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Lacan e a Sofística: sobre o estatuto sofístico da psicanálise

RESENHA

Claudio Oliveira

Doutor em Filosofia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Atualmente é professor Associado 1 do Departamento de Filosofia da Universidade Federal Fluminense. Endereço: Universidade Federal Fluminense, Instituto de Ciências Humanas e Filosofia. Campus Gragoatá, Bloco O - Sala 310. São Domingos - Niteroi, RJ - Brasil. CEP: 24214-520. E-mail: claudio_oliveira@vm.uff.br

THAMER, E. Lacan e a Sofística: sobre o estatuto sofístico da psicanálise. 2008. Tese (Doutorado)-Universidade de Paris - Sorbonne (Ecole doctorale "Concepts et langage"), Paris, 2008.

A defesa da Tese de Elisabete Thamer, da qual tomei parte como membro do Júri, na Universidade de Paris, foi, na verdade, para mim, uma ocasião para reencontrá-la, pois eu a havia conhecido, no Brasil, no momento em que ela começava, como psicanalista, a fazer seus estudos em filosofia, ao mesmo tempo em que eu, como filósofo, começava a fazer meus estudos em psicanálise. Nesta época, nós nos ajudamos muito, um ao outro, como guias em um território muito mal conhecido ainda para ambos. O tempo passou, Elisabete Thamer veio para a Europa, para fazer seu doutorado em Filosofia, enquanto eu, no Brasil, continuava, como filósofo, meus estudos psicanalíticos.

Mas uma outra coincidência me aproxima da defesa desta tese. É que, nesses primeiros estudos em psicanálise, no tempo do meu mestrado, o que eu tentava era exatamente aproximar a psicanálise da sofística, que era, nesse momento, meu verdadeiro objeto de investigação na filosofia. Eu acreditava, e eu ainda acredito, que a psicanálise é para a filosofia contemporânea o que a sofística tinha sido para a filosofia grega antiga. Como se fosse sempre necessário à filosofia que sua verdade lhe viesse de um Outro e que a sofística e a psicanálise fossem figuras insignes desse Outro da filosofia.

Eu creio que eu deva fazer menção também a Carmen Lucia Magalhães Paes, que foi a orientadora de minha dissertação de mestrado, assim como da de Elisabete Thamer. Foi Carmen Lucia Magalhães Paes que nos introduziu, a Elisabete Thamer e a mim, na sofística e, ao mesmo tempo, na obra de Barbara Cassin. Tudo isso é apenas para dizer da minha alegria de ter participado dessa banca e de como eu me sinto concernido pela tese de Elisabete Thamer.

Passando à análise da tese ela mesma, eu devo primeiramente fazer o elogio da formulação precisa do problema colocado pela tese: "Não se trata, portanto, de uma tese sobre a sofística, mas sobre a maneira como esta retorna no campo psicanalítico" (p. 16, grifo da autora). E, nesse sentido, o objetivo da tese é "fornecer elementos para que se possa examinar em que medida a elaboração psicanalítica lacaniana renova/reata com certos princípios sofísticos" (p. 15). Ao mesmo tempo, Elisabete Thamer homenageia, com justiça, Barbara Cassin, "que abriu no domínio da filosofia o debate sobre as relações existentes entre psicanálise e sofística" (p. 16). Este é um primeiro ponto. É preciso fazer o elogio, em segundo lugar, da estrutura da tese e da escolha dos problemas teóricos em jogo que permitiram discernir os pontos de convergência e de afastamento entre psicanálise e sofística.

Eu faria o elogio ainda da disposição da tese nas suas duas partes: a primeira, que se ocupa dos problemas lógicos e ontológicos; a segunda, centrada no problema da práxis. Tal disposição dá inteligibilidade e consistência à argumentação da tese. Todavia, eu colocaria algumas questões, partindo dessa disposição, sobre a relação entre teoria e práxis na psicanálise e na sofística. É, de fato, preciso uma demonstração de um fundamento lógico/ontológico (ou mesmo a demonstração de sua ausência) para justificar a práxis psicanalítica e a práxis sofística? Em ambos os casos, sofística e psicanálise, não é a práxis que é seu fundamento?

Essa questão diz respeito, de outro modo, à relação entre ontologia e ética. Pode-se dizer, por exemplo, que a psicanálise é uma ética, mas ela não tem necessidade de uma ontologia para ser uma ética. Nesse sentido, haveria uma questão ausente na tese, ou ao menos implícita, mas jamais explicitada, a do estatuto ético da sofística. Já que esse estatuto ético é algo de certo na psicanálise (ao menos desde o Seminário VII de Lacan), o que acontece com o estatuto ético da sofística? Podemos dizer da sofística o que Lacan disse da psicanálise, que ela é uma ética porque o estatuto mesmo do inconsciente é ético, porque o inconsciente não se presta à ontologia? Em outras palavras, a recusa de ontologia pelo sofista o conduz à ética? Nesse sentido, será que há também uma possibilidade de convergência, no plano ético, entre sofística e psicanálise? Em última instância, quais são as consequências, do ponto de vista ético, das práticas linguageiras sofísticas? Em psicanálise, são sobretudo essas consequências que dão o caráter ético da psicanálise. Em suma, qual é o desejo do sofista? Em relação ao desejo do psicanalista, Lacan, durante seu ensino, sempre insistiu na importância tanto teórica quanto prática desse conceito. O que dizer, então, do desejo do sofista? Eis a primeira questão, talvez a mais importante, que a tese de Elisabete Thamer provocou em mim.

Mas eu gostaria de voltar ao ponto de partida da tese: a relação da psicanálise com o princípio de não contradição posto por Aristóteles, o que envolve a questão acerca da relação entre o problema do sentido e o princípio da não contradição em Aristóteles, por um lado, e o problema do sentido e da contradição no inconsciente em Freud e Lacan, por outro. Eu creio que este seja um ponto de partida necessário para alguém que decide pensar as relações entre sofística e psicanálise. E, nesse sentido, a articulação da leitura de Barbara Cassin e Michel Narcy do livro Gamma da Metafísica de Aristóteles e aquela dos textos de Freud e de Lacan sobre a estrutura do inconsciente são seguramente um dos pontos culminantes da tese.

Em relação aos capítulos desta primeira parte da tese, que tratam dessa questão, eu gostaria de fazer as seguintes observações: 1) Mesmo se o tema da tese é a relação entre Lacan e a sofística e não entre Freud e a sofística, a tese parte de um certo caráter sofístico do inconsciente em Freud. Mas sua conclusão geral, apesar de o ponto de partida da tese ser a definição freudiana do inconsciente e de sua incompatibilidade com o princípio de não contradição ("a relação entre psicanálise e sofística se enraízam na metapsicologia freudiana, desvelando o nó fundamental que legitima a direção de nossas pesquisas: a ausência de contradição do inconsciente e seus avatares", p. 45), coloca Freud mais do lado de Aristóteles que do lado da sofística, seguindo, nisso, Barbara Cassin, em seus artigos "Du sophisme chez Freud" e "Sophisme et mot d'esprit chez Freud". Elisabete Thamer, no entanto, conclui o capítulo dizendo: "Isso mereceria desenvolvimentos muito mais complexos, porque também é verdade que nós encontramos em Freud a constatação dos limites do alcance do sentido, e isso, desde a Traumdeutung (ver 'o umbigo do sonho' e o texto 'A análise com fim e a análise sem fim')" (p. 45). Elisabete Thamer retorna a esta questão na p. 257 da tese, na análise do sofisma em Freud, quando ela cita de novo os mesmos artigos de Barbara Cassin, mas também um artigo de Samuel Weber (1986) sobre o mesmo tema, que tem uma posição um pouco diferente da de Barbara Cassin e mais próxima da de Elisabete Thamer, eu creio. Tudo isso é apenas para dizer que se espera ainda um trabalho sobre a relação entre sofística e psicanálise ou entre sofística e inconsciente em Freud. E mesmo se esse não é o assunto da tese de Elisabete Thamer, eu creio que ela teria coisas a nos dizer sobre este ponto. 2) Quanto à questão da retórica em Lacan e quanto às relações entre retórica e psicanálise, eu creio que a distinção, adotada por Elisabete Thamer na tese, entre um retórica "maior", a retórica como práxis, e uma retórica "restrita", a retórica como teoria da retórica, como teoria de tropoi, deveria ser evitada, no sentido de que as duas retóricas são muito importantes tanto para a sofística quanto para a psicanálise. Se, para a interpretação, é, claro, a primeira que é a mais importante, para a teoria do inconsciente, é a segunda, a retórica "restrita", que tem todo o seu peso para o psicanalista, já que o inconsciente é retórico e se manifesta por meio desses tropoi retóricos, como o demonstraram inúmeras vezes tanto Freud quanto Lacan. 3) No capítulo 4, da mesma forma, um ponto que não foi suficientemente trabalhado, a meu ver, foi essa bela ideia do gorgianismo de Lacan. Eu creio que é uma das oportunidades perdidas da tese. Falar do gorgianismo de Lacan permitiria a Elisabete Thamer dizer algo a mais sobre a relação entre linguagem e gozo. É sempre muito rápido que Elisabete Thamer nos fala disso e é uma pena. A meu ver, textos como "L'Étourdit" e "Joyce, le sinthome" mereceriam análises nesse sentido. Com efeito, seria uma ocasião para se pensar a própria escrita lacaniana como pertencendo ao campo da sofística, assim como a questão da relação entre escrita, sofística e gozo. Seria preciso pensar os textos sofísticos, sobretudo os de Górgias, como escritos no sentido lacaniano do termo. 5) Esse ponto está ligado a um outro ponto muito importante da tese (para mim o mais importante) que é a relação entre o falo e a linguagem. Será que podemos dizer que todo o esforço da primeira parte da tese é o de demonstrar a sofística e a psicanálise ou a sofística e o inconsciente como práticas linguageiras não reguladas pelo falo? E não é exatamente isso que nos demonstra a relação essencial, tanto na sofística como na psicanálise, entre a linguagem e um gozo não fálico? O inconsciente e a sofística seriam práticas linguageiras que não se deixam completamente regular pela exigência fálica da significação. Nesse sentido, temos aqui uma releitura verdadeiramente original, a que Elisabete Thamer faz da leitura de Barbara Cassin e Michel Narcy do Livro Gamma da Metafísica de Aristóteles, que podemos encontrar no item 5.2. da Tese, e que se chama, não por acaso, "A decisão do sentido": Gamma e a significação fálica. 6) Isso nos permite pensar também as relações entre a psicanálise, a sofística e os outros discursos não regulados pelo falo, como a psicose, o que não é suficientemente trabalhado, a meu ver, no anexo II da tese. Eu creio que haveria ainda coisas a dizer sobre isso. 7) Partindo das elaborações lacanianas sobre a significação fálica, sobre a não relação sexual e sobre a cópula, Elisabete Thamer empreende um caminho muito interessante em direção à questão do Um e da leitura lacaniana do Parmênides da Platão. Mas uma outra questão que resta sobre o tema é a questão sobre a relação entre a sofística e o gozo feminino, questão que é deixada um pouco de lado na tese, mesmo se Elisabete Thamer reconhece que "a Escrita da não-existência da relação sexual e o fato de que as mulheres não se inscrevem completamente sob a égide fálica, exige que Lacan elabore uma nova lógica, a lógica que ele nomeou do não-todo ou nãotoda" (p. 116, grifo da autora). Será que podemos pensar a sofística do lado mulher desta lógica? Quais são as relações entre a sofística e o feminino? Eis as questões que a primeira parte da tese me suscitou.

Na segunda parte de sua Tese, Elisabete Thamer nos escreve sobre a práxis psicanalítica e a práxis sofística. Eis as questões que eu colocaria sobre essa parte: 1) Falando da prática analítica, Elisabete Thamer afirma: "Não se trata, portanto, de uma fala pública semelhante àquela das assembléias gregas ou do auditório sofístico" (p. 161). Sim, é claro, mas nós devemos nos lembrar que o psicanalista, também ele exerce uma fala pública em seu ensino. E no que concerne a este ensino, será que poderíamos aproximá-lo do ensino sofístico? Será que eles partilham algumas características comuns? Falou-se (por exemplo, Jean-Claude Milner) do caráter retórico do ensino de Lacan. O que dizer desse caráter retórico? Será que poderíamos dizê-lo sofístico? 2) Elisabete Thamer afirma, na p. 163 da Tese, que "o psicanalista trata os 'ditos' analisantes como um 'texto'". Será que não poderíamos dizer o mesmo do sofista? Não é o que ele faz com aquele que se deve refutar? Retornamos, assim, à questão sobre a relação entre sofística, texto e escrita. 3) Mas qual é a característica dessa escrita ? Não é a de ser, desde a origem, um texto sofístico? Isto é, como Górgias o demonstra muito bem, a sofística já está em Parmênides, muito simplesmente porque ela já está na linguagem. Nesse sentido, a interpretação psicanalítica faz dos pacientes (ou, ao menos, do inconsciente) sofistas. É o que Freud nos demonstrou nos sonhos, nos chistes, nos atos falhos etc. 4) É preciso fazer, nesse sentido, o elogio da análise que Elisabete Thamer faz da Refutações Sofísticas de Aristóteles, demonstrando as aproximações entre o que aí é denunciado por Aristóteles como sofística com o que é praticado pelo psicanalista na interpretação, segundo Lacan. Como diz Elisabete Thamer: "A comparação é inevitável entre os paralogismos sofísticos descritos por Aristóteles nas Refutações Sofísticas e os parâmetros da interpretação-equívoco, preconizada por Lacan em "L'Étourdit'" (p. 187). 5) Quanto à questão do sujeito suposto saber, Elisabete Thamer faz uma diferença entre psicanálise e sofística: "No fim de uma análise bem conduzida a seu termo", ela afirma, "o psicanalista é destituído de sua posição de saber, ele se torna simples refugo do processo analítico, isto a que ele estava votado desde o início. Longe, portanto, do renome sofístico e do gradus acadêmico" (p. 200). Primeiramente, eu penso que é complicado reduzir o desejo do sofista a um desejo de renome. E é por causa disso que eu penso que se deve absolutamente partir da questão do desejo do sofista. Em segundo lugar, há muitas questões a serem colocadas sobre a relação do sofista com o saber. Eu creio que não se pode traduzir sophistes simplesmente por "aquele que sabe" mas por "aquele que faz do saber seu métier", o que é muito diferente. Nesse sentido, eu creio que não se pode eliminar a hipótese de um saber suposto agindo na sofística, nem mesmo a ideia da função do semblent no ensino e na ação sofística. Em suma, o que quer dizer o "tudo saber" do sofista?

Eu poderia trazer ainda mais questões e fazer o elogio de outros aspectos da Tese de Elisabete Thamer, mas eu creio que os pontos levantados são suficientes para demonstrar a importância e a profundidade do trabalho defendido. Parabéns a Elisabete Thamer por sua bela tese.

Recebido em: março de 2010

Aceito em: maio de 2010

Este artigo sofreu alterações por solicitação do editor em Dez/2010 conforme ERRATA publicada no Volume 22 Número 3 do periódico. (http://www.scielo.br/pdf/fractal/v22n3/v22n3a01.pdf)

  • CASSIN, B. Du sophisme chez Freud. Confrontations, 15, "La logique freudienne", printemps 1985.
  • CASSIN, B. Sophisme et mot d'esprit chez Freud. In : ______. L'Effet Sophistique Paris : Gallimard, 1995.
  • CASSIN, B.; NARCY, M. La décision du sens: le livre Gamma de Métaphysique d'Aristote. Paris: Vrin, 1989.
  • FREUD, S. Die endliche und die unendliche Analyse [1937]. In : Gesammelte Werke Frankfurt/ Main: Fischer Verlag, 1999. Bd. 16, S. 57-99.
  • LACAN, J. Le Séminaire: l'éthique de la psychanalyse [1959-1960]. Texte établi par J.-A. Miller. Paris: Seuil, 1986. Livre VII.
  • LACAN, J. Le Séminaire: le sinthome [1975-1976]. Texte établi par J.-A. Miller. Paris: Seuil, 2005. Livre XXIII.
  • LACAN, J. L'Étourdit. Scilicet, n. 4, p. 5-52. Paris : Seuil, 1973.
  • WEBER, S. Sophisme, sophistique et ambivalences analytiques . In : Barbar Cassin (Ed.). Le plaisir de parler Colloque de Cerisy. Paris: Minuit, 1986. p. 201-207.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    14 Fev 2011
  • Data do Fascículo
    Ago 2010
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