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Lima Barreto e a política dos sentidos em Numa e a Ninfa: um estudo da expressividade do corpo

Lima Barreto and the politics of the senses in Numa e a Ninfa: a study of the body’s expressiveness

Resumo

Este artigo discute como Lima Barreto construiu uma política dos sentidos, isto é, de que forma refletiu sobre o tema do corpo no espaço no romance Numa e a Ninfa, embora outros manuscritos do autor sejam mobilizados para a articulação do tema. Os relatos que o carioca produziu acerca do espaço parlamentar permitem entender como a corporeidade de uma época - o Rio de Janeiro da Primeira República - ganha visibilidades e dizibilidades em sua fortuna. Desse modo, este artigo pontua que a crítica política barretiana, geralmente situada pelos pesquisadores de sua obra na discussão sobre ética e no empenho dos edis com a coisa pública, permite refletir sobre o teatro de emoções e gestualidades dos governantes. O olhar e a expressividade oral dos congressistas são avaliados neste artigo como forma de conferir o funcionamento dessa política dos sentidos, intencionada nas narrativas de Barreto a respeito dos corpos de homens e mulheres no e pelo espaço. Como resultado, avaliou-se que o estudo da expressividade desenvolvido por Barreto, além de ser uma maneira de ver o mundo, traduz percepções de que o corpo é um produto da cultura modulável pelo espaço.

Palavras-chave:
Corpo; Espaço; Política

Abstract

This article discusses how Lima Barreto constructed a politics of the senses, that is, how he reflected on the theme of the body in space in the novel Numa e a Ninfa, although other manuscripts by the author are mobilized for the articulation of the theme. The reports produced by the man from Rio de Janeiro about the parliamentary space allow us to understand how the corporeity of an era - the Rio de Janeiro of the First Republic - gains visibility and sayability in its fortune. Thus, this article points out that Barret’s political criticism, generally located by researchers of his work in the discussion of ethics and the commitment of the aediles with public affairs, allows reflection on the theater of emotions and gestures of the rulers. The gaze and oral expressiveness of the congressmen are evaluated in this article as a way of checking the functioning of the politics of the senses, intended in Barreto’s narratives to deal with the bodies of men and women in and through space. As a result, it was evaluated that the study of expressiveness developed by Barreto, in addition to being a way of seeing the world, translates perceptions that the body is a product of culture that can be modulated by space.

Keywords:
Body; Space; Politics

Introdução ou quando o corpo entra em cena

Publicado pela tipografia Officinas d’A Noite, o romance Numa e a Ninfa, trabalho do escritor brasileiro Afonso Henriques de Lima Barreto, ganhou as prateleiras das livrarias cariocas no ano de 1915. Contudo, antes da impressão em formato de livro, a história do romance apareceu nas páginas do jornal Gazeta da Tarde, no dia 3 de junho de 1911. O material foi redigido às pressas pelo autor de Triste Fim de Policarpo Quaresma em um período de 25 dias, como pode ser conferido na confissão feita nas notas avulsas deixadas em seu Diário íntimo. A escrita aconteceu logo após a saída de Barreto do Hospício Pedro II, um momento particular de sua vida em que passou pela experiência de ter o corpo despido por uma Instituição total (GOFFMAN, 2018GOFFMAN, Erving. Manicômios, prisões e conventos. Tradução de Dante Moreira. 9. ed. São Paulo: Perspectiva, 2018.).

A rapidez na elaboração da trama reflete, em parte, a preocupação do escritor em obter algum dinheiro com a publicação do material, já que vivia em dificuldades financeiras. Foi a sua chance de conseguir uma renda que ajudasse a suportar os apertos pecuniários que habitualmente enfrentava no final de cada mês, com as despesas pessoais e do lar. Contudo, o esforço de ter ficado dias ocupando o assento da cadeira para finalizar o texto não surtiu o efeito desejado. Pelo menos no que diz respeito à expectativa de receber na íntegra o valor do trabalho, já que o pagamento foi feito em parcelas por Irineu Marinho, editor do jornal A noite, responsável pela encomenda do material.

Na rapidez da escrita nasceu uma obra que, certamente, deixou de passar por um trabalho rígido de revisão textual, pois não foram feitas cópias dos capítulos prontos (BARRETO, 1956aBARRETO, Lima. Diário íntimo. São Paulo: Brasiliense, 1956a.). Todavia, seria ingênuo determinar que o citado trabalho de Barreto carrega falta de complexidade no arranjo da narrativa e na construção dos personagens. O conjunto das histórias enredadas na obra faz parte do que é possível nomear de arquivo barretiano da cultura política brasileira: conjunto de imagens, símbolos e discursos que dramatizaram a experiência do poder político no país.

O seu interesse na sátira buscou desnudar os costumes de sua época, mostrar os desarranjos da gestão pública pelos governantes que alegorizavam o republicanismo no país como uma espécie de “fábrica de trapalhadas”. Esse pensamento contribuiu para a vontade de classificação da obra, na capa de abertura do manuscrito, como um “romance da vida contemporânea” (BARRETO, 1915bBARRETO, Lima. Numa e a Nympha. Rio de Janeiro: Officinas d’A Noite, 1915b., p. 7). Porém, há outro atributo apresentado pelo autor que torna sugestivo o estudo do texto: pontuar que o livro é um “romance sugestivo de escândalos femininos” (BARRETO, 1915bBARRETO, Lima. Numa e a Nympha. Rio de Janeiro: Officinas d’A Noite, 1915b., p. 5).

Embora não seja a intenção deste artigo escavar os lugares do feminino na obra barretiana, é na apresentação de Edgarda Cogominho, moça “cheia de curiosidade constrangida” (BARRETO, 2017aBARRETO, Lima. Numa e a Ninfa. São Paulo: Penguin Classics Companhia das Letras, 2017a. , p. 52), que algumas questões discutidas nesta pesquisa são delineadas, a saber: como os olhos e a expressividade do olhar ganharam o centro da narrativa de Numa e a Ninfa? De que forma os discursos orais dos congressistas na Câmara concorreram na produção do corpo político? Como o personagem Numa Pompílio faz uso do artifício da expressão oral para atrair os olhares no disputado espaço da tribuna? A construção da referida personagem possibilita avaliar que os embates políticos retratados por Barreto insinuam muito mais do que uma medição de força para provar quem foi o mais destemido, o mais influente e o mais astucioso no espaço público. Havia o teatro das encenações, a necessidade dos indivíduos em conhecer e saber manipular as emoções e a expressividade para que os rivais e os falsos amigos não lhes atacassem.

O destaque que Lima Barreto faz dos sentidos não é gratuito, e deve ser avaliado além de uma elaboração estética do que aprendeu com aqueles que considerava seus mestres da literatura, como Liev Tolstói, Émile Zola e Anatole France. Se, por um lado, a atenção nos sentidos revela a sua profusão com a arte literária, ao dar carnalidade à figura do homem de letras, por outro, demonstra como o escritor percebeu o mundo em que vivia, além de indicar muito das experiências que teve nos locais por onde transitou. Assim, quando Barreto torna evidente algumas das experiências dos sentidos em Numa e a Ninfa, possibilita a criação de visibilidades dos modelos de corpo de sua época. Mais do que isso: permite que sejam avaliadas as dizibilidades de um tema que foi fundamental para que criasse a sua política dos sentidos.

Tal política, embora não existam registros diretos que comprovem a vontade do autor em escrutinar o assunto, é intencionada toda vez que narra, discute e imagina os corpos de homens e mulheres pelos espaços (públicos e privados). Essas indicações tornam oportuno levantar alguns questionamentos: Que dimensões corpóreas foram criadas por Lima Barreto em sua fortuna? Como o autor percebeu que os espaços modulam os corpos? Existiram critérios no estabelecimento do valor das carnes dos indivíduos? Que expressões fisionômicas ganharam forma em seus relatos, possibilitando discutir as “rostidades” de uma época? As perguntas propostas são inquietações de pesquisa e permitem estabelecer a hipótese de que as notas feitas pelo autor de Triste Fim de Policarpo Quaresma tornam evidente o corpo no espaço, sem dimensionar uma matéria estática. Pelo contrário, os corpos são sempre descritos em movimento, em fluxo, fazendo com que representassem valores diferentes a cada ambiente percorrido, a cada repouso das carnes feito nos lugares com a intenção de morar, de habitar, de construir território.

A dimensão carnal presente nos escritos barretianos ainda não ganhou a atenção devida pelos pesquisadores nas áreas das Letras, Sociologia, Antropologia, Psicologia e História e, embora seja possível encontrar trabalhos que denotem as pulsões da carne de Barreto - como o tédio, a dor, a raiva, a melancolia e o enfado, por exemplo -, esse conjunto de sentimentos parece ser tratado como resposta involuntária aos problemas da vida. Existem ainda as vibrações do corpo silenciadas, como as pulsões do amor, e o pouco que se sabe do tema que percorreu o íntimo do escritor advém dos registros feitos por Francisco de Assis Barbosa (1988BARBOSA, Francisco de Assis. A vida de Lima Barreto. 7. ed. São Paulo: Edusp, 1988.), os quais elucidam, de forma rápida e sem aprofundamento, os pequenos encontros, os flertes, as barreiras da timidez, a relação difícil com as mulheres e os pudores que manteve, aparentemente, frente ao sexo. A ausência de mais comprovações a respeito das aventuras amorosas nos relatos do autor fez com que o biógrafo barretiano chegasse à conclusão de que o romancista “jamais conheceu o amor na sua plenitude” (BARBOSA, 1988BARBOSA, Francisco de Assis. A vida de Lima Barreto. 7. ed. São Paulo: Edusp, 1988., p. 180). Porém, a falta de registros diretos não deve ser uma barreira no estudo da questão, pois é exatamente na suposta ausência que os pesquisadores devem deslizar o olhar, em particular ao compreenderem que não há silêncio sem palavra (LE BRETON, 1997LE BRETON, David. Du silence: Essai. Paris: Éditions Métailié, 1997. ), o que torna oportuno investigar como o homem de carne deu abertura às experiências e às concepções do amor no plano do papel. Em todo caso, a dimensão carnal nos escritos limabarretianos ainda foi avaliada como um problema que ressoou mal nas criações literárias, como destacou Sérgio Buarque de Holanda (2012HOLANDA, Sérgio Buarque de. Prefácio. In: BARRETO, Lima. Clara dos Anjos. São Paulo: Penguin Classics Companhia das Letras, 2012. p. 35-47., p. 36) ao lembrar o “pecado do biografismo” de Barreto, isto é, a criação de obras que mal disfarçaram a impressão de seu rosto ao deixar escapar todas as “confissões de amarguras íntimas, de ressentimentos, de malogros pessoais”. Todos os destaques são confissões da carne, tensões do corpo de um homem que viveu as intensidades de seu tempo; circunstâncias estas que o autor de Raízes do Brasil lembra terem sido transfiguradas, nos melhores momentos, em arte.

No geral, há uma lacuna - ou pouco foi feito - em relação a uma crítica mais apurada das emoções de Barreto, resultando no emudecimento de seu corpo, o seu arrebatamento. O risco é evidente: colocar em posição inferior todas as experiências do sentido que ganharam relatos em sua obra. Um exemplo desse fato pode ser observado nos estudos limabarretianos que focam os problemas que o escritor manteve com o álcool, pois mesmo que tragam à margem o debate do corpo, as debilidades do orgânico parecem constituir mais um cenário para uma crítica especializada, como, por exemplo, na compreensão dos embates travados para reconhecer Barreto como um intelectual (ALMEIDA, 1997ALMEIDA, Luiz Alberto Scotto. Lima Barreto: o cânone e o bêbado. 1997. Dissertação (Mestrado em Literatura) - Programa de Pós-graduação em Literatura, Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 1997.); como reforço imagético da bebida como refúgio (SILVA, H. 1976SILVA, Hélcio Pereira da. Lima Barreto: escritor maldito. Rio de Janeiro: Departamento Gráfico do MAFC, 1976.; SILVA, C. 2017SILVA, Cinthia Mara Cecato. Do vivido ao escrito: o testemunho de Lima Barreto em Diário de Hospício e o Cemitério dos vivos. 2017. Tese (Doutorado em Letras) - Programa de Pós-graduação em Letras, Universidade Federal do Espírito Santo, Vitória, 2017.); para se compreender a escrita de urgência barretiana quando o autor foi remetido ao hospício (ELPO, 2017ELPO, Leandro Amorim. O heroísmo do homem de letras em Lima Barreto. Tese (Doutorado em Letras) - Programa de Pós-graduação em Letras, Universidade Federal do Rio Grande, Rio Grande-RS, 2017.). O desencanto é outro tema ilustrativo, já que o assunto foi abordado na crítica barretiana (AZEVEDO NETO, 2015AZEVEDO NETO, Joachin de Melo. A vida literária e desencantos: uma história da formação intelectual de Lima Barreto (1881-1922). 2015. Tese (Doutorado em História) - Programa de Pós-graduação em História, Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis-SC, 2015.) para discutir as decepções dos homens com a modernidade (política, sociedade e cultura). No entanto, passa despercebido que o desencanto é igualmente uma resposta do corpo. Resposta esta que revela os desgastes do orgânico, como a perda da energia, da força vital e do vigor das carnes. O desencanto sinaliza percepções interiores e reflete um rosto empalidecido, extenuado e sem movimentos. E a falta de expressividade, apontaram Courtine e Haroche (2016COURTINE, Jean Jacques; HAROCHE, Claudine. História do rosto: expressar e calar as emoções. Tradução de Ana Moura. Petrópolis: Vozes, 2016.), é uma inscrição do corpo no espaço.

Ao longo de seus escritos, Barreto deixou evidências de que o corpo sempre ocupou o cenário da cultura e sociedade, inclusive, para criar as percepções de si. E não foi o único em seu tempo a registrar essa questão, que também encontrou espaço na escrita de Paulo Barreto (1881-1921), mais conhecido pela alcunha de João do Rio. Na obra A Alma encantadora das ruas (1908), ele registrou não só os encantos e as experiências sensíveis que teve com o Rio de Janeiro, mas mostrou como os espaços são produtores de corpo, de sentimentos e de outras emoções que darão sentido às carnes dos homens e mulheres pobres e em condições de subalternidade (SPIVAK, 2010SPIVAK, Gayatri Chakravorty. Pode o subalterno falar? Tradução de Sandra Regina Goulart Almeida, Marcos Pereira Feitosa, André Pereira Feitosa. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2010.). Nesse manuscrito é possível encontrar reflexões importantes sobre como o espaço modela as carnes, produzindo corpos doentes, frágeis, maltratados, agonizantes; corpos que gemem; corpos eróticos, cheios de desejo e paixão; corpos que matam e transgridem a ordem estabelecida.

Essa atenção dada ao corpo não é recente, pois, como advogou Georges Vigarello (2016VIGARELLO, Georges. O sentimento de si: história da percepção do corpo, século XVI-XX. Tradução de Francisco Morás. Petrópolis: Vozes, 2016., p. 10), a invenção e obrigação de se “ouvir” o corpo remonta ao século XVIII, em um momento em que se abre o debate para questionar os sentidos externos e internos, momento que concretizou a passagem do “penso, logo existo” para um “sinto, logo existo”. Isso torna revelador o estudo do corpo na atualidade, tendo em vista que, como verificou João Gomes Junior (2020GOMES JUNIOR, João. O corpo na história. Albuquerque: revista de história, Aquidauana, v. 12, n. 23, p. 12-24, 29 jun. 2020. Disponível em: https://periodicos.ufms.br/index.php/AlbRHis/article/view/10002 . Acesso em: 22 ago. 2021.
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), vivemos em um contexto de questionamento dos essencialismos, de ruptura com as estruturas e invenção de novos corpos produtores de identidades, subjetividades, que testam os limites do binarismo de gênero e as imposições materiais de si; corpos que não podem ser mais interpretados em dados ontológicos.

Múltiplas foram as formas de ver e dizer o corpo por Barreto. As linhas que seguem este artigo buscam apontar um pouco da especificidade de um assunto que sempre ganhou abertura em seus escritos, e pode ser conferido nos protestos dirigidos à imprensa periódica do Rio de Janeiro, nas correspondências (ativa e passiva), nos romances e nas folhas soltas que compuseram os seus diários (íntimo e do hospício). Assim, visando uma melhor compreensão do assunto, destaca-se o estudo do espaço parlamentar na obra Numa e a Ninfa. O romance apresenta uma profusão de personagens tramados, que representam as tensões do republicanismo brasileiro. Todavia, o debate articulado neste trabalho centra as atenções em Numa, o protagonista, examinando sua atuação na arena pública. Atuação esta forjada com o auxílio da esposa, Edgarda, e do primo-amante da companheira, Benevenuto.

O artigo é organizado em dois itens. No primeiro momento, a discussão gira em torno do corpo no espaço, com atenção à corporeidade produzida a partir do olho e das expressões do olhar. Em seguida, busca-se demostrar como o assunto ganhou forma na obra Numa e a Ninfa - fonte primária da investigação, embora outros manuscritos barretianos sejam mobilizados para uma melhor costura do debate -, a partir dos relatos feitos sobre a organização do espaço parlamentar, que situa as relações vivenciadas na Câmara por Numa.

Sentir e ver o corpo

O antropólogo David Le Breton (2016) vem estimulando os pesquisadores a avaliar a corporeidade humana como um fenômeno social e cultural. O que implica em discutir e pensar o mundo como a emanação de um corpo que penetra (LE BRETON, 2016LE BRETON, David. Antropologia dos sentidos. Tradução de Francisco Morás. Petrópolis: Vozes, 2016.), um corpo que dita nossas maneiras de pensar, de existir, de registrar nossas vivências, sejam individuais ou coletivas. Corpo que não é natural e faz travessias nas fronteiras do biológico, sem ficar preso aos desígnios do sexo com o que é masculino e feminino.

Um corpo artefato, lembra Albuquerque Júnior (2020ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz de. (Mais)culinos: outras possibilidades de corpos e gêneros para as carnes sexuadas pela presença de um pênis. Outros tempos, São Luis, v. 7, n. 29, 2020, p. 260-281. Disponível em: https://outrostempos.uema.br/index.php/outros_tempos_uema/article/view/776 . Acesso em: 13 maio 2021.
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, p. 261) ao situar que o corpo exige muito mais que carnes para lhe dar forma, mas sim um conceito e projetos corpóreos. Cada época indica as diferentes maneiras de como as pessoas devem agir e se comportar corporalmente, ditando modelos de corpo que devem ser encarnados, seja com base no lugar ocupado em um grupo, sem deixar de lado o peso das hierarquias sociais, ou de acordo com a situação econômica que possuem; seja conforme os privilégios materiais (educação, emprego, habitação, entre outros) e simbólicos1 1 Lia Schucman (2012), ao analisar a ideia de raça e os significados construídos em torno da branquitude, lembra que os privilégios simbólicos são encenados toda vez que a violência e o medo, vividos pelos negros, dificilmente são sentidos na mesma intensidade pelas pessoas brancas. que a cor da pele alberga. Nesse quadro de modulações das carnes, o corpo é um construto humano que nunca cessa de ser produzido.

É pelo corpo que os homens podem sentir e abraçar a vida. E se o corpo é uma porção do espaço, como pronunciou Maurice Merleau-Ponty (2014MERLEAU-PONTY, Maurice. O olho e o espírito. Tradução de Paulo Neves e Maria Ermantina Galvão Pereira. São Paulo: Cosac Naify, 2014., p. 15), é através dos sentidos (visão, tato, olfato, paladar e audição) que os indivíduos mediam a experiência com o mundo. Experiência que deve ser entendida como uma passagem da existência, como a possibilidade de que algo nos aconteça ou nos toque (BONDÍA, 2002BONDÍA, Jorge Larrosa. Notas sobre a experiência e o saber da experiência. Revista Brasileira de Educação, Rio de Janeiro, n. 19, p. 20-28, jan-abr. de 2002. Disponível em: https://www.scielo.br/j/rbedu/a/Ycc5QDzZKcYVspCNspZVDxC . Acesso em: 08 out. 2021.
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). O sujeito da experiência é aquele que se aventura, que se expõe, que se desloca em tramas que colocam seu corpo em risco. As sensibilidades fazem o nosso corpo perceber o mundo de coisas ao nosso redor. Mundo em que vários aconteceres estão se entrelaçando, como avaliou Tim Ingold (2012INGOLD, Tim. Trazendo as coisas de volta à vida: emaranhados criativos num mundo de matérias. Horizontes Antropológicos, Porto Alegre, v. 18, n. 37, p. 25-44, jan-jun. 2012. Disponível em: https://www.scielo.br/j/ha/a/JRMDwSmzv4Cm9m9fTbLSBMs/?lang=pt . Acesso em: 18 dez. 2021.
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) ao indicar que a realidade em que vivemos ultrapassa o mundo de objetos que se apresentam para nós como um fato consumado.

Essas meditações sugerem que o mundo é feito de matérias em fluxo. Ao desenvolverem modos de vida particulares (ações, atitudes, comportamentos, relação aos hábitos, rotinas e outros), os indivíduos estão tecendo seus fios de vida através do próprio mundo. As pessoas estão criando suas moradias, habitações e territórios existenciais (ROLNICK, 2014ROLNICK, Suely. Cartografia sentimental: transformações contemporâneas do desejo 2. ed. Porto Alegre: Sulina, 2014.) para fugir da angústia da vida, das aflições da cotidianidade.

Uma das maneiras de realizar essa experiência é pelo caminhar, ao sujar os pés na lama e gastar o solado dos sapatos no chão. Caminhar é fazer botânica no asfalto, em um dizer benjaminiano (BENJAMIN, 1997BENJAMIN, Walter. Obras escolhidas. Tradução de José Carlos Martins Barbosa e Hemerson Alves Baptista. v. 3. 2. ed. São Paulo: Brasiliense, 1997., p. 34) quando enuncia a retórica do flâneur, mas também pode ser um movimento de escuta próxima do chão. É a escuta dos pés, como pontuou Beatriz Galhardo (2020GALHARDO, Beatriz. À escuta dos pés: caminhada e dança em ‘Notícias de América’. Coleção Pequena Biblioteca de Ensaios. Rio de Janeiro: Zazie Edições, 2020., p. 33) ao definir um movimento de atenção das relações gravíticas e espaciais que o corpo humano mantém para perceber as coisas ao seu redor. Contudo, é preciso lembrar que as pulsões do corpo do indivíduo nos lugares são dadas essencialmente com o olhar. Embora outros órgãos sensoriais funcionem na percepção do mundo, o olhar é o mais rogado; é ele quem vai direcionar o sentido do deslocamento, guiando e dirigindo os nossos passos.

O olhar ajuda a mirar as paisagens (naturais e humanas) e a fitar os corpos em deambulação, o que não torna coincidência a percepção da visão como um tatear do olho (LE BRETON, 2016LE BRETON, David. Antropologia dos sentidos. Tradução de Francisco Morás. Petrópolis: Vozes, 2016., p. 78), ou seja, tudo aquilo que consegue alcançar com a vista é tocado, conhecido, sentido e avaliado. A visão é mais do que um projeto do visual, e não se resume ao olho ótico, que é um receptor da luz. A visão é uma condição da ação capaz de projetar os homens no espaço, assim como é capaz de conhecer e criar domínio sobre o outro. O que urge o seu conhecimento, o controle e o manejo da expressividade, pois ver não é uma ação desinteressada, mas um registro do olhar: um sinal do corpo que manifesta as paixões, que deixa nu os sentimentos, que mostra a dor da perda, que vibra com o fracasso, que confessa o tédio dos dias que se arrastam.

O olhar exibe a força, o julgamento, a vigilância e simula o poder nas relações sociais. É mais enigmático do que pensaram os anatomistas do século XVI ao identificarem o olho como um fogo (VIGARELLO, 2006VIGARELLO, Georges. História da beleza. Tradução de Léo Schlafman. Rio de Janeiro: Ediouro, 2006., p. 21), como uma luz que emanava do corpo em um brilho, quase divino, que tocou o céu. O olhar é mais do que uma força natural, mais do que um farol e guia do espírito; é mais do que uma janela da alma, como destacou Marilena Chaui (1995CHAUI, Marilena. Janela da alma, espelho do mundo. In: NOVAIS, Adauto (org.). O olhar. 5. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1995. p. 31-64., p. 33) ao situar que o olho imprime uma dupla posição: a identidade do sair e do entrar em si.

Quando a visão ocupa a exterioridade dos homens se constitui como um espelho do mundo: claro e visível, em oposição, lembra o poeta (COUTO, 2012COUTO, Mia. O cego estrelino. In: COUTO, Mia. Estórias abensonhadas. São Paulo: Companhia das Letras, 2012. p. 21-26., p. 23), ao mundo dos indivíduos renitentes à escuridão, pessoas com olhos que tateiam o nada apagado. A visão é o teatro da vida ganhando iluminação pelos olhos, com regras que ordenam e buscam dar sentido às experiências do visual. Caso que situa o que Courtine e Haroche (2016COURTINE, Jean Jacques; HAROCHE, Claudine. História do rosto: expressar e calar as emoções. Tradução de Ana Moura. Petrópolis: Vozes, 2016., p. 72) compreenderam ser uma política do olhar, ou o que pode ser entendido como a ritualização da expressão, a educação das fisionomias que são aprendidas, reproduzidas, controladas, idealizadas, imaginadas em um dado tempo e espaço.

Essa encenação da expressividade pode ser lida como um tipo de “fabricação” (BURKE, 1994BURKE, Peter. A fabricação do rei: a construção da imagem pública de Luís XIV. Tradução Maria Luiza X. de A Borges. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1994., p. 11) fisionômica que outorgou o indivíduo a modular as imagens de si, que não cessam de ser criadas, inventadas, discutidas e dramatizadas. Algo que chegou a ser registrado por Lima Barreto como homem de seu tempo. Algumas questões que permitem aos pesquisadores avançarem no tema podem ser elencadas do seguinte modo: analisar as críticas feitas à burocracia nacional; conhecer os relatos dirigidos aos políticos e ao modo de fazer política no Brasil; conferir o juízo criado em relação ao funcionalismo público; verificar o dissabor com as instituições de justiça e avaliar os personagens que tiveram, direta e indiretamente, o sonho e a pretensão de serem burocratas pelas lentes do doutor.

Contudo, o que todas essas notas feitas à burocracia nacional conseguem revelar? A princípio, elas constituem caminhos possíveis para que os estudiosos da fortuna barretiana analisem como o escritor percebeu, discutiu e imaginou o corpo no espaço. Um corpo bem definido, aquele que deu carnalidade ao espaço burocrático. Os personagens de papel de Lima Barreto - presentes nos contos, romances e sátiras -, certamente constituem o documento mais primoroso no estudo das carnes dos homens de sua época. Isto porque os documentos carregam diferentes concepções de ser e não-ser dos indivíduos que, em boa medida, são deformadas pelo humor e sarcasmo do narrador de suas obras.

Quando é dito que a ficção ocupa um lugar privilegiado na análise de como Barreto percebeu o corpo no espaço, outros relatos não são mencionados em segundo plano, tais como os redigidos na imprensa periódica (artigos e crônicas), os confessionais (diários íntimo e do hospício) e os epistolares (correspondências). Dessa forma, cabe salientar que os materiais que conjugam a fortuna barretiana devem ser lidos em conjunto, pois a crítica do métier de Barreto com a arte deve ser feita junto com a análise de sua trajetória. É preciso entender suas vivências como jornalista, como pequeno burguês, como chefe de família e também como alguém que sentiu na pele as dores e o peso de ser negro.

Importa conferir as experiências que o autor teve como burocrata, enunciadas nos trânsitos que manteve nas fronteiras do Direito (COSTA, 2021COSTA, T. V. de S. Lima Barreto: um “juristinista” na tribuna das letras. Sæculum: Revista de História, João Pessoa, v. 26, n. 45, p. 73-88, 2021. Disponível em: https://periodicos.ufpb.br/index.php/srh/article/view/59908 . Acesso em: 8 jan. 2022.
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) ao costurar, em seus protestos à imprensa, diálogos com os dispositivos extraídos da Carta Magna (1891). Outro destaque é avaliar como mobilizou a figura do empregado público concursado, imagem que gostou de exibir com estima, anotaram os seus biógrafos Francisco Assis Barbosa (1988BARBOSA, Francisco de Assis. A vida de Lima Barreto. 7. ed. São Paulo: Edusp, 1988.) e Lilia Schwarcz (2017SCHWARCZ, Lilia Moritz. Lima Barreto: triste visionário. São Paulo: Companhia das Letras, 2017.). É possível que Barreto soubesse que para dar carnalidade ao burocrata ou assumir a “fachada social” (GOFFMAN, 1985GOFFMAN, Erving. A representação do eu na vida cotidiana. Tradução de Maria Célia Santos Raposo. Petrópolis, Vozes, 1985., p. 29) de um homem do Estado era preciso mais do que um vínculo com a administração pública. Era necessário o conhecimento de seus códigos, saber sobre as regras que regiam a vida dos homens que ali criaram suas habitações, manter uma conduta considerada apropriada dentro e fora dos corredores das secretarias, além de controlar a expressividade.

É no controle das emoções que o indivíduo pode manter a sua placidez, com a fronte do rosto calma e reservada de mistérios. Contudo, o corpo manifesta sinais que revelam as intenções mal disfarçadas, a exemplo da avidez, cinismo e arrogância. A questão foi explicitada por Lima Barreto em seu diário íntimo, localizada em um escrito datado do dia 17 de julho de 1905, que compõe um dos registros que o autor fez do cotidiano do emprego público que atuou enquanto amanuense lotado no Ministério da Guerra. A nota recorda uma manhã de segunda-feira, onde todos os funcionários estavam presentes, e o dia passou como os outros: sem pressa, mantendo-os ali despreocupados a mastigar os minutos.

Naquele local morno da repartição, em que cada funcionário se manteve preso à mesa fazendo as mesmas obrigações rotineiras, o silêncio é quebrado pela presença de Laurino. O referido contínuo entra abruptamente na sala, alvoroçando os que estavam ali presentes com a notícia do falecimento de “Seu Silva”. Ninguém sabia como o homem havia sucumbido, mas se especulou que o ritmo da carreira administrativa impediu que tratasse de uma moléstia, companheira de longas datas que lhe abriu a porta da casa dos homens que dormem de pés juntos. Com a notícia trágica, um clima fúnebre se instalou entre os empregados, suficiente para que um coro roufenho saísse de suas bocas, evocando o termo “coitado”. Por instantes, todos demonstraram sentir o peso do fenecer, buscando expressar a dor da perda de um colega. Mas Barreto parece não ter se convencido com o alarido de angústias, pois, como registrou:

ninguém sente. Apesar de viverem, ou terem vivido com ele dez, vinte, trinta anos, a amizade não lhes ligou as almas. Não havia afinidade entre os espíritos deles e os pequeninos atritos de carreira ainda os separou mais. Entretanto eles se esforçam por ter compaixão e dos traços do seu rosto nada sai [...]. (BARRETO, 1956aBARRETO, Lima. Diário íntimo. São Paulo: Brasiliense, 1956a., p. 107).

A desconfiança do escritor a respeito da compunção dos parceiros de labor partiu da atenção que manteve em seus traços fisionômicos. Se, no controle das expressões, os contínuos tentaram viver o luto, seus corpos denunciavam a falta de empatia, pois estavam teatralizando a dor ao simular o que pode ser identificado como um tipo de tristeza burocrática: um sentimento contido, preso à razão, capaz de mascarar o descontrole dos nervos, não deixando transbordar o rio de lágrimas que enruga a pele. Era a prostração oficiosa dos sentimentos, como se viu nas atitudes de Belo, o “homem mais sensível as dores formalísticas e de polidez” (BARRETO, 1956aBARRETO, Lima. Impressões de leitura. São Paulo: Brasiliense, 1956b., p. 107), que preferiu expressar as aflições da perda com um cartão de pêsames.

Para Barreto, o pequeno bilhete, timbrado com uma caligrafia airosa e cheia de cuidados, foi a prova de como os homens (burocratas) vinham substituindo suas almas pelo papel escrito. A questão ilustra as fragmentações do indivíduo no espaço burocrático, com a perda do sensível e dos últimos resquícios de humanidade. O que torna compreensível a reiteração de imagens limabarretianas feita aos homens de Estado, como seres “apagados”, com fisionomia2 2 Parte dessas representações pode ser conferida no Diário íntimoe na produção romanesca barretiana, como As aventuras do Dr. Bogoloff,Os Bruzundangase Vida e Morte de M. J. Gonzaga de Sá. “fechada”, “seca”, “dura”, “parada”, “empastada”, “vulgar”, “retraída”, que irradiam “poder e força”, com o “ar terrível”, “bragantina”, “plácida”, “flácida”, que lembram a “pele de um sapato velho”.

Na escrita barretiana, a burocracia construiu indivíduos que não deviam chorar, projetou seres que sufocaram as emoções, deixando de transmitir o calor no aperto de mãos, de indicar a profundidade do ser através dos olhos. O caso é ilustrativo quando o escritor situou que o Estado é um desmoralizador do caráter e, “mais que os vícios, o álcool, o jogo, a morfina, a cocaína, o tabaco, ele nos tira toda a nossa dignidade, todo o nosso amor próprio, todo o sentimento de realeza de nós mesmos” (BARRETO, 1915bBARRETO, Lima. Numa e a Nympha. Rio de Janeiro: Officinas d’A Noite, 1915b., p. 31). O espaço burocrático deu novos sentidos às carnes dos indivíduos, às expressividades, ao estar vivo, mas é engano supor que produziu apenas efeitos deletérios. Existiram as horas de gozo, o momento em que os funcionários estavam com os pés estirados para cima da mesa enquanto desfrutavam o tempo livre. Trata-se da apologia ao ócio que Barreto não deixou de perceber e que pode ser lida, conforme sugere Marcos Antonio Rodrigues (2015RODRIGUES, Marco Antonio. Contos da vida burocrática: o funcionário público na narrativa curta de ficção brasileira. 2015. Tese (Doutorado em Literatura) - Programa de Pós-graduação em Literatura, Universidade de Brasília, Brasília, 2015., p. 107), pela clave irônica, como resultado de um delírio que os contínuos viveram em meio às atividades repetitivas. Questão provocativa para levantar algumas discussões, como, por exemplo: até que ponto Lima Barreto participou e resistiu às incitações de um ambiente que trepidou o sensível? Como o tema ganhou forma em seus escritos?

Manipulando as expressividades

Seria ingênuo pensar que o escritor de Clara dos Anjos, em nenhum momento da vida, manipulou as expressividades que julgou pertencerem aos burocratas, tais como a rispidez na fala, a arrogância pelo cargo ocupado, o olhar de ciúmes dos colegas, o desprender da língua em bajulação aos superiores, a mansidão nas ações, o peito inflado por se considerar um “ilustre”, tanto intelectual quanto culturalmente. O autor ficou pouco mais de 15 anos nas dependências do Estado, sendo empossado no serviço público no dia 28 de outubro de 1903, e findando o exercício na data de 23 de dezembro de 1918, aposentado por invalidez em decorrência de uma epilepsia tóxica (SCHWARCZ, 2017SCHWARCZ, Lilia Moritz. Lima Barreto: triste visionário. São Paulo: Companhia das Letras, 2017.). Tempo hábil para conhecer e reproduzir as gestualidades de seu meio; o meio dos indivíduos que vivenciaram o funcionalismo público, a vocação das minorias urbanas, dos elementos mais instruídos e agressivos (CARVALHO, 2008CARVALHO, José Murilo de. A construção da ordem: a elite política imperial. Teatro de sombras: a política imperial. 4. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008.) da sociedade.

Contudo, é preciso lembrar que aprender as expressões do local (espaço burocrático) não é um ato passivo, tendo em vista que o indivíduo não está ali apenas deixando o corpo ser moldado pela realidade do lugar. Conhecer as expressões simboliza, igualmente, um ato de resistência às investidas do espaço, dando forma à luta que o sujeito trava contra a aniquilação do ser. Conhecer a manifestação das expressões foi um meio de mover-se dentro do ambiente e garantir, se não uma posição de poder, ao menos um lugar cômodo para habitar. Dito de outra forma, seria um lugar para sobreviver, e Barreto deixou evidente que fez uso regular do controle da expressividade para se manter vivo.

No espaço asilar,3 3 O espaço asilar representa as experiências de confinamento de Lima Barreto no hospício. ele teve que controlar o choro e o aquecimento dos nervos para não ser confundido com os homens desenfreados na razão; para escapar da violência dos guardas, enfermeiros e da arbitrariedade do poder médico,4 4 Em sua pesquisa Os delírios da razão,Magali Engel (2001) ressalta que a perda do domínio do corpo e da mente foi uma realidade no espaço asilar, principalmente no século XIX, entre a população indigente e mendigos que foram despidos de sua humanidade. como confessou nas folhas rabiscadas a lápis que constituíram o seu Diário do hospício, assim como o inacabado romance Cemitério dos vivos, que enreda a experiência de internação, Barreto precisou se conter; no ambiente doméstico, ao assumir as obrigações do lar, teve que endurecer o semblante para aguentar os devaneios do pai, Afonso Henriques, acometido pela loucura.

E como não lembrar da dificuldade confessada em “reprimir a explosão” (BARRETO, 1956aBARRETO, Lima. Diário íntimo. São Paulo: Brasiliense, 1956a., p. 41) dos humores ao ter que impor ordem aos desajustes dos irmãos (Carlindo, Evangelina e Eliézer), mergulhados em brincadeiras sem hora, falta de empenho nos estudos, o que lhes pareceu marcar um destino comum aos homens de cor, renegados à alcunha de pobres-diabos - preocupação que reflete, em parte, a identificação fantasmática (NOGUEIRA, 2021NOGUEIRA, Isildinha Baptista. A cor do inconsciente: significações do corpo negro. São Paulo: Perspectiva, 2021., p. 18) que Lima Barreto teve com a classe dominante e seu rascunho de ideal imaginário da brancura. Nos domínios do Estado, Barreto empalideceu o rosto para lidar com a arrogância dos superiores e as insensibilidades dos colegas que caçoavam de suas pretensões literárias, os quais não escondeu começar a desenvolver uma “série chocante de incongruências de sentimentos, desacordes, de misteriosas repulsas” (BARRETO, 1956aBARRETO, Lima. Diário íntimo. São Paulo: Brasiliense, 1956a., p. 51). Essa foi a resposta do corpo de Barreto às antipatias dos colegas, assim como a reação de sua carne ao ambiente funesto que pareceu constituir as Secretarias de Estado.

O tema da expressividade ganhou destaque quando Barreto mostrou a importância do olhar nas relações sociais. O autor demonstrou ter compreendido que o olho é mais do que um explorador da paisagem: é uma forma de se posicionar no mundo. Numerosos foram os relatos feitos acerca da expressividade do olhar ao longo de sua fortuna. Entre eles, Barreto testemunhou5 5 Parte das representações do olhar pode ser conferida no Diário íntimo e na produção romanesca barretiana, como Clara dos Anjos, Triste fim de Policarpo Quaresma e Os Bruzundanga. “fisionomia sem olhar”, assim como olhares “sem brilho”, “luminosos”, “inquietos”, “cioso”, “firme”, “triunfante”, “sôfrego”, “lascivo”, “turvos”, “morto”, “indecente”, “pasmos”, “perscrutador”, “vago”, “guloso”, “úmido”, olhos de “esmalte”, de “sonho”, olhares que “penetram”, entre outros. Os registros são indícios de como ele julgou e percebeu as fisionomias de sua época; cada olhar intenciona um movimento do corpo no espaço. É o movimento do corpo que vai dar cor às expressões do olho, pois, na condição da ação, o olhar convoca outros sentidos para aumentar sua potência, a exemplo da retração dos movimentos das mãos, a inquietude nas pernas, a tensão muscular que enrijece os ombros, a secura na boca e o ofegar da respiração.

Em Numa e a Ninfa, existe uma tentativa de esmiuçar o assunto a partir do entendimento sobre como o controle da expressividade se constitui como uma arma política. A obra em questão é um dos trabalhos de Barreto - certamente situado ao lado da coleção de sátiras reunidas para compor Os Bruzundangas, publicado em 1917 pelo livreiro Jacinto Ribeiro dos Santos (BARBOSA, 1988BARBOSA, Francisco de Assis. A vida de Lima Barreto. 7. ed. São Paulo: Edusp, 1988.), e do romance Vida e morte de M. J. Gonzaga de Sá, que ganhou as livrarias do Rio de Janeiro em 25 de fevereiro de 1919 (BARRETO, 1956aBARRETO, Lima. Diário íntimo. São Paulo: Brasiliense, 1956a.) -, em que o enredo dá ênfase à organização e ao funcionamento do espaço burocrático. A trama é um desnudar do arrivismo na cultura republicana brasileira, um modelo de vida burguês argentário como padrão de prestígio social (SEVCENKO, 1999SEVCENKO, Nicolau. Literatura como missão: tensões sociais e criação cultural na Primeira República. São Paulo: Brasiliense, 1999., p. 26), centralizando discussões que problematizam o papel das leis, as fragilidades do sistema democrático no país e a facilidade com que os edis fizeram bufonarias com a Constituição (1891).

Em um plano geral, a obra romanesca escava os bastidores da política nacional. É provável que, a partir dessas linhas e observações, tenha surgido o interesse de Barreto em iniciar a narrativa contando a “novidade política” que agitou os gabinetes da imprensa, as conversas nos bares, praças, bondes, arredores da vizinhança, onde foi possível observar as pessoas com as orelhas levantadas para saber mais da história a respeito da criação de um novo Estado. A cidade inteira ficou esbaforida com a circulação da notícia, mas os humores pulsaram com força entre os homens dentro da Câmara dos Deputados, ou seja, os políticos de toda ordem reunidos no debate do Projeto de Lei nº 244-A, que visou criar mais um ente federativo no país.

Os homens presentes na discussão gastaram toda a saliva para que a norma fosse aprovada, pois já imaginavam qual seria o sabor da vitória: a criação de cargos na administração pública e uma bancada política com representantes do mais novo Estado, tanto no Senado quanto na Câmara. Naquela altura do debate, ressoar a voz pelos quatro cantos da tribuna estava além da emissão de uma opinião, pois era preciso colocar em movimento o corpo para dar ânimo ao falatório. Era preciso colocar em ação a expressividade, fazer caras e bocas para ganhar visibilidade no espaço público, ser notado pelos pares e membros da situação.6 6 A descrição dos membros da situação na escrita barretiana diz respeito a todos os homens que se mantiveram alinhados ao pensamento e às posições dos indivíduos que se encontram no poder. Outra visão cobiçada foi a lente dos jornalistas, a quem coube imprimir não só o fato noticioso como também exibir os rostos dos políticos nas colunas dos periódicos, ao registrarem seus feitos, fracassos, troca de farpas com os rivais e todo tipo de informação capaz de lhes afamar ou destruir a carreira.

Numa Pompílio de Castro foi um desses personagens da política que pegou todos os ouvintes de surpresa ao pronunciar um discurso “valioso” no plenário da Câmara. A perplexidade generalizada tomou conta dos presentes ao ouvirem as palavras do homem que se fez mudo no primeiro ano e meio de legislatura, vivendo para dormir na bancada política. O texto pomposo que saiu de sua boca, acostumada à inércia, causou grande espanto. O filho do escriturário pode acoimar naquele momento um valor positivo às suas carnes ao mostrar novas imagens de si, sobrepostas às impressões desdenhosas que lhe atribuíram: alguém “obscuro”, um “idiota” e uma “perfeita excrescência parlamentar” (BARRETO, 2017aBARRETO, Lima. Numa e a Ninfa. São Paulo: Penguin Classics Companhia das Letras, 2017a. , p. 44).

Na tribuna, a elegância na fala de Numa fez com que vibrasse triunfante e, certamente, percebeu a importância de ter a atenção concentrada em si, conseguindo fisgar os olhares (de surpresa, pasmo, admiração, credulidade, inveja) dos rivais, bisbilhoteiros e de todos os que notaram o que pode ser identificado como a melhor performance de sua carreira como político. É a (re)simbolização de seu corpo, escrita pela sua revelação como orador. O episódio aprazou seu anonimato diante da população que mal conhecia seus projetos e intenções como representante do povo. A situação extraordinária não foi diferente diante dos olhos dos companheiros políticos, pois, “apesar do nome tão auspicioso para o ofício de legislador, os próprios contínuos não lhe guardavam com facilidade nem o nome nem os traços fisionômicos” (BARRETO, 2017aBARRETO, Lima. Numa e a Ninfa. São Paulo: Penguin Classics Companhia das Letras, 2017a. , p. 43).

O apagamento da expressividade no espaço parlamentar pode ser discutido como a encarnação da morte no plano terreno, uma espécie de remetida do indivíduo a um estado de “impersonalização”, conforme lembra David Le Breton (2018LE BRETON, David. Desaparecer de si: uma tentação contemporânea. Tradução Francisco Morás. Petrópolis: Vozes, 2018., p. 26) ao mostrar uma disposição do corpo em que a pessoa se despe de todas as obrigações da identidade. Apagar as expressões é existir no mínimo; é ser um ninguém em meio à multidão. E o caso parece se otimizar no meio dos que ambicionam cargos e carreiras políticas, pois se manter apagado e sem expressividade tem seus riscos na arena pública. O indivíduo acaba sendo alvo de caçoadas, tornando-se uma presa fácil dos inimigos que logo desejam a vacância de seu cargo. É possível que fique incapaz de mover as peças do jogo político para impulsionar a própria carreira sem parasitar nas costas dos poderosos. Outro resultado aparece na incapacidade de se constituir como um ídolo popular, de dar formar ao tipo carismático que faz a gente humilde vociferar pelas ruas frases como “Este é o meu homem”! (BARRETO, 2004BARRETO, Lima. Toda crônica (1890-1919). Apresentação e notas de Beatriz Resende. Organização de Rachel Valença. v. 1., Rio de Janeiro: Agir, 2004., p. 238).

Em certa altura de sua ocupação como deputado federal, Numa enfrentou os apagamentos de si na política. Mas não se pode concluir que foi um homem sem expressão, já que, desde cedo, aprendeu a manipular suas expressões faciais para conseguir tirar proveito das situações, além de abocanhar as oportunidades que lhe fizeram subir na carreira (antes de ser deputado, ele seguiu carreira jurídica como promotor de justiça, juiz de direito e chefe de polícia) e alçar posições econômicas e materiais mais confortáveis. Sem surpresa, ele foi conhecido por ter “faro de adivinhar onde estava o vencedor”, mas havia um problema na sua expertise: sua sagacidade era fruto de uma “ausência total de emoção, de imaginação e orgulho inteligente” (BARRETO, 2017aBARRETO, Lima. Numa e a Ninfa. São Paulo: Penguin Classics Companhia das Letras, 2017a. , p. 50).

O leitor desatento pode cair na ironia barretiana e pensar que Numa foi um sujeito sem eira nem beira, ou seja, um político de qualidade menor. É preciso considerar que ter um faro de adivinho não é uma competência partilhada por todos; antes, é uma excepcionalidade. E tal característica pode ser considerada como o denominador do malandro (DAMATTA, 1997DAMATTA, Roberto. Carnavais, malandros e heróis: para uma sociologia do dilema brasileiro. 6. ed. Rio de Janeiro: Rocco, 1997.), daquele jeitinho brasileiro ávido pela esperteza e que se aproveita da sorte. Quando Barreto situa a falta de emoção, imaginação e inteligência (reatores que atuam no apagamento da expressividade) em Numa - para dar existência ao sujeito que teve faro de adivinho -, o autor expõe, em contraponto, que o personagem precisou manter um esforço redobrado na realização das conquistas. Indiretamente é exigido do corpo uma reserva maior de energias e prudência no gasto das forças com atividades desnecessárias.

O faro de adivinho mobiliza os cinco sentidos. Certamente, a visão é um dos mais requeridos. Encontrar o vencedor exige ver a cena política, mas não com os olhos de quem contempla a paisagem e desliza a vista sobre o horizonte sem pretensões. O olhar que deve entrar em ação é o investigativo, persecutório, aquele que analisa a complexidade do ambiente, que sabe ler os códigos de expressão do lugar. O faro de adivinho exige a domesticação da visão, tornando complexo o simples movimento de abrir e fechar os olhos. É no treino do olhar que o indivíduo tateia aquele pedaço de mundo da burocracia, vendo que parte dos homens graúdos pertencentes à política necessitam sentir gente miúda gravitando em sua volta, percebendo que a bajulação, o mandonismo, a força e a arbitrariedade são combustíveis que movem os interesses na política.

O faro de adivinho de Numa imprimiu em si um rosto que simula e finge. É o jogo da expressividade ganhando margem e, desde a carreira judicial, parece ter aprendido sua potência. Afinal, no momento oportuno, o personagem soube manipular seu “atrevimento”, “desfaçatez” e “despudor” (BARRETO, 2017aBARRETO, Lima. Numa e a Ninfa. São Paulo: Penguin Classics Companhia das Letras, 2017a. , p. 52) para transformar o ofício em instrumento de ambições políticas. Contudo, os fatos indicam que todo o conhecimento foi invalidado ao ingressar na carreira política, pois, ao se tornar deputado, Numa teve que mobiliar o faro de adivinho com outro sistema de expressividade: a performance oral que precisou desprender nas sessões da Câmara. Foi necessário desenvolver uma fala teatral para construir seu valor na política. No entanto, a argúcia do personagem não se deu de forma automática, pois, na legislatura, demonstrou dificuldade em representar a malícia dos governantes. Com isso, nem a assiduidade de Numa nas sessões parlamentares fora suficiente para modular o corpo do político sagaz. O distinto deputado estava sempre distraído, já que mal percebia os ataques velados que os estadistas desferiram uns contra os outros diante de seus olhos. O resultado do alheamento resultou na dificuldade em lidar com as reviravoltas na cena política, quando os nomes de candidatos “ideais” para firmar alianças mudavam repentinamente. Assim, não surpreende o receio do protagonista quando o assunto diz respeito às votações abertas da tribuna: Numa tinha medo de se comprometer e manifestar apoio ao candidato que não era favorito da legenda dos membros da situação.

Ao que tudo indica, existem dois tempos na eficácia do faro de adivinho de Numa que funcionavam melhor antes da vida pública. No início de sua carreira profissional, os alvos indicados para bajulações eram certeiros; bastava mirar o nome que ocupava o poder e ensaiar as adulações para conseguir dar matéria às ambições. Quadro diferente sucedeu quando passou a integrar a paisagem da política, tendo em vista que os alvos seguem continuamente se alternando. Assim, a dinâmica do jogo era diferente, exigindo mais agilidade daqueles que pretendiam habitar esse tipo de meio. No final das contas, os talentos de Numa eram limitados, mas foram suficientes quando se graduou em Direito. Com a graduação, construiu sua rede de contatos, compondo as primeiras coalizões e celebrando o casamento com a pretendente que lhe deu um “empurrão na vida”. O enlace foi com Edgarda Cogominho, moça de 20 e poucos anos, cheia de ilusões de nobreza. Ela casou sem amor, cumprindo o rito social destinado a todas de seu sexo, reduzidas pelo trinômio mãe-esposa-dona de casa (MALUFF; MOTT, 1998MALUF, Marina; MOTT, Maria Lúcia. Recônditos do mundo feminino. In: SEVCENKO, Nicolau (org.). História da vida privada no Brasil. v. 3. São Paulo: Companhia das Letras, 1998. p. 367-421., p. 373).

Contudo, a dita personagem é uma das figuras femininas barretianas que subverte a ordem imposta à sua natureza. Maria Sandra da Gama (2015GAMA, Maria Sandra da. Entre mulheres e fronteiras, um escritor: lugares do feminino na obra de Lima Barreto (1902-1922). 2015. Dissertação (Mestrado em História) - Programa de Pós-graduação em História, Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Natal-RN, 2015.) analisou a questão ao mostrar que Barreto escreveu uma mulher obstinada que soube criar condições de mobilidade em um contexto em que as ações femininas eram mínimas, ponderando:

[...] Edgarda sabe das regras da distribuição dos lugares sociais ‘de homem’ e ‘de mulher’, mas também sabe que nelas existe muita porosidade, nem sempre cada um consegue manter-se no nível ‘adequado’. Nessa perspectiva, como conhecedora das regras do jogo da relação dominador e dominado, ela usa de simulação e reforça para Numa uma imagem de si mesma em conformidade com as convenções sociais que queriam a mulher submissa. Então, disfarça sua real capacidade intelectiva, fazendo-o acreditar ser inferior à do marido (GAMA, 2015GAMA, Maria Sandra da. Entre mulheres e fronteiras, um escritor: lugares do feminino na obra de Lima Barreto (1902-1922). 2015. Dissertação (Mestrado em História) - Programa de Pós-graduação em História, Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Natal-RN, 2015., p. 166).

A autora de Entre mulheres e fronteiras, um escritor mostra o rompimento da personagem com o sistema de dominação masculina da época, e deixa sugestivo que o controle da expressividade - a exemplo da simulação do intelecto - foi importante para que ela se movimentasse na malha normatizadora dos comportamentos femininos, inclusive, para dar efeito aos desejos de ambições materiais. Certo é que Edgarda viu no casamento uma oportunidade de ter visibilidade nas rodas burguesas ao pensar que o pretendente seria alguém hábil na política.

É possível dizer que Edgarda imaginou respirar a glória ao ser a primeira dama de um político pretensamente conhecido e assediado por onde passava. Era o seu momento de brilhar, de causar inveja entre as amigas ao ouvir o seu nome e o do consorte ecoarem na boca do povo - oportunidade para se cravar socialmente como uma figura célebre e ter os holofotes virados para si. Porém, não demorou muito para que ela percebesse que toda sua aspiração sonhada se tornou papel picado no chão, ou seja, nada do que desenhou na mente ganhou forma. Em poucos meses, o casamento entrou no marasmo e a mulher viu de perto o marido sendo tragado pela preguiça. Na Câmara, ela esperou que Numa esticasse a língua, entrasse nos bate-bocas e confusões dos congressistas para se celebrizar entre aqueles homens barulhentos. No entanto, o esposo permanecia calado, quieto em um canto, imprimindo ali o seu mutismo, a dificuldade ou recusa em falar verbalmente.

O voto de silêncio ainda foi reproduzido nos ataques que recebeu dos jornais de oposição, que só avolumaram as irritações da esposa ao reparar na tranquilidade e recusa do cônjuge de pegar na caneta e desferir sua ira em palavras. Os constantes desleixos de Numa contribuíram para que a mulher considerasse o enlace como “um desastre sem desculpa aos seus olhos” (BARRETO, 2017aBARRETO, Lima. Numa e a Ninfa. São Paulo: Penguin Classics Companhia das Letras, 2017a. , p. 54). É possível imaginar o quão fatigante foi superar o embaraço matrimonial, mas Edgarda teve que educar uma nova expressividade pelo consorte, simular o olhar compassivo à moleza de espírito de Numa, caso quisesse dar margem às suas ambições de grandeza. Foi preciso edificar as glórias do marido, torná-lo um homem ilustre para depois projetar os seus próprios interesses.

A primeira atitude de Edgarda foi criar uma nova imagem de Numa, fazendo com que ele colocasse de lado toda a prostração do corpo, abandonando a inércia dos gestos, o desânimo do rosto e a lerdeza do pensamento. Edgarda sabia como os homens de Estado deveriam se portar, e começou a instruir o marido para que retornasse à cena política. Desde cedo, a filha de Cogominho acompanhou o pai em rodas senatoriais e burguesas, e não escondeu a “repugnância” no tipo de lazer. Contudo, na recorrência dos encontros, ela conferiu de perto como as peças do jogo político eram movidas, observando a importância de se firmar alianças, escutando histórias de violências partidárias e conhecendo as falcatruas que deveriam ser empreendidas para a manutenção do poder e deslizamento ao redor da malha das leis sem sofrer punições. E como não pensar ter visto rostos sôfregos, risonhos, olhares dormentes, falsos e que se fizeram turvos por trás do pince-nez? Naqueles passeios formalísticos junto ao pai, Edgarda estava na plateia, sentada em um lugar privilegiado para observar o teatro de expressões, reparando como aqueles homens modelavam seus rostos a cada dose de uísque que queimava na garganta ou a cada gole de café que tocava a língua, deixando seus corpos iguais a sentinelas nos círculos de conversa.

As reuniões foram úteis para Edgarda conhecer e aprender sobre as expressividades de um local (no caso, o espaço parlamentar) que, embora não fosse totalmente estranho ao marido, parecia faltar desembaraço na reprodução das expressões. Quando Edgarda assumiu as rédeas da carreira de Numa, oferecendo dicas e orientações do que ele deveria ou não fazer, reforçou o desejo de realizar travessias em um espaço que não lhe coube dentro do matrimônio. Essa observação é demonstrada por Eliane Vasconcellos (1999VASCONCELLOS, Eliane. Entre a agulha e a caneta: a mulher na obra de Lima Barreto. Rio de Janeiro: Lacerda, 1999.) ao situar o perfil de alguém cheia de personalidade que não abriria mão de perder o posto de mulher de político. E parece que a melhor forma de fazer com que Numa colocasse o seu corpo em cena foi por meio do discurso, transformando aquele homem sonolento em um exímio palestrante.

Quando ocupou o espaço parlamentar, Numa resistiu em ser orador. Embora fosse rápido com as palavras, sabia que precisava estudar para agir com desenvoltura. Assim, preferiu deixar a empolgação para os outros companheiros, pois tinha certeza de que existiam pessoas mais notáveis do que ele na Câmara. Coube a Edgarda desatar os nós que prendiam o marido à preguiça, comprometendo-se com a escrita das declarações que ele deveria fazer em público. A mulher tomava notas ao ler livros sobre os assuntos de interesse para montar as ideias; sondava a opinião paterna a respeito das polêmicas partidárias, assim como daqueles que gostavam de tagarelar sobre as bisbilhotices jogadas debaixo do tapete da política, como pode ser conferido na atuação de Lucrécio Barba-de-Bode. No fim, compartilhou os rascunhos e notas com o marido.

Caso Numa quisesse atrair para si os olhares de todos os presentes na Câmara, era preciso exercer o domínio da expressividade, como é sugestivo na passagem:

- Edgarda! Edgarda! Compôs-se um pouco, escondeu entre as rendas da camisa as suas firmes espáduas, e foi ver o marido no aposento aproximo. - Como é que se diz, Edgarda. É talwég ou tálweg? Disse-lhe, e Numa continuou tranquilamente a estudar o discurso que devia pronunciar brevemente. A mulher ainda se demorou um pouco a ouvi-lo, às vezes áspera, mas volumosa, articulando nitidamente as palavras (BARRETO, 2017aBARRETO, Lima. Numa e a Ninfa. São Paulo: Penguin Classics Companhia das Letras, 2017a. , p. 107).

O intrépido deputado tinha que ser teatral, imitar com a erudição de um político audaz para ostentar seu prestígio na Câmara. Um dos recursos era o controle da voz, que deveria transmitir seriedade sem deixar de lado os tons dramáticos e as pausas que inquietavam a audiência. Teria que saber jogar com o corpo para conseguir fingir a sinceridade nas palavras, de modo a não ser denunciado pelas aflições das carnes que deixavam vazar o nervosismo. Precisaria simular a expressão de poder na face por meio de uma fala sem trepidações. Outras atitudes que poderiam lhe salvar dos embaraços costumeiros das sessões parlamentares: lidar com as vaias, com os risos da plateia e com a fala interrompida pela paixão política dos adversários. Foi exatamente o que Numa fez, decorando os textos para ser genuíno na tribuna.

Conforme foi apontado nas linhas antecedentes, o desempenho de Numa como orador causou estupefação aos presentes na tribuna - possivelmente, esse momento grandioso fez a mulher do político irradiar um sorriso disfarçado, do tipo que figura no canto da boca. Poderia ter sido o sorrir canhestro que mal disfarçou o entusiasmo por estar, naquele momento, colhendo os frutos do trabalho que teve em esculpir o marido como um homem notório, depois de ficar horas sentindo o cheiro amorfo dos livros na biblioteca. Pode ser também o alívio depois de ficar deslocando a vista em cima de jornais e revistas para redigir um discurso engenhoso, que demonstrasse vocabulário vasto e domínio das palavras, construindo frases cheias de ênfase para seduzir os ouvidos daqueles que enchiam o auditório da Câmara. Discursos que, na verdade, foram escritos por Benevenuto, seu primo. Homem rico de 30 e poucos anos, extravagante, boêmio, avesso às obsessões pela pátria e aos espetáculos de subserviência. Era um desencantado com a política republicana, o que fez com que se mantivesse estranho às competências políticas dos Cogominhos. De fato, seu amparo às necessidades da prima foi por terem se tornado amantes. Embora se conhecessem desde a infância, a paixão entre os dois só nasceu depois do matrimônio de Edgarda, rendendo, dali em diante, diversos encontros amorosos e sigilosos.

Em todo caso, a potência do discurso intenciona a fabricação de um corpo, já que, no ato de escrever, o indivíduo não desprende no papel somente notas soltas, mas também se esforça na projeção de si. Ao que tudo indica, o bom palestrante não foi aquele que juntou todos os papéis em mãos e leu com destreza as anotações sem trepidar por cima das palavras em gaguejo. O narrador de Numa e a Ninfa não explorou as minúcias do tema, como por exemplo, qual é o papel de um bom orador. Todavia, Barreto escrutinou um pouco a questão em “O destino da literatura”, publicado na Revista Sousa e Cruz em 1921. O texto é resultado de uma conferência que o escritor fez para desenvolver em São José do Rio Preto, cidade interiorana de São Paulo, a convite e insistência dos amigos literatos de Ranulfo Prata.

A palestra nunca aconteceu, pois, no dia do evento, o convidado sumiu (OAKLE, 2011OAKLE, Robert John. Lima Barreto e o destino da literatura. São Paulo: Editora Unesp, 2011.). O nervosismo absorveu sua coragem e fez com que fugisse, sendo encontrado, pouco tempo depois, no fundo de um bar enlevado pelo álcool. Em todo caso, o material produzido traz reflexões importantes acerca da arte literária e da cultura escrita pelos contemporâneos de Lima Barreto, bem avaliada na pesquisa de Joachin Azevedo Neto (2015AZEVEDO NETO, Joachin de Melo. A vida literária e desencantos: uma história da formação intelectual de Lima Barreto (1881-1922). 2015. Tese (Doutorado em História) - Programa de Pós-graduação em História, Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis-SC, 2015.) e, de modo pontual, o texto apresenta indícios de como discutir o papel do conferencista. O dito personagem é alguém que deveria cultivar o saber nas letras, ter habilidade e elegância na exposição do assunto, ter graça e distinção, bem como capricho no vestuário, devendo usar o talho da moda. A beleza física é lembrada pelo escritor como um critério nacional, exigência afirmada em Botafogo, Copacabana, Laranjeiras e plasmada nas vizinhanças do Méier, no morro da Favela e de Gamboa (BARRETO, 1956bBARRETO, Lima. Impressões de leitura. São Paulo: Brasiliense, 1956b.). É possível dizer que o bom conferencista estampou o rosto de Narciso, mas a beleza do indivíduo parece ter sido mais do que atributo físico e um acessório de sedução das moças e senhoras que deveriam suspirar com a formosura do palestrante. Antes, essa posição foi uma característica que naturalizou a argúcia e o intelecto do indivíduo.

Ao que tudo indica, o autor de Gonzaga de Sá não era o tipo que provocava arrepios de desejo nas moças e jovens senhoras. Ele sempre deixou nas entrelinhas de seus escritos considerar-se feio, com o cabelo fora do padrão estético, em certo momento da vida possuiu o semblante cansado em decorrência das complicações com o álcool, corpo adelgaçado, olhos salientes, nariz largo e orelhas grandes.7 7 Poucos são os registros visuais de Lima Barreto, e alguns deles foram catalogados por Lilia Schwarcz (2017) ao organizar a biografia barretiana. Na dificuldade em registrar seus traços físicos e exprimir politicamente o amor por sua negritude, em um contexto que manifestou os horrores à pele e ao rosto negros, dado o avanço das teorias raciais pelo país e no mundo, Lima Barreto acentuou suas qualidades intelectuais. Entre elas, o autor elencava: foi um leitor assíduo, tinha domínio dos idiomas inglês e francês, foi assinante de jornais e revistas estrangeiras que lhe permitiram manter-se atualizado sobre os principais acontecimentos no mundo e, de certa forma, teve um destino diferente dos homens e mulheres de sua cor ao se tornar um letrado. O escritor poderia ser um conferencista como outro qualquer, e ainda que não possuísse um belo rosto - conclusão, sem muita crítica, da observação que fez da essência do bom orador relacionado à beleza da face -, tinha outros atributos a oferecer.

Essa é a lógica que se pode avaliar no esforço de Edgarda na modulação corpórea do marido, culminando na tentativa de moldar o indivíduo sem graça como um político de valor ao denotar seu potencial como orador. Decerto, essa teatralização dos sentidos de Numa reflete as maneiras como Barreto pensou o corpo no espaço (parlamentar). É o corpo dos homens de Estado, que não estiveram imunes aos sarcasmos, associado à escrita zombeteira do autor. No final das contas, não estaria Lima Barreto também reproduzindo as gargalhadas que julgou partir dos políticos, aquele “riso de prostitutas em orgia sesquipedal” (BARRETO, 2017aBARRETO, Lima. Numa e a Ninfa. São Paulo: Penguin Classics Companhia das Letras, 2017a. , p. 122)? Zombaria que pode ter alargado seu próprio rosto toda vez que ele redigiu à pena suas críticas mordazes. É curioso imaginar a cena, recriando na mente a imagem de Barreto inebriado com a própria caçoada e, como leitores, saber quem foram os alvos dentro do meio político que inspiraram sua criação ficcional.

Esteve o escritor mirando seus olhos mordazes em “Neto de pacotilha”, o conhecido político-literato Henrique Maximiano Coelho Netto, lembrado em anotações pessoais como alguém que teve “medo de dizer as suas amarguras” (BARRETO, 1956aBARRETO, Lima. Diário íntimo. São Paulo: Brasiliense, 1956a., p. 134) contra o poder político que esmagou os mais fracos? Ou então no militar Floriano Vieira Peixoto, representado na escrita romanesca pela “tibieza de ânimo” e a “preguiça” (BARRETO, 1998bBARRETO, Lima. Triste fim de Policarpo Quaresma. Rio de Janeiro: Editora Record, 1998b. , p. 166)? Talvez o “Juca Paranhos”, homem de “mediocridade supimpa, fora de seu tempo”, com feição “desdenhosa e enjoada” (BARRETO, 1919BARRETO, Lima. Vida e Morte de M. J. Gonzaga de Sá. São Paulo: Edição da Revista do Brasil, 1919., p. 64), como satirizou o diplomata José Maria da Silva Paranhos Júnior, mais conhecido como o Barão de Rio Branco? Quem sabe o “letrado beneditino das coisas de gramática” (BARRETO, 1956aBARRETO, Lima. Diário íntimo. São Paulo: Brasiliense, 1956a., p. 51), o já renomado jurista e político Ruy Barbosa de Oliveira? Poderia ser Gastão da Cunha? Carlos Peixoto? Carlos Maul? Pinheiro Machado? Miguel Calmon? José Rufino Bezerra? Seriam alvos da pena de Barreto todos os nomes citados? A lista é extensa, mas os nomes não são aleatórios, tendo em vista que foram figuras políticas da República no Brasil e seus arrojos não passaram despercebidos pela crítica de Barreto - em particular nas publicações feitas na imprensa periódica, em artigos e crônicas -, que manteve-se atento aos seus movimentos e suas encenações no espaço público.

Os retratos que o autor de Isaías Caminha fez de Numa são uma tentativa de compreender, avaliar e reproduzir o teatro das gestualidades empenhadas pelos políticos republicanos. O dito personagem poderia ser mais um daqueles homens esguios no plenário da Câmara, já que foi um indivíduo sem expressão, estava longe de ter uma beleza excepcional, sentiu dificuldade em arrotar vaidades e, por diversas vezes, apequenou-se diante do luxo da vida burguesa. Tal impressão fica evidente em como o personagem se sentia toda vez que ingressava em sua residência no bairro Botafogo, sentindo que usava uma “roupa de gigante”. Numa, embora fosse um costumaz leitor de jornais, possuía um conhecimento limitado, pois lhe faltou interesse pelos livros. Mesmo durante a formação superior, ele evitou sujar as mãos com os exemplares velhos de leis e doutrinas, espalhados pelas estantes da faculdade de Direito, preferindo que seus dedos deslizassem somente nas folhas das apostilas e dos cadernos de anotações que pegou emprestado dos companheiros. O desenho que Barreto esboçou de Numa - ou as representações que simulam uma dada corporeidade - satiriza os políticos que, mesmo possuindo uma boa instrução e dando carnalidade à figura do doutor, pouco ou nada se esforçaram para deixar de lado a mediocridade da vida. Tratavam-se de sujeitos broncos, indivíduos parados no tempo. Ainda que fossem homens da capital, eles estavam presos às raízes interioranas e vivências das cidades pequenas entregues à sorte e aos interesses dos grandes proprietários de terra.

Ao que tudo indica, esse foi o cenário visualizado por Edgarda como prisão do marido, resultando no esforço que teve em modular o corpo do orador em Numa. Essa ação foi uma tentativa de vigorar suas carnes, fazer vibrar as emoções que ele desprezou possuir. E não demorou muito para que o homem franzino ganhasse respeito, tivesse notas de sua biografia nas páginas dos jornais, fosse reconhecido nos lugares e, certamente, mudasse a expressividade: o seu olhar ficou alto e não se arrastou mais junto aos pés; estava içado da sujeira da terra, erguido e cortante.

Contudo, Numa quase colocou tudo a perder ao redarguir a fala do deputado Júlio Barroso em uma sessão da Câmara. O referido congressista detinha a sedução na voz, sendo um dos poucos parlamentares a conseguir agarrar toda a atenção do público. Sempre que tinha o discurso anunciado, lotava as galerias da Câmara com a presença das multidões. Quando Pompílio de Castro retrucou um dos mais brilhantes oradores do recinto, ele teve a chance de se firmar como um dos homens barulhentos da tribuna. Porém, o discurso proferido foi catastrófico. Sem ter uma fala pronta, Numa desandou ao representar um orador distinto no improviso. Mal conseguiu deixar as palavras saírem da boca sem triturá-las em gaguejos. Assim, ele viu escorrer pelo ralo a sagacidade montada com devoção por Edgarda. O papelão do genro de Cogominho durou cinco minutos e causou mal-estar no público. Aqueles que diziam ser seus amigos, prestando respeito com calorosos apertos de mão ao sair de conferências, ficaram nauseados com sua presença após discutir com Barroso.

Desse modo, Numa saiu devastado da Câmara. No dia seguinte, ele precisava fazer um novo discurso e foi procurar amparo em Edgarda para construir a fala: mais sólido, mais forte e capaz de revigorar a reputação destroçada pela imprudência. Entretanto, parece ter havido um custo na realização do projeto. Em uma noite mal dormida, Numa despertou do sono e não encontrou a esposa ao seu lado na cama. Saiu em sua procura pela casa, percorrendo outros cômodos, e logo estranhou algumas luzes acesas em um corredor. Curioso, ele olhou pela fechadura da porta e viu o indesejado: a mulher trocava beijos com o primo. Foi um beijo com ardor e, na pausa dos afagos, eram escritas notas nos papéis espalhados pela mesa. Dessa forma, ele percebeu que o primo era a cabeça por trás do discurso esplêndido e cabia à mulher apenas passar a limpo todas as notas. Naquele momento, Numa descobriu o adultério de Edgarda. Sem reação, ele só pensou na carreira e prestígios que ainda poderia conquistar, como, por exemplo, a ideia de um dia ser presidente, a autoridade máxima nacional. Após o flagra, não esboçou nenhuma reação; apenas recolheu-se e voltou a dormir, vestindo ali uma expressão inusual: o silêncio.

Se, por um lado, a quietude do nobre deputado revela a figura do indivíduo resignado, que teve que suportar a dor da traição para dar seguimento aos desejos de poder, por outro, exibe o manejo que fez das expressividades, com o saber calar e o escutar. Na trama, o silêncio desenhado por Barreto apresenta um caráter situacional - ou texturas, pegando de empréstimo o conceito de Alain Corbin (2019CORBIN, ALAIN. Historia del silencio: del renascimento a nuestros días. Traducción del Francés de Jordi Bayod.Barcelona: Acantilado, 2019.) -, o que implica dizer que, certamente, observou os lugares (públicos e privados) produzirem diferentes linguagens corporais do silêncio. Na cena política, a questão é clara quando o escritor sugere que os homens de Estado precisam saber manipular o próprio mutismo em situações oportunas para evitar a alcunha de covardes e, ao menor deslize, serem derrubados do tabuleiro de jogos da política nacional. A originalidade na reflexão de Lima Barreto está em apontar que, mesmo em silêncio, as nossas carnes sempre vibram, pulsando no instante em que são tocadas. Assim, elas revelam um aprendizado de nosso lugar no mundo: é preciso deliciar-se com as intensidades do estar vivo.

Considerações finais

Ao longo de sua produção escrita, Lima Barreto tornou o corpo um elemento fundamental para compreender o mundo. Desse modo, não se pode atribuir como mera coincidência a importância que o escritor deu aos relatos das emoções, como dor, angústia, felicidade e raiva, buscando discutir por meio das sensações como o espaço (público e privado) modula o corpo do indivíduo. A análise da obra Numa e a Ninfa possibilitou reflexões e discussões sobre como Barreto tratou a questão a partir do olhar e da expressividade oral dos congressistas. Sentidos estes que, ao serem articulados pelos homens de Estado, significaram a organização do espaço parlamentar e agiram na produção corpórea do político de valor. Essa articulação resultou na figura do indivíduo notório, respeitado pelos pares, temido pelos inimigos, estimado pela imprensa e aclamado pela gente humilde.

Fabricação de corporeidade cheia de rituais, como se pode conferir no teatro de gestualidades que Numa Pompílio precisou representar na arena pública, ao mudar a expressividade do rosto e variar o tom de voz para fisgar o público presente. A trama destaca o esforço do protagonista para ser um exímio orador, contando com o empenho da esposa, Edgarda, e do primo-amante da mulher, Benevenuto, para se tornar glorioso na frente da tribuna. Os eventos citados formam a premissa da política dos sentidos na obra barretiana, percebendo que os espaços atribuem valores às nossas carnes. Todavia, existe algo a mais no debate enquanto o corpo se apresentar como um rascunho e, ao permitir que o indivíduo invente outras formas de si, sua existência seja sempre abençoada pela satisfação de viver.

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  • 1
    Lia Schucman (2012SCHUCMAN, Lia Vainer. Entre o ‘encardido’, o ‘branco’ e o ‘branquíssimo’: raça, hierarquia e poder na construção da branquitude paulista. 2012. Tese (Doutorado em Psicologia) - Programa de Pós-graduação em Psicologia, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2012.), ao analisar a ideia de raça e os significados construídos em torno da branquitude, lembra que os privilégios simbólicos são encenados toda vez que a violência e o medo, vividos pelos negros, dificilmente são sentidos na mesma intensidade pelas pessoas brancas.
  • 2
    Parte dessas representações pode ser conferida no Diário íntimoBARRETO, Lima. Diário íntimo. São Paulo: Brasiliense, 1956a.e na produção romanesca barretiana, como As aventuras do Dr. BogoloffBARRETO, Lima. As aventuras do Dr. Bogoloff. Belém: Editora UNAMA 1915. Disponível em: http://www.portugues.seed.pr.gov.br/arquivos/File/leit_online/lima3.pdf . Acesso em: 01 jan. 2021.
    http://www.portugues.seed.pr.gov.br/arqu...
    ,Os BruzundangasBARRETO, Lima. Os Bruzundanga. São Paulo: Editora Ática, 1998a. e Vida e Morte de M. J. Gonzaga de SáBARRETO, Lima. Vida e Morte de M. J. Gonzaga de Sá. São Paulo: Edição da Revista do Brasil, 1919..
  • 3
    O espaço asilar representa as experiências de confinamento de Lima Barreto no hospício.
  • 4
    Em sua pesquisa Os delírios da razão,Magali Engel (2001ENGEL, Magali Gouveia. Os delírios da razão: médicos, loucos e hospícios (Rio de Janeiro, 1830-1930) [online]. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2001. Disponível em: https://books.scielo.org/id/7htrv . Acesso em: 14 fev. 2021.
    https://books.scielo.org/id/7htrv...
    ) ressalta que a perda do domínio do corpo e da mente foi uma realidade no espaço asilar, principalmente no século XIX, entre a população indigente e mendigos que foram despidos de sua humanidade.
  • 5
    Parte das representações do olhar pode ser conferida no Diário íntimo e na produção romanesca barretiana, como Clara dos Anjos, Triste fim de Policarpo Quaresma e Os Bruzundanga.
  • 6
    A descrição dos membros da situação na escrita barretiana diz respeito a todos os homens que se mantiveram alinhados ao pensamento e às posições dos indivíduos que se encontram no poder.
  • 7
    Poucos são os registros visuais de Lima Barreto, e alguns deles foram catalogados por Lilia Schwarcz (2017SCHWARCZ, Lilia Moritz. Lima Barreto: triste visionário. São Paulo: Companhia das Letras, 2017.) ao organizar a biografia barretiana.
  • Financiamento

    Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) - Código de Financiamento 001.
  • Aprovação no comitê de ética

    Não se aplica.
  • Modalidade de avaliação

    Duplo-cega por pares.
  • Contexto de pesquisa

    O artigo apresenta reflexões iniciais da minha tese, desenvolvida no âmbito do Programa de Pós-graduação em História da Universidade Federal do Rio Grande do Norte.
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    O artigo não é um preprint.
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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    09 Out 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    10 Jun 2022
  • Revisado
    12 Set 2022
  • Aceito
    28 Set 2022
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