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Riscos ocupacionais: das metodologias tradicionais à análise das situações de trabalho

Occupational risks: from traditional methodologies to analysis of labor situations

Resumos

Tem-se por objetivo discutir a abordagem dos riscos ocupacionais segundo dois enfoques: o tributário às metodologias tradicionais em segurança do trabalho, cujo enfoque de análise é o das normatizações determinadas por técnicos especializados na área e, outro, que propõe a participação dos trabalhadores. Como abordagem participativa, a referência é a Psicodinâmica do Trabalho e a Ergonomia. A revisão da literatura indica que, embora haja esforço em implantar políticas públicas e de gestão, via participação mais efetiva dos trabalhadores, observa-se, ainda, uma supremacia de metodologias tradicionais na análise dos riscos ocupacionais. Analisam-se suas causas reafirmando a necessidade de novos enquadres teórico-metodológicos.

riscos ocupacionais; segurança do trabalho; saberes de prudência; regras de ofício


The objective sought after is to discuss the occupational risks according to two aspects: the tributary one to traditional methodologies in labor security whose focus is the one of regulations set by qualified professionals in that field, and another one that suggests the participation of workers. As a participative approach, the reference is the Psychodinamic of Work and the Ergonomics. The revision of the literature points that although there is much effort for implementing management and public policies through a more effective participation of workers, a supremacy of traditional methodology in the occupational risk analysis is observed. Their causes are analyzed reassuring the need of new theoretical and methodological topics.

occupational risks; labor security; prudence knowledge; labor policies


Riscos ocupacionais: das metodologias tradicionais à análise das situações de trabalho

Occupational risks: from traditional methodologies to analysis of labor situations

Elvia Lane Araújo do NascimentoI; Sarita Brazão VieiraII; Tânia Batista da CunhaIII

IPsicóloga. Mestrado em Engenharia da Produção pela Universidade Federal da Paraíba. Professora efetiva da Universidade Federal de Campina Grande. Endereço: Universidade Federal de Campina Grande. Rua Aprígio Veloso, 882. Bodocongo-Bairro Universitário. CEP: 58429-140 - Campina Grande, PB - Brasil E-mail: elvianascimento@yahoo.com.br

IIPsicóloga. Doutora em Ciencias da Saúde - Instituto de Pisquiatria/ Universidade Federal do Rio de Janeiro; Pos-doutorado na Universidade do Porto-Portugal. Atualmente é professora associada I da Universidade Federal da Paraíba. Endereço: Universidade Federal da Paraíba, Centro de Ciências Humanas Letras e Artes - Campus I. Cidade Universitária - Castelo Branco. CEP: 58037-310 - Joao Pessoa, PB - Brasil.E-mail: sarita@terra.com.br

IIIPsicóloga. Mestrado em Psicologia Social pela Universidade Federal da Paraiba. Professora do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia da Paraiba. E-mail: taniacunha@gmail.com

RESUMO

Tem-se por objetivo discutir a abordagem dos riscos ocupacionais segundo dois enfoques: o tributário às metodologias tradicionais em segurança do trabalho, cujo enfoque de análise é o das normatizações determinadas por técnicos especializados na área e, outro, que propõe a participação dos trabalhadores. Como abordagem participativa, a referência é a Psicodinâmica do Trabalho e a Ergonomia. A revisão da literatura indica que, embora haja esforço em implantar políticas públicas e de gestão, via participação mais efetiva dos trabalhadores, observa-se, ainda, uma supremacia de metodologias tradicionais na análise dos riscos ocupacionais. Analisam-se suas causas reafirmando a necessidade de novos enquadres teórico-metodológicos.

Palavras-chave: riscos ocupacionais; segurança do trabalho; saberes de prudência; regras de ofício.

ABSTRACT

The objective sought after is to discuss the occupational risks according to two aspects: the tributary one to traditional methodologies in labor security whose focus is the one of regulations set by qualified professionals in that field, and another one that suggests the participation of workers. As a participative approach, the reference is the Psychodinamic of Work and the Ergonomics. The revision of the literature points that although there is much effort for implementing management and public policies through a more effective participation of workers, a supremacy of traditional methodology in the occupational risk analysis is observed. Their causes are analyzed reassuring the need of new theoretical and methodological topics.

Keywords: occupational risks; labor security; prudence knowledge; labor policies.

INTRODUÇÃO

O objetivo principal deste trabalho é o de distender reflexões acerca da prevenção dos riscos ocupacionais, a partir de duas perspectivas: uma referente às metodologias tradicionais em segurança e saúde do trabalho, e outra baseada na Psicodinâmica do Trabalho. Esta disciplina tem como foco a análise das situações de trabalho a partir da atividade real levando em conta as experiências e a relação subjetiva do sujeito com o trabalho. Tais reflexões a respeito do confronto do sujeito com as situações de risco, nesta segunda abordagem, serão desenvolvidas através de alguns conceitos, a saber: de "saberes de prudência" (CRU; DEJOURS, 1987) e de "regras de ofício" (CRU, 1987).

Tradicionalmente, as discussões e ações relativas à abordagem dos riscos ocupacionais são realizadas por profissionais especialistas em segurança do trabalho, por serem os "detentores" dos conhecimentos técnico-científicos necessários à análise desses riscos, bem como por serem os únicos aptos a lhes propor soluções. Aos trabalhadores resta uma participação receptiva às demandas impostas pelas normas de segurança, ao respeito às regras e à utilização de equipamentos de proteção individual e coletiva (PORTO, 2000).

Com relação à gestão dos riscos ocupacionais, a disciplina acima referida propõe que, ao saber técnico especializado sejam incorporados os saberes dos trabalhadores nas discussões e ações de prevenção, pois admitem que estes conhecem de alguma maneira, os perigos do seu trabalho. Segundo Cru (1987), além de conhecerem estes perigos, os sujeitos deles se defendem espontaneamente, a partir da criação de estratégias defensivas eficazes já que construídas pelo coletivo de trabalho.

O presente artigo está estruturado da seguinte forma: inicialmente faz-se uma revisão da literatura sobre esta temática, em que serão enfocados alguns aspectos referentes aos fundamentos teóricos que balizam as reflexões aqui propostas. Num primeiro momento, são estabelecidas algumas considerações acerca das definições sobre riscos ocupacionais e o aporte metodológico tradicional em segurança do trabalho. Em seguida, aborda-se a questão da prevenção dos riscos ocupacionais sob o ponto de vista da Psicodinâmica do Trabalho através, basicamente, dos conceitos de saberes de prudência e de regras de ofício. Por fim, apresentam-se algumas notas, a título de conclusão.

SOBRE OS RISCOS OCUPACIONAIS

Historicamente, as conceituações sobre os riscos ocupacionais foram concebidas de modo a vincular relações diretas entre as doenças profissionais e os acidentes de trabalho, o que fez surgir a formulação segundo a qual os riscos poderiam ser determinados a partir de suas consequências visíveis. Ou seja, uma perspectiva que concebe o risco ocupacional como decorrência do ambiente físico, das máquinas e dos equipamentos, dos produtos e de substâncias tóxicas, sem considerar as particularidades de processos de trabalhos singulares, da variabilidade humana e, sobretudo, sem levar em conta dimensões não mensuráveis ou invisíveis, como aquelas relacionadas ao sofrimento psíquico no trabalho (PORTO, 2000).

Segundo Pereira (1995), Rouquayrol e Goldbaum (1999), o risco ocupacional é definido em termos da probabilidade de que um determinado evento venha a ocorrer, estimando se essa ocorrência se efetivará num futuro imediato ou remoto, além de analisar os fatores predisponentes a esse suposto acontecimento.

Para Mazet e Guillermain (1997, p. 23) citados por Nouroudine (2004, p. 39) "... nas definições habituais, o risco caracteriza a eventualidade de um evento (ou de uma situação) não desejada (ou temida) e seus efeitos ou conseqüências".

Observa-se que a maioria das conceituações sobre riscos ocupacionais enfoca os aspectos da negatividade que estes comportam em relação à saúde dos trabalhadores e, também, às organizações, no sentido em que podem acarretar diminuição de produtividade e de qualidade.

Segundo uma perspectiva mais inovadora, Nouroudine (2004) chama a atenção para o fato de que muito se tem dito sobre o risco como sinal de deteriorização mais ou menos grave de um estado de segurança e saúde. No entanto, é preciso que se considere que os trabalhadores, para enfrentarem os riscos, usam sua criatividade atrelada aos saberes-fazer de prudência, muito embora esses sejam desconsiderados pela gerência. A problematização acerca do risco permanece mal definida e pouco clara. O autor recorre a Jacques Leplat, um dos fundadores da Sociedade de Ergonomia de Língua Francesa, para ressaltar a necessidade de distinguir-se "risco" de "perigo", ou seja, mesmo quando vinculados, o risco aponta para a possibilidade de que um perigo se atualize, isto é, de que acarrete efetivamente danos, em condições determinadas.

Estamos, portanto, numa visão negativa do risco como fenômenos potencialmente perigosos em que é preciso justamente impedir a atualização de sua periculosidade. O estudo do risco, desse ponto de vista, conduz à tomada de disposições para eliminá-lo, neutralizá-lo e dominá-lo. Os diferentes métodos ou abordagens existentes tratam da questão do risco nessa acepção [...] o risco a partir [e em torno] do qual as diferentes abordagens convergem é exteriorizado, objetivado e qualificado negativamente. (NOUROUDINE, 2004, p. 39)

Para o autor, as definições sobre riscos ocupacionais carecem ainda de exatidão, na medida em que se encontram retidas entre uma hipertrofia das normas de segurança pré definidas - sem considerar as atividades e o saber dos sujeitos que as realizam - e as estratégias de defesa constituídas pelos trabalhadores na clandestinidade da atividade. "A noção de risco, como as de carga e de fadiga, faz parte dessas noções mal definidas, de estatuto incerto, mas que retornam freqüentemente na linguagem, mesmo quando já percebemos suas insuficiências" (LEPLAT apud NOUROUDINE, 2004, p. 37).

De acordo com Porto (2000), deve-se adotar uma concepção mais abrangente sobre os riscos ocupacionais, levando-se em conta os interesses dos trabalhadores e sua efetiva participação na prevenção, análise e tratamento dos mesmos. Assim, os riscos devem ser compreendidos como:

[...] toda e qualquer possibilidade de que algum elemento ou circunstância presente num dado processo e ambiente de trabalho possa causar dano à saúde, seja através de acidentes, doenças ou sofrimento dos trabalhadores, ou ainda através da poluição ambiental (PORTO, 2000, p. 8).

É importante salientar que a maioria das definições sobre riscos no trabalho prescreve a identificação e o tratamento desses "elementos potencialmente perigosos", a partir de um enfoque exterior àqueles que exercem, na prática, as atividades laborais - os trabalhadores - principais vítimas da ineficácia dos métodos de prevenção adotados.

Apesar de todos os programas de prevenção e controle da saúde dos trabalhadores, determinarem a participação destes nos processos de elaboração de "mapas de risco"1 1 Metodologia construída a partir das pesquisas realizadas pelo Movimento Operário Italiano - MOI, lideradas pelo médico e psicólogo do trabalho Ivar Odonne. Através do conhecimento gerado nas denominadas Comunidades Ampliadas de Pesquisa, foi possível coadunar as teorizações acerca do mundo do trabalho via incorporação efetiva do discurso e das experiências dos trabalhadores e trabalhadoras. através das Comissões Internas de Prevenção de Acidentes (CIPA's), a palavra final sobre os riscos ocupacionais e sobre os acidentes de trabalho fica a cargo de técnicos qualificados para proceder a tal diagnóstico. Regra geral, técnicos ou engenheiros em segurança do trabalho ou médicos do trabalho.

É nisso que uma lógica de exatidão anima tais abordagens do risco, as quais se traduzem na elaboração de dispositivos técnicos, materiais e organizacionais que supostamente permitem evitar o perigo, o acidente, visto que, estando a causa exatamente definida e os efeitos exatamente conhecidos por antecipação, podemos determinar exatamente os meios capazes de impedir a causa de um efeito nocivo. Isso implica o sentimento de poder efetivamente ter domínio sobre o risco termo a termo no processo de trabalho. (NOUROUDINE, 2004, p. 42)

Essas abordagens, entretanto, abarcam apenas aquela faceta do trabalho passível de antecipação, ou de suposição de antecipação, posto que desprezam a parte que não se pode prever, sobre a qual não se pode objetivar, excluindo da sua concepção a experiência real do trabalho. É nesse sentido que o autor citado chama a atenção para a necessidade de um giro de perspectiva que possa, contrapondo-se à abordagem técnica e estatística do risco, levar em consideração a abordagem dos trabalhadores sobre os mesmos, a fim de "construir o sentido do risco pela diferença que existe entre a abordagem estatística e a dos operadores" (NOUROUDINE, 2004, p. 43).

Na reflexão deste autor a realização do trabalho no sentido de atividade humana, ou seja, pelo engajamento corporal, cognitivo e mental por parte dos atores, é de ponta a ponta atravessada pelo risco. Desta forma se descortina uma nova maneira de se encarar o risco na busca pelos meios (organizacionais, técnicos e humanos) que favoreçam a sua gestão, o que leva a considerá-los positivamente, como ocasião de expressão da criatividade nas atividades humanas.

A defasagem existente entre as normas de segurança e o savoir-faire dos trabalhadores demanda que seja construída uma noção de risco ocupacional integradora. De um lado, que as políticas de prevenção dos riscos ocupacionais sejam elaboradas de modo a incorporar as experiências dos trabalhadores e trabalhadoras - principais interessados na promoção e preservação da saúde no trabalho - e, de outro lado, que o saber técnico especializado possa servir como ferramenta de auxílio à prevenção, visando à integridade da vida humana.

Doravante serão apresentadas as concepções mais tradicionais em segurança do trabalho relativas à prevenção dos riscos ocupacionais. Optou-se, para os fins deste trabalho, por não se fazer limitações dessas abordagens a nenhum setor específico da produção para tratar a questão de modo mais abrangente.

Em seguida, será apresentada especificamente a perspectiva da Psicodinâmica do Trabalho especificamente, através das conceituações de "saberes de prudência" e de "regras de ofício", com vistas a contribuir na promoção de um debate que amplie as discussões e as ações nessa área, visando uma possibilidade de transformação das práticas vigentes em prol da saúde dos trabalhadores.

A PREVENÇÃO DOS RISCOS OCUPACIONAIS E A SEGURANÇA DO TRABALHO

Tradicionalmente, a análise e o tratamento dos riscos ocupacionais têm sido conduzidos por técnicos especialistas em segurança do trabalho - engenheiros de segurança, médicos do trabalho, gerentes das empresas, entre outros. As políticas instituídas em torno desta questão visam implementar programas de prevenção de acidentes restritos à formulação de normas de segurança e à utilização de equipamentos individuais de proteção (PORTO, 2000).

Segundo a Lei nº 6.514, de 22 de dezembro de 1977, artigo 195, a caracterização da insalubridade e da periculosidade nos ambientes de trabalho deve ser realizada através de perícias a cargo dos médicos e engenheiros do trabalho, registrados no Ministério do Trabalho e, portanto, aptos legalmente para desempenhar essas funções. O Decreto nº 92.530, de 9 de abril de 1986, que regulamenta a Lei nº 7.410/85, dispõe sobre o exercício da especialização em Engenharia de Segurança do Trabalho, determinando a competência para assumir essa função àqueles que, sendo graduados em Engenharia, Agronomia ou Arquitetura e, legalmente registrados no CONFEA/CREA - Conselho Federal de Engenharia, Arquitetura e Agronomia e Conselhos Regionais de Engenharia, Arquitetura e Agronomia - tenham realizado cursos de pós-graduação strictu senso, em Engenharia de Segurança do Trabalho.

A Norma Regulamentadora 4 - NR4- delimita as atribuições de competências desses profissionais, além de estabelecer os critérios para constituição dos Serviços Especializados em Engenharia de Segurança e Medicina do Trabalho (SESMT), em empresas públicas ou privadas, cujos trabalhadores sejam regidos pela Consolidação das Leis do Trabalho (CLT). Este serviço integrado congrega ações prevencionistas interdisciplinares que visam: aplicar conhecimentos técnico-científicos a fim de reduzir ou de eliminar riscos presentes em locais de trabalho, determinando a utilização, pelos trabalhadores, de equipamentos de proteção individual (EPI's); promover treinamentos, orientações e conscientizações sobre a prevenção de acidentes de trabalho e doenças ocupacionais, na medida em que deve manter permanente relacionamento com a Comissão Interna de Prevenção de Acidentes (CIPA), conforme dispõe a NR5 (BRASIL, Ministério do Trabalho e Emprego, 2005).

De modo geral, embora haja um esforço político em constituir dispositivos, tais como a CIPA, que preconizem uma participação mais efetiva dos trabalhadores na prevenção dos riscos ocupacionais, observa-se que o tratamento desses riscos limita-se, ainda, à prescrição de normas limitadas pela ratificação dos fatores de risco2 2 Fatores de risco são aqueles elementos tidos como potencialmente perigosos que fazem parte das condições de trabalho e que podem acarretar danos a saúde dos trabalhadores. através de medidas de quantificação técnica em detrimento das dimensões qualitativas advindas das vivências subjetivas dos trabalhadores.

Nessa direção, Vasconcelos e Lacomblez (2004), em estudos realizados em Portugal, mostram que as questões relacionadas à segurança e saúde do trabalho são, regra geral, tratadas com base em regulamentos e procedimentos prescritos aos trabalhadores por especialistas na área, e cujo cumprimento deve ser garantido e controlado. São dispositivos necessários para a gestão dos riscos ocupacionais, sem dúvida, "mas que sendo concebidos sem qualquer participação ou auscultação daqueles que os devem cumprir, são muitas vezes objecto de [legítima] resistência por parte dos trabalhadores" (VASCONCELOS; LACOMBLEZ, 2004, p. 162).

Esta resistência dos trabalhadores diante do cumprimento de determinadas normas de segurança é criticada por gestores e por especialistas em segurança no trabalho, que a entendem como uma ignorância dos operadores em relação à periculosidade e aos riscos. Dejours (1987) refuta essa perspectiva, ao afirmar que as resistências ocorrem porque os trabalhadores sabem que as normatizações não são dispositivos tão eficazes na prevenção de acidentes. Ainda de acordo com o autor, esse saber é advindo da existência de uma forma específica de inteligência - forjada através da experiência, e que conduz à construção de princípios reguladores da ação, com vistas à gestão das dificuldades ordinárias e extraordinárias observadas no decurso do trabalho, inclusos o manejo dos riscos e a precaução contra acidentes.

Desta forma, um modelo metodológico que se pretenda eficaz na prevenção dos riscos ocupacionais, na melhoria dos ambientes e das condições de trabalho, visando à promoção da saúde, deve se pautar pela necessidade de incorporação efetiva dos trabalhadores como atores desse processo. Enfim, um modelo que possa, reconhecendo a importância da técnica e do conhecimento científico, valorizar a participação efetiva destes nas questões relacionadas à saúde no trabalho, a partir do reconhecimento dos seus saberes, de suas experiências e de suas vivências subjetivas.

Segundo Oddone et al. (1986), o campo da saúde do trabalho deve se constituir como um espaço de luta, no qual os trabalhadores se engajem como participantes ativos na interação entre suas experiências e os saberes acadêmicos. Para tanto, é necessário que as descobertas científicas sejam trazidas ao conhecimento dos trabalhadores de uma forma eficaz, "... é necessário que a classe operária se apropie delas e se posicione como protagonista na luta contra as doenças, as incapacidades e as mortes no trabalho" (ODDONE et al., 1986, p. 17).

Entre as abordagens que possibilitam analisar a questão, optou-se por convocar a Psicodinâmica do Trabalho a essa discussão, especificamente através dos conceitos de "saberes de prudência" (DEJOURS, 1987) e de "regras de ofício" (CRU; DEJOURS, 1987), por ser esta uma disciplina que visa analisar as mobilizações subjetivas e intersubjetivas nas situações de trabalho com vistas a possibilitar a gestão social de interpretações dos trabalhadores sobre o seu ofício.

SABERES DE PRUDÊNCIA E REGRAS DO OFÍCIO: OUTRA PERSPECTIVA POSSÍVEL SOBRE SEGURANÇA E SAÚDE NO TRABALHO

Os estudos que redundaram nas conceituações de "saberes de prudência" (CRU; DEJOURS, 1987) e de "regras de ofício" (CRU, 1987) foram frutos de uma pesquisa realizada com operários da construção civil, na França. Os achados desta investigação demonstraram que os trabalhadores eram capazes de evitar os acidentes de trabalho, identificando os riscos aos quais estavam expostos, a partir da experiência e do saber (savoir-faire professionel) acumulado ao longo dos anos de atividade profissional.

Em estudos desenvolvidos sobre o trabalho nos canteiros de obras de construção civil, Damien Cru observou que os trabalhadores se defendem contra o medo engendrado pelos riscos com a ideologia defensiva de ofício, e também se defendem contra os próprios riscos por um saber-fazer específico chamado por ele savoir-faire de prudence. Estas formas defensivas não são vistas nem descritas espontaneamente como tal pelos trabalhadores. Sua transmissão, como dos demais usos e costumes do ofício, se dá em função de sua eficácia, sem que seja necessário explicitar seu caráter de prudência. (SILVA, 2002, p. 102)

Entretanto, na maioria dos casos, esses conhecimentos acumulados pelos trabalhadores são ignorados nas abordagens tradicionais dos riscos ocupacionais. Os saberes de prudência, no entanto, exercem grande influência na organização do trabalho, na medida em que formam sistemas de autorregulação dos coletivos de trabalho, no sentido de consolidarem estratégias espontâneas de prevenção dos riscos e dos acidentes (CRU, 1987).

Corroborando tal formulação, Muniz, Athayde e Neves (2004) afirmam ser imprescindível que se reforce a tese de que a questão da saúde e segurança no trabalho não pode ser reduzida à implementação de mudanças na organização do trabalho ditadas de cima para baixo. Deve-se, antes, levar em conta os saberes constituídos e acumulados pelos trabalhadores, a fim de que não se amplie o número de acidentes de trabalho e, com isto, que se tenham reduzidas as potencialidades de produtividade e de qualidade.

A noção dos saberes de prudência está intimamente ligada ao conceito de regras de ofício próprias a toda atividade laboral. As regras de ofício, por sua vez, guardam íntima relação com o fato de ser o trabalho uma atividade de construção, uma experiência constitutiva, tanto da espécie humana, já que é uma produção da cultura, quanto de sujeitos historicamente determinados. Nesse sentido, nessa constituição e construção das atividades, vão sendo forjadas normas, regras que pautam os exercícios dos ofícios. São regras:

[...] em seu sentido não apenas técnico, de modos operatórios, mas em seu sentido ético e social. Regras que são resultado do trabalho com sentido e que colaboram na produção de sentido do trabalho e da vida (MUNIZ; ATHAYDE; NEVES, 2004, p. 238).

Cru (1987) afirma que a obediência a essas regras é essencial para garantir a compatibilização entre produtividade, qualidade e segurança, na medida em que um conjunto de procedimentos realizados durante o trabalho está articulado a essas regras, permitindo que sejam tomadas determinadas precauções em cada etapa do trabalho. O autor ressalta que tais regras têm coerência interna e que seu descumprimento, pelos trabalhadores, pode levar ao desmantelamento dos coletivos de trabalho nas tentativas de regulação ante os riscos presentes nas atividades por eles desenvolvidas. Assim, ao defender e respeitar as regras de ofício, o coletivo defende a sua capacidade de autorregulação e de iniciativa.

Nesse sentido, através dos dois conceitos aqui discutidos, é possível se conceber a inscrição dos trabalhadores como atores das discussões e ações em saúde e segurança no trabalho. É por meio do reconhecimento desses saberes de prudência e do respeito às regras do ofício, como referenciais importantes à análise e à gestão dos riscos, que as práticas de prevenção podem e devem elaborar uma síntese integradora entre o conhecimento técnico e o saber dos trabalhadores.

Conforme Vasconcelos e Lacomblez (2004), acredita-se na necessidade urgente da utilização de formas alternativas de se refletir sobre as questões securitárias no trabalho, próximas do reconhecimento do real da atividade e da experiência, e do papel de gestor ativo que o trabalhador aí desempenha. Formas inovadoras de conceber, implementar e avaliar intervenções para a prevenção dos riscos ocupacionais, baseadas no fortalecimento dos coletivos de trabalho.

Assim é que Cru e Dejours (1987) descortinam a possibilidade de uma leitura diferenciada na interpretação das questões relacionadas à abordagem dos riscos ocupacionais, ao abrir um novo campo de reflexão em torno das relações paradoxais entre os homens e as situações de perigo no trabalho, por meio de um quadro inovador e integrador.

Por fim, vale lembrar a pertinência para a temática aqui analisada, da contribuição que os estudos ergológicos, em crescente desenvolvimento no Brasil, poderão dar para o desenvolvimento de medidas preventivas eficazes. Primeiramente, estes mostram a necessidade de adoção de uma abordagem pluridisciplinar, ou seja, nenhuma disciplina sozinha conseguirá dar conta da complexidade inerente às atividades de trabalho. Nesse caso, a Ergologia, na medida em que se volta para o estudo da gestão das situações de trabalho, coloca em destaque o debate de valores e a negociação de eficácias, ressaltando ainda que é no trabalho que o sujeito se compromete com sua história singular, seus valores, em um movimento de renormalização do que foi previamente determinado pelas normas (Schwartz, 1999).

De acordo com essa perspectiva, a gestão econômica do trabalho não pode ser dissociada da gestão que cada pessoa faz de si mesma. A atividade sempre renormaliza as normas antecedentes, o patrimônio acumulado historicamente pelos trabalhadores, os enriquecendo.

Nesse sentido, Nouroudine (2004) aponta para o fato de que a infração, em relação às normas antecedentes de segurança e segundo um processo de renormatização, é condição necessária para a produção do saber-fazer de prudência, útil para a eficácia e a saúde no trabalho.

ENCAMINHAMENTOS PARA A PRÁTICA / CONCLUSÕES

Embora se observe um esforço conjunto em estabelecer, por um lado, políticas públicas e, por outro, políticas gerenciais que visem à prevenção e promoção da saúde e da segurança no trabalho, a partir da participação dos trabalhadores, percebe-se, ainda no Brasil, certa ratificação das metodologias tradicionais em segurança do trabalho no que tange à análise dos riscos ocupacionais.

O enquadre tradicionalmente adotado é, pois, o de circunscrever a questão do risco ocupacional a partir de uma lógica que preza a aplicabilidade de técnicas de identificação e de gestão dos elementos potencialmente nocivos no ambiente de trabalho, rastreando-os sem levar em conta as variabilidades, seja as do meio, seja as humanas, muito menos o saber dos trabalhadores, como aporte nessa identificação e nessa gestão.

Destarte a instituição de programas de prevenção, tais como a CIPA, que preconizam a participação dos trabalhadores como coadjuvantes nesse processo, vê-se ainda distante um horizonte que incorpore, efetivamente, a capacidade diagnóstica e prognóstica desses trabalhadores, através de saberes construídos na prática, os denominados les savoir-faire de prudence e o respeito às regras de ofício, balizadas e incorporadas experiencialmente pelo dispositivo dos coletivos de trabalho.

O objetivo precípuo deste artigo foi o de distender algumas reflexões sobre essas questões, apostando na possibilidade de contribuir, por essa via, para a abertura de um debate em torno das discussões sobre saúde e segurança no trabalho, visando uma transformação das práticas e das metodologias prevencionistas tradicionais. Campo por excelência a ser desenvolvido pela psicologia do trabalho e demais especialistas em análise das situações reais de trabalho.

NOTAS

Recebido em: junho de 2009

Aceito em: dezembro de 2009

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  • 1
    Metodologia construída a partir das pesquisas realizadas pelo Movimento Operário Italiano - MOI, lideradas pelo médico e psicólogo do trabalho Ivar Odonne. Através do conhecimento gerado nas denominadas Comunidades Ampliadas de Pesquisa, foi possível coadunar as teorizações acerca do mundo do trabalho via incorporação efetiva do discurso e das experiências dos trabalhadores e trabalhadoras.
  • 2
    Fatores de risco são aqueles elementos tidos como potencialmente perigosos que fazem parte das condições de trabalho e que podem acarretar danos a saúde dos trabalhadores.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      27 Maio 2010
    • Data do Fascículo
      Abr 2010

    Histórico

    • Recebido
      Jun 2009
    • Aceito
      Dez 2009
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