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O caminho dos cantos: morar e intersetorialidade na sáude mental

The songlines: housing and intersectoriality in mental health

Resumos

Na socialização ativa da saúde mental os serviços socio-sanitários procuram ativar a integração das instituições com as redes sociais e os profissionais estimulam a coesão social, sustentam as redes informais: o metodo do processo é a intersetorialidade. Nesta perspectiva os objetivos das residências terapêuticas ultrapassam a idéia tradicional da reabilitação: os usuários tornam-se gerentes responsáveis dos próprios projetos terapêuticos, exercitam um poder contratual. Mas as residências terapêuticas deveriam também produzir saúde para a comunidade, afirmando o papel dos cidadãos em promover saúde, agregando ênfase nos recursos das pessoas, mais do que nas insuficiências deles

residências terapêuticas; coesão social; intersetorialidade; redes sociais informais; programa de volta para casa


They are two kinds of mental health services. The first tends to focus on geographic areas: it's called "passive administration". The second tends to focus on functional method: it's called "active socialization". His activities strengthen the integration between different sections of the institutions and between institutions and social networks, develop human resources, stimulate social cohesion. The objective of this process is to make the community competent and protagonist of own health. Supported housing could represent one of the example of this process: they remove institutional processes that may create dependency and, through reciprocal relationships and mutual support networks, can be of more value to self-esteem and recovery

supportive housing; deinstitutionalization; community mental health services; social network; social cohesion


"O caminho dos cantos": morar e intersetorialidade na sáude mental

The songlines: housing and intersectoriality in mental health

Ernesto Venturini

Psiquiatra, colaborador de Franco Basaglia no processo de deinstitucionalização na Itália, desde o principio, em Gorizia e em Trieste. Contribuiu ativamente para o êxito da lei da reforma psiquiátrica na Itália. Foi diretor do Departamento de Sáude Mental em Imola e desempenhou papéis de responsabilidade na Saúde Pública na Região Emilia Romagna. É colaborador de Universidades italianas e internacionais e autor de alguns livros sobre psiquiatria e reforma psiquiátrica. Cooperou com a OMS (WHO) em alguns paises da África. Como assessor da OPAS para a America Latina, acompanhou a reforma psiquiátrica brasileira desde 1992. E-mail: gof9013@iperbole.bologna.it

RESUMO

Na socialização ativa da saúde mental os serviços socio-sanitários procuram ativar a integração das instituições com as redes sociais e os profissionais estimulam a coesão social, sustentam as redes informais: o metodo do processo é a intersetorialidade. Nesta perspectiva os objetivos das residências terapêuticas ultrapassam a idéia tradicional da reabilitação: os usuários tornam-se gerentes responsáveis dos próprios projetos terapêuticos, exercitam um poder contratual. Mas as residências terapêuticas deveriam também produzir saúde para a comunidade, afirmando o papel dos cidadãos em promover saúde, agregando ênfase nos recursos das pessoas, mais do que nas insuficiências deles.

Palavras-chave: residências terapêuticas; coesão social; intersetorialidade; redes sociais informais; programa de volta para casa

ABSTRACT

They are two kinds of mental health services. The first tends to focus on geographic areas: it's called "passive administration". The second tends to focus on functional method: it's called "active socialization". His activities strengthen the integration between different sections of the institutions and between institutions and social networks, develop human resources, stimulate social cohesion. The objective of this process is to make the community competent and protagonist of own health. Supported housing could represent one of the example of this process: they remove institutional processes that may create dependency and, through reciprocal relationships and mutual support networks, can be of more value to self-esteem and recovery.

Keywords: supportive housing; deinstitutionalization; community mental health services; social network; social cohesion

Cada vez que penso em uma comunidade de pessoas, lembro do livro de Bruce Chatwin (1987) O caminho dos cantos:

[...] O roteiro das trocas [diz Chatwin] é o caminho dos cantos, por que são os cantos, e não os objetos, o instrumento mais importante da troca [...] (CHATWIN, 1988, p.81).

Os aborígenes australianos definem como terra deles aquela marcada por um entrançamento de caminhos dos cantos (a estrada dos sonhos): um labirinto de trajetos só visíveis por eles. Representam as marcas dos antepassados, o estado de equilíbrio entre os homens e a natureza. Os aborígenes, enquanto cantam e percorrem junto os caminhos, tomam posse da terra e se relacionam com antepassados. Acho a idéia da existência destes caminhos e a idéia da necessidade de um olhar capaz de vê-los, uma boa metáfora para buscar entender o que deveria ser a saúde mental comunitária.

A COESÃO SOCIAL

Na comunidade existem redes de relações, primárias e secundárias, espontâneas e institucionais. As redes sociais primárias incluem a família, intima e ampla, e os amigos. Elas oferecem um esteio económico, psicológico e afetivo. Na sociedade pre-moderna as mulheres se sobrecarregavam com o cuidado das crianças, dos idosos, dos fisicamente frágeis. A emancipação da mulher, absolutamente necessária, tem provocado a falta progressiva desta rede e a criação de novas instituições assistenciais. O custo económico desta falta è grande para as instituições. Mas è também grande o custo afetivo para os usuarios daquele antigo esteio amoroso.

Na comunidade existem porém outras redes sociais, formais e informais: as organizações políticas, os conselhos de bairro, as igrejas, as associações artisticas, desportivas, de socorro mútuo, culturais, lúdicas, grupos étnicos. Existem ainda mais indivíduos e profissões (o homem do quiosque, o gerente do bar, o barbeiro, etc) que mantem uma rede significativa de relações. As vezes os laços de parentesco e as redes primárias podem causar dependência, malestar, críar dificuldades pelo desenvolvimento da pessoa, mas pertencer a uma rede social oferece ajuda e podem contribuir para facilitar a ultrapassagem de acontecimentos difíceis. Em todo o caso, isolar-se dos próprios mundos vitais acompanha-se quase sempre da exclusão.

As redes sociais representam portanto, recursos para promover a saúde na comunidade (ALBANESI; MIGANI, 2004). Pesquisas incontroversas mostram que a idade média da população é directamente proporcional à distribuição da riqueza, mas também ao funcionamento das redes sociais e especialmente à interconexão das redes com as instituições sócio-sanitarias. Esta intersetorialidade, juntamente com outros elementos, constitui o chamado "capital social" da comunidade (PUTNAM, 1993) Eu prefiro, porém, a palavra "coesão social", porquê esta palavra pôe mais e melhor luz sobre os fundamentos do processo: confiança e solidariedade. Mas a coesão social não é um bem imutável: ele evolui, as vezes rapidamente, para uma direção ou para outra. Sem dúvida as políticas neo-liberais, a deterioração social, a pobreza e o culto do individualismo contribuem para reduzi-la fortemente. Mortifica também a coesão o funcionamento totalitário das instituições, públicas e particulares, cada vez que operam com modalidades fragmentárias e esquizofrénicas. Estamos perante um acervo contraditório, onde é difícil perceber os trajetos das ações. Por isso penso no trabalho social como se ele fosse uma massa emaranhada de fios de ferro. As dinâmicas não são visíveis a não ser que se dedique com grande paciência no "desenrolamento", conscientes do risco de ficar todo enrolado, muitas vezes ferido, mas, também conscientes de que, quando se quer, podese conseguir o desenrolamento completo, o "desfazimento" de todos os nós.

O SOFRIMENTO MENTAL

São três as necessidades principais de uma comunidade na area da saúde.

A primeira se refere às necessidades do tratamento e precisa de respostas médicas; a segunda se refere às necessidades de assistência (moradia, trabalho) e comporta respostas sociais; a terceira se refere às necessidades existenciais (por exemplo a necessidade do doente de fornecer um sentido à própria experiência ou à necessidade de afectividade, de sexualidade, de relação, de autoestima). No caso do tratamento e da assistência, providencia-se o estado assistencial (welfare) mediante organizações, mesmo que muitas vezes com modalidades setoriais e desagregadas. No caso das necessidades existenciais, que na maioria concernem perguntas de reinserção social e de reelaboração das relações interpessoais, faltam respostas institucionais codificadas, apesar da relevância delas na saúde da pessoa.

A psiquiatria tradicional julga o sufrimento mental como consequência das causas individuais e não como consequência dos processos sociais, já presentes no começo da doença, entre as próprias redes primarias (NATHAN; STENGERS 1995). A exclusiva medicação acentua a individualidade do sofrimento. A exclusão se torna irreversível quando se adicionam as condições subjetivas do sofrimento com as da ruptura e do isolamento dos próprios mundos vitais. Se ativa um círculo vicioso, segundo o qual as fugas das life events produzem desenraizamentos, os quais geram quedas de novas circunstâncias criticas e fugas. A exclusão é de fato um fenómeno acumulativo e multidimensional. Esta condição acaba por revelar dramáticas emergências. A frente do elemento perturbante, as organizações sociais erguem um muro contra quem eles acham diferente. A sociedade se autodefende com - o chamado - "bloqueio comunitario". Dessa maneira a comunidade se expropria da própria capacidade de cuidar e delega a experts a solução do assunto, mas com um vínculo: separar os diversos em lugares fechados.

O sistema público de saúde mental torna-se, portanto, uma junção decisiva para produzir saúde ou doença (BASAGLIA, 2005): as consequências positivas ou negativas, reversíveis ou irreversíveis dependem da vontade dos profissionais em assumir instâncias de controle social ou, ao invés, em "pôr em jogo" as organizações e os grupos sociais, tornando a propor um papel de cidadania. Promover saúde mental significa de fato fornecer a todos os cidadãos, especialmente aqueles que ocupam um papel de responsabilidade, instrumentos para enfrentar a loucura: quer dizer, desenvolver conhecimentos e competência, apoiar concretamente na reintegração social, incentivar o protagonísmo dos usuarios, fortalecer o papel daqueles que podem modificar as estereotipias e o estigma. A este propósito lembro com emoção um curso em saúde mental que em Imola1 1 A respeito da experiência de Imola, cf. Venturini, Degano e Gramantieri (2009). dirigimos para os prefeitos, as forças da ordem, as autoridades religiosas, os professóres da escola, sendo esta vez os usuarios uma parte do corpo docente. Todas estas acções de fato podem-se resumir em um simples princípio: saúde é pratica de cidadania na comunidade!

O manicomio e a psiquiatria tradicional contrastam totalmente este princípio, representam sequestro e marginalização. A psiquiatria é obcecada pela idéia de encerrar a loucura, de um continente material ou simbólico, onde circunscrever o objeto de seu domínio em barreiras (VENTURINI, 2008). A saúde mental comunitária, ao contrario, é abertura das portas, è conexão, integração. Compreende-se como a desinstitucionalização pode parecer um desafio impossível: o nascimento da solidariedade lá onde vive o estigma e a imagem negativa da loucura. Todavia este desafio foi vencido muitas vezes, na Italia, no Brasil e em diferentes lugares do mundo: quero lembrar só Trieste, Imola e Santos, Porto Alegre, Pelotas, Campinas, Recife, Rio, Paracambi e sobretudo Angra dos Reis na decada de 1990, para mencionar só aquelas experiências que tenho conhecido. Estas experiências, baseadas na reciprocidade e no protagonismo dos usuarios, deixam perceber, com emoção, a possibilidade utópica duma sociedade mais justa e saúdavel.

SABER OLHAR

Como se constrói esta utopia a contar do morar em uma casa e do morar em uma comunidade?

Existem alguns indicadores que nos ajudam avaliar a qualidadede destes processos. Por exemplo quando visito um CAPS, uma secção psiquiátrica dum hospital ou quando visito uma moradia para usuarios da psiquiatria, me pergunto cada vez o que é importante observar, descrever, avaliar e me faço três simples perguntas:

qual é o desígnio projetual deste lugar? me pergunto como este lugar foi origináriamente pensado;

qual é a fenomenologia dele (o que aparece ao exterior, a uma pessoa estranha)? me pergunto sobre quais são as interacções observáveis neste lugar;

qual é a correspondência entre este lugar e o desejo de bem-estar dos seus residentes, mas também daqueles que moram perto deles? me pergunto se este lugar produz saúde ou se é só um lugar de gestão da cronicidade, um lugar de "entretenimento"; me pergunto se este lugar pertence aos profissionais enquanto lugar do trabalho ou se pertence realmente aos residentes, me pergunto se a comunidade, em um sentido metafórico, o reconhece como próprio ou como estranho.

Me pergunto, em resumo, qual é a sua ideologia e a sua pratica e meço a diferença entre a duas dimensões. A primeira pergunta desenvolve-se em um eixo temporal e estima as motivações das pessoas e dos grupos, que evoluem no tempo. A segunda considera o eixo espacial e estima a qualidade da vida dos usuarios e dos profissionais, mede-se na gestão do espaço. A terceira considera o eixo do poder e permite a avaliação subjetiva do bem-estar dos usuarios e aquela objectiva da contratualidade social deles.

A estas perguntas ligam-se outras: quem é que decide e o que? Há espaços fechados? porquê e por quem? Quais são as possibilidades de autoregularização dos espaços? Quem tem as chaves? Quem atende o telefone? Quem é o dono da casa? Explorar a cotidianeidade permite evidenciar se naquele lugar a gente "fica" ou "habita": duas condições completamente diferentes (SARACENO, 1995). No primeiro caso o espaço é estranho, é imposto e não pode consentir a valorização da subjectividade: é uma moradia psiquiátrica. No segundo caso porém, o espaço pertence aos hóspedes e oferece um poder contratual, seja para a organização material simbólica da moradia: é possivel uma coloração afectiva dos espaços e o lugar é reconhecido como a "casa" (FERREIRA; FONSECA, 2000)

Quando em Imola durante a desinstitucionalização podíamos abrir uma moradia por altas dos doentes do hospital psiquiátrico, nos dirigimos análogas perguntas, relacionadas neste caso a cidade, ao bairro onde iamos habitar. Procurávamos entender o que existia no territorio (os recursos, as instituições), descobrir as necessidades sociais daquele territorio (como expressavam-se, como eram resolvidos), procurávamos compreender como a gente se representava e como representavamlhes as relações sociais, por exemplo, de tolerância. Perguntávamos-nos qual era a alma daquele territorio, como realizar intersetorialidade entre os servicios sociosanitários, mas perguntávamo-nos também quais as necessidades da comunidade, as suas faltas e se podíamos entrar na comunidade nos oferecendo um presente para os cidadãos (as vezes era um simples campo de futebol perto da residência, uma oficina, uma marcenaria, uma actividade útil não só para os hóspedes da residência, mas para a comunidade). Era uma maneira para revindicar direitos de cidadania, não como satisfação passiva das necessidades de cidadão incompleto, mas como exercício ativo dum cidadão completo, que reclama a reciprocidade. E talvez era próprio a inversão de perspectiva, este olhar mais além das estereotipias o nosso presente, o mais importante para a comunidade.

A INTERSETORIALIDADE

Considerando a intersetorialidade, há dois modelos organizativos para a saúde mental. Denomino o primeiro "a administração passiva". Este modelo se baseia num critério organizátivo de localização e de espaço: cobertura dum território com tantas estruturas para tantos utilizadores, e essa se orienta com indicadores de quantidade. É provável que haja sobreposições e contradições. Neste modelo as necessidades das pessoas são tratadas geralmente de maneira rigida e repartida em setores; consequentemente as respostas levam a praticas assistenciais, a medicação, a separação. Denomino o segundo modelo "socialização ativa". Este modelo se baseia em um critério temporal de funções. Os serviços socio-sanitários, mais que importar-se da aceitação e da legitimação, procuram ativar a integração das redes sociais com as instituições. O exito do processo é a intersetorialidade: é uma intervenção de elevado profissionalismo que pode-se comparar tecnicamente e quanto ao custo, a uma dificil intervenção cirúrgica.

Sem duvida é facil falar em teoria da necessidade da intersetorialidade. Muito mais dificil é realizá-la na pratica. Na Itália, uma unica estrutura - o Departamento de Saúde Mental - abrange a psiquiatria dos adultos, das crianças e os serviços para os drogadictos. Existem também protocolos para a integração com o serviço social. Em Imola realizamos experiências extraordinarias de envolvimento da educação, das forças da ordem, dos serviços da municipalidade, das organizações do trabalho.

O que se demonstrou mais difícil foi, paradoxalmente a colaboração entre os serviços internos de saúde, por causa de conflitos entre os quadros profissionais e por causa do poder. Os serviços são instituições que querem afirmar a própria ideologia e que resistem à mudança: alèm disso os profissionais são ciumentos de seus próprios privilégios. As vezes acontece que se usa a idéia da intersetorialidade paradoxalmente para legitimar a atribuição a outro serviço dos doentes muito absorventes ou menos gratificantes. É exemplar a maneira de expressão dos profissionais da saúde, quando são interrogados para expressar o sentido da atividade deles. Eles respondem, quase sempre, não falando da modalidade da relação ou da tecnica terapêutica, eles se identificam no lugar de trabalho ("eu fico no hospital... na residência...no consultorio"), como se o lugar manifestasse automáticamente o conteúdo profissional: a subjectividade sucumbe debaixo do peso do quadro (SENNET, 2004, p. 142-150).

Pelo contrario, os profissionais da saúde mental, além do próprio papel (psiquiatra, psicólogo, enfermeiro, operador social) deveriam sempre ser analisadores da realidade social e valorizadores de recurso humano. Tendo presente as situações especificas dos doentes deveriam estimular a coesão social (melhorando as relações interpessoais entre usuarios da residencia e os vizinhos), sustentar as redes informais (tornando protagonistas os grupos de auto - ajuda e os serviços voluntários), manter as motivações (através da valorização dos sucessos dos usuarios, mas também daqueles das pessoas envolvidas na gestão da residência), apoiar mais a convergência do que as disputas, legitimar os sujeitos envolvidos (através da descentralização do poder). Os objetivos deste processo procuram afirmar o papel central dos cidadãos, reconsiderar os pontos de vista (agregar ênfase nos recursos das pessoas, mais do que nas insuficiências deles), redefinir a pergunta de saúde (no sentido de um pedido de bem-estar coletivo além do bem-estar individual). Em síntese, procurar simplesmente a democratização da comunidade, sendo a democracia a melhor proposta de saúde para todos.

O HABITAR

Fora do manicômio, acaba, por acaso, o impeto classificador e abrangente da psiquiatria? Infelizmente não! Continua a se reproduzir a idéia de reduzir a vida das pessoas a esquemas. A psiquiatria não desiste da idéia de um projecto totalitário e considera-se autorizada a programmar os lugares de vida dos usuarios (o "supported housing"). Se está desprovido de ética profissional deixar ao abandono o doente nas dificuldades da vida na comunidade, não é menos censurável a ideologia clinico-assistencial que exige controlar totalmente a vida diária do doente: um "maternage" sufocante. E, a serviço do bem pensar, também a idéia da reabilitação conta com um pensamento oculto de controle. A idéia de "re-abiltação" configura de fato uma tensão em relação a um passado, que ja não existe, configura a referência a um conceito abstrato - a cura - que revela insistência de normalização, alude a uma exigência de resgate, que inevitavelmente reproduz um estigma (neste caso buscando redimir a culpa da doença, da própria diversidade). Prefiro, ao contrário, falar em "habilitar", porque este pensamento compreende a idéia de um passado que não pesa de modo negativo sobre o presente (VENTURINI, et al., 2003a). Essa idéia permite pensar que a idéia da própria experiência na doença não é, a priori, rejeitável. A própria experiência na doença tem em si, um valor intrínseco, favorecendo outra idéia segundo a qual há um novo começo de um novo processo em relação ao qual ninguém se encontra em condição de clara desvantagem.

Por estas razões devemos conjecturar nas residências psiquiatricas uma modalidade de gestão e de apoio diferente da reabilitação tradicional. Penso, por exemplo, no envolvimento na gestão das associações dos usuarios, de familiares, de voluntários. Um assunto central concerne a propriedade do bem imobiliário, porquê enquanto o proprietário for uma instituição pública ou particular, a utilização da residência será sempre precária e o usuario se encontrará em uma condição de inferioridade e de paternalismo. Deveria ser válida a disposição jurídica do aluguel, com contrato de arrendamento. Acho apropriado o pagamento de uma renda, mesmo que simbólica. Sem duvida a solução idónea seria a propriedade da casa por parte dos usuarios; as associações dos usuarios e dos familiares poderiam desenvolver nesta direcção um papel decisivo.

Em Imola uma das experiências mais importantes da desinstitucionalização foi a experiência de "Ca' del Vento" (VENTURINI, 2003b, p. 169-173). Os hospedes duma residência se constituiram em uma associação junto com voluntários da cidade. Os hospedes recebem nas próprias mãos o financiamento para a desinstitucionalização por parte da entidade pública e eles autónomamente escolhem e pagam os profissionais (psicólogos, enfermeiros, operadores sociais) que trabalham na residência. Em "Ca' del Vento" só os hóspedes têm chaves da casa e os voluntários da associação compartilham com usuarios as próprias redes sociais primarias. Ser gerente responsável do próprio projecto terapeutico denota o exercício dum poder contratual, melhora a auto-estima, produz saúde. O habitar constitui um assunto central na saúde mental, mas talvez, de fato, seja um assunto central da própria vida. A casa alude a um espaço da mente e do coração. Sem duvida, é importante ter um trabalho pelos seus significados materiais, psicologicos e sociais, mas a casa permanece o lugar privilegiado da elaboração dos nossos "vividos": aí as experiências se modelam, aí o tempo interior encontra o seu espaço, as relações se enchem de significados. Temos todos a necessidade de recolhermo-nos em um lugar amigo, de tirar a máscara social que temos que envergar, de estar em uma condição cheia de trocas afetivas e de simples, mas intensas relações.

CONCLUSÕES

Como sair da ambiguidade inerente, dum lado na idéia de tutela e de protecção, e de outro no risco de vexação e de destruição da autonomia da pessoa? Como vencer o "olhar da Medusa" da psiquiatria, aquele olhar do poder terapeutico, que petrifica e converte pessoas em objetos? E como vencer o desafio da intersetorialidade, boicotada pelo gérme do individualismo e da competitividade, se insinuando no interior das nossas instituições socio-sanitárias?

A resposta é abandonar a idéia de trabalhar com as instituições e entre elas; o segredo consiste em trabalhar com as pessoas, com a subjectividade delas, com as pessoas que vivem e trabalham nas instituições. O segredo, na minha experiência, consiste em "raciocinar com os pés". Qual o sentido destas palavras? Raciocinar com os pés significa que nossos pés realmente conhecem a comunidade onde vivem os doentes. Nós temos que atravessar, em comprimento e em largura, a comunidade, viver a quotidianeidade, fora do ambulatório, dentro, ao contrario, do "laboratorio da vida". Só então pode-se compreender como se sedimentam as relações, como se cria o sofrimento, como se produz a saúde. O territorio não é só um espaço, com estruturas e instituições: o territorio são pessoas, são cidadãos, são histórias dos homens.

Em Imola durante a desinstitucionalização, uma palavra de ordem era "reabilitar a cidade", não reabilitar o doente. Sem duvida aludia a utopia e, como as utopias, exprimia illusões e também possibilidades concretas. Pode ser que o resultado tenha sido inferior as expectativas, mas não diminuiu o nosso desejo e a nossa esperança de mudança.

Pablo Picasso costumava dizer: "Eu não crio, eu simplemente encontro." É verdade: a capacidade mais importante das pessoas - e no nosso caso dos profissionais da saúde - consiste na capacidade de escutar e de olhar, consiste na capacidade de ver o caminho dos cantos, como contam os aborigenes, saber ver a energia naqueles homens que acreditam em um mundo mais saudável e mais justo.

NOTAS

Recebido em: julho de 2010

Aceito em: outubro de 2010

  • ALBANESI, C.; MIGANI, C. Il lavoro di rete nella promozione della salute mentale, Roma: Carocci, 2004.
  • BASAGLIA, F. O circuito do controle: do manicômio à descentralização psiquiátrica. In: AMARANTE, P. (Org.). Escritos Selecionados Petrópolis: Garamond, 2005. p. 237-257.
  • BAPTISTA, L. A. O veludo, o vidro e o plástico: desigualidade e diversidade na metrópole. Niterói: EdUFF, 2009.
  • CHATWIN, B. Le vie dei canti. Milano: Adelphi, 1988 (The songlines Franklin, PA: Franklin, 1987).
  • FERREIRA, G.; FONSECA, P. Conversando em casa Rio de Janeiro: Viveiros de Castro, 2000.
  • NATHAN, T.; STENGERS, I. Médecins et sorciers: manifeste pour une psychopathologie scientifique. Paris: Les Empêcheurs de Penser en Rond, 1995.
  • PUTNAM, R. The Prosperous Community: Social Capital and Public Life. The American Prospect, v. 13, p. 35-42, Spring 1993.
  • SARACENO, B. La fine dell'intrattenimento: manuale di riabilitazione psichiatrica Milano: RCS, 1995.
  • SENNET, R. Rispetto: la dignità umana in un mondo di diseguali. Bologna: il Mulino,2004 (Respect: the formation of character in a world of inequality. New York: Norton, 2003).
  • VENTURINI, E. et al. Habilitar-se em saúde mental: observações críticas ao conceito de reabilitação. Arquivos Brasileiros de Psicologia Rio de Janeiro, v. 55, n. 1/2, p. 65-74, 2003a.
  • VENTURINI, E. Aqualidade do gesto louco na era da apropriação e daglobalização. In: AMARANTE, P. (Ed.). Archivos de Saúde Mental e Atenção Psicossocial Rio de Janeiro: NAU, 2003b, p. 157-184.
  • VENTURINI, E. The virtue of indignation. Mnemosine, Rio de Janeiro, v. 4, n. 1, 2008.
  • VENTURINI, E.; DEGANO, L; GRAMANTIERI, N. La malattia del vento: uno sbocco possibile al dramma della cronicità. Rimini: Guaraldi/Gu.fo, 1995.
  • 1
    A respeito da experiência de Imola, cf. Venturini, Degano e Gramantieri (2009).
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      07 Fev 2011
    • Data do Fascículo
      Dez 2010

    Histórico

    • Recebido
      Jul 2010
    • Aceito
      Out 2010
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