãe: uma jornada pela rota atlântica da escravidão, publicado originalmente em 2006 e lançado no Brasil em 2021, que movem o presente artigo. Após Scenes of Subjection: Terror, Slavery, and Self-Making in Nineteenth-Century America (1997), quando analisou diários de fazendeiros, narrativas de escravizados, cartilhas e leis do período da Reconstrução, nos Estados Unidos, buscando investigar as linhas tênues entre terror, prazer, resistência e dominação no século XIX, Hartman, em Perder a mãe, dedica-se ao tráfico transatlântico de escravizados a partir de sua experiência em Gana e de sua pesquisa nos arquivos do tráfico, construindo uma posição não apenas de historiadora, mas também de descendente dos escravizados que foram levados às Américas. Em razão disso, Hartman concebe-os como seus ancestrais, estabelecendo um vínculo afetivo, político e ético com os mortos que convoca o seu corpo para o centro da narrativa que almeja construir por entender a história da escravidão como sua própria história.

Apropriando-se do legado de uma tradição radical e indisciplinar negra na academia (PEREIRA, 2021PEREIRA, Allan K. Escritas insubmissas: indisciplinando a História com Hortense Spillers e Saidiya Hartman. História da Historiografia: International Journal of Theory and History of Historiography, v. 14, n. 36, p. 481-508, 31 ago. 2021. Disponível em: https://doi.org/10.15848/hh.v14i36.1719 . Acesso em: 5 set. 2022.
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) que, no que diz respeito ao tratamento da vida de homens e mulheres escravizadas, foi bastante impactada pelo romance Amada, de 1987, da escritora afro-americana Toni Morrison, Hartman realiza, em Perder a mãe, um gesto que vai além do reconhecimento da agência de homens e mulheres escravizados e suas estratégias de resistência que marcou a virada nos estudos da história social da escravidão a partir da década de 1970 (MACHADO, 2014MACHADO, Maria Helena P. T. Crime e escravidão: trabalho, luta e resistência nas lavouras paulistas. São Paulo: Edusp, 2014.). Ela, em sua escrita, se propõe a cuidar dos mortos que não foram devidamente lamentados na história, aqueles cujos traços de suas existências não podem ser encontrados no arquivo da escravidão ou que foram vítimas de testemunhas falhas quanto aos seus nomes, às coisas que disseram ou que se recusaram a dizer (HARTMAN, 2020 b HARTMAN, Saidiya. Vênus em dois atos. Revista ECO-Pós, Rio de Janeiro, v. 23, n. 3, p. 12-33, 2020b. Trad. Marcelo R. S. Ribeiro e Fernanda Silva e Sousa. Disponível em: https://doi.org/10.29146/eco-pos.v23i3.27640 . Acesso em: 5 set. 2022.
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), em que “as histórias que existem não são sobre elas, mas sobre a violência, o excesso, a falsidade e a razão que se apoderaram de suas vidas (HARTMAN, 2020bHARTMAN, Saidiya. Vênus em dois atos. Revista ECO-Pós, Rio de Janeiro, v. 23, n. 3, p. 12-33, 2020b. Trad. Marcelo R. S. Ribeiro e Fernanda Silva e Sousa. Disponível em: https://doi.org/10.29146/eco-pos.v23i3.27640 . Acesso em: 5 set. 2022.
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, p. 15). Nesse contexto, elaborar um trabalho de luto em relação aos mortos do passado se torna, então, uma tarefa fundamental para lamentar os mortos do presente. Para isso, outras estratégias e formas narrativas de contar a história da escravidão se fazem necessárias para Hartman frente a essa dupla violência constitutiva do arquivo da escravidão: a violência da ausência ou escassez de informações sobre milhões de escravizados e a violência de um discurso desumanizante sobre aqueles que encontramos no arquivo. Nos dois casos, o que parece se dissipar é o que Hartman tenta buscar: imagens, vestígios e indícios de suas vidas.

À luz dessas questões centrais, apresentaremos a obra Perder a mãe: uma jornada pela rota atlântica da escravidão em conexão com os ensaios “Tempo da escravidão” (2020aHARTMAN, Saidiya. Tempo da escravidão. Contemporânea: Revista de Sociologia da UFSCar, São Carlos, v. 10, n. 3, p. 927-948, 2020a. Trad. Carolina Nascimento De Melo. Disponível em: https://doi.org/10.31560/2316-1329.v10n3.4 . Acesso em: 5 set. 2022.
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) e “Vênus em dois atos” (2020bHARTMAN, Saidiya. Vênus em dois atos. Revista ECO-Pós, Rio de Janeiro, v. 23, n. 3, p. 12-33, 2020b. Trad. Marcelo R. S. Ribeiro e Fernanda Silva e Sousa. Disponível em: https://doi.org/10.29146/eco-pos.v23i3.27640 . Acesso em: 5 set. 2022.
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), também marcados pela preocupação da autora com a representação histórica dos escravizados diante da violência do arquivo da escravidão, situando, primeiramente, seu trabalho no quadro de mudança de paradigmas e interesses no campo da história social da escravidão, que passa a privilegiar a agência dos escravizados e a desenvolver uma leitura a contrapelo das fontes, e no debate em torno do caráter ficcional e narrativo do passado, em especial no que diz respeito aos “vencidos”, aos mortos e ao lugar do sofrimento na escrita da história. No entanto, esses enquadramentos não são suficientes para compreender o modo como Hartman desafia os protocolos disciplinares da história ao convocar o seu corpo e sua história para o centro da sua escrita e para a relação que busca estabelecer com o arquivo da escravidão, em um movimento que se vincula a uma tradição radical e indisciplinar negra (PEREIRA, 2021PEREIRA, Allan K. Escritas insubmissas: indisciplinando a História com Hortense Spillers e Saidiya Hartman. História da Historiografia: International Journal of Theory and History of Historiography, v. 14, n. 36, p. 481-508, 31 ago. 2021. Disponível em: https://doi.org/10.15848/hh.v14i36.1719 . Acesso em: 5 set. 2022.
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), o que será abordado na segunda parte deste artigo. Por fim, aproximaremos Perder a mãe do romance Amada, estabelecendo paralelos entre o pensamento de Toni Morrison quanto à representação da escravidão ao escrever o romance e o método da “fabulação crítica”, apresentado por Saidiya Hartman em “Vênus em dois atos”, observando como ambas têm o anseio de cuidar dos escravizados mortos.

O pensamento de Saidiya Hartman à luz da história social da escravidão e do caráter ficcional e narrativo da história

Saidiya Hartman tem sido cada vez mais reconhecida no campo do pensamento negro como uma intelectual que tem elaborado novas possibilidades de se aproximar do arquivo da escravidão e do pós-abolição, buscando “atingir um objetivo impossível: reparar a violência que produziu números, códigos e fragmentos de discurso, que é o mais próximo que nós chegamos a uma biografia da cativa e da escravizada” (HARTMAN, 2020 b HARTMAN, Saidiya. Vênus em dois atos. Revista ECO-Pós, Rio de Janeiro, v. 23, n. 3, p. 12-33, 2020b. Trad. Marcelo R. S. Ribeiro e Fernanda Silva e Sousa. Disponível em: https://doi.org/10.29146/eco-pos.v23i3.27640 . Acesso em: 5 set. 2022.
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, p. 15). Investindo na dimensão narrativa da escrita da história com base em uma imaginação radical, esforçando-se para “representar as vidas dos sem nomes e dos esquecidos” e para “considerar a perda e respeitar os limites do que não pode ser conhecido” (HARTMAN, 2020bHARTMAN, Saidiya. Vênus em dois atos. Revista ECO-Pós, Rio de Janeiro, v. 23, n. 3, p. 12-33, 2020b. Trad. Marcelo R. S. Ribeiro e Fernanda Silva e Sousa. Disponível em: https://doi.org/10.29146/eco-pos.v23i3.27640 . Acesso em: 5 set. 2022.
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, p. 17), seu trabalho não está, no entanto, dissociado das transformações e tendências analíticas que ganharam força no campo da história social da escravidão na segunda metade do século XX.

Reconhecendo os limites de estudos centrados em aspectos estruturais ou quantitativos em torno da escravidão, que contribuíam para reificação e revitimização dos escravizados, historiadores e historiadoras se voltaram a sujeitos históricos concretos, vítimas e agentes no interior da escravidão, buscando compreender esse período no interior de trajetórias singulares, mas que apontavam para estratégias coletivas. O objetivo passou a ser “recuperar o escravo, seu universo mental e ideológico, sua vida cotidiana, no interior do sistema escravista em funcionamento” (MACHADO, 2014MACHADO, Maria Helena P. T. Crime e escravidão: trabalho, luta e resistência nas lavouras paulistas. São Paulo: Edusp, 2014., p. 30), o que envolvia uma revisão do conceito de resistência, considerando que “a elaboração de uma ética particular do trabalho, de valores morais independentes e a concepção de um mundo próprio a partir do qual se deu a vivência da escravidão caracterizaram espaços de autonomia do escravo” (MACHADO, 2014MACHADO, Maria Helena P. T. Crime e escravidão: trabalho, luta e resistência nas lavouras paulistas. São Paulo: Edusp, 2014., p. 31), indo além dos levantes, fugas e quilombos. O primeiro livro de Saidiya Hartman, Scenes of Subjection: Terror, Slavery, and Self-Making in Nineteenth-Century America, problematiza, inclusive, os limites da agência dos escravizados face à enormidade da dor produzida pela violência da escravidão, “que destrói ou excede as formas de reparação disponíveis ao escravizado” (HARTMAN, 1997HARTMAN, Saidiya. Scenes of Subjection: Terror, Slavery, and Self-Making in Nineteenth-Century America. New York: Oxford University Press, 1997., p. 51), mas não deixa de marcar que as ações de pequena escala e formas diárias de resistência “interrompiam, reelaboravam e desafiavam as restrições da vida cotidiana sob a escravidão e exploravam aberturas no sistema em favor do escravizado” (HARTMAN, 1997HARTMAN, Saidiya. Scenes of Subjection: Terror, Slavery, and Self-Making in Nineteenth-Century America. New York: Oxford University Press, 1997., p. 51).

Nesse sentido, novos estudos em torno da formação de famílias negras no contexto escravista, como The Black Family in Slavery and Freedom, 1750-1925, de Herbert G. GutmanGUTMAN, Herbert G. The Black Family in Slavery and Freedom, 1750-1925. New York: Vintage Books, 1977. , e A terra prometida: o mundo que os escravos criaram, de Eugene D. GenoveseGENOVESE, Eugene D. A terra prometida: o mundo que os escravos criaram. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988. , ambos publicados na década de 1970, foram fundamentais para desestabilizar visões desumanizantes dos escravizados, como se tivessem tido todos os seus vínculos, relações e valores completamente destituídos pela escravidão. Com o que ficou conhecido como nova história social da escravidão, as famílias escravizadas passaram a ser investigadas a partir de uma busca por reconstituir o que a noção de família significava para os próprios escravizados diante de circunstâncias e dinâmicas históricas específicas e como ela “fornecia aos escravos recursos importantes para enfrentar e subverter as condições de seu cativeiro” (SLENES, 2011SLENES, Robert W. Na senzala, uma flor: esperanças e recordações na formação da família escrava: Brasil Sudeste, século XIX. Campinas: Editora da Unicamp, 2011., p. 47).

No caso do Brasil, destaca-se o clássico estudo Na senzala, uma flor: esperanças e recordações na formação da família escrava, de Robert Slenes, publicado em 1999, que demonstrou, com base em um estudo da presença de famílias escravizadas nas grandes e médias fazendas no Sudeste, com foco em Campinas, que elas não apenas existiam, como também se reproduziam ao longo do tempo como um núcleo de construção de valores, recordações e anseios que desafiavam a escravidão e sustentavam as esperanças de liberdade. Como consequência, a família se tornava o “centro de um ‘projeto de vida’”, expressando “um mundo mais amplo que os escravos criaram a partir de suas esperanças e recordações; ou melhor, ela era apenas uma das instâncias culturais importantes que contribuíram [...] para a formação de uma identidade nas senzalas” (SLENES, 2011SLENES, Robert W. Na senzala, uma flor: esperanças e recordações na formação da família escrava: Brasil Sudeste, século XIX. Campinas: Editora da Unicamp, 2011., p. 59, grifo no original).

Porém, além da análise documental e quantitativa, Slenes interpreta a “flor” nas senzalas, isto é, as esperanças e recordações na família escrava valendo-se de estudos a respeito de cosmovisões centro-africanas, especialmente de origem Bantu, considerando que o Brasil foi um dos principais países a receber escravizados africanos e que passou, entre o fim do século XVIII e a década de 1850, auge do tráfico negreiro, por um longo processo de africanização, com a vinda de mais de um milhão de africanos da África Central para o Sudeste brasileiro. Nesse período, o número de africanos no país chegou a ultrapassar o número de escravizados nascidos no Brasil e, assim, africanos e seus descendentes sustentaram e transmitiram estruturas de pensamento, práticas e valores africanos em que a própria capacidade de sobrevivência e resistência quanto à escravidão passava pela tradução, recriação e negociação dessas formas e concepções em meio a suas experiências e desafios em solo brasileiro, pois “eles teriam percebido suas possibilidades de construir, a partir de uma herança cultural em comum, uma nova sociabilidade na própria soleira da porta que não se lhes abria, e contra aqueles que mantinham essa porta fechada” (SLENES, 1992SLENES, Robert W. “Malungu, ngoma vem!”: África coberta e descoberta do Brasil. Revista USP, São Paulo, n. 12, p. 48-67, 28 fev. 1992., p. 61).

À luz disso, a possibilidade de constituir um campo epistemológico e historiográfico a respeito da escravidão que fosse no âmago da experiência de sujeitos escravizados exigia um novo olhar sobre as fontes documentais e estatísticas e, ao mesmo tempo, certo conhecimento a respeito das visões, valores e sentidos dos africanos e seus descendentes, que não foram de todo perdidos na travessia da Passagem do Meio1 1 Em inglês, Middle Passage. Essa expressão diz respeito ao comércio triangular de escravizados que envolvia a África, as Américas e a Europa e tinha o Oceano Atlântico como a “passagem do meio” entre os três continentes. . Inventários, processos criminais, anúncios de fugas de escravizados, matérias de jornais, ainda que mediados por agentes e instituições do Estado, podiam dar a ver, em suas brechas e frestas, anseios, desejos, projetos e modos de pensar e viver dos escravizados, caso fosse feita uma leitura a contrapelo do arquivo (MACHADO, 2014MACHADO, Maria Helena P. T. Crime e escravidão: trabalho, luta e resistência nas lavouras paulistas. São Paulo: Edusp, 2014.; WISSENBACH, 1998WISSENBACH, Maria Cristina Cortez. Sonhos africanos, vivências ladinas: Escravos e forros em São Paulo, 1850-1880. São Paulo: Hucitec, 1998.; CHALHOUB, 2011CHALHOUB, Sidney. Visões da liberdade: uma história das últimas décadas da escravidão na Corte. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.). Com o compromisso de constituir uma história da escravidão a partir de múltiplos sujeitos, vistos em sua complexidade e numa miríade de processos sociais, a nova história social da escravidão tem privilegiado, assim, as estratégias de resistência e de liberdade dos escravizados.

Ao também desenvolver uma leitura a contrapelo do arquivo da escravidão, defendendo a necessidade de um trabalho com e contra esse arquivo (HARTMAN, 1997HARTMAN, Saidiya. Scenes of Subjection: Terror, Slavery, and Self-Making in Nineteenth-Century America. New York: Oxford University Press, 1997.), Saidiya Hartman se depara, no entanto, com uma tarefa que cada vez mais convoca o seu próprio corpo e sua história pessoal enquanto uma historiadora negra que se vê diante dos silêncios e lacunas dos documentos. Ainda que as fontes possam ser lidas a contrapelo, desvelando dimensões outras do vivido, sentido e desejado pelos escravizados, Hartman argumenta que essa tarefa é “fundamentada na impossibilidade - de escutar o não dito, traduzir palavras mal interpretadas e remodelar vidas desfiguradas” (HARTMAN, 2020bHARTMAN, Saidiya. Vênus em dois atos. Revista ECO-Pós, Rio de Janeiro, v. 23, n. 3, p. 12-33, 2020b. Trad. Marcelo R. S. Ribeiro e Fernanda Silva e Sousa. Disponível em: https://doi.org/10.29146/eco-pos.v23i3.27640 . Acesso em: 5 set. 2022.
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, p. 15), sobretudo no caso daqueles que não podem ser encontrados em fontes documentais.

Essa tarefa inevitavelmente fracassada de Hartman não é realizada, entretanto, sem amparo da própria historiografia, pois no interior da própria disciplina há discussões em torno da necessidade de meditar sobre o caráter ficcional e narrativo da História. Há questionamentos sobre as fronteiras estanques que se busca estabelecer entre o discurso historiográfico e o discurso literário a partir de noções de transparência, referencialidade e objetividade, com destaque para as reflexões do historiador Hayden White (2010WHITE, Hayden. The Fiction of Narrative: Essays on History, Literature, and Theory, 1957-2007. Baltimore: John Hopkins Press, 2010., p. 200), que apontou como a história, no processo de se tornar uma disciplina no século XIX, renunciou “às suas origens literárias, sua longa relação com a retórica, seu aspecto figurativo”. Nesse sentido, White (1994WHITE, Hayden. O texto histórico como artefato literário. In: WHITE, Hayden. Trópicos do Discurso: ensaios sobre a crítica da cultura. São Paulo: Edusp , 1994. p. 97-116. , p. 98) compreende as narrativas históricas como “ficções verbais cujos conteúdos são tanto inventados quanto descobertos e cujas formas têm mais em comum com os seus equivalentes na literatura do que com os seus correspondentes nas ciências” na medida em que os acontecimentos e dados históricos são selecionados, articulados e interpretados de maneira que

os documentos históricos não são menos opacos do que os textos estudados pelo crítico literário. Tampouco é mais acessível o mundo figurado por esses documentos. Um não é mais “dado” do que o outro. De fato, a opacidade do mundo figurada nos documentos históricos é, se é lícito falar de opacidade, aumentada pela produção de narrativas históricas (WHITE, 1994WHITE, Hayden. O texto histórico como artefato literário. In: WHITE, Hayden. Trópicos do Discurso: ensaios sobre a crítica da cultura. São Paulo: Edusp , 1994. p. 97-116. , p. 106).

Essa opacidade, por sua vez, não está desvinculada das tramas do poder e da violência que incidem na constituição de um arquivo histórico, marcado por “uma interação recíproca entre as desigualdades no processo histórico e as desigualdades na narrativa histórica”, de acordo com o historiador haitiano Michel-Rolph Trouillot (1995TROUILLOT, Michel-Rolph. Silencing the Past: Power and the Production of History. Boston: Beacon Press, 1995., p. 45), que afirma ser necessário considerar como o poder e os interesses de determinados grupos e classes sociais têm implicações no próprio processo histórico de produção de fontes, uma vez que há um “exercício do poder que torna algumas narrativas possíveis e silencia outras” (TROUILLOT, 1995TROUILLOT, Michel-Rolph. Silencing the Past: Power and the Production of History. Boston: Beacon Press, 1995., p. 27), o que nos ajuda a entender que

Os silêncios são inerentes à história porque qualquer evento singular entra na história com algumas de suas partes constituintes faltando. Alguma coisa está sempre deixada de fora enquanto alguma coisa mais é registrada [...]. Em outras palavras, os próprios mecanismos que tornam qualquer registro histórico possível também asseguram que fatos históricos não são criados igualmente. Eles refletem um controle diferencial dos significados do processo histórico na própria gravação que transforma um evento em um fato (TROUILLOT, 1995TROUILLOT, Michel-Rolph. Silencing the Past: Power and the Production of History. Boston: Beacon Press, 1995., p. 49).

Nesse processo, a leitura a contrapelo das fontes, que caracteriza a nova história social da escravidão, ancora-se em uma tentativa de iluminar os sentidos, práticas e valores daqueles que foram invisibilizados como agentes históricos e no processo de produção de fontes, numa busca por interromper o “cortejo triunfal” dos vencedores sobre os despojos dos vencidos, como defende Walter Benjamin (2012BENJAMIN, Walter. Sobre o conceito de história. In: BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. Obras Escolhidas. Trad. Sérgio Paulo Rouanet. 8ª ed. São Paulo: Brasiliense, 2012. p. 241-252. v. 1., p. 244), enquanto parte da tarefa de “escovar a história a contrapelo” (BENJAMIN, 2012BENJAMIN, Walter. Sobre o conceito de história. In: BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. Obras Escolhidas. Trad. Sérgio Paulo Rouanet. 8ª ed. São Paulo: Brasiliense, 2012. p. 241-252. v. 1., p. 245). Questionando uma visão linear e progressiva do tempo histórico, Benjamin afirma que há ecos de vozes do passado que ressoam em nosso presente, uma vez que

o passado traz consigo um índice secreto, que o impele à redenção. Pois não somos tocados por um sopro do ar que envolveu nossos antepassados? Não existem, nas vozes a que agora damos ouvidos, ecos de vozes que emudeceram? Não têm as mulheres que cortejamos irmãs que elas não chegaram a conhecer? Se assim é, então existe um encontro secreto marcado entre as gerações precedentes e a nossa (BENJAMIN, 2012BENJAMIN, Walter. Sobre o conceito de história. In: BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. Obras Escolhidas. Trad. Sérgio Paulo Rouanet. 8ª ed. São Paulo: Brasiliense, 2012. p. 241-252. v. 1., p. 242).

Torna-se necessário, então, uma outra escrita da história, que assuma seu próprio caráter incompleto e inacabado diante de um passado que jamais poderá ser reconstituído exatamente como foi, entendendo que “a história que se lembra do passado também é sempre escrita no presente e para o presente” (GAGNEBIN, 2004GAGNEBIN, Jeanne Marie. História e narração em W. Benjamin. São Paulo: Perspectiva, 2004., p. 97). Assim, para Benjamin, é preciso abrir mão de um tempo histórico cronológico para dar conta de um passado que só pode ser acessado em sua própria fugacidade e precariedade por meio de uma recordação, de “como ela relampeja no momento de um perigo” (BENJAMIN, 2012BENJAMIN, Walter. Sobre o conceito de história. In: BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. Obras Escolhidas. Trad. Sérgio Paulo Rouanet. 8ª ed. São Paulo: Brasiliense, 2012. p. 241-252. v. 1., p. 243), em que “somente a tentativa de parar o tempo pode permitir a uma outra história vir à tona” (GAGNEBIN, 2004GAGNEBIN, Jeanne Marie. História e narração em W. Benjamin. São Paulo: Perspectiva, 2004., p. 98).

Desestabilizando o tempo linear para dar conta daqueles que foram soterrados pelo cortejo triunfal dos vencedores, trata-se de realizar um trabalho baseado na “recordação ativa do sofrimento” (GAGNEBIN, 2004GAGNEBIN, Jeanne Marie. História e narração em W. Benjamin. São Paulo: Perspectiva, 2004., p. 128) daqueles que ficaram pelo caminho, isto é, dos mortos, pois o historiador precisa estar “convencido de que tampouco os mortos estarão em segurança se o inimigo vencer. E esse inimigo não tem cessado de vencer” (BENJAMIN, 2012BENJAMIN, Walter. Sobre o conceito de história. In: BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. Obras Escolhidas. Trad. Sérgio Paulo Rouanet. 8ª ed. São Paulo: Brasiliense, 2012. p. 241-252. v. 1., p. 244). Nessa perspectiva, a história é também o lugar dos mortos, em que a escrita pode enterrá-los, conferindo-lhes um túmulo e, ao mesmo tempo, “estabelecer um lugar para os vivos”, como afirma Michel De Certeau (2001DE CERTEAU, Michel. A escrita da história. Trad. Maria de Lourdes Menezes. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2001., p. 107), que podem seguir em frente ao lembrar dos mortos.

Se recordar dos mortos, especialmente os “vencidos”, passa pela recordação ativa do sofrimento, então o historiador também precisa refletir sobre o lugar do sofrimento na narrativa que produz sobre o passado. Segundo Arlette Farge (2021FARGE, Arlette. Lugares para a história. Trad. Fernando Scheibe. Belo Horizonte: Autêntica, 2021., p. 13), “[...] responsável pelo enunciado dos acontecimentos que nos precederam, o historiador também o é pelo enunciado dos sofrimentos que encontra em seus documentos, ainda mais que a memória do sofrimento é por vezes fator de acontecimentos ulteriores”. Para ela, é preciso buscar no arquivo os “ditos de sofrimento” das pessoas ordinárias, que não devem ser confinados à literatura, como se não houvesse lugar para as emoções e os sentimentos na história.

As reflexões de Saidiya Hartman não estão, portanto, desvinculadas de um debate historiográfico em torno da ética da representação histórica dos oprimidos e do caráter narrativo da história. No entanto, o compromisso com os “vencidos” no campo da história disciplinar não parece suficiente para Saidiya Hartman quando se trata dos escravizados tendo em vista que a possibilidade de engajar eticamente com o sofrimento desses sujeitos é dificultada em função de um ruído negro facilmente contestável como fonte documental e de difícil representação na narrativa histórica:

como a narrativa pode encarnar a vida em palavras e, ao mesmo tempo, respeitar o que não podemos saber? Como alguém ouve os gemidos e gritos, as canções indecifráveis, o crepitar do fogo nos canaviais, os lamentos pelos mortos e os brados de vitória, e então atribui palavras a tudo isso? É possível construir um relato a partir do “locus da fala impossível” ou ressuscitar vidas a partir das ruínas? Pode a beleza fornecer um antídoto à desonra, e o amor uma maneira de “exumar gritos enterrados” e reanimar os mortos? (HARTMAN, 2020HARTMAN, Saidiya. Vênus em dois atos. Revista ECO-Pós, Rio de Janeiro, v. 23, n. 3, p. 12-33, 2020b. Trad. Marcelo R. S. Ribeiro e Fernanda Silva e Sousa. Disponível em: https://doi.org/10.29146/eco-pos.v23i3.27640 . Acesso em: 5 set. 2022.
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b, p. 16).

Trata-se de mortos que dizem respeito a Hartman para além do ofício de historiadora e sobre os quais parece estar convencida de que também não estão em segurança, pois “o vencedor já venceu” e “considerar nossa responsabilidade para com os mortos não pode salvá-los” (HARTMAN, 2020 a HARTMAN, Saidiya. Tempo da escravidão. Contemporânea: Revista de Sociologia da UFSCar, São Carlos, v. 10, n. 3, p. 927-948, 2020a. Trad. Carolina Nascimento De Melo. Disponível em: https://doi.org/10.31560/2316-1329.v10n3.4 . Acesso em: 5 set. 2022.
https://doi.org/10.31560/2316-1329.v10n3...
, p. 943): seus ancestrais e, ao mesmo tempo, seus contemporâneos à medida que homens e mulheres negras continuam sendo espoliados, violentados e assassinados de maneiras que atestam a continuidade da História como “um dano que ainda não parou de acontecer” (HARTMAN, 2020aHARTMAN, Saidiya. Tempo da escravidão. Contemporânea: Revista de Sociologia da UFSCar, São Carlos, v. 10, n. 3, p. 927-948, 2020a. Trad. Carolina Nascimento De Melo. Disponível em: https://doi.org/10.31560/2316-1329.v10n3.4 . Acesso em: 5 set. 2022.
https://doi.org/10.31560/2316-1329.v10n3...
, p. 944), em uma realidade em que ela mesma vive a escravidão como um passado que não passa, como afirma na introdução de Perder a mãe:

eu queria me envolver com o passado, sabendo que seus riscos e perigos ainda nos ameaçavam e que ainda agora havia vidas por um triz. A escravidão estabeleceu uma medida humana e um ranking de vida e valor que ainda têm de ser desconstruídos. Se a escravidão persiste como uma questão na vida política dos afro-americanos, não é por causa de uma obsessão antiquada com o passado ou o peso de uma memória muito longa, mas porque as vidas negras estão ainda sob perigo e ainda são desvalorizadas por um cálculo racial e uma aritmética política que foram entrincheirados séculos atrás. Esta é a sobrevida da escravidão - chances distorcidas de vida, acesso limitado à saúde e à educação, morte prematura, encarceramento e pobreza. Eu também sou a sobrevida da escravidão (HARTMAN, 2021HARTMAN, Saidiya. Perder a mãe: uma jornada pela rota atlântica da escravidão. Trad. José Luiz Pereira da Costa. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2021., p. 13).

É, então, apoiada em uma tradição negra radical e indisciplinar e colocando-se como uma descendente de escravizados que Hartman escancara os limites da história disciplinar no que diz respeito à possibilidade de escrever uma história da escravidão que torne as vidas dos escravizados passíveis de luto, isto é, perdas que podem ser lamentadas ao serem contadas de verdade como vidas (BUTLER, 2015BUTLER, Judith. Quadros de guerra: quando a vida é passível de luto? 7ª ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2015.), retirando-as, mesmo que em breves lampejos, das cenas de sujeição e morte.

Uma história da escravidão escrita por uma descendente de escravizados: a escrita da história de Saidiya Hartman no interior de uma tradição radical negra

W.E.B. Du Bois, um dos maiores intelectuais da diáspora negra, escreve em seu clássico As almas do povo negro, publicado em 1903, nos Estados Unidos:

Quase nunca vemos a condição atual do negro ser estudada de forma honesta e minuciosa. [...] E, no entanto, sabemos de fato pouquíssimo sobre esses milhões de pessoas - sobre seus cotidianos e suas aspirações, sobre suas alegrias e tristezas, sobre suas verdadeiras dificuldades e sobre o significado dos crimes que lhe atribuem! Tudo isso só pode ser aprendido com o contato próximo com as massas, e não com argumentos generalizantes que abrangem milhões de pessoas distantes no espaço e no tempo (DU BOIS, 2021DU BOIS, W. E. B. As almas do povo negro. São Paulo: Veneta, 2021., p. 164).

Escrevendo em primeira pessoa, no lugar de um intelectual que teorizava a respeito da vida negra desde dentro, como um homem negro que vivia na pele a experiência de discriminação e segregação racial, Du Bois imprime feições dramáticas e subjetivas à sua escrita, em que a representação da condição existencial da população negra é eivada por figuras de linguagem, como a metáfora, que parecem tentar traduzir um sofrimento da ordem do indizível por ser uma dor que também lhe diz respeito. Não à toa, é na própria abertura do livro que ele se interroga: “Como é a sensação de ser um problema?” (DU BOIS, 2021DU BOIS, W. E. B. As almas do povo negro. São Paulo: Veneta, 2021., p. 21).

Hortense Spillers, por sua vez, inicia seu aclamado ensaio “Bebê da mamãe, talvez do papai: uma gramática estadunidense”, no qual reflete sobre os corpos negros como corpos que são, antes de mais nada, carne, submetidos a diferentes signos, atributos e práticas violentas, dizendo:

vamos encarar. Eu sou uma mulher marcada, mas nem todo mundo sabe o meu nome. “Peaches” e “Brown Sugar”, “Sapphire” e “Earth Mother”, “Aunty”,Granny”, “Holy Fool” de Deus, uma “Miss Ebony First” ou “Black Woman at the Podium”: descrevo aqui um locus de identidades confundidas, um ponto de encontro de investimentos e privações no tesouro nacional da riqueza retórica. Meu país precisa de mim e, se eu não estivesse aqui, eu teria que ser inventada (SPILLERS, 2021SPILLERS, Hortense. Bebê da mãe, talvez do papai: uma gramática estadunidense. In: BARZAGHI, Clara; ARIAS, André; PATERNIANI, Stella Z. (org.). Pensamento negro radical. São Paulo: Crocodilo; n-1 edições, 2021., p. 29, grifos no original).

Enumerando uma série de estereótipos e arquétipos que historicamente tem substituído o nome próprio das mulheres afro-americanas, confinadas a formas de nomeação que reiteram a sua própria sujeição, Spillers teoriza sobre a gramática da violência racial situando seu corpo no interior dela, pois ela também é uma mulher marcada. Sua corporeidade que, nos termos desse ensaio, se materializa na “carne feminina desprotegida” e “desgenerificada”, uma vez que a escravidão efetuou um “roubo do corpo” (SPILLERS, 2021SPILLERS, Hortense. Bebê da mãe, talvez do papai: uma gramática estadunidense. In: BARZAGHI, Clara; ARIAS, André; PATERNIANI, Stella Z. (org.). Pensamento negro radical. São Paulo: Crocodilo; n-1 edições, 2021., p. 33), “oferece uma práxis e uma teoria, um texto para viver e para morrer, e um método para ler a ambos através de suas diversas mediações” (SPILLERS, 2021SPILLERS, Hortense. Bebê da mãe, talvez do papai: uma gramática estadunidense. In: BARZAGHI, Clara; ARIAS, André; PATERNIANI, Stella Z. (org.). Pensamento negro radical. São Paulo: Crocodilo; n-1 edições, 2021., p. 37).

Sobretudo no que diz respeito à escravidão e a seus efeitos, a escrita dessa história no interior de uma tradição radical negra tem sido caracterizada pelo uso da primeira pessoa, pela afirmação da subjetividade de quem escreve e, principalmente, por uma certa insubmissão aos ditames científicos, pois, como argumenta Christina Sharpe,

apesar de termos outros modos de conhecer, muitas vezes somos disciplinados a pensar em linhas que reinscrevem nossa própria aniquilação, reforçando e reproduzindo o que Sylvia Wynter (1994, p. 70) chamou de nosso “status narrativamente condenado”. Devemos nos tornar indisciplinados. O trabalho que fazemos requer novos modos e métodos de pesquisa e ensino; novas formas de entrar e sair dos arquivos da escravidão (SHARPE, 2016SHARPE, Christina. In the Wake: On Blackness and Being. Durham: Duke University Press , 2016., p. 13).

Os gestos teóricos-metodológicos de Saidiya Hartman estão, dessa maneira, apoiados em uma tradição radical e indisciplinar negra, tomando parte no coro de intelectuais negros que “se insurgem e enfrentam convenções disciplinares que, nos limites da prática historiográfica estabelecida, só conseguiam racionalizar a negritude como algo ‘fora da história’, como um ‘problema a ser resolvido’” (PEREIRA, 2021PEREIRA, Allan K. Escritas insubmissas: indisciplinando a História com Hortense Spillers e Saidiya Hartman. História da Historiografia: International Journal of Theory and History of Historiography, v. 14, n. 36, p. 481-508, 31 ago. 2021. Disponível em: https://doi.org/10.15848/hh.v14i36.1719 . Acesso em: 5 set. 2022.
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, p. 483) e assumem que é “preciso levar em conta a forma estética em que o negro era figurado narrativamente, pois isso era tão ou mais importante do que desafiar dados falsos e argumentos racistas” (PEREIRA, 2021PEREIRA, Allan K. Escritas insubmissas: indisciplinando a História com Hortense Spillers e Saidiya Hartman. História da Historiografia: International Journal of Theory and History of Historiography, v. 14, n. 36, p. 481-508, 31 ago. 2021. Disponível em: https://doi.org/10.15848/hh.v14i36.1719 . Acesso em: 5 set. 2022.
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, p. 486). Se a tarefa é rescrever a história da modernidade a partir do ponto de vista dos escravos e seus descendentes (GILROY, 2001GILROY, Paul. O atlântico negro: modernidade e dupla consciência. São Paulo: Editora 34, 2001.), assumir-se como uma historiadora que é descendente de escravizados é, também, como escreve a historiadora Beatriz Nascimento (2021NASCIMENTO, Beatriz. Por uma história do homem negro. In: NASCIMENTO, Beatriz. Uma história feita por mãos negras: relações raciais, quilombos e movimentos. Rio de Janeiro: Zahar, 2021. p. 37-46., p. 45, grifo no original), que defendia uma história do povo negro no Brasil contada por mãos negras, entender que “somos a história viva do preto, não números”.

Hartman adota uma postura indisciplinar que está atravessada pela recusa de métodos e procedimentos que promovam a objetificação da vida negra, em uma prática intelectual em que a teoria é também compreendida como “uma forma de contação de histórias” (McKITTRICK, 2021McKITTRICK, Katherine. Dear Science and Other Stories. Durham: Duke University Press, 2021. , p. 7). Nesse sentido, o fazer historiográfico de Hartman está fundamentado em um engajamento ético e estético com a narração de histórias de vidas arruinadas e violentadas tanto discursiva quanto materialmente (PEREIRA, 2021PEREIRA, Allan K. Escritas insubmissas: indisciplinando a História com Hortense Spillers e Saidiya Hartman. História da Historiografia: International Journal of Theory and History of Historiography, v. 14, n. 36, p. 481-508, 31 ago. 2021. Disponível em: https://doi.org/10.15848/hh.v14i36.1719 . Acesso em: 5 set. 2022.
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) para dar conta do irreparável, do indizível e do que parece inimaginável: as recusas e anseios daqueles cujas vozes não entraram no arquivo histórico da escravidão ou só podem ser encontradas em fontes documentais que reiteram sua desumanização. Como realizar uma tarefa que só pode precariamente se sustentar numa leitura a contrapelo das fontes quando estas quase nada oferecem sobre aqueles que morreram, por exemplo, ao longo da travessia transatlântica?

É o corpo de Saidiya Hartman que se torna, então, fonte para empreender um trabalho especulativo, tornando seus próprios gestos de recusa e seus sonhos de liberdade no presente uma bússola para inventariar os gestos e anseios não documentados de homens e mulheres negras escravizados. Por isso, o que ela vai formular como “fabulação crítica” - que será abordada na próxima seção -, um método que envolve imaginar o que poderia ter acontecido e o que poderia ter sido dito para além de uma gramática da violência, está intimamente relacionado à sua experiência como mulher negra, o que a leva a extrapolar os limites do discurso historiográfico em Perder a mãe: uma jornada pela rota atlântica da escravidão. Como afirma no prólogo do livro,

minha formação na pós-graduação não havia me preparado para contar as histórias daqueles que não deixaram registros de suas vidas e cujas biografias consistiam de coisas terríveis ditas a seu respeito ou feitas contra eles. Eu estava determinada a preencher os espaços em branco do arquivo histórico e representar a vida daqueles considerados indignos de serem lembrados, mas como escrever uma história sobre um encontro com o nada? (HARTMAN, 2021HARTMAN, Saidiya. Perder a mãe: uma jornada pela rota atlântica da escravidão. Trad. José Luiz Pereira da Costa. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2021., p. 25).

Em linhas gerais, Perder a mãe gira em torno de sua viagem para Gana nos anos finais da década de 1990, quando participou do que ficou conhecido como “turismo de raízes” ao visitar fortes escravistas e desenvolveu uma pesquisa de campo como bolsista da Fulbright, refletindo sobre o modo como o tráfico de escravos se deu ali e como a população ganense lidava com esse passado. Porém, além de um livro de história, Hartman escreve também uma espécie de diário de viagem, autobiografia e romance, pois “tanto como professora conduzindo uma pesquisa sobre escravidão quanto como descendente de escravizados, eu estava ávida por reivindicar os mortos, isto é, considerar as vidas desfeitas e obliteradas na formação de mercadorias humanas” (HARTMAN, 2021HARTMAN, Saidiya. Perder a mãe: uma jornada pela rota atlântica da escravidão. Trad. José Luiz Pereira da Costa. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2021., p. 13). Ela afirma ter escolhido Gana “porque o país possuía mais calabouços, prisões e celas de escravos do que qualquer outro na África Ocidental” (HARTMAN, 2021HARTMAN, Saidiya. Perder a mãe: uma jornada pela rota atlântica da escravidão. Trad. José Luiz Pereira da Costa. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2021., p. 13) e por estar

[...] em busca dos descartáveis e dos derrotados. Eu não tinha ido para contemplar as maravilhas da civilização africana ou para me orgulhar da corte real dos ashantis, ou admirar os grandes estados que colheram cativos e os venderam como escravos (HARTMAN, 2021HARTMAN, Saidiya. Perder a mãe: uma jornada pela rota atlântica da escravidão. Trad. José Luiz Pereira da Costa. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2021., p. 14).

Ao longo da obra, Hartman apresenta dados sobre o tráfico escravista em Gana e a participação de diferentes povos africanos na engrenagem colonial; reflete sobre a relação tensa entre ganenses que vivem uma realidade precária e afro-americanos endinheirados; reconstitui as promessas e sonhos de um território livre que tomaram conta do país na década de 1960, quando Gana se tornou independente; estabelece aproximações e diferenças entre a realidade dos negros nos EUA e a dos ganenses, entre outras questões. Entretanto, o que atravessa toda a dicção do livro é a sua consciência de estrangeira, de alguém que não pertence a nenhum dos dois países e, sobretudo, se sente órfã por ter perdido a “mãe”, pois “perder a mãe era ter o próprio parentesco, o próprio país, a própria identidade negados” (HARTMAN, 2021HARTMAN, Saidiya. Perder a mãe: uma jornada pela rota atlântica da escravidão. Trad. José Luiz Pereira da Costa. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2021., p. 108).

Em meio a essa solidão intratável, é com os escravizados que ficaram pelo caminho, vistos como seus ancestrais, que Hartman estabelece um vínculo ético e afetivo que lhe permite desenvolver um trabalho que não é exatamente de investigar os mortos, mas de cuidar deles e de lamentar suas vidas perdidas para que não sejam esquecidos. Seu desejo não é de voltar ao passado para reconstituir a resistência dos escravizados, mas “exigir que o desespero, a derrota e a morte tenham sua justa parte” na história da escravidão, pois chegou a hora de nos voltarmos ao passado em um gesto de luto (NEPTUNE, 2008NEPTUNE, Harvey. Loving Through Loss: Reading Saidiya Hartman’s History of Black Hurt. Anthurium: A Caribbean Studies Journal, Coral Gables, v. 6, n. 1, p. 1-6, jan. 2008. Disponível em: http://doi.org/10.33596/anth.113 . Acesso em: 5 set. 2022.
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, p. 1). Seu corpo é, então, “a lembrança de doze milhões que cruzaram o Atlântico e de que o passado ainda não acabou. Eu sou a prole dos cativos. Eu sou o vestígio dos mortos. E a história é como o mundo secular cuida dos mortos” (HARTMAN, 2021HARTMAN, Saidiya. Perder a mãe: uma jornada pela rota atlântica da escravidão. Trad. José Luiz Pereira da Costa. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2021., p. 27).

Por um lado, a sua formação como a historiadora não a preparou para lidar com um arquivo que “dita o que pode ser dito sobre o passado e os tipos de histórias que podem ser contadas sobre pessoas catalogadas, embalsamadas e lacradas numa caixa de pastas e fólios” (HARTMAN, 2021HARTMAN, Saidiya. Perder a mãe: uma jornada pela rota atlântica da escravidão. Trad. José Luiz Pereira da Costa. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2021., p. 26) e cuja leitura significa “adentrar um necrotério, que permite uma visão final e um último vislumbre de pessoas prestes a desaparecer no porão de escravos” (HARTMAN, 2021HARTMAN, Saidiya. Perder a mãe: uma jornada pela rota atlântica da escravidão. Trad. José Luiz Pereira da Costa. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2021., p. 26). Por outro, o romance Amada e as concepções de Toni Morrison2 2 Em abril de 2020, acompanhei uma live da página The Cheeky Natives, no Instagram, em que Hartman afirmou que Amada era a sua “bíblia” e que seu trabalho não seria possível sem a obra. A live, infelizmente, não ficou gravada em torno do livro oferecem subsídios que parecem ter preparado Saidiya Hartman para imaginar e contar as vidas dos escravizados, encorajando-a a realizar um trabalho de luto, no campo da história, aos mortos da escravidão, pois é preciso “assumirmos responsabilidade por pessoas pelas quais ninguém jamais assumiu responsabilidade. São aqueles que morreram no caminho. Ninguém sabe seus nomes, e ninguém pensa neles” (MORRISON, 1994MORRISON, Toni. In The Realm of Responsibility: A conversation with Toni Morrison (Interview with Marsha Darling). In: TAYLOR-GUTHRIE, Danille K. (org.). Conversations with Toni Morrison. Jackson: University Press of Mississippi, 1994. p. 246-254., p. 247), abrindo possibilidades para que sejam lembrados e amados.

Lamentar e amar os mortos contando e fabulando histórias: ressonâncias entre Amada e Perder a mãe

Publicado em 1987 nos Estados Unidos, Amada, de Toni Morrison, é um romance ambientado em 1873, no rescaldo da Guerra Civil norte-americana, protagonizado por Sethe, uma ex-escravizada da fazenda Doce Lar, em Kentucky. Sethe fugiu grávida e em meio à fuga para Cincinnati, no estado de Ohio, deu à luz a Denver. Ela fugiu para encontrar seus três filhos - dois meninos, Howard e Buglar, e uma bebê que engatinhava e não tinha nome. Eles a esperavam na casa 124 da rua Bluestone, junto à avó Baby Suggs, que foi alforriada pelo filho ainda escravo, Halle, marido de Sethe e pai dos seus filhos. Depois de 28 dias de “vida não escrava” (MORRISON, 2011MORRISON, Toni. Amada. Trad. José Rubens Siqueira. São Paulo: Companhia das Letras , 2011., p. 143) na casa 124, quando Sethe avista os seus senhores se aproximando para capturá-la, ela tenta matar os filhos para que não sejam escravizados no futuro, pois “embora ela e os outros tivessem sobrevivido e superado, nunca poderia permitir que aquilo acontecesse com os seus. O melhor dela eram seus filhos” (MORRISON, 2011MORRISON, Toni. Amada. Trad. José Rubens Siqueira. São Paulo: Companhia das Letras , 2011., p. 356). Ela só tem tempo de assassinar a bebê que engatinhava, cujo espírito passa, aparentemente, a assombrar, cheio de rancor, a casa 124, onde mora com a sogra Baby Suggs e seus três filhos que restaram.

Entretanto, Howard e Buglar, traumatizados e assustados com uma casa “cheia de veneno de um bebê” (MORRISON, 2011MORRISON, Toni. Amada. Trad. José Rubens Siqueira. São Paulo: Companhia das Letras , 2011., p. 19), fogem, enquanto Baby Suggs não resiste a tantas perdas e falece logo depois, restando, em 1873, apenas Sethe e Denver, agora uma adolescente, no 124, até a chegada de Paul D, companheiro de eito na Doce Lar, que a reencontra depois de 18 anos da fuga. Acompanhamos ao longo do romance a vida das personagens escravizadas antes e depois do acontecimento trágico - o infanticídio -, que não é narrado em momento algum, mas que reverbera na subjetividade de Sethe como um gesto desesperado de amor de uma mãe. O enredo de Amada é, dessa forma, constituído por personagens que tentam elaborar diferentes camadas da violência indizível da escravidão, que se deseja esquecer, mas que é impossível não lembrar, “porque mesmo agora que está tudo acabado - acabado e encerrado -, vai estar sempre lá esperando você” (MORRISON, 2011MORRISON, Toni. Amada. Trad. José Rubens Siqueira. São Paulo: Companhia das Letras , 2011., p. 64).

O livro se tornou um marco na literatura norte-americana, com grande ressonância na historiografia da escravidão por trazer para o primeiro plano, na forma de um romance, a experiência de homens e mulheres escravizados desde uma perspectiva que vai além dos limites do arquivo histórico ao imaginar e reconstruir os seus afetos, traumas, sonhos, pensamentos e ações sem se apoiar em uma verificação factual. Tratava-se, então, de narrar como a escravidão era sentida e vivida pelos escravizados e, “para mostrar a escravatura como uma experiência pessoal, a língua não podia atrapalhar” (MORRISON, 2011MORRISON, Toni. Amada. Trad. José Rubens Siqueira. São Paulo: Companhia das Letras , 2011., p. 16), entendendo os próprios limites do que poderia ou não ser representável em termos dos “terrores que esgotam os recursos da linguagem” no que diz respeito à violência da escravidão (GILROY, 2001GILROY, Paul. O atlântico negro: modernidade e dupla consciência. São Paulo: Editora 34, 2001., p. 405). Para Morrison,

ninguém no livro consegue demorar-se demais no passado; e ninguém consegue evitá-lo. Não há história literária ou jornalística confiável que lhes esteja disponível e que lhes sirva, pois vivem em uma sociedade e num sistema em que são os conquistadores que escrevem as narrativas da vida deles. Fala-se e se escreve sobre eles - são objetos da história, não sujeitos que a habitam (MORRISON, 2020MORRISON, Toni. A fonte da autoestima: ensaios, discursos e reflexões. Trad. Odorico Leal. São Paulo: Companhia das Letras , 2020., p. 416).

A escrita de Amada foi inspirada por um recorte de jornal que Toni Morrison encontrou num livro chamado The Black Book e que contava a história de Margaret Garner, uma jovem escravizada que havia sido presa após matar um de seus filhos depois de fugir da escravidão em 1856. Garner não demonstrou qualquer sinal de arrependimento do seu ato quando deu uma entrevista a P.S. Basset para o jornal batista Fairmount Theological Seminary, em 1856BASSET, P.S. A Visit to the Slave Mother Who Killed Her Children. Fairmount Theological Seminary, Cincinnati (Ohio), Feb. 12, 1856. Disponível em: https://bityli.com/SCxFSx . Acesso em: 29 jun. 2022.
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, o que chamou a atenção da escritora:

Ela disse que, quando os oficiais e os senhores de escravos chegaram na casa onde haviam se escondido, ela pegou uma pá e atingiu dois de seus filhos na cabeça, e depois pegou uma faca e cortou a garganta do terceiro, e tentou matar outro - que, se eles lhe tivessem dado tempo, ela teria matado a todos - que, no que dizia respeito a si mesma, pouco lhe importava; pois ela não queria que seus filhos sofressem como ela sofrera. Perguntei se ela não tinha quase enlouquecido quando cometeu o ato. Não, ela respondeu, eu estava tão calma quanto agora; e preferiria matá-los de uma vez, e assim acabar com seus sofrimentos, do que levá-los de volta à escravidão e serem assassinados aos poucos (BASSET, 1856BASSET, P.S. A Visit to the Slave Mother Who Killed Her Children. Fairmount Theological Seminary, Cincinnati (Ohio), Feb. 12, 1856. Disponível em: https://bityli.com/SCxFSx . Acesso em: 29 jun. 2022.
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).

Ao ler esse recorte de jornal, Morrison acreditava que “ela era, sem dúvida, determinada e, a julgar por seus comentários, tinha a inteligência, a ferocidade e a vontade de arriscar tudo por aquilo que, para ela, era a necessidade de liberdade” (MORRISON, 2011MORRISON, Toni. Amada. Trad. José Rubens Siqueira. São Paulo: Companhia das Letras , 2011., p. 14). Porém, essas características eram menos oriundas do documento que Morrison acessara do que da sua imaginação e, principalmente, da sua experiência como uma mulher negra que enfrentava a realidade racista dos Estados Unidos, permitindo-lhe interpretar a atitude de Margaret como um gesto que nada tinha a ver com loucura, mas com a reivindicação do direito à maternidade como parte do desejo de ser livre. Sethe não era, assim, uma figura distante para ela. Não à toa, afirma no prefácio do livro:

a Margaret Garner histórica era fascinante, mas, para uma romancista, era limitadora. Muito pouco espaço imaginativo para o que eu queria. Então eu inventaria seus pensamentos, prenderia esses pensamentos a um subtexto que fosse historicamente verdadeiro, mas não estritamente factual, a fim de relacionar sua história com questões contemporâneas sobre a liberdade, a responsabilidade e o “lugar” da mulher. A heroína representaria a aceitação indesculpada da vergonha e do terror; assumiria as consequências de escolher o infanticídio; reclamaria a própria liberdade (MORRISON, 2011MORRISON, Toni. Amada. Trad. José Rubens Siqueira. São Paulo: Companhia das Letras , 2011., p. 14).

Como romancista, Toni Morrison pode ir além do que as fontes oferecem, ignorando completamente os autos do processo e as matérias nos jornais para construir o enredo do romance. Se Machado (2014MACHADO, Maria Helena P. T. Crime e escravidão: trabalho, luta e resistência nas lavouras paulistas. São Paulo: Edusp, 2014., p. 33), a partir da análise de processos criminais nas lavouras paulistas, busca entrever nesse tipo de fonte “aspectos da vida cotidiana, uma vez que penetra no dia a dia dos implicados, desvenda suas vidas íntimas, investiga seus laços familiares e afetivos, registrando o corriqueiro de suas existências”, Toni Morrison, por sua vez, o faz partir da imaginação literária e da apropriação imaginativa da história (GILROY, 2001GILROY, Paul. O atlântico negro: modernidade e dupla consciência. São Paulo: Editora 34, 2001.; SILVA, 2020SILVA, Daniela Oliveira. “Armar uma tenda num cemitério habitado por fantasmas muito eloquentes”: a apropriação imaginativa da história no romance Amada, de Toni Morrison. 2020. Monografia (Trabalho de Conclusão de Curso em História) - Instituto de Ciências Humanas, Universidade de Brasília, Brasília, 2020.), criando uma personagem que, embora não fosse a Margaret Garner, também viveria as experiências de escravização, fuga e infanticídio, uma personagem imaginada não apenas com base no passado, mas também em um presente ainda violento e desafiador para as mulheres negras.

No entanto, não é Sethe a grande protagonista da obra; “a figura mais central da história teria de ser ela, a assassinada, não a assassina, aquela que perdeu tudo e não tivera nenhuma opção em nada” (MORRISON, 2011MORRISON, Toni. Amada. Trad. José Rubens Siqueira. São Paulo: Companhia das Letras , 2011., p. 15). Morrison confere protagonismo justamente a quem entrou e permaneceu morta e sem nome na história da escravidão, a quem nunca foi nem será ouvida, mas que não desejava ser esquecida e, por isso, retorna reivindicando um lugar no mundo dos vivos, primeiro como um espírito rancoroso e, depois, como uma figura encarnada. Num dia calmo e bonito, depois de Sethe passear com Denver e Paul D num parque de diversões, a criança parece ressurgir, 18 anos depois, na figura de uma jovem que tinha a idade que a bebê teria se estivesse viva. Encontrando-a perto de um riacho quando voltavam felizes do parque, a garota, sem sobrenome nem origem, se apresenta como Amada e passa a morar com eles, despertando em Denver e Sethe um movimento de contar histórias do passado ao lhes fazer perguntas a respeito.

Sua aparição é parte do que Toni Morrison desejava ao escrever Amada, como confessa no prefácio: “que a ordem e a quietude da vida cotidiana fossem violentamente dilaceradas pelo caos dos mortos carentes; que o esforço hercúleo de esquecer fosse ameaçado pela lembrança desesperada para continuar viva” (MORRISON, 2011MORRISON, Toni. Amada. Trad. José Rubens Siqueira. São Paulo: Companhia das Letras , 2011., p. 16). Não à toa, o espírito da bebê que engatinhava passa a assombrar a casa depois que Sethe consegue entalhar na lápide da filha, a quem não teve tempo de dar um nome, a palavra “Amada”, “a única palavra que importava” (MORRISON, 2011MORRISON, Toni. Amada. Trad. José Rubens Siqueira. São Paulo: Companhia das Letras , 2011., p. 22). É como se, ao declarar seu amor pela filha na lápide, a bebê se enfurecesse pela interrupção violenta desse amor, voltando, 18 anos depois, para reivindicá-lo e para ser chamada pelo seu nome: Amada. Contudo, como afirma Baby Suggs numa conversa com Sethe, “Não tem uma casa no país que não esteja recheada até o teto com a tristeza de algum negro morto. Sorte nossa que esse fantasma é um bebê” (MORRISON, 2011MORRISON, Toni. Amada. Trad. José Rubens Siqueira. São Paulo: Companhia das Letras , 2011., p. 22-23).

Nesse sentido, é possível pensar que Amada, a menina, é uma espécie de alegoria de todos os mortos ao longo da escravidão (HOUSE, 1990HOUSE, Elizabeth B. Toni Morrison’s Ghost: The Beloved is Not Beloved. Studies in American Fiction, Baltimore, v. 18, n. 1, p. 17-26, 1990. Disponível em: https://doi.org/10.1353/saf.1990.0016 . Acesso em: 5 set. 2022.
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), aludidos na página que antecede a epígrafe do livro como “Sessenta milhões e mais”. Estes não apenas anseiam, ferozes e carentes, serem lembrados, mas também serem amados. Os números, então, ganham nome, feição e existência própria numa trama em que todos os personagens nos convidam a olhar para o passado da escravidão e a lamentar as vidas perdidas a partir da imaginação do que poderia ter sido as suas vidas em meio à violência da escravidão. Onde antes havia meros números, impõem-se homens e mulheres que sabiam, como Baby Suggs, que “a morte não era nada além de esquecimento” (MORRISON, 2011MORRISON, Toni. Amada. Trad. José Rubens Siqueira. São Paulo: Companhia das Letras , 2011., p. 20) e, por isso, o romance se torna uma forma de lembrar daqueles que foram esquecidos. Além disso, a aparição de Amada acontece nas águas de um riacho, de onde sai exausta, como quem fez uma longa travessia no mar, como quem saiu de dentro de um porão do navio negreiro. É isso que um diálogo entre ela e Denver sugere:

“Como era lá, onde você estava antes? Pode me contar?” “Escuro”, disse Amada. “Sou pequena naquele lugar. Sou assim aqui.” Levantou a cabeça da cama, deitou de lado, encolhida. Denver tampou a boca com os dedos. “Sentia frio?” Amada se encolheu mais e balançou a cabeça. “Calor. Nada para respirar lá embaixo e sem espaço para se mexer.” “Vê alguém?” “Montes. Uma porção de gente lá embaixo. Algumas mortas.” (MORRISON, 2011MORRISON, Toni. Amada. Trad. José Rubens Siqueira. São Paulo: Companhia das Letras , 2011., p. 17).

Amada pode ser vista, assim, não simplesmente como a filha que retorna, mas como a figura do escravizado, sem nome e perdido para sempre no escuro do porão do navio, cuja urgência de não ser esquecido e de ser amado exige uma encarnação física no presente, tornando inevitável encarar o passado da escravidão. Num sistema em que o “resmungar de mortos negros e zangados” formava uma “linguagem indecifrável” (MORRISON, 2011MORRISON, Toni. Amada. Trad. José Rubens Siqueira. São Paulo: Companhia das Letras , 2011., p. 283), Amada nos leva a um questionamento: qual o lugar para aqueles que tiveram mortes terríveis durante a escravidão e foram esquecidos? Não por acaso, para destacar ainda mais a ânsia de não serem esquecidos, Morrison faz de Amada, o passado encarnado, uma figura ambivalente: bela e aterrorizante, doce e feroz, frágil e violenta, ela retorna como uma força histórica que anseia pelo reconhecimento da “vulnerabilidade de seu rosto ou do que olhar para tal rosto poderia exigir” (HARTMAN, 2020b HARTMAN, Saidiya. Vênus em dois atos. Revista ECO-Pós, Rio de Janeiro, v. 23, n. 3, p. 12-33, 2020b. Trad. Marcelo R. S. Ribeiro e Fernanda Silva e Sousa. Disponível em: https://doi.org/10.29146/eco-pos.v23i3.27640 . Acesso em: 5 set. 2022.
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, p. 14), pelo “clamor de um beijo” (MORRISON, 2011MORRISON, Toni. Amada. Trad. José Rubens Siqueira. São Paulo: Companhia das Letras , 2011., p. 388).

Admitindo o fracasso em narrar um “romance de resistência” e a recusa a descrever “o evento de amor” (HARTMAN, 2020b HARTMAN, Saidiya. Vênus em dois atos. Revista ECO-Pós, Rio de Janeiro, v. 23, n. 3, p. 12-33, 2020b. Trad. Marcelo R. S. Ribeiro e Fernanda Silva e Sousa. Disponível em: https://doi.org/10.29146/eco-pos.v23i3.27640 . Acesso em: 5 set. 2022.
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, p. 26), Hartman , em Perder a mãe, entende que seu trabalho de historiadora envolve tanto lamentar os mortos do tráfico de escravizados quanto imaginar radicalmente como o momento da captura, da prisão nos fortes e da travessia no navio podem ter sido sentidos e vividos, ainda que não possa inventar uma personagem como Amada. Assim como Morrison, ela não queria mostrar como o tráfico se deu, mas reencontrar as vidas irreversivelmente perdidas. Não bastava, então, um trabalho de leitura a contrapelo das fontes, já que quase não havia fontes documentais para aqueles que ela buscava: os milhares que morreram na travessia e ficaram pelo caminho, num contexto em que “para cada escravo que chegou nas Américas, pelo menos uma e talvez até cinco pessoas morreram em guerras de captura, na jornada até a costa, presas em entrepostos, definhando no ventre de um navio ou na travessia do Atlântico” (HARTMAN, 2021HARTMAN, Saidiya. Perder a mãe: uma jornada pela rota atlântica da escravidão. Trad. José Luiz Pereira da Costa. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2021., p. 42). O que ela precisava era cuidar dos mortos e, para isso, não era a língua, mas os protocolos disciplinares da história que não podiam atrapalhar, investindo em um método que jogasse luz em existências muitas vezes varridas da história. Como afirma no primeiro capítulo do livro, chamado “Afrotopia”, após sentir fortes enxaquecas numa praia a 160 km de Acra, capital de Gana:

quando minha dor de cabeça amainou, decidi caminhar até o oceano para resolver a confusão de fatos dolorosos e detalhes terríveis que eu tão diligentemente trabalhei para aprender. Eu precisava ver o Atlântico, que era onde eu lidava com os mortos, os homens, mulheres e crianças que são quase invisíveis na maioria da História escrita sobre o tráfico de escravos. Acadêmicos continuavam discutindo quantos escravos embalados por tonelada constituíam “uma estocagem no limite máximo” e uma deliberada política de aceitar a alta mortalidade, fazendo estimativas das taxas de produtividade das cargas no tráfico de escravos versus a produtividade de outras mercadorias, quantificando as perdas e ganhos do tráfico com fórmulas algébricas que obscureciam o desastre [...]. O oceano nunca falhou em me lembrar das perdas, e seu rugir ecoava a angústia dos mortos (HARTMAN, 2021HARTMAN, Saidiya. Perder a mãe: uma jornada pela rota atlântica da escravidão. Trad. José Luiz Pereira da Costa. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2021., p. 43-44).

Se em Amada há o rancor dos mortos pelos vivos, em Perder a mãe é a angústia dos mortos jamais recuperáveis que move Saidiya Hartman a se afastar de métodos quantitativos e qualitativos tradicionais no campo historiográfico e a refletir sobre os próprios limites da disciplina. Diante do mar e não do arquivo da escravidão, que parece um necrotério, Hartman é impelida a considerar a dimensão intangível dessas vidas e que ultrapassa os protocolos disciplinares da história, pois como demonstrar cientificamente o que se encontra na natureza e se sente no corpo? Como dar conta dos mortos nos calabouços se “nada perdurou, exceto sangue, merda e sujeira”? (HARTMAN, 2021HARTMAN, Saidiya. Perder a mãe: uma jornada pela rota atlântica da escravidão. Trad. José Luiz Pereira da Costa. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2021., p. 151). Ao visitar o Castelo de Elmina, sua preocupação com os mortos se acentua à medida que, no interior de um dos maiores fortes escravistas, então reformado e revitalizado para fins turísticos, tornava-se “fácil esquecer os escravos esmagados sob o peso de toda a sua monumentalidade” (HARTMAN, 2021HARTMAN, Saidiya. Perder a mãe: uma jornada pela rota atlântica da escravidão. Trad. José Luiz Pereira da Costa. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2021., p. 89); não havia ali sequer um lugar para chorar os mortos.

Quando visita um dos tantos calabouços de Gana, reflete:

vim a esse forte em busca de ancestrais, mas, em verdade, apenas matéria orgânica me esperava. Os restos são a interface entre a vida e a morte. Eles encarnam o que foi tornado invisível, periférico ou prescindível para a História com H maiúsculo, ou seja, a História que fala de homens, impérios e nações importantes. [...] Restos são o que sobrou de todas as vidas que estão à margem da História e “dissolvidas em completa amnésia” (HARTMAN, 2021HARTMAN, Saidiya. Perder a mãe: uma jornada pela rota atlântica da escravidão. Trad. José Luiz Pereira da Costa. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2021., p. 147).

Ciente de que “restos” não cabem na História e podem ser facilmente contestados como fontes documentais, Hartman faz da impossibilidade da sua tarefa e do sentimento de impotência matéria de reflexão, teorizando a partir de uma posição que não ignora o próprio corpo e a experiência de estar em um calabouço de escravos como uma mulher negra:

como a maioria das pessoas ávidas por atravessar a soleira de um calabouço de escravos, eu desejava dar aos mortos seus devidos direitos. Mas eu não tinha certeza sobre como conseguir isso. O esmagamento daquele espaço vazio derrotava qualquer certeza sobre o poder da memória em impedir futuros crimes. Palavras como “esquecimento” e “catástrofe” passaram pela minha cabeça. No calabouço havia restos, mas não havia histórias que pudessem ressuscitar os mortos, exceto as histórias que eu inventava (HARTMAN, 2021HARTMAN, Saidiya. Perder a mãe: uma jornada pela rota atlântica da escravidão. Trad. José Luiz Pereira da Costa. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2021., p. 147).

Como tentar, porém, reparar e, sobretudo, lamentar mortos sem histórias e sem nomes, sabendo que o passado jamais será superado por meio do luto? Em razão disso, Hartman compreende que ela mesma precisa contar essas histórias e inventá-las, imaginando como determinadas experiências foram vividas por homens e mulheres escravizadas, especulando sobre seus anseios e recusas não registradas no arquivo histórico, do mesmo modo que um trecho de Amada ilustra, em que Baby Suggs, que perdera todos os filhos para a escravidão, especula sobre si mesma:

por triste que fosse ela não saber onde seus filhos estavam enterrados ou que aparência tinham se vivos, o fato é que ela sabia mais sobre eles do que sabia sobre si mesma, porque nunca teve o mapa para descobrir como ela própria era. Podia cantar? (Seria bom de ouvir quando cantasse?) Era bonita? Era uma boa amiga? Poderia ter sido uma mãe amorosa? Uma esposa fiel? Será que tenho uma irmã e será que ela está a meu favor? Se minha mãe me conhecesse, gostaria de mim? (MORRISON, 2011MORRISON, Toni. Amada. Trad. José Rubens Siqueira. São Paulo: Companhia das Letras , 2011., p. 204).

O gesto lançado em direção aos mortos não é, assim, o de imaginar o que aconteceu e não foi registrado, mas o que poderia ter sido e que não foi, o que se ansiou viver e não pôde e, principalmente, “as histórias tornadas irreais e fantásticas” (HARTMAN, 2020b HARTMAN, Saidiya. Vênus em dois atos. Revista ECO-Pós, Rio de Janeiro, v. 23, n. 3, p. 12-33, 2020b. Trad. Marcelo R. S. Ribeiro e Fernanda Silva e Sousa. Disponível em: https://doi.org/10.29146/eco-pos.v23i3.27640 . Acesso em: 5 set. 2022.
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, p. 33), buscando reconstituir alguns eventos a partir do ponto de vista não daqueles que morreram em meio à travessia - uma vez que estes jamais poderão ser ouvidos -, mas de uma descendente de escravizados que tenta se aproximar deles a partir de sua própria experiência de sujeição no presente. Hartman os transforma em protagonistas das narrativas que precisa inventar para lamentar suas vidas perdidas, pois ao “nos lembrarmos daqueles ancestrais mantidos nas masmorras, não podemos deixar de pensar em nossas próprias vidas desonradas e valorizadas e as aspirações não realizadas e as promessas quebradas da abolição, da reconstrução e do movimento dos direitos civis” (HARTMAN, 2020aHARTMAN, Saidiya. Tempo da escravidão. Contemporânea: Revista de Sociologia da UFSCar, São Carlos, v. 10, n. 3, p. 927-948, 2020a. Trad. Carolina Nascimento De Melo. Disponível em: https://doi.org/10.31560/2316-1329.v10n3.4 . Acesso em: 5 set. 2022.
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, p. 939).

Em Perder a mãe, o que Hartman vai nomear como fabulação crítica no ensaio “Vênus em dois atos”, publicado dois anos depois do livro, é colocado em prática na última parte do capítulo “O livro dos mortos”, quando reconstitui o caso do navio inglês chamado Recovery, onde, em 1792, 21 escravizados morreram a bordo. Hartman encontra informações apenas sobre uma das vítimas, uma “garota negra”, que aparece no arquivo sem um nome, cujo espancamento a que foi submetida pelo capitão do navio escandalizou o movimento abolicionista e “impediram-na de ser simplesmente varrida na pilha de vidas obscuras espalhadas ao longo do fundo do oceano” (HARTMAN, 2021HARTMAN, Saidiya. Perder a mãe: uma jornada pela rota atlântica da escravidão. Trad. José Luiz Pereira da Costa. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2021., p. 175). É a violência que torna sua existência visível, como Hartman explica, ao dizer que: “Umas poucas linhas de uma transcrição judicial mofada formam a história inteira da vida de uma garota. Não fosse isso, ela teria sido extinta sem deixar um rastro” (HARTMAN, 2021HARTMAN, Saidiya. Perder a mãe: uma jornada pela rota atlântica da escravidão. Trad. José Luiz Pereira da Costa. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2021., p. 174).

Se Amada ressurge num riacho, clamando por um lugar no mundo dos vivos, a garota negra e sem nome ressurge do fundo do oceano e convoca Hartman a lamentar essa perda, tentando imaginar como ela viveu seus últimos suspiros. Após se recusar a dançar com o capitão do navio e ser brutalmente açoitada por isso, ela parou de comer e definhou dia após dia até falecer e ter seu corpo jogado no mar. Entretanto, o que interessa a Hartman não são os fatos documentados nos depoimentos no tribunal, mas os pensamentos e anseios de uma mulher escravizada que ousa dizer não ao capitão do navio e decide abdicar da própria vida para não se sujeitar aos seus desmandos, prazeres, caprichos e, sobretudo, à sua violência. Assim como Margaret Garner, ela também parecia ter “a inteligência, a ferocidade e a vontade de arriscar tudo por aquilo que, para ela, era a necessidade de liberdade” (MORRISON, 2011MORRISON, Toni. Amada. Trad. José Rubens Siqueira. São Paulo: Companhia das Letras , 2011., p. 14). Hartman fabula, então, a respeito de como essa escravizada viveu os últimos momentos de vida, reconstruindo o interior do navio negreiro de forma vívida e sensorial, como se fosse uma paisagem de horror e beleza, posto que as vozes e gritos de homens e mulheres acorrentados se misturavam aos sons de elementos da natureza e dos animais:

cento e quarenta mulheres ocupavam o convés. O som adentrava o corpo da garota em pequenos tremores. Ela ouvia as canções, sem compreendê-las. O barulho em sua cabeça a impedia de entender o que elas diziam. O mundo clamava. Na confusão dos sons, ela discernia o estalo do navio na medida em que ele se contraía e expandia, os resmungos e reclamações dos marujos, os homens lutando contra suas correntes nos conveses de baixo, as ordens vociferadas do capitão, os ratos correndo furtivamente pelo alçapão, o zumbido das cordas, as lonas chicoteando no ar, os aros e puxões das polias, o grito das gaivotas, o esguicho das baleias, os peixes voadores cortando as águas, o surdo ruído dos tubarões, o sussurro agudo do mar e as cidades dos mortos rindo e chorando (HARTMAN, 2020a HARTMAN, Saidiya. Tempo da escravidão. Contemporânea: Revista de Sociologia da UFSCar, São Carlos, v. 10, n. 3, p. 927-948, 2020a. Trad. Carolina Nascimento De Melo. Disponível em: https://doi.org/10.31560/2316-1329.v10n3.4 . Acesso em: 5 set. 2022.
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, p. 192).

É nessa paisagem que Hartman nos oferece os vislumbres finais dessa vida, não com a intenção de “dar voz ao escravo, mas antes imaginar o que não pode ser verificado [...] e considerar as vidas precárias que são visíveis apenas no momento de seu desaparecimento” (HARTMAN, 2020a HARTMAN, Saidiya. Tempo da escravidão. Contemporânea: Revista de Sociologia da UFSCar, São Carlos, v. 10, n. 3, p. 927-948, 2020a. Trad. Carolina Nascimento De Melo. Disponível em: https://doi.org/10.31560/2316-1329.v10n3.4 . Acesso em: 5 set. 2022.
https://doi.org/10.31560/2316-1329.v10n3...
, p. 29-30) a partir de uma dimensão subjetiva que precisa ser reconhecida e imaginada:

Ela havia descoberto uma maneira de sair do navio. Ela se preocupava com a possibilidade de seus ancestrais se esquivarem dela, ou dos deuses ficarem zangados e a punirem mandando-a de volta para terra como uma cabra ou um cachorro, ou ser condenada a vagar sem direção, sem nunca encontrar seu rumo além-mar, mas ela arriscaria de qualquer forma - era o único caminho aberto. Quando dois meninos a jogaram no mar, eles fizeram a partida parecer tão fácil. Ela se enrolou como uma bola num canto do convés. Seu corpo doía e ela tremia. Os olhares furtivos das mulheres a fizeram sentir-se deplorável e fraca. Fosse ela capaz de chorar, lágrimas teriam escorrido por sua face. Se sua língua não tivesse tornado a fala impraticável, fosse possível a um cadáver falar, ela teria dito: “Vocês estão errados. Estou indo encontrar meus amigos”. Tudo o que eles puderam ver foi uma garota caída numa poça suja de água e não alguém voando alto e a caminho de casa (HARTMAN, 2021HARTMAN, Saidiya. Perder a mãe: uma jornada pela rota atlântica da escravidão. Trad. José Luiz Pereira da Costa. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2021., p. 192).

Imaginando que a garota vê a morte como uma forma de voltar para a casa, Hartman constrói uma narrativa com forte teor literário como um lugar para que a vida dela, ainda que em seu derradeiro suspiro, seja lembrada, como se o labor estético em cada frase fosse uma forma de cuidar de alguém cujos vestígios de sua existência se limitavam a algumas linhas de um julgamento, como se a beleza pudesse “fornecer um antídoto à desonra” (HARTMAN, 2020b HARTMAN, Saidiya. Vênus em dois atos. Revista ECO-Pós, Rio de Janeiro, v. 23, n. 3, p. 12-33, 2020b. Trad. Marcelo R. S. Ribeiro e Fernanda Silva e Sousa. Disponível em: https://doi.org/10.29146/eco-pos.v23i3.27640 . Acesso em: 5 set. 2022.
https://doi.org/10.29146/eco-pos.v23i3.2...
, p. 16). Hartman se torna uma narradora, “performando os limites de escrever a História por meio do ato de narração” (HARTMAN, 2020bHARTMAN, Saidiya. Vênus em dois atos. Revista ECO-Pós, Rio de Janeiro, v. 23, n. 3, p. 12-33, 2020b. Trad. Marcelo R. S. Ribeiro e Fernanda Silva e Sousa. Disponível em: https://doi.org/10.29146/eco-pos.v23i3.27640 . Acesso em: 5 set. 2022.
https://doi.org/10.29146/eco-pos.v23i3.2...
, p. 31) para poder lamentar essa vida perdida, que precisa de uma história para estar entre nós, para ser lembrada, mas sem “fingir que uma história era o bastante para salvá-la do esquecimento” (HARTMAN, 2021HARTMAN, Saidiya. Perder a mãe: uma jornada pela rota atlântica da escravidão. Trad. José Luiz Pereira da Costa. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2021., p. 193).

A fabulação crítica é, então, um método de leitura e escrita que implica uma imaginação radical em torno de histórias impossíveis de contar, baseando-se em “uma série de argumentos especulativos” e na experimentação das “capacidades do subjuntivo (um modo gramatical que expressa dúvidas, desejos e possibilidades” (HARTMAN, 2020b HARTMAN, Saidiya. Vênus em dois atos. Revista ECO-Pós, Rio de Janeiro, v. 23, n. 3, p. 12-33, 2020b. Trad. Marcelo R. S. Ribeiro e Fernanda Silva e Sousa. Disponível em: https://doi.org/10.29146/eco-pos.v23i3.27640 . Acesso em: 5 set. 2022.
https://doi.org/10.29146/eco-pos.v23i3.2...
, p. 28) que permitem pequenos vislumbres em torno de vidas que, mesmo na impossibilidade de serem recuperadas, podem ser narradas para sobreviverem ao esquecimento. Ao fabular como certas experiências foram vividas e sentidas mesmo sem ter fontes documentais para comprovar, Hartman não tem a intenção de promover uma redenção dos mortos, admitindo que

[...] a minha própria escrita é incapaz de ultrapassar os limites do dizível ditados pelo arquivo. Ela depende dos registros legais, dos diários dos cirurgiões, dos livros de contabilidade, dos manifestos de carga dos navios e dos diários de bordo, e nesse aspecto ela vacila diante do silêncio do arquivo e reproduz as suas omissões. A violência irreparável do tráfico atlântico de escravos reside precisamente em todas as histórias que não podemos conhecer e que nunca serão recuperadas (HARTMAN, 2020b HARTMAN, Saidiya. Vênus em dois atos. Revista ECO-Pós, Rio de Janeiro, v. 23, n. 3, p. 12-33, 2020b. Trad. Marcelo R. S. Ribeiro e Fernanda Silva e Sousa. Disponível em: https://doi.org/10.29146/eco-pos.v23i3.27640 . Acesso em: 5 set. 2022.
https://doi.org/10.29146/eco-pos.v23i3.2...
, p. 30).

Um fracasso necessário na escrita da história da escravidão: imaginar e lamentar os mortos do presente e do passado

Saidiya Hartman, em Perder a mãe, não redime os mortos nem recupera as vidas de pessoas escravizadas, ao reconhecer a dimensão irreparável da violência, da perda e da morte que constitui a escravidão mesmo quando tensiona e desafia os limites e possibilidades da narrativa histórica no interior da história. Entretanto, por justamente reconhecer o fracasso inevitável de qualquer perspectiva redentora, Hartman propõe uma escrita da história da escravidão atravessada por um gesto ético em relação aos mortos que se ancora no reconhecimento da necessidade de contar histórias em que eles sejam lembrados, lamentados e cuidados, como em um “romance que nunca esquece ou subestima a dificuldade de representar as vidas dos esquecidos e descartados” (DAVIS, 1998DAVIS, Kimberly Chabot. “Postmodern Blackness”: Toni Morrison’s Beloved and the End of History. Twentieth Century Literature, Durham, v. 44, n. 2, p. 242-260, 1998. Disponível em: https://doi.org/10.2307/441873 . Acesso em: 5 set. 2022.
https://doi.org/10.2307/441873...
, p. 252).

Hartman, em Perder a mãe, ao conceber os escravizados como seus ancestrais, abre espaço para que eles sejam vistos como milhões de amados e amadas aos olhos de uma historiadora que, ao escrever sobre o passado da escravidão, entende que também está escrevendo sobre o seu presente e sobre a sua própria história como descendente deles. Sem mais vídeos de suas mortes violentas e desgraçadas, os mortos que se acumulam em nosso presente também podem ser cuidados a partir da fabulação crítica, que não está apartada da imaginação literária, como praticada por Toni Morrison em Amada. Nesse sentido, se “a morte é íntima demais para caber num espetáculo” (TENÓRIO, 2020TENÓRIO, Jeferson. O avesso da pele. São Paulo: Companhia das Letras , 2020., p. 179), ela cabe nas histórias que ainda precisam ser imaginadas e contadas como “gestos de cuidado com os mortos, de ontem e hoje, de modo a retirá-los da violência ordinária que tem convertido suas mortes em não-acontecimentos” (JARDIM, 2022JARDIM, Fabiana Alves. “Tudo aqui é um exílio”: violência colonial, desterros, testemunhos e sobrevivências. EXILIUM: Revista de Estudos da Contemporaneidade, São Paulo, v. 3, n. 4, p. 79-107, 2022. Disponível em Disponível em https://doi.org/10.34024/exilium.v3i4.13254 . Acesso em: 5 set. 2022.
https://doi.org/10.34024/exilium.v3i4.13...
, p. 103-104).

Agradecimentos

Agradeço aos e às pareceristas da revista e aos colegas Fabiana Augusta Alves Jardim (USP), Fernando Baldraia (CEBRAP), Ariadne Catarine (USP), Fabio Saldanha (USP) e Marcos Natali (USP), que leram a primeira versão do artigo e colaboraram com críticas e sugestões. Agradeço também à Juliana Ferreira Barbosa (UFRJ), Luciana Brito (UFRB), Renan Porto (University of Westminster), Ronaldo Vitor da Silva (USP) e Marcelo R.S. Ribeiro (UFBA) pela interlocução sempre generosa e que permitiu a escrita deste artigo.

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  • 1
    Em inglês, Middle Passage. Essa expressão diz respeito ao comércio triangular de escravizados que envolvia a África, as Américas e a Europa e tinha o Oceano Atlântico como a “passagem do meio” entre os três continentes.
  • 2
    Em abril de 2020, acompanhei uma live da página The Cheeky Natives, no Instagram, em que Hartman afirmou que Amada era a sua “bíblia” e que seu trabalho não seria possível sem a obra. A live, infelizmente, não ficou gravada
  • Biografia profissional

    Fernanda Silva e Sousa é bacharela e licenciada em Letras pela Universidade de São Paulo (USP) e doutoranda em Teoria Literária e Literatura Comparada (USP). É professora de língua portuguesa, tradutora, revisora de textos e crítica literária. Tem várias resenhas literárias publicadas na Folha de S. Paulo e realizou traduções de textos de importantes intelectuais da diáspora negra, como Saidiya Hartman, Denise Ferreira da Silva e Cedric Robinson. Como pesquisadora, tem se dedicado a investigar as relações entre raça e literatura, narrativa e experiência, liberdade e escravidão, especialmente nos diários de Lima Barreto e Carolina Maria de Jesus.
  • Financiamento

    Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp), nº do processo 2019/22203-7.
  • Aprovação no comitê de ética

    Não se aplica.
  • Modalidade de avaliação

    Duplo-cega por pares.
  • Preprint

    O artigo não é um preprint.

Editado por

Editores responsáveis

Flávia Varella - Editora-chefe
Breno Mendes - Editor executivo

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    09 Out 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    30 Jun 2022
  • Revisado
    16 Ago 2022
  • Revisado
    23 Ago 2022
  • Aceito
    13 Set 2022
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