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Acidente de trabalho típico e bipoder

Typical work accident and biopower

Resumos

Contemporaneamente, os acidentes de trabalho típico ainda vêm se mantendo como uma temática extremamente relevante à malha social. A Previdência (INSS), em 2007, registrou 653.090 acidentes de trabalho. Diante desse quadro estatístico, diversos órgãos públicos têm se empenhado no enfrentamento das ocorrências caracterizadas como acidentes de trabalho típico (ATs). Esta pesquisa originou-se de parte da dissertação que almejou colocar em análise práticas que permeiam as investigações de determinados órgãos públicos no Estado do Espírito Santo quanto à ocorrência dos acidentes de trabalho típico, buscando expandir as problematizações acerca da binarização da culpa pelo acidente, ora atribuída ao empregador, ora ao empregado. Recorreu-se, como aporte teórico-conceitual, ao conceito-ferramenta de Biopoder desenvolvido por Michel Foucault, para lançar uma análise acerca do Biopoder e das políticas de controle dos acidentes. Conclui que se processam mecanismos de subjetivação que parecem reduzir a importância da transversalidade/atravessamentos de instituições na constituição dos acidentes de trabalho.

Acidente de trabalho típico; produção de subjetividade; biopoder


Contemporarily, typical job accidents are still being kept as an extremely relevant theme to society. The Social Welfare (INSS), in 2007, registered 653,090 work accidents. Owing to the statistics, several public offices have committed in facing the incidents characterized as typical work injuries (AT). This research was originated from a dissertation which aimed to put in analysis the investigation practices in some public agencies in Espírito Santo State as the occurrence of typical work injuries, aiming to expand the questions concerning the binary guilt for the accident - sometimes due to the employer, sometimes due to the employee. In this article, we focus on the second chapter of the dissertation, for we used the tool-concept of Biopower developed by Michel Foucault, to launch an analysis on Biopower and the accident-control policies We conclude that subjectivation mechanisms are processed in a way to quell the importance of the trasversality of institutions in the formation of work accidents.

Typical work accident; production of Subjectivity; biopower


Acidente de trabalho típico e bipoder

Typical work accident and biopower

Leonardo Del Puppo LuzI; Ângela Nobre de AndradeII

IPsicólogo. Possui mestrado em Psicologia Institucional pela Universidade Federal do Espírito Santo. Atualmente é servidor do quadro efetivo do Ministério Público da União (MPU). E-mail: leoluz28@hotmail.com

IIPsicóloga. Possui Doutorado em Psicologia (Psicologia Clínica) pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e pós-doutorado pela Universidade de São Paulo. Atualmente é Professor Associado III da Universidade Federal do Espírito Santo. E-mail: anobre@terra.com.br

RESUMO

Contemporaneamente, os acidentes de trabalho típico ainda vêm se mantendo como uma temática extremamente relevante à malha social. A Previdência (INSS), em 2007, registrou 653.0901 1 Fonte: http://www.previdencia.gov.br/aeps2007/16_01_03_01.asp acidentes de trabalho. Diante desse quadro estatístico, diversos órgãos públicos têm se empenhado no enfrentamento das ocorrências caracterizadas como acidentes de trabalho típico (ATs). Esta pesquisa originou-se de parte da dissertação que almejou colocar em análise práticas que permeiam as investigações de determinados órgãos públicos no Estado do Espírito Santo quanto à ocorrência dos acidentes de trabalho típico, buscando expandir as problematizações acerca da binarização da culpa pelo acidente, ora atribuída ao empregador, ora ao empregado. Recorreu-se, como aporte teórico-conceitual, ao conceito-ferramenta de Biopoder desenvolvido por Michel Foucault, para lançar uma análise acerca do Biopoder e das políticas de controle dos acidentes. Conclui que se processam mecanismos de subjetivação que parecem reduzir a importância da transversalidade/atravessamentos de instituições na constituição dos acidentes de trabalho.

Palavras-chave: Acidente de trabalho típico; produção de subjetividade; biopoder.

ABSTRACT

Contemporarily, typical job accidents are still being kept as an extremely relevant theme to society. The Social Welfare (INSS), in 2007, registered 653,090 work accidents. Owing to the statistics, several public offices have committed in facing the incidents characterized as typical work injuries (AT). This research was originated from a dissertation which aimed to put in analysis the investigation practices in some public agencies in Espírito Santo State as the occurrence of typical work injuries, aiming to expand the questions concerning the binary guilt for the accident – sometimes due to the employer, sometimes due to the employee. In this article, we focus on the second chapter of the dissertation, for we used the tool-concept of Biopower developed by Michel Foucault, to launch an analysis on Biopower and the accident-control policies We conclude that subjectivation mechanisms are processed in a way to quell the importance of the trasversality of institutions in the formation of work accidents.

Keywords: Typical work accident; production of Subjectivity; biopower.

Introdução

Cachoeiro - Operário morre em acidente em pedreira. Um acidente em uma pedreira na localidade de Gironda, interior de Cachoeiro de Itapemirim, causou a morte de um operário e deixou outros três feridos. José Carlos de Paula, 35, foi atingido por uma pedra e morreu antes de chegar à Santa Casa. Outros 12 trabalhadores se encontravam no pátio da mineradora no momento do acidente. Outros três empregados da pedreira tiveram ferimentos leves, foram atendidos no pronto-socorro do hospital e liberados. Segundo o presidente do Sindicato dos Trabalhadores do Setor de Rochas Ornamentais (Sindimarmore), Aguinaldo Grillo, as fortes chuvas dos últimos dias podem ter contribuído para o acidente(GAZETA, 2009).

Notícias e informações, como as relatadas acima, volta e meia são encontradas ao folhearmos jornais de grande circulação. Expressões do tipo: "Nossa, mais uma morte! Estava demorando em acontecer outra dessas! Sempre a mesma história, né?" aparecem nas falas e diálogos construídos entre amigos, nas discussões acadêmicas, nas propostas dos sindicatos e órgãos oficiais.

Tais noticiários parecem estar se integrando ao nosso cotidiano. Certo modo de observar, analisar e pensar essas informações parece ter assumido uma naturalidade que perpassa e constitui cotidianamente nossas ações, reações, posturas e opiniões. Será que as mortes, emergentes dos afazeres diários ligados aos modos de trabalhar, ocuparam um lugar de naturalidade?

Essa pergunta, procedente de umas dessas leituras desavisadas do dia a dia, começou a esboçar a construção de um provável campo problemático. Não estamos falando de um problema isolado, o qual estaria desconectado das diferentes paisagens que compõem nossa malha social, mas, sim, de um campo em que os eventos acidentários se imbricam a outras infinitas problemáticas que compõem nossas vidas.2 2 "Já estão sendo sentadas as bases para a polêmica sobre se o estresses, o burnout e o assédio psicológico devem ser ou não considerados acidente de trabalho ou doenças profissionais, em sua consonância com a relação causal com o trabalho [...]. O assédio psicológico é parte integrante da violência no trabalho e ano após ano toma mais vítimas e no entanto mascare-se aquilo que deveria conceituar-se como doença ou acidente de trabalho sob o rubro da doença comum [...]" (RAMIREZ, 2003, p. 18).

A obviedade que habita em nós, e que muitas vezes acompanha as análises cotidianas dos acidentes de trabalho típico3 3 "Acidentes Típicos – são os acidentes decorrentes da característica da atividade profissional desempenhada pelo acidentado" (BRASIL, 2007). (ATs), técnicas ou não, foi se fragmentando, na medida em que a naturalização das causas dos ATs foi sendo colocada em análise. Interrogações quanto às obviedades das causas, as quais parecem anestesiar processos de desnaturalização de alguns modos de ser e de pensar, foram se amplificando.

Segundo Eirado (2008), a obviedade, quando interrogada, pode gestar a produção de estranhamentos das naturalidades que nos constituem como sujeitos: "Eu tenho cada vez mais medo do óbvio; o que significa o óbvio? O óbvio significa que aquilo que a gente vê, a gente elege aquilo como se fosse a realidade ela mesma, só que a gente não vê tudo. Olha que perigo!".

Os percursos propostos para as investigações dos acidentes de trabalho típico4 4 A expressão "acidente de trabalho típico" é uma definição que se foi construindo para categorizar um acidente de trabalho que se caracteriza tal como definido no art. 19 da Lei nº 8.213/91 (BRASIL, 1991). pareciam ter como princípios, grosso modo, formas de averiguação institucionalmente já cristalizadas em seus modus operandi. De um lado, modos de funcionamento investigativos que ora ratificavam, ora enalteciam os "atos inseguros"; do outro, ratificação das inobservâncias das Normas de Segurança do Trabalho. As indicações avaliativas pareciam transitar, portanto, entre esses dois polos de responsabilização pela origem do acidente. O percurso, a nosso ver, parecia deixar de fora das problematizações o campo de processualidades que se constitui entre estas duas extremidades (ato inseguro e inobservância das normas). Então, formulamos as seguintes perguntas: o que se passa entre essas extremidades? De que forma questões, como empregabilidade e produção da urgência na realização das tarefas, compõem a problemática?

Na dissertação, percorremos diversos caminhos, buscando problematizar os métodos de investigação contemporaneamente em uso. Neste artigo, no entanto, restringimo-nos ao uso do conceito de biopoder e seu imbricamento aos modos de investigação dos ATs. Com essa escolha, procuramos colocar em análise as conexões entre acidentes de trabalho típico e biopoder.

As polêmicas no campo da saúde do trabalhador são diversas e diferenciadas e, algumas vezes, conflituosas, visto que áreas de diferentes conhecimentos parecem buscar definir e delimitar os campos de atuação no Campo da Saúde do Trabalhador. Por seguinte, neste artigo, nosso objetivo é fomentar novas discussões e embates acerca das atuais políticas de segurança e saúde direcionadas ao trabalhador. As normas de regulamentação oficiais (Normas Regulamentadoras - NRs) estariam se mesclando às estratégias de um biopoder? O biopoder estaria refletindo seu modus operandi por meio do uso das Normas de Saúde e Segurança e, consequentemente, determinando certos modos de investigações dos ATs?

Trabalho: uma produção histórica

O capitalismo atual invadiu as esferas mais privadas e íntimas da vida humana, desde a fé até o corpo biológico. Não existe mais exterior para o capital. [...] os últimos remanescentes sucumbiram e se acoplaram aos modos de subjetivação, o inconsciente, a subjetividade intimista, privatista sucumbiram. O que dizer então sobre o trabalho, pilar fundamental e inerente ao capitalismo mundial integrado (PELBART, 2000, p. 26).

Considera-se, em algumas produções,5 5 "A evolução do trabalho do homem está associada a um passado de submissão, às Eras do Desenvolvimento e ao Triunfo da Razão, foi a dominação da natureza pela cultura. A Nova Era, sem dúvida a mais importante da história humana, está marcada pela autonomia da cultura ante as bases de nossa existência" (ESCORSIM et al., 2005, p. 11). o trabalho como algo inerente ao funcionamento evolutivo do humano, próprio da evolução da vida, constituído no bojo dos processos de formação da humanidade. Logo, pensar o trabalho em algumas contextualizações é articulá-lo aos processos naturalizantes de constituição do mundo e do humano, a ponto de caracterizá-lo como parte da suposta natureza humana. Pelbart (2000, p. 35) diz: "A tradição hegemônica de esquerda jamais se descolou do trabalho como um valor [...]. O marxismo tradicional continuou apegado à sociedade de trabalho como se ela fosse condição ontológica da humanidade".

Não temos a pretensão de diminuir a importância do trabalho no mundo contemporâneo, pois ele ainda continua a ter uma função central no corpo social. Contudo, é vivenciado como uma atividade normal da vida humana, uma atividade natural do viver. Tal naturalidade é valorizada nas sociedades ocidentais, principalmente como um princípio de dignificação do próprio homem. Portanto, é comum, por exemplo, falas do cotidiano que afirmam que "O trabalho dignifica o homem" ou "Um homem sem trabalho não possui dignidade", posição que, aqui, não aceitamos passivamente e sem questionamentos. Para pensar essa "dignidade", fazemos uso da fala de Castel (1998, p. 26):

[...] esta suposta ‘dignidade’ do trabalho, isto é, esta característica de dignificação que se pulverizou e se cristalizou no socius não se fundamentou na atividade laboral propriamente dita, e sim na sua necessidade social, na medida em que a pessoa investida em posto de trabalho estaria afirmando sua participação na construção da sociedade. Tal afirmação coloca o emprego e o trabalhador em outro plano de pensamento, já que, a ausência de trabalho não é simplesmente o desemprego. O trabalho é um referencial em todas as esferas que perpassam os modos de subjetivação.

O trabalho, subjetivado na tessitura social como uma lógica de funcionamento que dignificaria o homem, encontra-se articulado, dessa forma, a determinados modos de produzir na sociedade regulada pelo Capitalismo Mundial Integrado (CMI). Portanto, "O trabalho, socialmente, deixa de ser associado à escravidão e, longe de ser aquilo que desqualifica, torna-se o que identifica um cidadão de bem" (CASTEL ,1994, apud MAIA, 2006, p. 74).

Parece-nos que, desse modo, o trabalho, mais do que nunca, infiltrou-se capilarmente na vida, a ponto de, contemporaneamente, não sabermos apontar e diferenciar suas demarcações, limites ou fronteiras. "Ele [o trabalho] aborda o tempo de trabalho para coincidir com tempo de vida confundindo tempo de produção e reprodução" (PELBART, 2000, p. 84). Mesclou-se à vida, transformou-se em um processo simbiótico em constante produção. "A expansão da esfera produtiva invade a esfera reprodutiva e a tendência é cada vez mais trabalhar-se em casa, já que o espaço doméstico torna-se ele mesmo ‘produtivo’, de modo que a empresa coloniza a privacidade do tempo livre" (PELBART, 2000, p. 32).

A simbiose vida/trabalho faz transparecer alguns efeitos. Os modos de subjetivar investidos no trabalho visam a gestar, no tecido social, a constante busca por suposto tempo livre existente. O trabalhador livra-se "das tarefas que lhe tomam tempo, tanto mais ele investe trabalhando para comprar engenhocas. Para ter todo tempo ele perde todo o tempo" (PELBART, 2000, p. 34).

Percebe-se que, nessa simbiose, são engendradas propostas políticas, jurídicas, biológicas e midiáticas por formas de trabalho saudáveis e seguras, acoplando-as aos diversos modos de vida considerados salubres e biologicamente normatizados. Visualiza-se, assim, hábil conexão de modos de trabalhar à manutenção salutar e periódica da vida biológica. Maneiras de viver socialmente corretas, cientificamente saudáveis, unem-se às formas de trabalhar política e saudavelmente coerentes. Vida, trabalho, produtividade simbioticamente conectados e naturalizados.

Biopoder

Falar em acidentes de trabalho típico pode nos fazer enveredar por caminhos árduos e incômodos, os quais, acreditamos, podem potencializar a formação de problemáticas dos modos de subjetivação constituidores de sujeitos no contemporâneo. Por sua vez, essa constituição de sujeitos nos leva a suscitar questionamentos importantes quanto ao exercício do poder e às relações produzidas pelas práticas desencadeadas por tal exercício. De acordo com Foucault (1995, p. 243),

[...] uma relação de poder é um modo de ação que não age direta e imediatamente sobre os outros, mas que age sobre sua própria ação. [...] se articula sobre dois elementos que lhe são indispensáveis por ser exatamente uma relação de poder: que 'o outro' (aquele sobre o qual ela se exerce) seja inteiramente reconhecido e mantido até o fim como o sujeito de ação; e que se abra, diante das relações de poder, todo um campo de repostas, reações, efeitos, invenções possíveis. [O exercício do poder] é um conjunto de ações sobre ações possíveis; ele opera sobre o campo de possibilidade onde se inscreve o comportamento dos sujeitos ativos; ele incita, induz, desvia, facilita ou torna mais difícil, amplia ou limita, torna mais ou menos provável.

É significante lembrarmos que o exercício do poder, a ação sobre a ação do outro, liga-se a um elemento fundamental: a liberdade. Como diz Foucault (1995, p. 244), no epicentro das relações de poder, opera-se a: "recalcitrância do querer e a intransigência da liberdade".

Assim, pensar os ATs a partir da ótica das relações de poder, de certo modo, torna-se uma ferramenta indispensável, na medida em que, segundo Foucault (1995, p. 247), "Uma sociedade 'sem relações de poder' só pode ser uma abstração".

A sociedade contemporânea, podemos dizer de maneira geral, faz-se funcionar por formas de relações de poder, as quais produzem determinada constituição do corpo social. Este, por sua vez, mantém-se funcioando por meio do engendramento de formas de verdades ou trajetórias verdadeiras. "Somos submetidos pelo poder à produção da verdade e só podemos exercer o poder mediante a produção da verdade. Isso é verdadeiro em toda sociedade, mas acho que na nossa essa relação entre poder, direito e verdade se organiza de um modo muito particular" (FOUCAULT, 2005, p. 29).

De todo modo, devemos procurar escapar do pensamento normatizado de que o poder seria uma riqueza, um bem ou uma coisa que existiria em si mesmo, e que, destarte, restar-nos-ia apenas administrá-lo ou delimitar seus limites de aplicação, como se fosse possível estabelecer níveis de tolerância ao exercício do poder. Rigorosamente falando, não existe o poder, não há como substantivá-lo; o que há são relações de poder, uma microfísica do poder.

Continuando nossa discussão acerca do poder, recordamos que a sociedade disciplinar pode ser caracterizada pela inserção de tecnologias e técnicas de poder destinadas à manipulação dos corpos, objetivando a produção de corpos docilizados e produtivos. Para tanto, havia a existência de duas formas de esquadrinhamento: uma espacial e uma temporal (FOUCAULT, 2005, p. 288).

Na metade do século XVIII, no entanto, outra técnica de poder começa a se gestar e a exercer seus efeitos – a sociedade de controle. Essa nova técnica pode ser entendida de forma amplificada, extensiva e abrangente, já que, em vez de o corpo propriamente dito ser o alvo insere-se agora intrinsecamente dentro da vida, no seu interior. Nas palavras de Foucault (2005, p. 289), "[...] ela [nova técnica] se dirige não ao homem-corpo, mas ao homem vivo, ao homem ser vivo; no limite, se vocês quiserem, ao homem-espécie".

Após essa citação, Foucault (2002, p.152) realiza uma análise sucinta, mas não menos explicativa: "As disciplinas do corpo e as regulações da população constituem os dois pólos em torno dos quais se desenvolveu a organização do poder sobre a vida [...] Abre-se, assim a era do biopoder".

Em outros termos, essa é uma forma de poder que efetiva seus comandos sobre a vida das populações, utilizando-se, para tanto, da internalização de inúmeras funções durante os processos de constituição dos sujeitos. Um poder que não "visa barrar a vida, mas tende a encarregar-se dela, intensificá-la, otimizá-la" (PELBART, 2001, p. 258). As populações, assim, abraçam esses comandos e os vivenciam como próprios de uma vontade pessoal regulada por um suposto livre-arbítrio.

A partir do exposto, qual importância para a propagação da vida humana pode ser atribuída ao surgimento de engenhosa forma de gestão da vida? Foucault (2005, p. 294) talvez nos auxilie: "A soberania fazia morrer e deixava viver. E eis que agora aparece um poder que eu chamaria de regulamentação e que consiste, ao contrário, em fazer viver e em deixar morrer".

Dentre as engenhosas formas de gestão da vida e as inúmeras naturalizações consideradas e ditas como intrínsecas aos modos de trabalhar, visualiza-se o exercício daquilo que Foucault denominou de docilidade dos corpos: "Em todo o mundo a disciplina passa a ser o modelo de funcionamento geral da sociedade e a produção de indivíduos em série se torna o padrão e a norma de produção de subjetividade" (MORAES; NASCIMENTO, 2002, p. 93).

A docilidade fundamenta-se em operacionalizar ao máximo a força produtiva dos trabalhadores, ao mesmo instante em que, supostamente, manteria a inoperância política quanto às questões que abrangem os modos de trabalhar; dentre estas, as problemáticas emergentes acerca da saúde do trabalhador durante a realização do trabalho real.

Relevante dizer que trabalho real é o que é efetivamente realizado nas situações cotidianas de trabalho, bem como, conforme Yves Clot, é o que também deixou de ser feito; o que foi pensado, dito, discutido, mas que, no entanto, se encontra exterior ao trabalho prescrito, apesar de tal trabalho real estar imbricado capilarmente à operacionalização do trabalho prescrito, constituindo-o e possibilitando o funcionamento do normatizado/normalizado da prescrição, da tarefa. Os desdobramentos que se efetuam nos interstícios do trabalho real poderiam ser considerados a característica mais significativa para pensarmos a variabilidade de "normas" que os trabalhadores desenvolvem no interior das normas institucionalizadas e legalizadas. No caso, as Normas de Saúde e Segurança no Trabalho.

Por sua vez, o funcionamento de corpos dóceis, temporalmente esquadrinhados, treinados e otimizados para a realização do trabalho prescrito (a tarefa), parece ser o sustentáculo que mantém a disciplinarização dos modos de trabalhar. Isso parece possibilitar que as formas de análises dos acidentes de trabalho, regulamentadas por séries de normas prévia e enrijecidamente existentes, sejam fundamentadoras de caminhos preventivos eficazes em sua totalidade. "Uma outra conseqüência deste desenvolvimento do biopoder é a importância crescente assumida pela atuação da norma, à expensas do sistema jurídico da lei" (FOUCAULT, 2002, p. 156).

Essa ótica institucionalizada precisaria de trabalhadores maximamente disciplinados, mas que não os impeçam, ao mesmo tempo, de usar a criatividade e a polivalência dos processos de invenção constituidores da vida, invenções indispensáveis para a realização das atividades engendradas pelos processos de trabalho. Sem a polissemia dos processos inventivos, a tarefa pode ser inviabilizada ou categoricamente morosa, impedindo, sistematicamente, os ciclos de produtividade. O modelo econômico que se desenvolve no século XXI não quer trabalhadores obedientes e, sim, inventivos, proativos, trabalhadores que se antecipem às invariabilidades do meio de trabalho.

As situações conflitantes e as invariabilidades inerentes às ações humanas que se estabelecem no funcionamento cotidiano nos modos de trabalhar gestam, pois, indagações quanto às estratégias atuais de prevencionismo dos acidentes. Muitas vezes, a proteção norteia-se por meio, exclusivamente, da prescrição enrijecida dos modos de trabalhar. Destarte, como articular a elaboração de normas que contemplem questões concernentes não somente ao trabalho prescrito?

As atuais políticas de subjetivação operacionalizam a gestão da docilidade na medida em que parecem naturalizar uma forma-trabalhador fundamentada no silenciamento de modos destoantes de se pensar a saúde nos ambientes laborais. Quiçá, certo esvaziamento político das "normas" que permitem a total funcionabilidade do trabalho prescrito, normas estas infratoras, em diversos instantes, do estabelecido como salutar. Encontram-se modos de funcionamento dessa docilidade que são/estão coengendrados ao objeto da biopolítica – a população. Isto é, não existiria, grosso modo, a produção de subjetividades docilizadas somente por meio do uso de técnicas e procedimentos disciplinares (vigilância, treinamento, punição), e sim a existência de modos de trabalhar que operem mutuamente os instrumentos disciplinares e as atuações da biopolítica, tornando-os concomitantes; um sistema de retroalimentação. Em outros termos, corpos dóceis às normas de segurança e saúde funcionam imbricados às práticas de biopolíticas.

Esta junção, a anatomopolítica do corpo (disciplinas) e biopolítica da população, faz transparecer as limitações de formas de controle social dos acidentes de trabalho típico. Sendo assim, o funcionar das Normas de Segurança e Saúde do Trabalho seria utilizável e aplicável à vida do trabalhador, na medida em que essa junção se torne operatória no cotidiano laboral. Segurança e saúde no trabalho parecem misturar-se capilarmente às orientações de uma melhor qualidade de vida da população. Como já afirmado, cada vez mais formas de vida ditas saudáveis se confundem aos modos de trabalhar corretos, eficientes e harmoniosamente profícuos.

Assim, a atual estilização das práticas, condutas e comportamentos parece caminhar mais em direção ao controle/regulação de um fazer-viver (trabalhador com saúde, trabalhador produtivo, trabalhador bem nutrido, amplamente saudável) do que uma efetiva preservação da vida com interesses potencializadores dos modos de viver o trabalho.

A suposta preservação da vida parece ter se tornado interessante para a atual fase do capital, na medida em que tal vida se inclua e seja operacionalizada nos processos de produção. Dentro dessa perspectiva, as Normas Regulamentadoras buscariam evitar a morte ou encompridar a vida? Amplificariam um fazer-viver?

Não é necessário insistir [...] sobre a proliferação das tecnologias políticas que [...] vão investir sobre o corpo, a saúde, as maneiras de se alimentar e de morar, as condições de vida, todo o espaço de existência. [...] Um poder dessa natureza tem de qualificar, medir, avaliar, hierarquizar, mas do que se manifesta em seu fausto mortífero; não tem que traçar a linha que separa os súditos obediente dos inimigos do soberano, "opera distribuições em torno da norma" (FOUCAULT, 2002, p. 157, grifo nosso).

O biopoder, de modo generalizando, não trataria da morte propriamente dita ou do morrer da população e, sim, buscaria fazer funcionar a regulamentação dos processos de gerenciamento da mortalidade.

Como um poder como este pode matar, se é verdade que se trata essencialmente de aumentar a vida, de prolongar sua duração, de multiplicar suas potencialidades, de desviar dos acidentes, ou então de compensar suas deficiências? "Como este poder tem essencialmente o objetivo de fazer viver pode deixar morrer"? (FOUCAULT, 2005, p. 304, grifo nosso).

A inserção de outros trabalhadores, ocorrida em virtude do afastamento de trabalhadores inutilizados pelo acidente de trabalho típico, em uma engrenagem funcional que se regula primordialmente pela não interrupção da produção,6 6 Quando nos referimos à palavra "produção", não estamos somente nos reportando ao modo de produção fabril, ou de mercadorias materiais (bens duráveis e não duráveis), mas, sim, à produção de modos de vida, modos de consumo, modos de estar na vida que mantêm todo um sistema de engrenagens para a produção do consumo. O consumo é ele mesmo um modo de produção. parece não ser analisada como estratégia interessante pela atual forma de funcionamento. Não se trata apenas da reposição de uma peça humana, mas, sim, de todo um conjunto de regras, "normas" e maneiras de fazer o trabalho colocado em funcionamento pelo trabalhador inutilizado no acidente. A substituição do trabalhador incapacitado por outro tecnicamente compatível não se regulamentaria tão somente pelo critério da qualificação técnica ou da experiência do trabalho prescrito. O trabalho real, feito no cotidiano pelo trabalhador, não nos parece suscetível de uma pura substituição de peças.

Portanto, como evitar o fim da vida de forma brutal e, ao mesmo tempo, prolonga-lá ao máximo? Acreditamos que essa questão levou Foucault (2002, p. 153) a afirmar que o exercício de biopoder "foi elemento indispensável ao desenvolvimento do capitalismo, que só pôde ser garantido à custa da inserção controlada dos corpos no aparelho de produção e por meio de um ajustamento dos fenômenos de população aos processos econômicos".

Percebe-se uma gestão da vida que está se tornando significante para o capitalismo na sua fase atual, cujo funcionamento não se pautaria, exclusiva e majoritariamente, por um empenho prolongado das jornadas de trabalho e/ou por disciplinas do tempo. Esse empenho se faz desnecessário em uma forma de trabalho que se mescla com a vida e que se infiltra capilarmente nos gestos, nas palavras, nas coisas. No entanto, o fatigamento da vida produzido por esse acoplamento exige o controle das formas de se pensar a saúde e a vida, para que esta última não se esgote ou tenha sua capacidade de produção mitigada. Portanto, nunca um "fazer viver, deixar morrer" se fez tão importante para as engrenagens do atual sistema de produção.

Os ATs parecem que limitariam a produção capitalística, dilapidando o seu principal vetor de sustentação produtiva: a vida dos protagonistas do trabalho. É nesse instante que uma microfísica do poder cogestada pelo biopoder e suas formas disciplinares e de biopolítica torna-se indispensável ao sistema atual. Como manter o sistema em funcionamento ascendente sem encurtar a vida daqueles que o mantêm? Parece-nos que, para tanto, a invenção de protocolos de saúde, regulados por um onde, um como e um quando viver é sincronicamente codificada aos manuais de um viver bem.

Os manuais parecem assumir, pois, uma gestão singularizada nos corpos que eles atravessam. Antes, fazia-se "um deixar-viver, fazer-morrer", os quais se instrumentalizavam na individualização do corpo; agora se gerencia um fazer-viver que objetiva o controle da multiplicidade dos homens; e quando não é possível esse fazer-viver, liberta-se o deixar-morrer.7 7 É importante dizer que não houve um "etapismo" de fases. Não houve primeiro um deixar-viver, fazer-morrer, "fórmula" operada por um Poder Soberano, que detinha o direito real sobre a vida, de fazer a morte ser concretizada de forma instantânea e, depois, um fazer-viver, deixar-morrer. A inserção do biopoder ocorreu simbioticamente ao Poder Soberano. Eles se acoplaram, complementaram-se, nutriram-se reciprocamente.

Diante das nossas argumentações realizadas até o momento, como pensar as investigações acidentárias a partir da lógica de um biopoder? Será que se "trata de adequar o corpo às normas científicas da saúde, longevidade, equilíbrio?" (PELBART, 2001).

Biopoder e investigações dos acidentes

A produção do "como" o acoplamento entre o biopoder e a investigação se constrói, se subjetiva e se coloca em funcionamento é o nosso interesse, dado que tal imbricamento produz determinados entendimentos e conceituações enrijecidos quanto aos ATs e que circulam infinitesimalmente no socius, bem como se instauram nos modus operandi coletivo.

As técnicas de investigação e controle da população-espécie foram se tornando cada vez mais centrais ao longo do século XIX e, principalmente, no século XX [...] abriu-se espaço para que os mecanismos biopolíticos de controle da população fossem sendo cada vez mais utilizados (MORAES; NASCIMENTO, 2002, p. 94).

Nos modos de investigação contemporâneos, a verdade que transparece ao final da fase inquisitorial revelar-se-á por meio de um conjunto de normas procedimentais de investigação. Para tanto, o Inquérito ostentaria um rigor científico compassado por etapas cuidadosamente alinhadas (jogo das metades) e que se conectariam até assumir uma coerência indubitável aos olhos daqueles que o observam e constatam sua autenticidade inabalável. Tal concepção inquisitorial se tornou relevante para o conhecimento dos atuais protocolos instituídos nas investigações dos acidentes de trabalho típico.

Neste contexto investigativo, as Normas de Segurança no Trabalho parecem, sistematicamente, exteriorizar as necessárias precauções para uso de procedimentos, protocolos e condutas que excluiriam ou atenuariam a multiplicidade de riscos,8 8 "A abordagem das questões do risco é complexificada e ampliada, mas os fatores de risco pertinentes continuam exteriorizados e objetivados. São realidades nocivas, nefastas, a temer. Estamos, portanto, numa visão negativa do risco como fenômenos potencialmente perigosos em que é preciso justamente impedir a atualização de sua periculosidade" (NOUROUDINE, 2004, p. 39). circulantes durante a efetivação do trabalho real (atividade). No entanto, as precauções atuais produzem conjuntos de mapeamentos dos riscos, os quais são previamente estabelecidos como suporte das análises do trabalho prescrito (a tarefa). Isto é, após estudos dos procedimentos para a realização das tarefas, criar-se-ia a categorização qualitativa e quantitativa dos riscos que envolvem, direta ou indiretamente, para a prática das tarefas, excluindo da categorização as variabilidades do trabalho real.

[...] no caminho entre o trabalho prescrito, tecnicamente correto, e a atividade realizada, se interpõe o que o profissional denomina o ‘hábito’: o trabalhador age de acordo com algo anteriormente aprendido, automatizado, automatização esta que economiza o planejamento dos atos futuros (OSÓRIO, 2007, p. 86).

Partindo, então, do imbricamento entre trabalho prescrito e real, poderíamos articular que as situações de trabalho infligem alternâncias inesperadas, cujos reflexos tangenciam as normas antecedentes,9 9 "As normas antecedentes são construções históricas heterodeterminadas e indicam valores de bem comum, redimensionados, institucionalizados no ambiente de trabalho" (SOUZA, 2009, p. xx). Podemos entender como normas antecedentes as normas "[...]propostas-impostas, ligadas a instâncias exteriores aos indivíduos, assim como há normas instauradas na própria atividade (renormatizações), ligadas ao próprio indivíduo" (SOUZA, 2009, p. xx). Temos, assim, que as normas antecedentes são aqueles condutas e orientações oficiais, bem como direções criadas durante a história das profissões e ofícios (SOUZA, 2009, p. xx). mas não são abarcados por elas. Nas situações de trabalho, em face às variabilidades e às infidelidades dos meios,10 10 Infidelidade do meio é um conceito produzido por George Canguilhem (2002). os indivíduos devem arbitrar e encontrar formas para atingir, ou não, os objetivos fixados, visto haver processos de renormatização das normas antecedentes.

Por meio das normas, bem como das análises dos acidentes, baseadas em uma linearidade conduzida no interior do trabalho prescrito, as investigações parecem possuir campo fértil para propagação e justificação de existir. À medida em que o mapeamento unidirecional é estabelecido como um modus operandi natural e inerente a investigações, quaisquer desvios na trajetória natural do trabalho prescrito, serão considerados uma falha, técnica ou humanamente originária.

Dentro desse modos investigativos, qualidades, como rapidez na realização dos serviços e segurança dos protagonistas, unem-se embrionalmente. Agilidade na efetuação da prescrição, alto padrão de qualidade e segurança no trabalho parecem ter se transmutado em um modo de ser trabalhador; trabalhador saudável. O inconciliável parece ter sido naturalizado. "Há uma completa mobilização da pessoa a quem se impõe a carga de conciliar o inconciliável: regularidade, velocidade, qualidade técnica e segurança" (CLOT apud OSÓRIO, 2007, p. 77).

Parece-nos que até mesmo as singularidades estão sendo convocadas para a realização do trabalho real, mas estas, agora, se integram aos modos de trabalhar, e são, ainda, consideradas inerentes ou pré-requisitos necessários aos trabalhadores. De acordo com Osório (2007, p. 77), "Características antes consideradas próprias do modo de ser de cada um [...] são vistas atualmente como competências a serem treinadas e exigidas do mesmo modo que a capacidade técnica". Como já dito, pode-se visualizar uma inserção dos corpos no aparelho de produção por meio de um ajustamento dos fenômenos de população aos processos econômicos.

Para subsidiar nossa fala, trazemos alguns fragmentos de documentos e falas extraídas dos procedimentos11 11 O procedimento tem caráter meramente administrativo, é pré-processual e de natureza inquisitiva. "Nele não há uma acusação nem nele se aplicam sanções; dele não decorrem limitações, restrições ou perda de direitos [...] Não se decidem interesses; não se aplicam penalidades. Apenas serve para colher elementos ou informações com o fim de formar a convicção do órgão do Ministério Público" (NETO, 2006, p. xx). de investigação realizados pelo Ministério Público do Trabalho/ES. Buscamos, assim, enriquecer nosso campo de análise acerca da inserção do biopoder em certos funcionamentos em exercício na sociedade contemporânea, tal como, por exemplo, os modos de investigação propostos por órgãos do aparelho de Estado.

Uma decisão judicial, extraída de um Procedimento Administrativo manuseado, analisado nesta pesquisa, permitiu observar os modos de existência que se colocam em funcionamento por meio de uma forma-subjetiva intimista, cujo regime de visibilidade e dizibilidade assumiu o nome de "ato inseguro". A ideia de subjetividade interiorizada mostra sua invariância, na medida em que operacionaliza a noção do ato inseguro como trajetória autêntica, bem como coloca à margem o hiato entre trabalho real e prescrito. Vejamos a decisão judicial anexada como peça informativa nesse PA.

[...] Primeira testemunha do reclamante: [...] 'que presenciou todo o acidente a [...]; o que houve foi que havia uma tábua; que deveriam descer ao chão pois não poderia ser jogada lá de cima por ordens do encarregado; que o falecido encontrava-se utilizando o cinto de segurança e juntamente com o depoente tentavam fazer a tábua descer quando ela se inclinou e ficou em uma posição que, com o cinto preso, o falecido não conseguia manobrá-la para fazê-la descer pelo vão; em razão disso o falecido desconectou o cinto e, apoiando-se em uma coluna, deu um pequeno chute na tábua acreditando que ela desceria normalmente [...]' (TRIBUNAL REGIONAL DO TRABALHO DO TRABALHO, 2008).

Podemos, de certo modo, perceber, durante a narrativa da peça judicial, a tensão que se produz neste hiato entre a tarefa e a atividade, pois o trabalhador, para efetuar a tarefa, utiliza-se de algumas estratégias ("tentavam fazer a tábua descer") que podem ter êxito, ou não, bem como podem, cotidianamente, ser utilizadas para realizar o trabalho prescrito.

Em um procedimento administrativo analisado, a ocorrência dos ditos fatalismos e o acoplamento saúde/trabalho parecem se camuflar em outros discursos. No entanto, mantém-se sua visibilidade nos interstícios do "não-dito". Uma dupla de trabalhadores desenvolvia atividade laboral em um ambiente de mata fechada (selva), quando eles foram atacados por um enxame de abelhas. O resultado do ataque resultou na morte de um dos trabalhadores e ferimentos em outro. Entretanto, o que mais nos chama a atenção é que a morte do trabalhador não foi considerada resultado imediato das picadas das abelhas e, sim, segundo as alegações do empregador, em virtude da incapacidade do organismo do trabalhador de suportar o ato de correr dos animais que ora o atacavam. Extraímos um fragmento da peça informativa encaminhada pelo empregador que busca descaracterizar o AT.

Na verdade, o enxame de abelhas veio do nada, sem qualquer aviso ou provocação das partes, sem qualquer ato provocado pela máquina ou pelos operários.

Ora, ao correr, o obreiro justamente por encontra-se a [sic] anos sem exercícios e tão somente com stresses do dia a dia, passou dos limites de seu próprio organismo, vindo a falecer por um ataque cardíaco fulminante.

Data vênia, vejamos que não houve acidente, a causa da morte, o falecimento do obreiro não foi em decorrência de picadas de abelhas e qualquer outro fator ligado ao exercício da profissão, mas tão somente quanto a incapacidade de seu organismo quanto a corrida que se embrenhou. Ataque cardíaco não é acidente de trabalho (TRABALHO DO TRABALHO, 2002, grifo nosso).

Pelo exposto, verifica-se a isenção das abelhas, das condições de trabalho e da urgência na realização da atividade, por outro lado, inflige-se ao trabalhador a responsabilidade direta, clara e objetiva pela não manutenção de estados de vida saudáveis, de modos de viver racionalizados pelo bom funcionamento bio-orgânico, por sua negligência ao modo salutar de viver. Isto é, do não acoplamento dos estados de saúde aos modos de trabalhar. Como já afirmado, saúde e trabalho têm suas condições de possibilidade de existência combinadas e sincronizadas.

A produção de subjetividade que constitui os modos de agir, pensar, perceber e investigar as causas acidentárias acaba por perpassar os discursos oficiais. Nesses discursos, apesar de a noção de culpabilidade manter-se como um jargão a ser rechaçado, ainda as causas, de forma marginal, coincidem com a culpabilidade. Imbricam-se visceralmente às falas e às atitudes de grande parte dos seres humanos constituidores do corpo social. Vejamos:

Se todas as etapas de investigação são concretizadas e se elas são concretizadas a contento, ou seja, se consegue obter o resultado que se espera de cada etapa da investigação, se consegue apurar cada etapa e o resultado daquela etapa [...] se deve concluir pela ocorrência ou não de uma situação insegura, de culpa, ou de uma situação, mesmo que não tenha havido culpa, de uma situação que se possa mudar nos ambientes de trabalho para que se possa evitar novos acidentes, e se o acidente decorreu de uma situação, de uma falha do meio ambiente de trabalho, ou não, não houve falha do ambiente de trabalho, e havendo falha desse ambiente de trabalho, se conseguir colher as provas dessas falhas, as provas que vão conseguir determinar a culpa do empregador e os elementos necessários para as mudanças no ambiente de trabalho; que medidas devem ser tomadas para que não se produza um acidente de trabalho naquelas circunstâncias? (PROCURADOR do Trabalho).

Primeiro no processo de investigação de um acidente de trabalho, o intuito maior não é a culpabilidade do trabalhador ou da empresa, porque normalmente a empresa é muito mais fácil jogar a culpa no trabalhador; jogar a culpa em uma situação em que ela pode fazer o manuseio. A gente não busca culpados nesta situação, buscamos, sim a causa do acidente que é verificar aonde ele se originou. Normalmente é numa máquina que tal mal, mal prevenida, que não tem....que foi feita uma má manutenção ou então às vezes um procedimento que é feito de uma maneira errada e por parte da empresa que não definiu melhores adaptações aqueles tipos de ambiente com um certa proteção. Normalmente é isso! (AUDITOR-FISCAL do Trabalho).

A questão que parece crucial é: como criar ferramentas de análises que provoquem ruptura da simbiose entre as formas de saúde e os modos de trabalhar, por exemplo? Essa junção, ontologicamente forjada, construída e naturalizada, parece não permitir que os processos de investigação, por mais que afirmem que "o intuito maior não é a culpabilidade do trabalhador ou da empresa", tornam-se capturados neste processo de produção subjetiva da culpabilização.

(In)conclusões

O que procuramos trazer neste trabalho é que: diminuir a importância da transversalidade que perpassa a constituição dos ATs e evitar a problematização do homem (nós) como força de trabalho, como utilidade econômica, pode nos conduzir no arrefecimento de capacidade de resistência, neutralizando nossas potencialidades para a construção de outras realidades.

As atuais análises acidentárias parecem-nos, então, não estremecer vigorosamente os processos de trabalho que procuram aumentar a utilidade econômica do trabalhador e, concomitantemente, diminuir os perigos políticos; amplifica-se a força econômica ao máximo, diminuindo a força política ao mínimo.

Ao mesmo tempo, as instituições que compõem e se misturam, concomitantemente, aos acidentes de trabalho (por exemplo: fatalismo, produção da urgência, trabalhador proativo) "[...] passam a exigir respostas teórico-técnicas a serem dadas por especialistas, os quais novamente as instituem cada vez mais afastadas do que pulsa, do que flui, ascetizando as disputas e vontades que as constituíram" (BARROS, 2007, p. 95). Dessa forma, tais instituições, ao se naturalizarem como modos de ser e estar no mundo, despontencializariam as possibilidades de invenção de outras tantas realidades, outras tantas paisagens.

A exigência apolítica e a-histórica da aplicação das normas de segurança do trabalho, exigência que afirmaria a proteção da vida do trabalhador por meio de procedimentos disciplinares esquadrinhados pelas Normas de Segurança e Saúde, é metodologicamente inserida e afirmada, mas tais disciplinas:

[...] "permitem o controle minucioso das operações do corpo, que asseguram a sujeição constante de suas forças e lhe impõem uma relação de docilidade-utilidade", é o diagrama de um poder que não atua do exterior, mas trabalha no corpo dos homens, manipula seus elementos, produz seu comportamento, enfim, fabrica o tipo de homem necessário ao funcionamento e manutenção da sociedade industrial, capitalista (MACHADO, 2006, p. 173).

Buscamos, com a discussão acerca do biopoder e dos modos de investigação, possibilitar a abertura de mais uma frente de batalha na problematização quanto às contemporâneas formas de enfrentamento dos eventos acidentários. Desejamos expandir "um novo cenário de diferentes atos racionais – um horizonte de atividades, resistências, vontades desejos que se recusam a ordem hegemônica, propõem linhas de fuga e formam outros itinerários alternativos" (NEGRI; HARDT, 2006, p. 67).

Sendo assim, buscamos pensar posturas ético-estético-políticas que coloquem em análise os processos de constituição da investigação dos acidentes de trabalho. Enfim, pôr em análise os "objetos que, ao se naturalizarem, se descolam dos processos históricos, sociais, econômicos e políticos que os produziram" (BARROS, 2007, p. 95).

Notas

Recebido em: 14 de junho de 2010

Aceito em: 11 de abril de 2012

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  • 1
    Fonte:
  • 2
    "Já estão sendo sentadas as bases para a polêmica sobre se o estresses, o burnout e o assédio psicológico devem ser ou não considerados acidente de trabalho ou doenças profissionais, em sua consonância com a relação causal com o trabalho [...]. O assédio psicológico é parte integrante da violência no trabalho e ano após ano toma mais vítimas e no entanto mascare-se aquilo que deveria conceituar-se como doença ou acidente de trabalho sob o rubro da doença comum [...]" (RAMIREZ, 2003, p. 18).
  • 3
    "Acidentes Típicos – são os acidentes decorrentes da característica da atividade profissional desempenhada pelo acidentado" (BRASIL, 2007).
  • 4
    A expressão "acidente de trabalho típico" é uma definição que se foi construindo para categorizar um acidente de trabalho que se caracteriza tal como definido no art. 19 da Lei nº 8.213/91 (BRASIL, 1991).
  • 5
    "A evolução do trabalho do homem está associada a um passado de submissão, às Eras do Desenvolvimento e ao Triunfo da Razão, foi a dominação da natureza pela cultura. A Nova Era, sem dúvida a mais importante da história humana, está marcada pela autonomia da cultura ante as bases de nossa existência" (ESCORSIM et al., 2005, p. 11).
  • 6
    Quando nos referimos à palavra "produção", não estamos somente nos reportando ao modo de produção fabril, ou de mercadorias materiais (bens duráveis e não duráveis), mas, sim, à produção de modos de vida, modos de consumo, modos de estar na vida que mantêm todo um sistema de engrenagens para a produção do consumo. O consumo é ele mesmo um modo de produção.
  • 7
    É importante dizer que não houve um "etapismo" de fases. Não houve primeiro um
    deixar-viver, fazer-morrer, "fórmula" operada por um Poder Soberano, que detinha o direito real sobre a vida, de fazer a morte ser concretizada de forma instantânea e, depois, um fazer-viver, deixar-morrer. A inserção do biopoder ocorreu simbioticamente ao Poder Soberano. Eles se acoplaram, complementaram-se, nutriram-se reciprocamente.
  • 8
    "A abordagem das questões do risco é complexificada e ampliada, mas os fatores de risco pertinentes continuam exteriorizados e objetivados. São realidades nocivas, nefastas, a temer. Estamos, portanto, numa visão negativa do risco como fenômenos potencialmente perigosos em que é preciso justamente impedir a atualização de sua periculosidade" (NOUROUDINE, 2004, p. 39).
  • 9
    "As normas antecedentes são construções históricas heterodeterminadas e indicam valores de bem comum, redimensionados, institucionalizados no ambiente de trabalho" (SOUZA, 2009, p. xx). Podemos entender como normas antecedentes as normas "[...]propostas-impostas, ligadas a instâncias exteriores aos indivíduos, assim como há normas instauradas na própria atividade (renormatizações), ligadas ao próprio indivíduo" (SOUZA, 2009, p. xx). Temos, assim, que as normas antecedentes são aqueles condutas e orientações oficiais, bem como direções criadas durante a história das profissões e ofícios (SOUZA, 2009, p. xx).
  • 10
    Infidelidade do meio é um conceito produzido por George Canguilhem (2002).
  • 11
    O procedimento tem caráter meramente administrativo, é pré-processual e de natureza inquisitiva. "Nele não há uma acusação nem nele se aplicam sanções; dele não decorrem limitações, restrições ou perda de direitos [...] Não se decidem interesses; não se aplicam penalidades. Apenas serve para colher elementos ou informações com o fim de formar a convicção do órgão do Ministério Público" (NETO, 2006, p. xx).
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      14 Set 2012
    • Data do Fascículo
      Ago 2012

    Histórico

    • Recebido
      14 Jun 2010
    • Aceito
      11 Abr 2012
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